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Impossibilidade de ser inconsciente e ter consciência disso
Se não fizermos nada, e deixarmos que o tempo e os outros nos arrastem para frente, não podemos, de forma alguma, ficar satisfeitos com a nossa passagem na Terra. Temos de ser intencionais e escolher, pois, se tudo contribui para nos definir (desde o que dizemos àquilo que escolhemos guardar), melhor é sermos autênticos e implicarmo-nos em todas as decisões da nossa existência. Assim, poderemos construir quem somos, em lugar de nos deixarmos apenas moldar pelo vento e pelas ondas do mar que se cruzam connosco. Neste sentido, acredito profundamente que a melhor forma de percorrermos caminho na direção que acreditamos ser mais acertada, é escolher, principalmente as pessoas e os ambientes que nos rodeiam. Estes têm, inevitavelmente, um peso enorme na pessoa que somos e, sabendo isso, é crucial envolvermo-nos de quem nos ajuda a crescer, e que podemos tomar como exemplo.
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Quando somos mais pequenos, os nossos pais detêm um poder inquestionável nestas decisões, e, apesar de não ser a regra, devemos acreditar que procuram o melhor que nos podem dar. Ao olhar para trás, posso confirmar que, ao longo da minha infância, tive a oportunidade de crescer em “terreno fértil”, ou seja, em lugares transformadores, frequentados por pessoas inspiradoras, ricas em valores e pobres no que é fútil e desnecessário. Recordo-me, por exemplo, do olhar meigo das minhas educadoras, da imponência das árvores que aconchegavam a primeira escola onde andei, das cores da sala onde aprendi a ler – todos os mais singelos pormenores que influenciam, hoje, tanto a forma como encaro a natureza, como a curiosidade com que abro um novo livro! Efetivamente, acredito que aquilo que vamos vivendo tem um papel incalculável na construção dos mais finos traços da nossa personalidade, dada a forma como condicionam a visão que temos do mundo e, assim, ao falar de mim, tenho de recordar a paciência da D. Fernanda que acompanhou os meus primeiros passos, a primeira
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vez que andei de bicicleta, as tardes quentes no quintal dos avós que terminavam, invariavelmente, com um lanche preparado pelo avô e as “peguilhices” com o meu irmão, cujo aniversário, curiosamente, todos os anos coincide com o meu! Quando fui para o quinto ano, deixei uma escola onde fui muito feliz e de onde trouxe muitas recordações, às quais depois juntei dezenas de boas memórias no colégio, como as horas de almoço do terceiro ciclo, por exemplo. Houve, também, momentos menos bons, como aqueles em que me senti posta em causa, pela primeira vez e para os quais, olho, agora, de forma construtiva, pois considero que foram alguns dos saltos que eu precisava para crescer e para descobrir a importância de aprendermos a conviver com os outros, ainda que não estejamos sempre de acordo. Ainda no colégio, guardo alguns momentos com particular saudade, como é o caso da participação no encontro Claretiano em Fátima, no secundário, e das festas de Natal e de fim de ano, nos quais sempre fiz questão de participar, revelando, assim, a iniciativa que penso sempre ter feito parte de mim!
Além disso, tenho um especial carinho por algumas das pessoas com quem tive o privilégio de me cruzar, no colégio ou fora dele, e que, garantidamente, deixarão sempre saudade. Nessas alturas, penso na frase de Antoine de SaintExupéry, num dos livros que marcou, também, a minha infância – “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”, e sinto-me grata ao imaginar que trago comigo um bocadinho de cada uma dessas
pessoas.
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Olhando, então, para trás, encontro uma Ana, alegre, faladora, bemdisposta, com uma enorme determinação e teimosia em igual dose! Atualmente, penso que preservo, ainda, essas características sentido, no entanto, que a alegria de hoje já não é tão espontânea. Ao crescer, ganhamos consciência da complexidade do mundo – os problemas ganham outra dimensão e torna-se mais difícil descentrarmo-nos deles. Na verdade, encontrei em Fernando Pessoa a imagem que melhor traduz esta inquietação, uma vez que, em certa parte, identifico-me com o dilema que ele vive com a impossibilidade de ser inconsciente e ter consciência disso. Desta forma, apesar de muito feliz, sinto que, hoje, é mais difícil deixar-me preencher por uma felicidade tão simples e inocente, como, agora, tenho consciência que acontecia quando era pequena.
Hoje, sou uma rapariga mais desperta para as questões ambientais, tentando ser agente de mudança e incentivar os outros a mudar também, de forma a conseguirmos reverter a situação em que nos encontramos. Esta preocupação com o ambiente obriga-me a convocar todo o meu otimismo, pois penso que é a melhor forma de não me deixar desanimar perante algum egoísmo que encontro à volta deste tema. Além disso, sempre fui muito indecisa, característica acentuada, agora, com a necessidade de escolher um curso no ensino superior. Na verdade, penso que esta dificuldade advém da noção de que atravesso uma fase de descoberta e que, por isso, a cada dia que passa, aprofundo cada uma das dimensões que me caracterizam – descubro novos gostos, novos obstáculos e novos sonhos. Ainda nesta lógica, constato que sou uma pessoa racional, mas que também valorizo a nossa dimensão emocional, que nos torna diferentes uns dos outros e menos frios.
Olhando para o futuro, vejo a Ana em que me quero tornar - alegre, positiva, resiliente, capaz de pôr as contrariedades no seu lugar e de nunca se esquecer de sorrir! Vejo uma Ana que continua a encontrar na natureza uma enorme liberdade e a apreciar a paz quer do mar, quer das montanhas. Vejo uma Ana feliz por ter a sua horta e por ir de bicicleta para o trabalho; por poder ler um bom livro ao sol e fotografar cidades e paisagens novas. A Ana que vejo procura, ao jeito de Saramago, “não te[r] pressa, mas não per[der] tempo”, continuando, ainda, a lutar por fazer do mundo um lugar mais justo e florido e menos hostil. Assim,
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sei que há muito de vago no futuro que vejo, mas reconheço nele um pouco daquilo que acho mais importante, sabendo que ainda está ao meu alcance cultivar quem quero ser.
Por fim, retomando a ideia inicial, vejo a vontade de escolher e investir o meu tempo de forma intencional e enriquecedora e de certa forma, começando já hoje, dar-me por completo a tudo aquilo que me propuser, seguindo, assim, o conselho que nos dá Ricardo Reis nos dos seus poemas que mais gosto – “Para ser grande, sê inteiro: nada/ teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive.”
Ana Margarida Monteiro
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