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PADRE BARTOLOMEU LOURENÇO DE GUSMÃO
Afrustração de não conseguir voar sempre atormentou a humanidade. Se podemos andar como os animais terrestres, nadar como as criaturas marinhas e até mesmo nos arrastar e saltar feito répteis, por que não conseguimos alçar voo como os pássaros?
Pois eu, Padre Bartolomeu Lourenço Gusmão, passei a vida me dedicando a descobrir um meio de voar, não como as aves, pois não temos asas, mas através de alguma engenhoca que nos tirasse do chão. Por isso, ganhei o apelido de “Padre Voador”, embora nunca tenha conseguido voar.
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Nasci em 1685, na Vila dos Santos, na capitania hereditária de São Vicente. A capitania não existe mais, mas a vila se tornou uma cidade, e agora faz parte do Estado de São Paulo. Fui registrado como “português nascido no Brasil”, pois assim eram feitos os registros dos filhos de portugueses que vinham ao mundo em domínios da Coroa além-mar. O Brasil era então colônia de Portugal e terras de sua majestade. Minha família era bem grande, tenho mais irmãos do que os dedos das mãos, são onze, comigo doze filhos! Meu pai era português e minha querida mãe, brasileira. Assim como eu, a maioria dos meus irmãos decidiu seguir a vida religiosa, dedicando-se à Igreja.
Desde sempre as pessoas quiseram voar e, não conseguindo fazê-lo fisicamente, voavam em sonhos. Na Grécia Antiga, já se contava o mito do jovem Ícaro, que ganhou asas feitas com penas de pássaros coladas com cera de vela. Na história, Ícaro e seu pai Dédalo voaram para fugir do labirinto onde estavam presos, mas o filho, entusiasmado com a beleza do que via, voou alto demais, e o Sol derreteu a cera que unia as penas. As asas se desfizeram no ar e Ícaro caiu do céu.
Mas personagens que voam com asas estão apenas nas lendas. Nem o gênio Leonardo da Vinci, que viveu duzentos anos antes de mim, conseguiu alçar voo imitando os gaviões, as corujas e as pombas.
Assim foi, até o dia que o impossível me pareceu ser um sonho a se concretizar. Isso se deu quando descobri que o ar quente é mais leve que o ar frio. Alguns acham que percebi isso quando vi uma bolha de sabão subir mais rápido ao passar por cima da chama de uma vela. Outros imaginam que observei o papel picado que queimou, virou brasa e saiu voando. Mas ninguém sabe ao certo, então vou manter esse mistério.
Com essa ideia na cabeça, pedi licença ao rei de Portugal, Dom João V, para fazer uma experimentação. Eu tinha mais ou menos vinte e quatro anos e fiz várias tentativas: a primeira não deu certo, o pequeno balão pegou fogo antes de voar. Na segunda, voou quatro metros. Mas, como estávamos num salão, os criados do rei acharam que o balão poderia causar um incêndio e o destruíram. Na terceira tentativa, o balão, que levava uma vela acesa em seu interior, conseguiu fazer um voo curto, mas pegou fogo ao pousar. Na quarta tentativa, ao ar livre, o balão voou até que caiu apagado.
E, finalmente, na quinta experiência deu certo! No interior do Palácio Real, o balão subiu até o teto, ficou flutuando um pouquinho e desceu com suavidade.
Patenteei minha invenção em Lisboa como “um instrumento para se andar no ar”. Na verdade, porém, nunca consegui fazer uma viagem num balão, o que só aconteceu muito tempo depois, em 1783, quando foi construído o primeiro balão tripulado com sucesso.
Mesmo assim, a fama de meu invento se espalhou. Foi aí que ganhei meu apelido. Começaram a circular desenhos da minha criação, que ficou conhecida como “Passarola”. Era a ilustração de uma barca em formato de pássaro, que não mostrava muito bem os mecanismos que a faziam voar. O desenho foi feito por um aluno meu. Ele me mostrou a ilustração e eu achei que seria um ótimo jeito de esconder a verdadeira forma de a engenhoca levantar voo. Com a Passarola, fiquei conhecido. Uns me achavam genial. E outros nem tanto…
Na vila onde nasci, tinha só uma escola, o Colégio de São Miguel, onde realizei meus estudos até ir para a Bahia. Depois disso fui para o Seminário de Belém, e lá comecei a estudar para me tornar padre. Nessa época, me descobri como inventor!
Foi assim que aconteceu: o seminário ficava no topo de um monte de cem metros de altura. A água que se usava no colégio vinha de um riacho localizado embaixo, no pé da montanha. Dava um trabalhão danado levar os baldes para cima. Então inventei uma bomba hidráulica, que elevava a água do riacho até o seminário. Foi um sucesso! Meu invento foi registrado, a patente foi expedida em 1707 pelo rei português. Sou o primeiro brasileiro a patentear uma invenção, por isso sou considerado o primeiro cientista das Américas.
Quando terminei o seminário, fui para Salvador, onde ingressei na Companhia de Jesus. Antes de ser ordenado na Ordem Jesuíta, regressei a Portugal para estudar na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra. Terminados os estudos, a convite de Dom João V, ocupei um cargo no Ministério das Relações Exteriores. Na Secretaria de Estado, me tornei uma espécie de agente secreto. Cabia a mim decifrar mensagens codificadas de outros reinos. A espionagem era uma prática muito comum nas cortes europeias. E eu era muito bom nisso, descobria os códigos de todas as mensagens. O rei e meus superiores sempre reconheceram minha inteligência. Imaginem que eu era capaz de abrir um livro que nunca tinha visto, ler três ou quatro páginas e repeti-las, sem olhar, palavra por palavra. E eu recitava não de cima pra baixo (como lemos naturalmente), mas começava com a última palavra da página até chegar ao início, deixando todos boquiabertos com minha façanha.
Eu era estimado pelo rei e tinha uma alta posição na Corte portuguesa. Devo isso, em parte, a meu irmão Alexandre de Gusmão, que era um respeitado embaixador. Ele havia ajudado o monarca nas negociações do Tratado de Tordesilhas, que distribuiu as áreas do Novo Mundo entre Espanha e Portugal.
Eu havia inventado o balão, a bomba elevatória de água e não parava por aí. Também criei uma forma de tirar água de dentro das embarcações. O que acontecia é que os navios com frequência enchiam de água e terminavam afundando. Na época, chamei meu invento de “processo para esgotar água dos navios alagados”. O maquinário aproveitava a energia do vento, das ondas ou das correntezas, por meio de um jogo de pesos e contrapesos e de uma série de canaletas inclinadas, para remover a água acumulada nos porões dos barcos.
São muitas as ideias mirabolantes e bem-sucedidas que brotavam de minha cabeça - até um sistema de lentes para assar carne ao Sol, eu bolei. Mas tantos méritos não me pouparam da Santa Inquisição, uma instituição cruel formada pelos tribunais da Igreja Católica que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de se desviarem de suas normas de conduta.
Porém não foram os meus inventos que me trouxeram problemas, a Inquisição não se preocupava com descobertas científicas. Eram os idos de 1720 quando comecei a ser perseguido. Não vou entrar em detalhes, mas uma das confusões foi causada pela paixão que tive por uma moça que também fazia bater o coração do rei. Quem pode disputar um amor com o soberano?
Tive que fugir e destruí todos os meus documentos, por isso, infelizmente, não sobraram muitos desenhos das minhas invenções. Que pena! Entretanto, são águas passadas levadas na poeira do tempo. O que me deixa muito feliz é saber que o balão que inventei é lembrado até hoje. Soube que, em 1922, o grande inventor Alberto Santos Dumont disse a meu respeito: “A vossa justiça, toda a vossa justiça, não pode e não deve esquecer o primeiro, o precursor Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o primeiro da aviação, também nosso, também brasileiro, ao lado do qual está o meu orgulho, que não poderá ser maior”.