
2 minute read
Sou ainda a incerteza dentro da certeza
"Eu, visto pelo meu olhar"… seria um bom começo para uma composição, se eu conseguisse ser imparcial e extrínseca a mim, infelizmente não é possível, portanto comecemos com uma analepse.
Uma sexta-feira, a primeira do oitavo mês do ano de 2002, a primeira em que consegui respirar a calmaria do Alentejo, perturbada apenas pela euforia de uma família de três que acabara de passar a quatro. Se para uns acabava de despertar a responsabilidade de irmã mais velha, em mim apenas despertavam as traquinices de irmã mais nova. Em simultâneo, ia crescendo a menina, entre vestidos de princesas e as muralhas de amor que cercavam a aldeia do interior de nome tão glorioso quanto a sua infância.
Advertisement
A memória é algo que me trai com alguma frequência, mas é sem esforço que recordo a ingenuidade de criança, a maneira fácil como me deixava levar pelas conversas e brincadeiras de qualquer um. No entanto, era sobre o olhar atento de quem me conhecia melhor que eu, que sentia debaixo das estrelas, a brisa fresca do verão com o cheiro a eucalipto vindo da serra, que curava as feridas com aloé vera e ansiosamente esperava pelo dia seguinte e pelo que ele quisesse que eu fosse.
O tempo passou, a ingenuidade passou com ele, a vida tornou-me mais tímida, como uma flor que se prepara para o inverno austero. Felizmente, nem o tempo conseguiu, ainda, apagar a essência da menina, a maneira despreocupada de levar a vida e as recordações felizes que teimam em colar-se à saudade como lapas em rochedos. Percebo agora que fui isso: momentos, histórias, decisões bem ou mal tomadas; fui teimosa, difícil, determinada; fui precoce, com pressa de viver.
Tudo isto para dizer que ainda não sou, completamente, o que quis ser, sou o que o hoje me pediu que fosse. Sou agora o encerrar de um sonho, fecho de um
PORTUGUÊS – 2020/2021 143
ciclo, preocupações da incerteza; sou a construção de uns quantos sonhos maiores, grande parte começados a conceber há anos. Para além disso, sou um pouco do que cada um deixou em mim.
Não sei o que possa acrescentar ao presente, a verdade é que estou agora mesmo a experienciá-lo, portanto entre o turbilhão de expectativas e deveres, consigo apenas ouvir a voz que me pede que o faça intensamente. Faço por isso, não estivesse eu a escrever enquanto oiço o frenesim das gaivotas e olho o rio que desagua a trezentos quilómetros de casa. Nem mesmo ele parece calmo, não tem o ar pachorrento da água que corre no Alentejo.
Nada disto é e foi em vão, terá certamente uma continuação. Se serei daqui a alguns anos o que quero hoje, não sei; se serei melhor do que fui ontem, acredito que sim. A resiliência moldou-me de maneira sublime; o amor, a amizade, a confiança e a independência foram depositados em mim de forma inigualável, de tal modo que tudo o que se aproxima tem potencial para ser promissor.
Quero que assim seja, desejo que assim seja, mas não tenho garantias de nada. O futuro parece-me longínquo e não me toca a mim dizer como será, sou ainda a incerteza dentro da certeza, resta me esperar e desesperar por ele.
Margarida Mira
PORTUGUÊS – 2020/2021 144