Sou ainda a incerteza dentro da certeza
"Eu, visto pelo meu olhar"… seria um bom começo para uma composição, se eu conseguisse ser imparcial e extrínseca a mim, infelizmente não é possível, portanto comecemos com uma analepse. Uma sexta-feira, a primeira do oitavo mês do ano de 2002, a primeira em que consegui respirar a calmaria do Alentejo, perturbada apenas pela euforia de uma família de três que acabara de passar a quatro. Se para uns acabava de despertar a responsabilidade de irmã mais velha, em mim apenas despertavam as traquinices de irmã mais nova. Em simultâneo, ia crescendo a menina, entre vestidos de princesas e as muralhas de amor que cercavam a aldeia do interior de nome tão glorioso quanto a sua infância. A memória é algo que me trai com alguma frequência, mas é sem esforço que recordo a ingenuidade de criança, a maneira fácil como me deixava levar pelas conversas e brincadeiras de qualquer um. No entanto, era sobre o olhar atento de quem me conhecia melhor que eu, que sentia debaixo das estrelas, a brisa fresca do verão com o cheiro a eucalipto vindo da serra, que curava as feridas com aloé vera e ansiosamente esperava pelo dia seguinte e pelo que ele quisesse que eu fosse. O tempo passou, a ingenuidade passou com ele, a vida tornou-me mais tímida, como uma flor que se prepara para o inverno austero. Felizmente, nem o tempo conseguiu, ainda, apagar a essência da menina, a maneira despreocupada de levar a vida e as recordações felizes que teimam em colar-se à saudade como lapas em rochedos. Percebo agora que fui isso: momentos, histórias, decisões bem ou mal tomadas; fui teimosa, difícil, determinada; fui precoce, com pressa de viver. Tudo isto para dizer que ainda não sou, completamente, o que quis ser, sou o que o hoje me pediu que fosse. Sou agora o encerrar de um sonho, fecho de um PORTUGUÊS – 2020/2021
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