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ADOLFO & BERTHA LUTZ

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ESCRITORES

ESCRITORES

Sou filha de Adolfo Lutz, um homem discreto, alto, que usava óculos de armação redondinha e o bigode que era moda em sua época. Meu nome é Bertha Lutz. Ao ver uma fotografia do meu pai com um grupo de importantes sanitaristas de São Paulo, me vêm muitas lembranças.

Papai vivia olhando o mundo ao redor e se questionando. Um cientista precisa estar o tempo todo se fazendo perguntas para, com sorte, descobrir algumas respostas. Como um porco e um ser humano podem contrair a mesma doença? Um mosquito, com aquele corpo tão pequenininho, é capaz de carregar uma doença tão grave, que derruba um ser humano? O que é a doença das cadeiras das vacas? Estas eram algumas das questões que ele levantou observando os animais grandes, assim como os seres minúsculos. E, por falar em minúsculos, papai também se interessou pelo bicho-de-pé, que é a menor das pulgas. Quando adulto, tem só um milímetro de comprimento, mas causa um incômodo danado na gente e nos porcos. Quando andamos descalços, uma fêmea grávida do bicho-de-pé pode entrar na nossa pele. E aí coça que é uma doideira.

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Desde criança, o maior divertimento de papai era observar e colecionar espécies de animais e plantas. Mal fez cinco anos, ele já dizia, para espanto de vovó, que ia dedicar sua vida inteira a pesquisar a natureza. Ele morava na Suíça e, aos dez anos, escreveu para a irmã Helena, que havia se mudado para o Brasil: “A primavera principiou com vigor e os brotos das árvores estão se abrindo. Este ano há muitas violetas e eu conheço os melhores lugares em que podemos encontrá-las”.

Na mesma carta, ele fazia encomendas. Não queria presentes normais. Pedia coisas que, para alguns, podem parecer estranhas: “Não se esqueçam de nos enviar alguns caramujos, cavalinhosmarinhos, conchas de moluscos e pedras mais raras”. E ainda pedia, caso fosse possível, vários exemplares para que ele pudesse trocar com os amigos.

Outro ponto em comum era que nós viajávamos um bocado. Corremos mundo, como se diz por aí. Ele esteve em vários países da Europa, dos Estados Unidos, da Oceania e, na América do Sul, visitou o Uruguai, a Argentina e a Venezuela. Ufa! Outro dia, eu estava lendo os diários da viagem que papai fez ao rio São Francisco, indo de Pirapora até Juazeiro, visitando os povoados ribeirinhos.

Meus pais se conheceram na ilha Molokai, no Havaí, quando ele estava estudando uma das doenças mais temidas naquele tempo, a hanseníase, que talvez vocês conheçam com o nome de lepra. Era um médico corajoso e humano, que jamais evitou contato direto com os doentes.

Falando em viagens, uma que fiz e de que mais gosto de me lembrar aconteceu em 1945. Eu me sinto muito honrada de ter feito parte da delegação brasileira que estava nos Estados Unidos quando foi escrita a Carta da Organização das Nações Unidas. Entre 850 delegados de 50 países, só havia seis mulheres – e uma delas era eu, Bertha Lutz! É claro que fiz questão de garantir que a Carta falasse da igualdade entre homens e mulheres. Sempre fui uma feminista.

Nasci em São Paulo no fim do século XIX. Nos dias de hoje, ainda bem, as mulheres dirigem empresas, pilotam aviões, são cientistas reconhecidas, votam e são eleitas líderes de grandes nações, mas na minha minha juventude era bem diferente.

Para minha sorte, meus pais já entendiam que mulheres e homens tinham os mesmos direitos à educação, ainda que poucas pessoas pensassem assim. Eles sempre me incentivaram para que eu chegasse à universidade e trabalhasse. Amy Fowler, minha mãe, era enfermeira e se interessou pela área de microbiologia, pesquisando seres vivos tão pequeninos, que só podem ser vistos com microscópio. Segui um caminho muito diferente do da grande maioria das meninas do meu tempo.

Fiz o Colegial na Inglaterra, onde pela primeira vez ouvi falar das sufragistas, mulheres que lutavam pelo direito ao voto feminino. Naquela época a política era considerada “coisa de homem”. Vê se pode! As mulheres não podiam votar nem ser eleitas para um cargo público. Elas só deviam se dedicar aos cuidados da casa e da família. Um absurdo. Cursei a universidade na França e me formei em zoologia, botânica e ciências naturais. Como diz o ditado, filha de peixe, peixinho é. Segui a carreira dos meus pais.

Quando começou a Primeira Guerra Mundial, meu irmão, mamãe e eu estávamos na França e nos vimos separados de papai. No Brasil, ele mergulhou em suas pesquisas, trabalhando em Manguinhos.

Escrevi uma carta para meu pai: “Estou certa de que suas coleções são muito interessantes. Eu adoraria estar aí para ajudar. Você não gostaria que eu voltasse agora? Não gosto que você esteja tão sozinho, e, além disso, tenho certeza de que aprenderia muito mais com você, na prática, do que na universidade da Sorbonne”. A vida toda o admirei, tenho muito orgulho de ser filha de um grande cientista.

Papai fez experiências junto a Emilio Ribas sobre a transmissão da febre amarela. Acreditava-se que a moléstia era contraída tendo contato com as fezes e a urina de pessoas contaminadas. Mas os dois cientistas queriam provar que esta tese estava errada e que o transmissor da febre amarela era um mosquito. Autorizados pelo Governo, no Hospital de Isolamento de São Paulo, fizeram um experimento: eles e mais alguns médicos voluntários se deixaram picar por mosquitos infectados. Três deles adoeceram.

Depois, três outros voluntários ficaram fechados por 20 dias em quartos protegidos contra mosquitos, onde estavam várias peças de roupas e objetos sujos de urina, vômito e fezes de doentes da febre. E dessa vez ninguém teve febre amarela. Uma comissão médica atestou: Adolfo Lutz e Emilio Ribas estavam certos, o transmissor era o mosquito!

Meu pai era muito metódico, organizado. Uma coisa que ele sempre fazia era olhar um termômetro que tinha em casa para decidir que roupas deveria vestir. Um dia especialmente quente, o termômetro quebrou, ele não percebeu e aí apareceu no trabalho com roupas pesadas de inverno. Às vezes nossos métodos não dão certo. Acontece.

Ele trabalhou como médico, e todo mundo dizia que ele era muito bom em dar diagnósticos. Papai analisava todas as possibilidades para descobrir o motivo da moléstia do paciente. Diagnosticou muitas doenças transmitidas de um bicho para o outro. Era especializado em doenças infecciosas, por isso foi convidado a dirigir o Instituto de Bacteriologia, que, como o nome diz, estuda as bactérias.

Uma curiosidade: “backterion” significa, em grego, pequeno bastão, e “logos” é estudo. Algumas bactérias são compridinhas, os bacilos, daí o nome bastões. Pneumonia, tétano, cólera, leptospirose e tuberculose são algumas doenças causadas por bactérias. Mas nem todas as bactérias nos fazem mal, algumas são boas, como os lactobacilos, que ajudam a flora do nosso intestino.

De volta ao Brasil, resolvi concorrer a uma vaga para o Museu Nacional. Foi um escândalo! Uma mulher querendo ser funcionária pública, onde já se viu, era o que muitos falavam. Saiu até nos jornais! Corria o ano de 1919, vejam bem, precisei mesmo de uma autorização para me inscrever, pois os concursos públicos brasileiros destinavam-se apenas aos homens. Minha simples inscrição fez com que um dos candidatos desistisse de tentar a vaga, considerando um insulto competir com uma candidata do sexo feminino. Ainda bem que o mundo rodou e as coisas mudaram.

Movido pela curiosidade, papai também classificou espécies de nossa fauna. Fiquei fascinada por suas observações de sapos e rãs. Só um curioso mesmo ia reparar que um tipo de rã coloca seus ovos em cima de folhas em solo seco, e outro os coloca na água sobre as folhas das bromélias.

Com certeza, eu e ele adorávamos os sapos. Continuei suas pesquisas, viajando em expedições pelo Brasil e cataloguei mais de 4.400 espécies nacionais. Descobri que o coaxar das pererecas varia de uma espécie para outra. No período de reprodução, um macho do Cerrado emite sons longos semelhantes a assobios para atrair a fêmea. Essa perereca foi batizada com meu sobrenome: Aplastodiscus Lutzoerum. Aliás, também dei nome a outros sapos e pererecas, como Dendropsophus berthalutzae e Scinax berthae

O trabalho de papai foi reconhecido: o Instituto de Bacteriologia, que fica em São Paulo, hoje se chama Instituto Adolfo Lutz! Doei todo nosso acervo de pesquisa para o Museu Nacional. Mas, infelizmente, os originais foram queimados no grande incêndio que destruiu o museu em 2018. Uma pena!

Recebi muitas homenagens e condecorações. Foi até criado o diploma Bertha Lutz, que é oferecido anualmente pelo Senado Federal a pessoas que lutam pela defesa dos direitos da mulher. Mas darem meu nome a um dinossauro, isso sim foi divertido! Todos conhecem o Tiranossauro rex, que pertence ao grupo dos terópodes. Uma terópode, encontrada no interior do Paraná, foi chamada de Berthasaura leopoldinae. Divido a honra com a imperatriz Maria Leopoldina, defensora das ciências naturais, que viveu no Paço Imperial de São Cristóvão, depois transformado em Museu Nacional. Fiquei feliz em saber que assim serei sempre lembrada no museu em que comecei minha carreira!

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