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CARLOS CHAGAS

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ESCRITORES

ESCRITORES

Oque é, o que é?

Na cidade é profissão, Na estrada é um perigo, Na mata é um inseto?

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É o barbeiro! Aquele que faz a barba dos outros, ou quem dirige mal. Também pode ser um tipo de percevejo que leva esse nome porque costuma picar as pessoas no rosto enquanto elas dormem, transmitindo uma doença perigosa. Fiquei famoso com essa descoberta. Sou Carlos Chagas, pesquisador, cientista e médico.

Minha história começa em Oliveira ou Nossa Senhora da Oliveira, pequena cidade a duas léguas de São João del Rei, em Minas Gerais, onde meus pais eram donos da fazenda Bom Retiro.

Em casa, na alvorada, buscava-se o leite de ordenha, que vinha à mesa ainda morninho, junto com café, broa de milho e mingaus que entretinham o estômago até a hora do almoço, servido ali pelas dez e meia. Comia-se bem e a vida era pacata. Mas quando eu tinha só quatro anos, papai faleceu e mamãe teve que assumir o comando dos negócios e da família. Ela cuidava de duas fazendas, de mim e de minhas três irmãs. Não era nada fácil. Mesmo assim, arranjou tempo para me alfabetizar.

Mais tarde, fui levado para estudar num colégio de padres jesuítas, no interior de São Paulo. Ficar longe de casa era difícil, ainda mais para mim, que havia passado anos correndo livre pelos campos de uma fazenda e agora precisava obedecer à rígida disciplina imposta pelos padres. Um dia, tentei sair do colégio sem avisar, fui pego e me expulsaram. No fim, foi uma tentativa frustrada de escapar, que terminou sendo bem-sucedida, pois alcancei meu objetivo: o de voltar para perto dos meus.

Não poderia ficar sem estudar: mal voltei ao aconchego da fazenda, mamãe me matriculou no ginásio São Francisco, em São João del Rei. Esse ginásio não era longe de casa, o que alegrou meu coração. Ali tive a sorte de ter aulas com o querido padre Sacramento, professor que despertou em mim o interesse por História Natural, Botânica e Zoologia, estudos que definiriam, no futuro, minha profissão. Porém mamãe não sabia disso.

Naquele tempo, os pais escolhiam a carreira dos filhos. Foi assim que acabei indo parar no curso de Engenharia, na cidade de Ouro Preto. Mamãe achou que eu me sairia bem naquela profissão. Claramente não deu certo. Graças ao meu tio e ao meu avô, conseguimos convencê-la a me deixar cursar a Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro. Foi nesse momento que encontrei meu destino.

Na faculdade, tive dois professores que me influenciaram bastante. O médico Miguel Couto, que dá nome ao conhecido hospital carioca, me mostrou que, no tratamento dos pacientes, não devíamos apenas aceitar velhas explicações, era necessário pesquisar para salvar vidas. Já o professor Francisco Fajardo me apresentou aos estudos das doenças tropicais, sobretudo a malária. Fajardo era um pesquisador curioso, que também escrevia a respeito da hipnose e de uma força invisível, um magnetismo, que existe em todos os seres vivos.

Corria o ano de 1902. Para me formar, eu teria de apresentar uma tese e escolhi como tema justamente a malária. Nessa época, a casa de uma antiga fazenda, em Manguinhos, tinha sido adaptada para o funcionamento dos laboratórios onde se desenvolviam vacinas. As instalações ainda eram improvisadas, tanto que, na varanda, havia uma mesa para refeição dos funcionários - ali, o castelo da Fiocruz seria erguido anos depois. O acesso também não era simples: havia uma estação de trem na qual um servente com dois cavalos esperava os médicos para leválos até a fazenda. Para os estudantes não havia condução e era necessário caminhar da estação até os laboratórios. Mas, mesmo assim, era lá o lugar mais aparelhado para quem lutava contra as doenças que contaminavam os brasileiros, e meu sonho era realizar as pesquisas, orientado pelo grande Oswaldo Cruz. O professor Miguel Couto escreveu uma carta de apresentação, e Oswaldo Cruz aceitou acompanhar minhas pesquisas, o que me deu imensa alegria. Foi assim que começou nossa parceria.

Poucos anos depois, quando a cidade paulista de Itatinga sofreu um surto de malária, ele não teve dúvidas e me deu a tarefa de controlar a epidemia. A doença atacava principalmente os trabalhadores que estavam reconstruindo uma represa na região. Como se combatia a malária nessa época? Jogando substâncias tóxicas na água em que as larvas do mosquito se reproduziam e usando mosquiteiros nas camas e nas janelas. Na ocasião, observei que os mosquitos sugavam o sangue das pessoas e, como ficavam mais pesados, permaneciam nos lugares chocando ovos e se multiplicando. Tive, então, a ideia de atacar não só as larvas, mas, principalmente, os mosquitos. Evitar que eles se reproduzissem, era isso que teríamos que fazer! Passamos a usar inseticida. Deu certo! Em cinco meses, conseguimos acabar com o surto. Meu método foi o antepassado dos carros que hoje passam pelas ruas das cidades pulverizando fumaça contra os mosquitos.

Minha vida não era apenas o trabalho. Já tinha uma família, caseime com Iris e morávamos em uma boa casa, no bairro de Botafogo. Compartilhávamos o mesmo gosto pela música, íamos às óperas do Theatro Municipal e promovíamos saraus que enchiam nossa casa de amigos. E logo viriam os dois meninos, que seguiriam minha carreira de médico. Tive sorte, era feliz.

Quando entrei nos laboratórios de Manguinhos pela primeira vez, não podia suspeitar que o Instituto Oswaldo Cruz, como se chamaria depois, faria parte da minha vida para sempre. Mas assim foi! A todo momento, surgia uma nova missão: depois de Rio e São Paulo, era a hora de controlar a malária no norte de Minas. Desta vez, o surto atingia os operários que trabalhavam na construção de um trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil. E lá fui eu. Instalei-me em um vagão de trem, no qual montei meu laboratório e consultório.

Estava ali para combater a malária, mas percebi que, na região, muitas pessoas morriam de uma doença desconhecida. As casas eram construídas com ripas de madeira e paredes de barro, e suas fendas serviam de ninho para que os barbeiros se reproduzissem. A espécie é hematófaga, ou seja, se alimenta de sangue. À noite, depois de apagadas as luzes, os barbeiros saíam em busca de sua refeição preferida: o sangue das pessoas e dos animais adormecidos. Examinei esses insetos em meu laboratório e encontrei em seu intestino uma nova espécie de protozoário.

E fui mais além. Entendi que o barbeiro era o hospedeiro e que o protozoário era o vetor da doença que estava matando as pessoas.

Nas aulas de química da escola, aprende-se que os protozoários são organismos vivos, com apenas uma célula. Alguns são bons para os hospedeiros (como os que vivem no intestino de cupins e os ajudam na digestão), outros causam doenças: são os parasitas.

Como meu laboratório era improvisado dentro de um vagão de trem, não dava para fazer pesquisas mais aprofundadas. Por isso, mandei alguns desses percevejos para que os estudos prosseguissem no Rio de Janeiro.

Oswaldo Cruz utilizou os exemplares de insetos que enviei para infectar saguis criados no Instituto - concordo que é triste, mas a ciência precisa de cobaias para encontrar soluções. E um mês depois as análises clínicas mostraram a presença dos protozoários no organismo dos animais que ficaram doentes. Minha tese foi comprovada! Em homenagem a Oswaldo Cruz, dei o nome de Trypanosoma cruzi a esse protozoário.

Estava muito animado, afinal descobertas como essas são muito importantes para a humanidade no combate às doenças. Voltei a Minas para continuar as pesquisas e encontrei o parasita no sangue de um gato e no de uma menina de dois anos chamada Berenice. Tive, então, a certeza de que o percevejo era o transmissor da doença. Pronto! Tínhamos fechado o ciclo!

A notícia foi divulgada em abril de 1909. Os jornais publicaram com orgulho o “grande feito” de um jovem médico (sim, eu tinha apenas 31 anos). Foi uma tripla descoberta: a descrição de uma nova doença tropical, do parasita que a causava e do inseto que a transmitia. Miguel Couto propôs que a doença se chamasse doença de Chagas.

O achado logo se espalhou pelo mundo, e recebi várias homenagens, mas ainda havia muito o que fazer. Não sou um homem de me aquietar, amo o Brasil, e sair em campo percorrendo nosso país sempre foi minha vocação. Desta vez, embarquei para o Norte, em direção à região amazônica. A borracha havia trazido muita riqueza para Manaus, Porto Velho e Belém. Mas os seringueiros que viviam no meio da floresta coletando o látex, o chamado “ouro branco”, seguiam abandonados à própria sorte e muitos estavam contaminados pela malária. Por mais de um ano, nossa equipe percorreu os rios Solimões, Purus e Negro conhecendo a realidade da gente que vivia nas margens desses rios. Não era possível que o Governo não olhasse para essa situação. Foi isso que escrevi em meu relatório, buscando atendimento para a região.

Por conta das muitas lutas que travei contra as moléstias, fui indicado duas vezes para o Prêmio Nobel de Medicina, em 1913 e 1924. Não ganhei, mas acho que valeu a pena cada minuto dedicado à pesquisa, pois combater as doenças e curar as pessoas deve ser a missão básica de qualquer médico.

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