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OSWALDO CRUZ
Era Carnaval, e pela minha janela chegava a cantoria dos blocos passando na rua:
Bem no braço do Zé povo chega um tipo e logo vai Enfiando aquele troço, a lanceta e tudo mais
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“Enfiando aquele troço”, vê se pode! O nome correto era “lanceta”, um antepassado da seringa, na minha época era a forma mais segura de aplicar as vacinas. Tem esse nome porque parece uma pequena lança, ou uma lança leve, daí lanceta. Uma gotinha da vacina era colocada na ponta e por um pequeno corte no braço, pronto: a vacina era aplicada, e a pessoa, salva!
Mas a lei manda que o povo e o coitado do freguês Vá gemendo na vacina ou então vá pro xadrez
Estes versos são de uma das marchinhas mais cantadas naquele Carnaval, dos primeiros anos de 1900, e me enchiam de tristeza.
Depois de tantas pesquisas para disponibilizar uma vacina que livrasse a população do Rio de Janeiro da varíola, era surpreendente essa resistência e o deboche, pensava eu, Oswaldo Cruz, nas minhas noites em claro.
Deviam ter medo era da doença, que matava um terço dos infectados, e não da vacina, que protegeria todos. O Rio era conhecido no exterior como “túmulo de estrangeiros”. Parece que esse terrível apelido se deve ao fato de que, em 1895, um navio italiano atracou no porto da cidade e a viagem acabou virando uma grande tragédia. Dos 340 tripulantes, 333 pegaram febre amarela e 234 não sobreviveram.
Isso porque, apesar do Rio ser a capital do Império, as condições sanitárias e de higiene eram tão ruins que as doenças se espalhavam num piscar de olhos. A cidade que tanto amo sofria com os surtos de febre amarela e varíola.
E a população, o que fazia? Dava ouvidos a toda sorte de boatos. O mais absurdo deles dizia que quem se vacinasse contra a varíola ficava com cara de boi! Será possível alguém acreditar nisso? Pois havia quem, e eram muitos!
De onde saiu tamanha bobagem, não sei ao certo, mas acho que a onda pode ter começado pelo fato de a vacina ter sido desenvolvida a partir de um tipo de varíola que acometia vacas, e percebeu-se que quem ordenhava as vacas ficava imune à varíola humana. É por isso que a palavra “vacina”, que em latim significa “de vaca”, passou a designar todas as aplicações que produzem anticorpos. Nós seríamos mágicos e não cientistas se conseguíssemos transformar pessoas em animais com apenas uma gotinha. Ai, ai, virar boi é o fim da picada.
Nasci em uma chácara onde meu pai, que era médico, também atendia seus pacientes. Aos 21 anos, me casei com a Miloca, apelido de Emília, minha namorada desde a adolescência. Miloca era filha de um rico comerciante português, o comendador Manuel José da Fonseca. No início, meu sogro não aprovou o namoro, mas com o tempo nos tornamos amigos, tanto que recebi dele de presente de casamento um laboratório completo de microbiologia, o que foi de grande ajuda em minha carreira. E quando quis aprofundar meus estudos no exterior, foi ele quem financiou minha viagem, a de Miloca e a de nossos filhos para a França.
Fui o primeiro brasileiro a estudar no Instituto Pasteur, em Paris, referência na pesquisa científica de doenças infecciosas. Lá, frequentei uma fábrica de vidros e aprendi a confeccionar todo tipo de material usado em laboratório, como as primeiras ampolas. Assim, quando trouxe esse conhecimento para o Brasil, o país não precisou mais importar esses materiais.
Não fui eu quem inventou a vacina contra a varíola, muito menos o medo. Essa vacina foi descoberta em 1796 por um médico lá na Inglaterra, cem anos antes de eu ser nomeado ao cargo. Mas a desconfiança das pessoas que não conhecem a ciência sempre foi grande. Meu papel foi cuidar da população, cumprindo a lei da vacinação obrigatória.
Talvez devêssemos ter explicado melhor como uma vacina funciona. É assim: pegamos microrganismos parecidos com os que causam a doença que queremos combater, o próprio vírus ou as bactérias enfraquecidos ou mortos, e aplicamos nas pessoas. Nosso corpo, que é uma máquina muito esperta, na mesma hora, entende que aquilo poderia nos causar perigo e manda um alerta para nossas defesas: “SOS! SOS! Alguma coisa estranha chegou e quer nos fazer mal”. Na vacina, os vírus e as bactérias estão bem fraquinhos, então, vencemos fácil essa luta. A vacina da varíola era como um treinamento para que, depois da aplicação, o corpo passasse a ter um exército pronto e alerta para combater o inimigo.
A varíola é causada por um vírus muito resistente e contagioso. A transmissão se dá de pessoa para pessoa. Por isso, tive que tomar medidas radicais: vacinação obrigatória, isolamento dos doentes, notificação dos casos da doença e desinfecção das casas. Só os vacinados podiam ser contratados para trabalhos, matriculados nas escolas e teriam permissão para viajar. Precisei até autorizar que os médicos entrassem na casa das pessoas, mesmo daquelas que não queriam abrir as portas. Todos deviam ser vacinados, só assim a cidade estaria livre da pandemia.
Então teve início a confusão. Os jornais começaram a nos difamar, dizendo que as medidas para a saúde eram um “código de torturas”. As marchinhas de Carnaval ridicularizavam o que fazíamos. Pessoas que não acreditavam na vacina reagiam de forma violenta. Imaginem que até o Congresso Nacional protestou e organizou uma liga contra a vacina obrigatória. Contra a vacina?! Como uma parte do Governo era contra? O que estava acontecendo?
No dia 13 de novembro de 1904 (ah, me lembro bem dessa data, como poderia esquecer?), estourou uma rebelião que ficou conhecida como “A Revolta da Vacina”. Houve quebra-quebra, troca de tiros, mortes, incêndios e manifestantes presos. Muita gente na rua. Minha casa foi apedrejada durante a noite. Temi por minha esposa e pelas crianças.
Mas por que tamanha reação se a vacina só causava o bem e não fazia mal algum? A verdade é que havia muitos outros problemas e a tensão era grande. Nessa época, o Rio era a capital do Brasil e de onde o presidente governava. Uns queriam depor o presidente e trazer de novo um rei, um monarca da família imperial. Eram os monarquistas, que desejavam recuperar as regalias que tinham perdido.
O Brasil tinha abolido a escravidão havia poucos anos. Homens, mulheres e crianças que tinham sido escravizados foram abandonados à própria sorte. Saíam das fazendas sem dinheiro e partiam para a capital, iam viver em cortiços, onde já moravam muitas outras pessoas pobres. Justamente nesse período, o prefeito Pereira Passos estava iniciando uma transformação no Centro do Rio. Para que as ruas fossem alargadas, esses cortiços e muitas casinhas estavam sendo derrubados.
Já não era permitido levar as vacas de casa em casa para fornecer o leite, nem vender miúdos e carnes nas ruas do Centro. E as medidas que tomei no combate à varíola foram a gota d’água. A revolta explodiu. Uma semana depois, o Governo derrotou a rebelião, mas suspendeu a obrigatoriedade da vacina, o que foi um grande retrocesso, já que alguns anos depois, em 1908, um novo surto de varíola infectaria mais de 9 mil pessoas na cidade.
A varíola não era minha única missão, infelizmente. Eu também precisava combater outras enfermidades. Como a cidade não tinha saneamento e o esgoto corria a céu aberto, o cheiro era muito ruim. Todos achavam que a malária era causada por esses “maus ares”, daí o nome da doença. Foram os pesquisadores cubanos que descobriram que não era nada disso e que a transmissão da doença era feita pelo mosquito aedes aegypti, o mesmo agente que no futuro causaria a dengue. Ciência é assim, compartilhamos descobertas para o bem da humanidade. Se os mosquitos eram os culpados, precisávamos de uma estratégia para combatê-los. A solução foi encontrar os locais com água parada e acabar com os focos, instalar mosquiteiros nas casas e pulverizar as ruas com inseticida. Adivinhem! Novamente teve gente que não acreditou na ciência e até me desenharam em uma caricatura no jornal de cartola e com corpo de mosquito.
Varíola, malária e ainda tinha a peste bubônica - no começo de 1904, lutando contra essa moléstia, criei uma equipe que percorria os bairros do Rio, espalhando veneno de rato e removendo o lixo. Aí pensei cá com meus botões: e se a população nos ajudasse a capturar os ratos, causadores da doença? Quanto mais gente envolvida, mais rapidamente resolveríamos o problema. Como quem trabalha de graça é relógio, consegui autorização para pagar cem réis por rato morto entregue aos agentes sanitários! Ai, ai, que arrependimento. Assim que a notícia se espalhou, surgiram mais marchinhas de deboche. Uma delas tinha um trecho que dizia assim:
Rato, rato, rato
Assim gritavam os compradores ambulantes
Rato, rato, rato,
Para vender na academia aos estudantes
Rato, rato, rato
Dá bastante amolação
Quando passam os garotos, todos rotos
A comprar rato, capitão
Não se pode acertar sempre nas táticas, o importante é vencer as batalhas. A peste bubônica chegou primeiro em São Paulo, estive lá para atestar a pesquisa de Adolfo Lutz e Vital Brazil. Naquele momento, todas as vacinas eram produzidas no Instituto Pasteur, em Paris, em quantidades que não eram suficientes para atender ao mundo todo que sofria com a peste bubônica. Estava na hora das cidades brasileiras terem seus próprios laboratórios para a fabricação da vacina. Assim foi criado o Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro. Escolhemos o endereço em uma fazenda que ficava distante do centro da cidade, próximo à Baía de Guanabara, em Manguinhos.
Minha meta como diretor do Instituto tinha três objetivos: pesquisa, ensino e fabricação de produtos biológicos. E para o projeto do prédio principal, eu imaginava uma construção que chamasse a atenção de todos e que tivesse uma aparência espetacular. Visitei a reforma da Igreja da Penha e conheci o arquiteto responsável, Luiz Moraes Junior. Por coincidência, nos encontrávamos no trem no trajeto para nossos trabalhos, e conversávamos como seria este prédio, que abrigaria os laboratórios mais avançados para a época. Eu estava animado!
Fiz o primeiro desenho pensando na arquitetura imponente das igrejas, e imaginei mosaicos decorando o prédio. Mas o arquiteto tinha outras ideias e, inspirado nos palácios e mesquitas árabes, refez meu desenho (os mosaicos, ele manteve). O estilo mourisco estava na moda naquela época. Eu gostei da proposta, tinha um ar misterioso e combinava com uma instituição dedicada a inovações na ciência e aos segredos da vida. Além disso, na França existia um importante Observatório Meteorológico também construído em estilo mourisco. Mas foi durante uma viagem à Alemanha que eu e o arquiteto conhecemos a Nova Sinagoga de Berlim e nos apaixonamos por suas torres imponentes. Era a “cereja do bolo” que faltava no desenho final do prédio.
Nunca abri as portas desse castelo. A obra, iniciada em 1903, só foi totalmente concluída 44 anos depois, em 1947, quando eu já não estava mais aqui. Afinal, dá muito trabalho construir um prédio desse tamanho. São muitos laboratórios, cocheiras para os cavalos (para testes das vacinas), biblioteca e inúmeras salas. O pavilhão tem torres que medem trinta metros de altura, em quatro andares decorados com mosaicos. As escadas são de mármore, as paredes, decoradas com folhas de ouro e, no teto do último andar, há um vitral colorido. E, pasmem, também foram instalados elevador e rede telefônica interna, tecnologias muito modernas. Tudo isso não poderia mesmo ter sido feito da noite pro dia!
Enche-me o peito de orgulho dar nome a essa instituição: Fundação Oswaldo Cruz, ou Fiocruz.