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VITAL BRAZIL
No final de 1899, minha família respirou aliviada: agora as cobras estavam em um local apropriado. Até eu ficava um pouco tenso pensando que não era a melhor ideia manter as serpentes em um quartinho ao lado de casa. Para ter uma boa coleção de espécimes, eu pedia aos vizinhos que me trouxessem cobras vivas e os pagava pelo serviço. E ainda tinha um detalhe: eu alimentava as serpentes duas vezes por mês, com ratos e camundongos. Em boa hora foi inaugurado o Instituto Butantan, instalado em uma antiga fazenda, na zona Oeste de São Paulo. Para chegar até lá, posso ir por uma estrada de terra, onde só trafegam carroças puxadas por cavalos ou bois e sendo necessário atravessar uma ponte que me parece bastante insegura.
Venho de barco pelas águas claras do rio Pinheiros. Se vocês estranham eu me referir às águas como claras é porque estamos nos primeiros anos de 1900. Embora todos saibam que, com as chuvas, as águas do rio sobem, às suas margens estão localizados sítios, fazendas e moinhos. De tempos em tempos, tudo é alagado. Quer dizer, não a fazenda Butantan, onde as terras elevadas ficam secas, duras. Daí seu nome indígena: Butantan, que significa terra dura.
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Já o meu nome, ganhei por ter nascido no Dia de São Vital. E sendo, antes de tudo, brasileiro, e por ter vindo ao mundo na cidade de Campanha, em Minas Gerais, fui registrado como Vital Brazil Mineiro da Campanha. Vamos facilitar: podem me chamar de Vital Brazil. Muito prazer.
Sou médico e sanitarista. Quando me formei, a humanidade estava começando a prestar atenção na prevenção de doenças. Que bom que na época em que recebi meu diploma já estavam sendo criados institutos para estudar as bactérias e produzir vacinas. Minha primeira tarefa como médico foi acompanhar e combater doenças infecciosas. Era um trabalho no qual eu sempre corria riscos, tanto que acabei sendo picado por um mosquito infectado e contraí a febre amarela.
Pouco tempo depois, já com a saúde restabelecida, recebi um convite para ser clínico na cidade de Botucatu, no interior paulista. E foi lá que as cobras entraram em minha vida: em um triste dia me trouxeram uma menina de 14 anos que tinha sido picada. Não existia ainda antídoto para o veneno; não havia nada que eu pudesse fazer e a menina morreu nos meus braços. Naquele momento, resolvi que iria pesquisar a cura para as picadas de cobras e de outros animais peçonhentos, como os escorpiões e as aranhas.
Não havia a internet, então era muito mais complicado trocar informações com outros pesquisadores. Escrevíamos cartas e, embora fosse possível falar ao telefone, era necessário o auxílio das telefonistas para se completar as chamadas.
Eu estava realizando experiências com extratos vegetais, quando soube que cientistas franceses buscavam desenvolver um soro a partir da peçonha das serpentes. Peçonha é outra palavra que usamos para veneno. A ideia era uma novidade. Claro, a cura podia estar no próprio mal! Veneno contra veneno! Bingo! Achei que eles estavam no caminho certo. Era hora de deixar a roça e voltar para a capital, onde seria mais fácil seguir com minhas pesquisas.
Em São Paulo, fui contratado para trabalhar no Instituto Bacteriológico, que havia sido fundado para lidar com as enfermidades que se abatiam sobre a população. O trabalho era muito e a equipe, pequena.
No comando do Instituto estava Adolfo Lutz, meu querido amigo. Ele permitiu que eu seguisse com meus estudos e me deu ótimos conselhos. Inclusive foi ele quem criou o laço mais seguro para capturar uma serpente, sem que o animal fosse ferido. O instrumento foi batizado como “Laço de Lutz”.
Bem, voltemos aos cientistas franceses. No Instituto Pasteur, em Paris, um pesquisador chamado Calmette tinha desenvolvido um antídoto a partir da peçonha da cobra naja-indiana. Acreditavase que este antídoto serviria contra a picada de todas as cobras. Aqui, eu trabalhava com espécies brasileiras. Quando consegui que uma ampola do soro produzido na França chegasse às minhas mãos, me apressei em testar, mas, para minha surpresa, o soro não funcionou. Imaginei que talvez a teoria de um único antídoto para todas as picadas estivesse errada.
Justo naquele momento uma epidemia mortal teve início no porto de Santos. Era 1899, e os aviões, até ali, não tinham sido inventados. Imaginem, então, a importância dos navios: era neles que as pessoas e as mercadorias atravessavam os continentes. As autoridades ficaram em estado de alerta, pois uma doença infecciosa no porto era terrível para as pessoas e para a economia.
Eu, que já havia combatido a febre amarela, fui para Santos e montei um pequeno laboratório para pesquisar o que estava acontecendo. Examinando os ratos, descobri que se tratava da temível peste bubônica, também conhecida como peste negra. Era preciso isolar a cidade. Assim como aconteceria no futuro, em outras pandemias, muita gente reclamou da quarentena e do isolamento: “Vamos perder dinheiro”; “O comércio vai ser prejudicado”. Mas as vidas valem mais que o dinheiro, não é?
Os cientistas logo descobriram que eram as pulgas as transmissoras da bactéria que causava a peste. Elas picavam os ratos e eles eram infectados. A essa altura, já existia um soro que podia curar os doentes. Contudo o mundo todo precisava do soro e ele não chegava em quantidade suficiente ao Brasil. Não bastasse o contágio com a febre amarela, também fui infectado pela peste bubônica.
Enfim recuperado da peste, assim que a terrível pandemia cessou, pude deixar Santos e voltar para São Paulo, a fim de continuar minhas pesquisas, procurando entender o porquê do antídoto francês para picada das cobras não funcionar aqui.
Quando retornamos ao Instituto Bacteriológico, percebemos como ele era pequeno para acomodar as serpentes, os estábulos e também os laboratórios para estudos e desenvolvimento de imunizantes.
O Governo paulista comprou, então, a fazenda Butantan, para a instalação de nosso instituto. Lá havia espaço suficiente para construirmos tudo de que precisávamos.
Um serpentário não podia faltar. Em uma área bem grande e gramada, foram instaladas várias casinhas redondas que lembravam iglus, ou melhor, cupinzeiros, que funcionavam como tocas. As serpentes gostam de se aninhar para se proteger de predadores, do frio e da chuva. Um canal com água e uma mureta lisa evitavam que fugissem. Afinal, uma boa parte delas era venenosa. Essa construção garantia o bem-estar dos animais, que viviam em liberdade, e a nossa segurança.
Na antiga fazenda já existiam estábulos, que foram reformados e aproveitados. Os cavalos são animais capazes de desenvolver o antídoto para combater o veneno de serpentes. Diferentemente de nós, humanos, que quando somos picados não podemos combater o veneno, o corpo dos cavalos produz anticorpos dentro de seu próprio sangue.
Coletávamos o veneno das serpentes, enfraquecíamos a peçonha e aplicávamos pequenas doses nos cavalos. Depois de um tempo, colhíamos um pouco do sangue do animal e extraíamos da amostra os anticorpos, que são os responsáveis por combater o veneno. O incrível é que, até hoje, essa continua sendo a base do desenvolvimento de qualquer soro e, também, de vacinas.
Uma vez que as pesquisas progrediram, e um soro eficaz já tinha sido descoberto, era hora de iniciarmos a produção e precisávamos de cada vez mais espécimes. Mas de que forma obter tantas cobras?
Como já havia feito com meus antigos vizinhos, iniciamos uma parceria com os agricultores, que sofriam constantes ataques de cobras quando iam trabalhar em suas roças. Distribuímos para os moradores do campo os Laços de Lutz e caixas de transporte. Assim, os agricultores capturavam e nos enviavam as serpentes. Em troca, recebiam soro antiofídico e seringas, passando a estar protegidos em caso de picadas.
As companhias de trem transportavam de graça nossas caixas, que vinham com etiquetas bem grandes escrito COBRA, para impedir que algum desavisado abrisse as caixas. Dava certo. Passamos a receber uma grande quantidade e variedade de cobras peçonhentas e intensificamos ainda mais nossas pesquisas, o que nos permitiu provar que para cada espécie de serpente há um soro específico.
Passei a representar o Brasil em missões científicas em diferentes países. E um caso curioso aconteceu quando eu estava em uma conferência em Nova York, em 1916. Fui acordado no meio da noite para socorrer um homem que havia sido picado por uma serpente no zoológico do Bronx. Havia três dias que ele vinha sendo tratado por diferentes médicos sem sucesso. Por sorte, eu tinha levado soro em minha bagagem e assim pude curá-lo. Isso me fez acreditar, ainda com mais convicção, que estava no caminho certo.
Um ano depois, quando finalmente recebi a patente que reconhecia a descoberta do soro antiofídico, não hesitei em fazer a doação ao Governo brasileiro, para que todos tivessem acesso a um avanço tão importante da ciência.