EXPEDIENTE Edição: Ano 01 - Nº 11 - Fevereiro de 201 Periodicidade da publicação: mensal Idioma: Português (Brasil) Editores: Marcelo Bizar e Marco Trindade Conselho editorial: Marcelo Bizar, Marco Trindade, Sônia Elã, Kátia Botelho Secretária-geral: Sônia Elã Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais). Diagramação: Marcelo Bizar Capa: Concepção: Marcelo Bizar e Marco Trindade; Arte e Grafismo: Marcelo Bizar Imagens: todas as imagens não creditadas foram retiradas da Internet, tendo optado o Conselho Editorial da revista por não identificar seus autores quando desconhecidos. Contato: sarausuburbio@gmail.com, https://sarausuburbio.wixsite.com/revista. Distribuição: A distribuição da Revista Sarau Subúrbio é online. Encontra-se em diversas plataformas da Internet. Em seu sítio: https://sarausuburbio.wixsite.com/revista, e também: ISSUU, Calaméo e alguns blogs: Sapoblogs, Recanto das Letras e Bloger. Notas importantes: A Revista Sarau Subúrbio é uma publicação totalmente gratuita, sem fins lucrativos. Não contamos com patrocínio de qualquer natureza. Nosso objetivo, em linhas gerais, é servir de instrumento para que os artistas que não possuem espaço de divulgação nas mídias tradicionais possam apresentar seus trabalhos, nas mais variadas formas, seja na literatura, na música, no cinema, no teatro ou quaisquer outras vertentes artísticas, sempre de forma livre e independente. Todos os direitos autorais estão reservados aos respectivos escritores que cederam seus textos apenas para divulgação através da Revista Sarau Subúrbio de forma gratuita, bem como a responsabilidade pelo conteúdo de cada texto é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente a opinião da revista.
EDITORIAL O mês de fevereiro chega embalado ao som dos blocos carnavalescos, que já sinalizam a proximidade do carnaval, esse ano a festa acontece em março. Aliado a esse clima carnavalesco, foliões e torcedores se misturam apaixonadamente, cada qual na defesa de sua agremiação, lotando os bares e esquinas dos subúrbios, o campeonato carioca é quem dá o tom! Entre confetes, serpentinas e bandeiras de clubes, o subúrbio vai pulsando, enquanto os botequins resistem há sempre tempo pra mais uma dose, a saideira não pode faltar, um encontro de amigos, esse é o nosso lugar... Ba l a n c ê (Braguinha-Alberto Ribeiro) Ó balancê, balancê Quero dançar com você Entra na roda, morena, pra ver Ó balancê, balancê Quando por mim você passa Fingindo que não me vê Meu coração quase se despedaça No balancê, balancê Ó balancê, balancê Quero dançar com você Entra na roda, morena, pra ver Ó balancê, balancê Você foi minha cartilha Você foi meu ABC E por isso eu sou a maior maravilha No balancê, balancê Ó balancê, balancê Quero dançar com você Entra na roda, morena, pra ver Ó balancê, balancê Eu levo a vida pensando Pensando só em você E o tempo passa e eu vou me acabando No balancê, balancê
SUMÁRIO 02 03 04 05 06 07 09 11 13 14 16 17 18 19 22 23 27 28 33 35 37 39 40 41
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Expediente Editorial Sumário Meninos descalços Eneida, carnaval e militância Leão do Norte em dose dupla Bloco de sujos Autenticidade carioca: Jornal dos Sports (1967 - 1972) A rebeldia de Lima Barreto em forma e conteúdo SOS Museu do Trem Chuva preguiçosa Amor de carnaval Uma certa quarta-feira Carnaval em Cordovil com Mickhail Bakhtin e "Vavá" Palavra é palavra Temposição das Almas Íncubas - Primeiro enigma de um guardião-de-fluxos Fonte de inspiração Vânia e os dois irmãos O café da tarde da infância Ensaio técnico Matemática é a primeira coisa pra um bom desfile Outros carnavais e os mesmos Abolição Blog do Tiziu
M en i n o s d es c a l ç o s
Na rua meninos descalços Atiram pedras na paz. Viajam na morte, agridem o presente E deixam o futuro para trás... Na rua meninos descalços Com sua caixa na mão. Dividem a praça e o centro Escovando o pé do Cidadão... Será que algum dia O homem vai aprender. Que a vida não é brincadeira E nem é feita só de prazer... Na rua meninos descalços Imploram algum tostão. Correm para lá e para cá Para comprar o seu pão... Na rua meninos descalços Independente da raça Credo ou religião buscam somente Ajuda, amor e atenção... Não sei como pode o homem Reclamar de viver. Se tudo o que há na Terra Seja alegria ou guerra É ele quem faz crescer...
Júnior da Prata
Eneida, carnaval e militância “Estava com Eneida e outros amigos na cabine de trabalho do MIS, para gravar o som do desfile quando uma mulher muito bêbada, a ponto de parecer que ia desmaiar a qualquer momento, aproximou-se deles e pediu água (... Era mesmo Janis Joplin em carne e osso, sedenta e em estado de total ‘detresse’. Ela acabaria dormindo na cabine, ao lado de Eneida, também derrubada pela bebida e pelo calor de 40º até o final do desfile, a uma hora da tarde. ” 1 Escolhida como uma das juradas do Festival Internacional da Canção em 1968, a escritora paraense Eneida de Moraes acabou tendo que deixar o Maracanãzinho num carro da rádio-patrulha, ao lado de outros colegas de ofício, ameaçados pelo público politizado indignado com a derrota do Caminhando, de Vandré, para Sabiá, de Chico e Tom. E se lamentou ironicamente: “Quem diria que um dia eu iria sair escoltada pela polícia!” Tinha razão Eneida, várias vezes presa por sua militância política, inclusive ao lado de ilustres companhias, como Graciliano Ramos e Olga Benário. Ligada ao PCB, ajudou a criar a União Feminina do Brasil, foi cronista do Diário de Notícias, conheceu no exílio Picasso e Cocteau. Teve dois filhos, um deles o craque do Botafogo Otávio de Moraes. Publicou livros de poesia, “Terra verde”, crônicas, “Paris e outros contos”, a autobiografia “Banho de cheiro”, mas se destacou com a publicação de “História do Carnaval Carioca”, em 1958, que serviu como base para o samba-enredo do Salgueiro, sua escola de coração, vencedor do desfile de 1965. Eneida faleceu em 1971, ano de vitória da vermelho e branco tijucana. Um pouco antes partiu a jovem Joplin, aos 27 anos, depois de se esbaldar no carnaval carioca. Em 1973 veio a justa homenagem salgueirense: o samba-enredo “Eneida, amor e fantasia”. O poeta paraense Paes Loureiro lhe dedicou os versos Eneida sempre livre/ Eneida sempre flor/ Eneida sempre viva/ Eneida sempre amor.”
Orl a n d o Ol i v e i ra
1- “”Ricardo Cravo Albin: uma vida em imagem e som”, Cecília Costa, Edições de Janeiro, 2018, pg. 78
Leão do Norte em dose dupla
Reppolho é percussionista e compositor com cinco discos solos. Como pesquisador editou em 2011 o “Dicionário Ilustrado de Ritmos & Instrumentos de Percussão", de conteúdo louvado por Ricardo Cravo Albin e Fred Góes, dois balizadores na área da pesquisa musical. Como instrumentista atuou com Milton Nascimento, Elza Soares, Tim Maia, Johnny Alf, Moraes Moreira, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Nana Caymmi e Luiz Melodia, entre outros. Ednaldo Lima é violonista e compositor. Nos anos 90 lançou um compacto duplo pela gravadora Rosemblit e os CDs independentes “Arrasten” e “Cabeça de Gala”. E o que une esses dois? Com certeza, os Maracatus de Baque Virado, os Caboclinhos, os Terreiros de Xangô (candomblé pernambucano de ascendência comum, jeje-nagô, aos da Bahia e do Rio de Janeiro) e as Troças da infância, no bairro suburbano de Água Fria, em uma Recife setentista, onde ambos começaram a carreira nos bares e festivais, sedimentando uma amizade e admiração mútuas. O que os une, também, é a pluralismo sonoro, a diversidade harmônica e a mescla de gêneros, comuns em artistas inquietos e insatisfeitos com o mercado mainstream musical brasileiro, integrantes de uma cena artística da região que nos deu as bandas Eddie, Nação Zumbi, Cumadre Fulorzinha, Orquestra Spock e Lenine, herdeiros da poesia de Carlos Penna Filho. Com essa verve é que se uniram e lançaram em 2018, o EP “Juntos” (Selo GJS), com tendências pop de revisitação do tradicional, em uma antropofagia musical de canibais experientes no assunto, pelos temperos dos discos solos. No CD constam “Eternamente Clara”, samba-canção em homenagem à Clara Nunes; “Na Sombra do Baobá”, ijexá estilizado de Ednaldo Lima em tributo ao parceiro; o samba-coco “Pra Naná”, da dupla, em reverência a Naná Vasconcelos, interpretado por Reppolho; “África Brasil”; “Batá-cotô” e “Amante de bicicleta”, transformada em clipe, com os parceiros pedalando pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro.
O time de músicos foi composto por craques como Carlito Gepe, Emerson Mateus e Felipe Escovedo (baixos), Roberto Stepheson (sax e pífanos), Márcio Souza e Naná Amâncio (guitarras), Léo Rugero (violino e viola), Vander (trumpete), Tuninho Villas (teclados), Valmir Ribeiro (cavaquinho), Adriana Passos, Carolina Valverde, Maria Tereza e Morma Renia (vocais), além da dupla em seus respectivos instrumentos. Enfim, a cultura pernambucana, legada pela diáspora africana e com raízes ameríndias, corre nas veias destes dois artistas que nos presenteiam com esse belo trabalho, corroborando que o “Leão” é do Norte-Nordeste, mas tem rugido universal.
E u c l i d e s Am a r a l (poeta-letrista e pesquisador de MPB do Instituto Cultural Cravo Albin)
Bl o c o d e s u j o s
O Carnaval suburbano nas décadas de 60 ,70 e 80 era motivo de pânico para muitas crianças por conta de personagens encarnados no povo que apareciam justo naqueles dias de folia; era tenso pensar que a qualquer momento daqueles quatro dias poderiam surgir em nossa frente o Carrasco, o Diabo; a Múmia, o temido Gorila ou os Terríveis bate bolas, esses últimos andavam em grupos de pelo menos 10 integrantes e cada um desses carregava uma bexiga de Boi comprada no abatedouro de Santa Cruz na semana do carnaval; a verdade é que sair de casa nesses dias era uma grande aventura, existiam grupos de mais de 30 bate bolas assombrando a todos e fazendo uma algazarra de som próprio ( assobiando ar entre a Língua e o Céu da Boca ) pelos lugares em que passavam Lembro bem que já no sábado a galera de 9 e 10 anos de idade subia na Laje do Paulinho que ficava na esquina das ruas Maracaipe com Marapendi e preparava garrafas plásticas tipo lança perfumes ( uma garrafa plástica capaz de borrifar liquido num pequeno jato ) com agua e tinta para acertar as roupas dos temidos bate bolas , nosso objetivo era manchar de forma definitiva o cetim das roupas de nossos “inimigos” e assim atrapalhar o movimento garbozo das capas e boleros deles. Na verdade, bem no íntimo creio que sabíamos que um dia seríamos bate bolas também. Em 1976 a molecada da ruas Maracaipe, Marapendi, Pinhal, Mambarés, Mipibu, Saravata e adjacências juntou forças e formou uma turma de bate bolas com o apoio de pais, avós , vizinhos, simpatizantes e desconhecidos; pedimos dinheiro para comprar cetim e enfeites para capas e boleros; vendemos garrafas, pedimos no sinal, acendemos velas, enfim, deu certo! E bem na minha varanda ( rua Maracaípe 99 ) nascia o que há poucos anos atrás parecia impossível; uma turma de bate bolas trabalhava unida customizando e colando enfeites de caveiras, piratas, facas, armas de fogo, machados, morcegos etc nos boleros e capas; preparando bexigas para nossa estréia no Sabado de Carnaval as 11h da manhã; estávamos prestes a virar donos do carnaval de todas as ruas, seríamos os mais fortes da região, guerreiros imbatíveis; de certo a sensação de poder associada a fantasia era intensa e encorajadora. Esquecemos até da turma da Jabiri , os verdadeiros e antigos donos das ruas de Marechal.
Nessa época eram comuns os confrontos ( porrada mesmo ) entre os grupos de bate bolas, numa Guerra inconsequente por territórios de passagem; muitas vezes brigávamos, outras vezes corríamos fugindo sem saber o real motivo. Certa vez a tarde chegando em Bento Ribeiro avistamos uma turma de uns cinquenta bate bolas que estavam correndo em nossa direção ( éramos 20 ); nunca esqueço do salto que consegui dar para dentro da estação do trem de Bento Ribeiro , pulei o muro gigantesco da rede ferroviária e corri como um grande campeão olímpico até Marechal Hermes via trilhos da linha do Trem e até hoje não descobri o motivo da corrida. Nos dias de hoje os grupos de bate bolas no subúrbio de Marechal Hermes são super organizados e pacíficos assim como a antiga bexiga de boi foi substituída por adereços tipo sombrinhas , existem exibições dos grupos valendo títulos de melhor do Carnaval; inclusive alguns amigos seguem firmes na Velha Guarda dos bate bolas cariocas.
estou de vermelho e branco, momentos antes da estréia.
Rodolfo Caruso
Autenticidade Carioca: Jornal dos Sports (1967-1972) O Jornal dos Sports foi um diário de notícias esportivas do Rio de Janeiro, tendo sido fundado pelo jornalista Argemiro Bulcão em 13 de Março de 1931. Sua última edição circulou no dia 10 de abril de 2010. Ficou famoso por suas páginas em cor-de-rosa. Apesar da semelhança com o jornal esportivo italiano La Gazzetta dello Sport, a verdadeira inspiração para o cor-derosa foi o francês L'Auto. O Jornal dos Sports teve como um de seus proprietários o jornalista Mário Filho, que nas suas páginas escreveu uma série de crônicas defendendo a construção do estádio do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950. Como homenagem, o estádio recebeu o seu nome. Depois de sucessivas trocas de comando, o Jornal dos Sports finalmente teve sua publicação encerrada em 2010. O Jornal dos Sports é suburbano. Aliás, um autêntico carioca daqueles que param para beber um chope bem gelado e jogar fora uma conversa bem afiada recheada de futebol, carnaval e política. Em 1966, Mário Filho morreu de um ataque cardíaco, aos 58 anos. Sua viúva, Célia Rodrigues, assumiu o comando do jornal. Porém, um ano depois, em 1967, cometeu suicídio. O jornalista Mário Júlio Rodrigues, filho do casal, passou a ser o responsável pelo Jornal dos Sports. O herdeiro, que já havia sido responsável pela seção Segundo Tempo, inspirou-se nas mudanças que ocorriam no Jornal do Brasil, no fim dos anos 60, influenciadas, por sua vez, pelo “new journalism” americano para promover também uma reformulação editorial. Entraram na redação nomes como Zuenir Ventura, Reinaldo Jardim e Ana Arruda Callado. A lista de colaboradores incluía os cartunistas Ziraldo, Fortuna e Jaguar, além do compositor Torquato Neto. A experiência mais radical, porém, foi o lançamento do suplemento O Sol. O projeto era um caderno cultural que abrigava experimentações de jovens jornalistas, vindos das primeiras faculdades de Comunicação Social do país. "O Sol nas bancas de revista" serviu de inspiração para Caetano Veloso, no seu sucesso Alegria, alegria. Lançado em setembro de 1967, O Sol passou a circular como um jornal à parte dois meses depois. O ambiente da contracultura empolgava Mário Júlio a aproximar o jornal dos leitores mais jovens, com páginas dedicadas à educação e outros temas ligados ao seu universo. Também apoiava os movimentos de "torcidas jovens" que surgiam no Rio de Janeiro.
O mais interessante nesse período de ditadura é que o JS influenciava e inspirava, ao mesmo tempo, jovens da cidade maravilhosa da Guanabara a se organizarem, na época, em pequenos grupos que se encontravam nas arquibancadas do querido Maracanã, a fim de se mobilizarem contra os dirigentes e cartolas do futebol carioca. Torcedores do Vasco da Gama, Botafogo, Flamengo e Fluminense, por exemplo, saíam da condição passiva de meros espectadores e passaram a reivindicar melhorias nos seus times de coração. Diante disso, as torcidas organizadas surgiam como grupos contrários aos administradores futebolísticos e, por sua vez, levavam mais alegria aos estádios com cantos e protestos. Situação muito diferentes nos dias atuais uma vez que as torcidas organizadas contemporâneas atuam como células criminosas, provocando barbáries pela cidade e dentro dos estádios. O rejuvenescimento chegou às charges e influenciou o imaginário. Foi no Jornal dos Sports que Henfil criou personagens que se tornaram mascotes das torcidas, como o Urubu (substituindo o marinheiro Popeye como símbolo do Flamengo) e o Bacalhau (novo representante do Vasco da Gama, no lugar do almirante português).
Observação: Nos próximos textos, procurarei discutir ainda mais a importância do JS para o subúrbio carioca, fatiando-o em períodos.
Leonardo Bruno
A rebeldia de Lima Barreto em forma e conteúdo Ainda que menos reconhecido em seu próprio tempo, atualmente Lima Barreto é um escritor lido, estudado e principalmente necessário. A princípio, pelo conteúdo: mulato e suburbano, Lima trouxe à tona o homem negro como protagonista em Recordações do escrivão Isaías Caminha, a vida no subúrbio, com protagonismo feminino, em Clara dos Anjos, e fez grandes críticas à ostentação e ao vazio intelectual da classe política brasileira no bem humorado conto O homem que sabia javanês. Além dos conteúdos subversivos, vale destacar também seu papel na luta contra o poder coercitivo da língua culta, tendo como principal marca estética o desvio das normas vigentes – é normal ler em Lima “c’os diabos” em vez de “com os diabos”, mostrando o uso de um coloquialismo carioca e suburbano. Provavelmente devido a isso Lima não foi eleito à ABL – que, diga-se de passagem, nasce conservadora e faz de Lima um severo crítico de Machado de Assis. Que importa não ter entrado? Aquele tempo não estava pronto para Lima Barreto, ele estava à frente na questão racial, e só nas últimas décadas houve um ajuste entre sua literatura e o relógio social. Lima inventou um idioma próprio! Creio ser tarefa do escritor inventá-lo. Pois um novo idioma (quem fala uma segunda língua sabe disso) não é só uma nova combinação de letras e sinais; é outro modo de ser e estar no mundo. O idioma de Lima tinha uma linguagem com clareza e simplicidade suficientes para a população mais pobre compreender. Uma expressão modesta, como ele gostava de dizer. Quando leio um conto de Geovani Martins, Marcelino Freire ou uma crônica de Anderson França ou Thiago Kuerques, me vem à cabeça um Lima Barreto intempestivo com uma foice na mão, abrindo caminho numa floresta conservadora. Onde só permitem uma aleia em linha reta, eis então seu zigue-zague. Lima era da periferia e escreveu para o periférico entender. Quer dizer que todo autor periférico tem que fazer o mesmo? Claro que não. Mas também não devia prender-se à norma culta. Na verdade, em tempos como os de hoje, podemos qualquer coisa – menos obrigados a ser uma coisa só.
J o n a ta n M a g e l l a
SOS Museu do Trem No finalzinho das férias de dezembro de 2018, eu e meu marido decidimos fazer uma visita ao Museu do Trem, que fica em Engenho de Dentro, bairro onde moramos. Eu já havia visitado o museu a muitos anos, antes mesmo da construção do estádio Nilton Santos, o Engenhão. Inaugurado em 1984, o museu funciona no antigo galpão de pintura de carros da Estrada de Ferro Central do Brasil. Após seis anos de fechamento, o museu foi reaberto pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em abril de 2013. A instituição conta um pouco da história das estradas de ferro no Brasil, e possui em seu acervo preciosidades como a Baroneza, a primeira locomotiva a funcionar no Brasil, o Carro Imperial, que transportava D. Pedro II e sua família e ainda o Carro Presidencial, usado por Getúlio Vargas. Há também antigos relógios de estações, faróis de locomotiva, equipamentos mecânicos, um carro de bombeiro (puxado por tração animal) utilizado para apagar incêndios na linha férrea. Em um canto do salão, encontra-se a reprodução de uma típica sala de chefe da estação com móveis do início do século XX. Tudo exalando história. No entanto, nossa decepção foi grande ao constatarmos a situação de abandono em que se encontra o museu. Parte do salão estava interditado com uma fita devido a avarias no telhado. Quando chove, a água cai em parte do acervo. Do lado de fora a situação é ainda pior: diversos carros férreos antigos se desfazem debaixo de sol e de chuva, sem nenhuma manutenção. Ao mesmo tempo em que temos a satisfação de ter uma instituição museológica tão perto de casa, ficamos extremamente tristes com a situação precária do nosso museu. O trem, a estrada de ferro, as estações em cada bairro representam parte importante da história dos subúrbios cariocas. Abandonar o Museu do Trem é abandonar essa história. E é por isso que é preciso gritar: SOS MUSEU DO TREM!
Fotos retiradas em dezembro de 2018:
Ana Cristina de Paula
Chuva preguiçosa Está na minha memória Aquela nublada manhã Início de história De uma paixão sem afã Pela rua você caminhava Eu lhe via passar Seu balanço me encantava Não precisava de mar O sol falta não fazia Molhavam-nos os respingos Tudo o que eu queria Seus beijos naquele domingo Pensei, o que eu faria Para você me notar? Eu tivera a primazia Do amor no primeiro olhar E uma chuva preguiçosa Com se não quisesse chover Ainda assim molhou a rosa Que colhi para você
Douglas Adade
Microcontos dos macrocosmos Amor de carnaval Carnaval pra mim tem que ser à moda antiga. Nada contra a evolução da festa, longe disso. Mas eu gosto mesmo é das marchinhas de carnaval. Neste quesito, gosto até das atuais. Vivi um amor de carnaval e não me sai da memória o beijo que eu dei naquela foliã. Carnaval nas ruas do subúrbio. Em cima dos coretos a banda tocava. E os moradores do bairro fantasiados cantavam as inesquecíveis marchinhas, num lindo coral, uníssono, lançando pro alto confetes e serpentinas. Naquela empolgação olhei pra uma moça, ela correspondeu-me com um sorriso. Cantávamos "Ô Abre-alas". Como por encanto foram abrindo espaço para que conseguimos chegar bem perto um do outro e então consegui roubar um beijo demorado da colombina. Ou quem sabe uma pirata!? Talvez uma chapeuzinho vermelho!? Talvez uma...
Antero Catan
U m a c e r t a q u a r t a - fe i r a O dia amanhece, pouco resta de mim. Passos lentos e “olhos caídos ao chão” que contam paralelepípedos da rua estreita. Mais adiante, restos de uma sandália dourada, encostada no meio-fio, denunciam dores na coluna de sua ex proprietária. Sob a luz do Sol diviso os passantes dourados, prateados, descalços, ébrios de álcool e sono cambaleantes. Uns abraçados outros em grupos e muitos sós. Mais atrás, vejo um jovem casal proferindo ofensas mútuas e em seguida consolando-se em desculpas infindáveis. Eis que surge a praça. Nela, luzes acesas num velho coreto desafiam o brilho do dia. Ônibus circulam na rua principal. Nos seus interiores, zumbis amarfanhados retorcidos entre os bancos, recusam-se a espreitar pelas janelas. Um velho banco se apresenta e aproveito para relaxar este corpo que agora pesa “três toneladas”. Passa um carro buzinando freneticamente para acordar os incautos. Xingo, querendo preservar o meu silêncio. Ao meu lado senta-se um menino, trazia na mão três rolos de fita de papel pardo e, no rosto, marcas do que provavelmente era uma pintura de índio americano. A mãe se aproxima e, ajeitando a melindrosa que insistia em desobedecer às formas do corpo, fala para o jovem “Touro Sentado” que é hora de irem para casa. Relutante, o “grande guerreiro” rodopia e balbucia com voz de sono: _ “índio quer apito”! Enfim, percebo o lento movimento da cidade ganhar corpo. Aos poucos, a padaria serve mais cafés amargos, garis juntam num canto de rua latas, leques, penas e plumas artificiais, um par de sapatilhas furadas, muitos papéis e um velho tamborim rasgado. Também estão ali no mesmo canto de rua alegrias passadas, paixões de quatro dias, namoros terminados e amizades de copo. Tudo é recolhido num barulhento e insensível caminhão que exibe na lateral uma indefectível palavra: RECICLÁVEL.
Silvio Silva
Carnaval em Cordovil com Mickhail Bakhtin e o camarada "Vavá" - Olha, carnaval é sempre esta bagunça. Se esse bloco animar muito vou fechar mais cedo. O Seu Pedro, quando não bebe, fica neste mau humor terrível. Conheço o velho português há muitos anos. Ele gosta muito de carnaval, quando não é na sua porta, fique bem esclarecido. - No carnaval é essa maravilha, não se sabe quem é pobre, não se sabe quem é rico. O homem já meio bêbado no bar tinha razão. Com todos brincando na rua, suados, alegres, cantando e principalmente fantasiados, não era possível distinguir classe ou hierarquia social. Já que é carnaval, é quase tudo é permitido no Reinado de Momo, resolvi bater um papo com um camarada que estava numa mesa estrategicamente colocada na calçada do bar. - Mikhail Bakhtin, você por aqui, camaradinha!? Fui chegando como se tivesse muita intimidade com o russo. Ele, cumprimentou-me com um invisível sorriso, deu um trabo generoso em sua vodka, com uma rodela de limão imersa, foi me dizendo: - Durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. Um contato familiar e sem restrições, dentre indivíduos que nenhuma distância separa mais. - Verdade, camarada. No carnaval todo mundo se sente numa grande família. Pular carnaval, como dizemos, num bloco de rua é uma experiência mágica. Já fiz muito isso e ainda faço quando posso. - Gostava muito das marchinhas de carnaval. As letras sempre muito engraçadas. Agora pouco cantadas. Observou o bêbado que se aproximou da nossa mesa. Parece que era a deixa que o Bakhtin esperava pra observar: - "Como resultado, a nova forma de comunicação prouziu novas formas linguísticas: gêneros inéditos, mudanças de sentido ou eliminação de certas formas desusadas etc. É muito conhecida a existência de fenômenos similares na época atual." Nosso camarada Mikhail falava certamenta da Idade Média e da Renascença, conhecia muito bem a carnavalização dessa época. Aliás, sua tese era de que o carnaval teve sua origem na europa desta época, se bem me lembro de algumas aulas.
- É, mas esse tal de politicamente incorreto vai acabar com toda essa festa. Observou o nosso amigo bêbado sendo corrigido por mim que o correto da expressão seria "politicamente correto" e não incorreto como ele disse. Ele disse que era uma "boa observação da minha parte" e perguntou pra nós: "Qual gelada estamos bebendo? Pra eu pedir mais uma pro Pedrão." - Pedrão é aquela pessoa que você conhece muito bem desde o seu nascimento! Seu Pedro não gostava que o chamassem de Pedrão, como sua ex-patroa, que foi cozinheira no bar quando casados, o chamava carinhosamente. - "Por exemplo, quando duas pessoas criam vínculos de amizade a distância que as separa diminui (estão em "pé de igualdade") e as formas de comunicação verbal mudam completmente: tratam-se por tu, empregam diminutivos, às vezes mesmo apelidos, usam epítetos injuriosos que adquierem um tom afetuoso; podem chegar a fazer pouco uma da outra (se não existissem essas relações amistosas, apenas um "terceiro" podeira ser objeto dessas brincadeiras), dar palmadas nos ombros e mesmo no ventre (gesto carnavalesco por excelência), não precisam polir a linguagem nem observar os tabus, podem usar, portanto, palavras e expressões inconvenientes etc." - Por exemplo, também digo, como diz aquela linda marchinha de carnaval: "De rei, ou de pirata, ou jardineira. Pra tudo se acabar na quarta-feira." O Vinícius estava certo: carnaval é a felicidade do pobre. Não sei lá na Rússia, seu Bakhtin! Pra mim só eu estava interagindo com o camarada Mikhail. O bêbado também o via, ouvia e conversava com ele. Que coisa mais maravilhosa, só mesmo no carnaval aqui em Cordovil: assistir a um bloco de carnaval animado como este, bebendo uma cerveja geladíssima e proseando com duas figuras como o camarada Bakh (já peguei intimidade) e o também camarada "bêbado", ainda não nos apresentamos como dita a regra cotidiana dos conhecidos "bons modos" (heranças da burguesia aristrocrática). - Mas é claro que esse contato familiar na vida ordinária moderna está muigo longe do contato livre e familiar que se estabelece na praça pública durante o carnaval popular. Parece que o camarada russo tinha lido meus pensamentos! Pensava exatamente sobre isto agora mesmo! - No carnaval todos os contatos com os extra terrestres que nos cercam são de terceiro grau. Ai, Mika, essa frase dá uma tese antropológica, não dá não!? Nosso camarada "o bêbado" falava ria muito, batia nos ombros do camarada russo, acabou tirando-lhe um breve sorriso. O Mikhail Bakhtin virou sua vodka e comentou: - "Falta um elemento essencial: o caráter universal, o clima de festa, a ideia utópica, a concepção profunda do mundo. Em geral, ao dar hoje em dia um conteúdo cotidiano a certas formas do carnaval, embora se mantenha o seu aspecto exterior, chega-se a perder o seu sentido interno profundo. Lembremos de passagem que certos elementos dos ritos antigos da fraternização sobreviveram no carnaval, onde adquiriram um sentido novo e uma forma mais profunda.
- Desce outra vodka, por minha conta para nosso camarada Mika. És um gênio, camarada. Uma pena que tinha que ir embora. Já tinha marcado uma gelada com outro amigo na Penha e já estava atrasado. Não daria pra provar o polvo com cerveja que o Seu Pedro fazia. É de comer rezando! Fica pra uma próxima oportunidade. Despedi-me do Seu Pedro e dos novos amigos e perguntei ao terceiro camarada como poderia chamar meu novo amigo, ele então se apresentou: - Valentin Nikolaevich Voloshinov, mas pode me chamar de Vavá.
J o n a s H é b ri o
Palavra é palavra Tinha chegado o ano 2000, botando abaixo aquela conversa mole de final dos tempos, o mundo não se acabou. Aliás, no colégio em que eu estudava, na minha turma em especial, todos estavam bem vivos, diga-se de passagem, o mais bobo dava rasteira em cobra e nó em pingo de éter. Certa vez, durante uma aula de matemática, um emissário traz a informação de que nossa turma seria convidada a participar de um programa de auditório. Tratava-se do programa "A CARA DO RIO", apresentado pelo jornalista Jair Marchesini. Depois daquele frenesi todo, passada a euforia inicial provocada pela notícia, já imaginando as cartas na mesa, sugeri instintivamente " Se algum colega for barrado, ninguém vai". De imediato uma chuva de sinais de positivo acenou pra mim. O acordo estava fechado! Devo confessar que a minha ansiedade e a dos demais colegas havia se deslocado para o provável veto, o passeio mesmo ficara em segundo plano, até que finalmente o coordenador do colégio interrompendo a professora de biologia, entra na sala e manda bala, sem dó nem piedade " Fulano, sicrano e beltrano não poderão participar do programa..." Aquela sentença era aguardada, contudo sentiu-se nos semblantes uma indignação profunda, o que só fez reforçar os termos do acordo. Como vocês podem imaginar e a história nos mostra sempre, houve quem traísse o acordo, porém a maioria esmagadora dos rebeldes levou às últimas consequências o boicote cuidadosamente engendrado. No dia do passeio, inabaláveis, fizemos um memorável churrasco, como sempre na Abolição! Tempos depois, meu irmão mais novo, aluno do mesmo colégio, porém de uma série abaixo da nossa, revelou pra mim que o entrevistado no programa foi ninguém menos que o inigualável malandro Bezerra da Silva, e que a galera sacaneou tanto no auditório, que os assistentes de palco ficaram doidos. (risos) Me bateu uma dor de corno desgraçada, mas palavra é palavra.
Marco Trindade
Temposição das Almas Íncubas Primeiro enigma de um guardião-de-fluxos
"A porta da casa de Vô Zuzim esta abertencostada. Entreinumsó. Onde estaria o VôZuzim? Não estavencontrava-se na sala. Devestar na cozinha pela hora em questamos. Fui chegando bem pertim du vô... e o vi de longe (sua casa continuava enorme com cômodos imensos, bem separados) meu avô de-costas-pra-mim-semolhar diz: "Chegue bem chegado, meu neto Pazuzu!" Ele então virou-se e veio me abraçar com os olhos marejando aos poucos e maré cheinha. Meu vô não muda, continua muito sentimental e amoroso! Abraçamo-nos demoradamente, matantdo a saudade que se avolumou no espaço-tempo daquela cozinha. Mas, não foi o Vô Zuzim quem chorou, fui eu! Chorei muito de não me aguentar em tanto choro. De derrotas eram as lágrimasais. Derrotas de ardepeito de deixarmudo. Derrotas de fazerdesistirqualquerum. O vô percebeu como era aquele choro e pediu-me pra sentar que faria um chá-de-pega-calmaria com um pouco de mel. Eu sabia que não passava de água com mel, mas deixava meu vô me enganar com aquele papo de chá-de-pegacalmaria. Como sempre fazia, lhe perguntei: - Vô, de onde colheu a erva do chá-de-pega-calmaria? - Ora, Pazuzu! Das noites serenas! - E onde estão estas ervas, vô? - Menino, você sabe que são invisíveis pra quase-todos! Poucos a sabem colher! Meu vô sabia que isso sempre dava certo comigo. Passamos a rir do chá. Bebi. Pedi mais uma xícara.
- Meu neto, esteve presente aqui em casa o incrívelser Martozfys, um guardião-de-fluxos. Ele beijou a minha mão esquerda, entregou-me este papel desenhado, disse-me tão-somente "Pazuzu" e desapareceu num VIS.
Não entendi o motivo de Vô Zuzim dizer com tanta veemência que o guardião-de-fluxos desapareceu num VIS, quase gritando a última palavra: VIS. À minha mente chega a expressão de cara-a-cara em francês: "vis-à-vis". Se bem que a expressão é mais utilizada por pessoas esnobes geralmente. Lembro-me que a expressão francesa se Mas... espere um pouco! Sim, agora me recordei o que é VIS. A palavra VIS, em dinamarquês... ela significa ESPETÁCULO." O papel que seu vô lhe passou nadizia se o olhar não procurasse muitobemesmo. Um olharãpassã nadveria. Lembrou-se da aula na Acadevida: "Tudo que vê, vez se transforma, vez não sei quê, vez nem se olha! É ver talvez nem ver se quer saber pra perceber qual é a história! E se quiser aprender, nem vai saber quanto demora." Assim se referia o "Livros das Horas Mortas (Reminiscências das Entrelinhas do Entretempoespaçotemporal) da Bruja - "pero no tanto" - Kisuranametétsy. A mexicana, filha de antigos Astecas, escrevera um dos Doze Livroráculos Nilespaçotemporais, livros obrigatórios pra um Aprendiz de Herói-das-Gentes, curso em que nosso EleHerói se graduou. Entretanto o espetáculo devia estar no fato que um guardião-de-fluxos nunca diziam nada diretamente. Nem pro EleHerói, o Hombre Tonto Cotidiano. Uns Cabras-de-Advinhas-e-Jogos, uns Trava-Línguas-de-Desafios-Repentistas não daria moleza pra um BuscAlmÍncubas como é o nosso Herói-das-Gentes, o Hombre Tonto! Algumas adivinhas tinham mais de milênianos de tão difíceis. Teria que prescrutar afim de compreender a mensagem. "Melhor me isolar pra melhor pensar no que se esconde nestes pontos." Encorajou-se nosso Tonto. "Um papiro cheid'pontos. Mas, entretanto, porém, destarte, pontos não existem. Ampplifficadda a visão um ponto se transforma em plano. Pontos-e-pontoslado-a-lado-bem-juntinhos é uma reta. Retas e planos, feitos de pontos que não existem: taí a nossa Geometria." EleHerói continuava matupensando... Matemática, Astrologia, Lógica, apelava pra diversas cognições!
"Pontos são códigos? Ou talvez ligamentos formando desenhos, mapas, quem sabe!?" Não se preocupava com seu paradeiro, nãosabianemqueriasaber onde estava! O enigma e as Almas Íncubas importavam maisquetudagora! Horas de tentativas e nada lhe acenava com possibilidade de resolver o enigma proposto. Continuou andandeandandeandandeandandeandandetc..., não se importava. Já tinha caminhado tantas horas que as pernas doíam, tremiam de fraqueza, pesavam inchadas. "Talvez não tenha que ligar os pontos. Talvez deva circundá-los!" Hobred'AlmasÍncubas arregalou os olhos e gritoupradentrensi: "É isso!" Mentalizou nos sona (plural de lusona) e pensou nos pontos como ... Executou diversos sona e não conseguiu resolver a advinhenigma proposta. "Tem lusona que é revelação, tem lusona que é História, tem lusona que é tradição e lusona diversão. Tentei todos os sona e nada... nada... nada..." Tonto tinha suado muito e não percebeu quando deixou cair uma gota de suor no papel que tentava decifrar. Dormiu num banco de praça cansado como estava. Após algumas horas acordou e abriu novamente o papel e percebeu que acabou manchando um dos pontos.
Os pontos então começaram a fazer sentido. Não eram os pontos em-si-e-tãosomente o que deveria ser observado. O espetáculo estava no fato de que os pontos deveriam ser olhados juntamente com determinados prolongamentos. O suor de Hombre Tonto acabava de mostrar isso. Os pontos, prolongados, revelaram a mensagem:
Era uma mensagem na antiga escrita cuneiforme Persa. "Até que as aulas de Línguas Mágicas Antigas me foram bem úteis agora. Acari... “
“Mas, espere... andandeandandeandandeandandeandandetcetanto que olha só onde estou: na Avenida Brasil em frente ao bairro de Acari. Com certeza era esta a revelação!”
Pazuzu Silva
Fonte de inspiração Algumas vezes, no meu dia a dia, Sofro certos desassossegos na mente. Uma voz muda que, com certa ousadia, Soa aos meus ouvidos de repente, Não se cala à minha vontade E insiste em me azucrinar o juízo. Dissuadi-la da sua assumida intimidade É ação que já não concretizo, Seria um esforço que se resultaria em vão. Não acho normal a sua intromissão Embora, particularmente, até goste E faça reverências em tostes. Não questiono a sanidade do seu ato, Ela impulsiona o meu lado criativo Levando-o por sendas do abstrato, e nada faria sem o seu bafejo sensitivo. Então: aproveito o seu sopro auspicioso, Iço velas ao vento da inspiração, Sigo seus ditames de clamores preciosos E singro no oceano das palavras. Daí, ao sabor do vai e vem das rimas, Verso sem o menor martírio Fiel a ordem do sussurro que me anima. Não faço ondas aos seus impetuosos delírios, Deixo-os fluírem sem censura E, sem nenhum comedimento, A sua verve faço mesura Demonstrando o meu embevecimento. Aventuro-me, então, senhor da escrita, Mas sou um submisso escravo da rima. Uso-a de uma forma irrestrita Pois sua sonoridade me anima, Encanta o espírito, refina a criação E me excita com seu poder de sedução. Palavras não são simplesmente palavras; Palavras são muito mais do que palavras.
Kaju Filho
Vânia e os dois irmãos Toda santa sexta-feira era aquele diabo! Euclides nunca vinha para casa. Vânia ficava esperando, o banho tomado e o corpo perfumado, um vestido curto de tecido leve e quase transparante, como se o marido fosse, surpreendentemente, chegar antes da madrugada, percorrer os olhos pelas suas coxas e pelo vestido a esvoaçar levemente com o vento, apalpar-lhe a cintura, os seios e as nádegas, sentir nas pontas dos dedos a textura do vestido, despi-la, possuí-la num ímpeto febril... Mas tudo isso eram devaneios! O danado sempre voltava na manhã de sábado, ou então em profunda madrugada. E naquele dia não seria diferente: passaria a noite na esbórnia, chegaria bêbado, cheirando a cigarro e perfume barato, com todos os indícios de haver passado a noite com alguma vagabunda. Vez por outra vinha com hematomas, sinal de haver-se metido em alguma briga, mas nunca dava satisfações ou se explicava. Mesmo que viesse com marcas de batom! - Sai pra lá! Vai dormir! Tava com mulher porra nenhuma! - limitava-se Euclides a rugir quando ela notava alguma pista mais clara de o marido havê-la traído. Outras vezes ela reclamava quando o pegava sóbrio: - Você só quer saber de beber e chegar de madrugada. Esquece que tem mulher. Você acha que isso é casamento? Ele se limitava a ficar murmurando entre os dentes alguma coisa que ela mal entendia, mas nunca se dispunha a discutir a questão. Era aquele sofrimento toda sexta-feira. Mas Vânia não sofria só nos finais de semanas: era praxe ele ficar pelos botequins quase diariamente, muito embora não madrugasse nos outros dias, chegando sempre entre dez e onze da noite. Não faltava, ou pelo menos não faltava tanto com os deveres de marido. Buscava-a na cama, amava-a, mas com um carinho e uma freqüência menores do que ela desejava. Vânia não sabia se ele ainda a amava, nem mesmo se ela própria continuava a nutrir amor pelo marido. Mas sentia uma necessidade quase orgânica de ser acarinhada, de ter os dedos de alguém por entre cabelos, de ter a boca demorada e intensamente beijada... como nas novelas que via... como nos romances de bolso que lia... como fora no seu tempo de menina, de recémcasada. Estavam ambos casados já havia cinco anos, não tiveram nenhum filho por ser a mulher infértil, e às vezes esta presumia ter sido sua a culpa do desgaste daquele casamento, justamente por não ter podido dar um filho a ele - muito embora Euclides jamais houvesse reclamado do fato. Mas a questão é que Vânia tinha a sensação de haver-lhe feito um homem a sentir-se incompleto, frustrado, que a punisse com a ausência e a desatenção o fato de não ser pai. Era difícil o Euclides: quase não falava, quase não sorria. Era pedreiro e vivia aporrinhado e resmungando sobre os ossos do seu ofício. Vivia cansado ou então enfiado nas suas bebederias.
- Merda de vida...! - costumava queixar-se com sua voz quase gutural - Muito trabalho e o dinheiro pouco. Só trabalho e aborrecimento... Isso lá é vida? Aos sábados e domingos aquela sensação de solidão seguia a apertar o peito de Vânia: ele acordava tarde e pouco falava, ora comido pela ressaca, ora enclausurado em seus pensamentos e seu mau-humor, os olhos voltados para a televisão. Diabos! Três anos de namoro e cinco de casamento, e Vânia pouco conhecia o seu homem. A casa era triste e silenciosa, monótona, tediosa, e só ganhou alguma vida quando Eusébio, o irmão mais velho de Euclides, chegou de Aracaju e instalou-se num quarto-com-banheiro que Euclides construíra no fundo do quintal para abrigar o outro. Eusébio era falante embora parecesse tristonho. Às vezes mergulhava em profundo silêncio, mas não era como o irmão. Era mais comedido; não se encharcava de bebida, era sociável. Euclides recebeu-o com enorme alegria, entregou-lhe o quartinho que lhe construíra no fundo do quintal com grande satisfação. - Vê só, mano: com o tempo você aumenta esse teu quartinho, pega um pedaço maior do terreno e me paga aos pouquinhos: o importantte é nós ajudar um ao outro. Depois da chegada de Eusébio, Euclides tornou-se mais caseiro, raramente madrugando às sextas, chegando quase sempre cedo nos outros dias, e Vânia percebia que isso se dava porque o irmão estimulara-o a ficar em casa a trocar idéias, e também pelo motivo de, como era bastante notório, o marido temer ser traído pela esposa e o irmão. Logo Eusébio empregou-se, numa obra a cujo encarregado Euclides apresentou-o. O irmão desempenhava suas tarefas com habilidade, também era um pedreiro de grande competência. Alguns dias Eusébio chegava do trabalho, banhava-se e comia da comida que Vânia preparava, ficava a conversar longamente com o casal, a tocar em vários assuntos, a rememorar os tempos da infância de extrema pobreza vivida em Nossa Senhora do Socorro, e a ida da família para Aracaju. Recordavam os pais já falecidos e comentavam da impossibilidade de permanecer na terra natal por conta da inexistência de perspectiva de condicões razoáveis de subsistência, da posterior necessidade de deixar a própria Aracaju por razões semelhantes, e Eusébio tinha também uma dor atravessada no peito: - Não sei por que a Cássia me deixou. - lamentava-se - Eu não fiz nada de mal com ela. Uma ingrata! Tu não sabe, mano, como eu gostava daquela mulher. Cássia era a mulher com quem vivera durante dez anos, que nos últimos tempos de vida conjugal não lhe dera mais importância, não lhe fizera mais elogios nem agrados, pouco aceitou-o no leito e tinha-o na conta de quase um traste, além de, num fatídico dia, olhá-lo com um olhar de profundo desprezo e dizer-lhe: - Não quero mais viver com tu. Eu não gosto mais de você. Vou viver minha vida longe de você.
O homem lamuriava-se quando trazia à tona aquelas lembranças, e Vânia sentia que identificava-se de certo modo com ele, pois era uma mulher com o mesmo sentimento de abandono que acometia o cunhado. Estava casada, vivendo com o marido, deitando com o marido, mas era uma mulher abandonada como qualquer outra sem marido. Quando encontrava-se sozinho com a cunhada, Eusébio nunca entrava na casa desta, por respeito ao irmão e para não causar impressão ruim a qualquer vizinho que casualmente por ali passasse e o visse entrar, e também porque sabia que o irmão não gostaria. Mas ficava sentado a uma cadeira, no quintal, e naqueles momentos sentia-se mais à vontade para falar com maior detalhamento sobre a saudade do norte e principalmentte da tristeza de ter perdido Cássia. Já se haviam passado dois anos e ele não a esquecia. Tinha a autoestima ferida, um sentimento de extrema solidão, a sensação de uma coisa que doía fundo dentro do peito. A partir de um certo tempo, Vânia também encorajou-se a relatar tudo aquilo que corroía-lhe a alma e a fazia infeliz, a queixar-se do marido que tornara-a uma mulher ávida de afeto e frustrada, triste e solitária. À medida em que os dois sentiam-se mais à vontade para trocar confidências, Euclides tornava-se mais freqüente na esbórnia das sextas e nas pequenas bebedeiras dos outros dias, agora já sem dar muita atenção ao irmão, voltando pouco a pouco a ser o mesmo caladão de antes. Se, quando o irmão era recém-chegado, o marido de Vânia, enciumado e temeroso, procurava-a na cama com mais freqüência, agora voltava a ser o mesmo de antes, voltado para as suas bebedeiras, seus maus-humores e seus pensamentos. Enquanto mulher e cunhado conversavam quase todas as noites, ela à porta da sala, ele sentado na cadeira do quintal. Até que um belo dia Eusébio entrou. Vânia colocara um daqueles vestidos leves e curtos com que sempre esperava o marido, e Eusébio começara a pensar que ela o fazia para ele, cunhado. Contivera o desejo mais que pudera, mas o problema era que aquele equívoco devolvia-lhe tudo aquilo que a ex-mulher lhe roubara: a autoestima, o desejo de viver, a sensação de ser um homem à altura da palavra. Durante a conversa, parou de repente e tomou um pulso de Vânia. A expressão da mulher era de estupefação, mas ela não relutou, não o repeliu, apenas ficou a encará-lo, os olhos arregalados, incapaz de dizer palavra . Eusébio foi conduzindo-a para dentro de casa, ela deixou-se levar como um autômato, e os dois se amaram com a entrega e a volúpia dos amantes dos mais picantes romances de amor. Os dois se deram como que loucamante enamorados, e trocaram tantas carícias e tantas juras de amor, que mais pareciam dois adolescentes embevecidos no primeiro ato sexual de suas vidas. E desfrutaram plenamente cada momento, cada gemido, cada suspiro, cada palavra quente, naquela noite de delírios, em que ambos sentiram-se apaixonados e correspondidos, felizes como se fosse impossível existir na face do planeta qualquer sentimento ou coisa diversa da luxúria, da paixão e da felicidade.
Tão logo deixaram o quarto e vinham saindo, ainda ajeitando as roupas e sentindo-se leves como flutuassem, Euclides surgiu na sala, bem diante dos dois. Ficou longos momentos sem palavra, os olhos febris de ódio, a voz entalada na garganta, a boca aberta numa espécie de surpresa esquisita, porque, apesar das suspeitas de que aquilo já estivesse acontecendo antes, tivera durante o período de desconfiança a esperança de estar equivocado. - Desgraçados! Filhos da puta! Vagabunda! Puta suja! Maldito asqueroso! gritou e rugiu ao mesmo tempo, e sentia um furor demoníaco. Teve um ímpeto de pegar o facão na cozinha e acabar com os dois, que permaneciam imóveis e sem ação. Mas conteve-se. - Some os dois daqui. Pega tudo o que é de vocês e some da minha frente agora. Eusébio quis dizer alguma coisa... - Cala, desgraçado! - berrou novamente Euclides - Senão eu te mato! - Foi saindo, ofegante: - Some os dois daqui agora. Vou até o botequim. Se eu encontrar um de vocês aqui quando eu voltar, eu mato. A rua encheu-se de gente. Euclides passou carrancudo pelo meio das pessoas, enquanto os amantes estavam quedados e pálidos de vergonha diante dos vizinhos. Arrumaram as roupas, fretaram uma kombi e saíram do bairro. Dentro do veículo Eusébio ainda murmurou para ela: - Não sei dizer o que tô sentindo. Vânia comentou com um ar de desânimo o olhar distante: - Eu vou sumir. Vou prá casa da minha mãe, que é bem longe. Quero esquecer o dia de hoje. Tô me sentindo uma piranha! Uma vagabunda! - Meu Deus! - Eusébio levou as mãos à cabeça, não sabia o que mais dizer. Passado pouco mais de um ano, ele, Eusébio, numa tarde de domingo, procurou o irmão. Euclides, que a princípio relutou em dirigir-lhe a palavra, por fim acabou por fazê-lo. - Só não entra, seu traidor. Eu falo contigo aqui do portão mesmo. - Meu irmão, eu não queria te fazer de besta... - Não me chama de irmão, seu maldito...! - Desculpa, Euclides, mas não foi por maldade... - Você veio me esculachar, filho da puta? - rugiu com o olhar fuzilante. - Não, por favor, não é isso. Eu só queria te dizer que foi uma doideira... Mas é que eu tava morrendo de tristeza, tinha uma dor que me maltratava... - Desgraçado! Você me traiu com aquela... - longa pausa - Ela era a coisa que eu mais amei nessa vida... - Perdoa, Eucli... - Nunca! Eusébio botou a mão no peito:
- É que eu sentia uma tristeza tão grande, uma coisa que me matava aos poucos, que me doía fundo aqui dentro... Euclides bateu o portão, deu as costas ao irmão, percorreu o quintal, entrou na casa batendo também a porta da sala. Eusébio murmurou para si mesmo: - Uma coisa que mata aos poucos... que dói fundo aqui no peito...
Ba r ã o d a M a t a
O café da tarde da infância As tardes suburbanas são tão serenas... As casas simples parecem desabitadas, fechadas. O ar parado. Sequer uma folha de árvore balança. As mulheres passam se protegendo do sol com sombrinhas coloridas. Os homens, coitados, de terno e gravata. O mormaço inquieta. Previsão de chuva. Um sabiá gorjeia ao longe nas matas da serra longínqua. De repente, um estalo na memória do menino brincando sozinho na calçada. Está na hora do café! Cata as bolas de gude e corre para casa. Mãe! Mãe! Já tem café? Sente o cheiro não, filho? Ah, o cheirinho gostoso no ar! Filho, vai comprar pão pra mamãe, vai. Que delícia o pãozinho quentinho da padaria do bairro. Como típico menino, enxerga não só os pães. Lógico que o olhar passeiam desejoso por doces, balas, biscoitos, bolos, pudins, sorvetes, salgadinhos, refrigerantes e refrescos. E o cheiro de pão quentinho. Hum!... Seu Joaquim, o pão tá fresco, tá? Saiu agora, meu filho. Então me dá duas bisnagas. A quentura dos pães ultrapassa o saco de papel e lhe aquece o corpo. Gostoso isso. Xi! Lembra de não colocar as bisnagas debaixo do sovaco. Se papai pegar fazendo isso... Rodopia entre as frondosas tamarineiras que lhe atiçam a cobiça. Mas o momento tem cheiro e gosto é de café. Distraído, quase dá uma cabeçada numa das árvores. O pipoqueiro acaba de chegar e prepara sua carrocinha. Vontade de comer. Epa! Nada de mexer no troco. Mamãe ralha e até dá palmadas. Ei, bambino, non vá comprare gibi? Hoje não, seu Pasquale. Tô com pressa! É bonita a banca de jornal ao pé da via férrea, cheia de revistas coloridas. No cine Alfa está passando um filme de amor. No Coliseu, outro filme de amor. É o tipo de filme chato pra burro. Lili é que gosta. Chega até a chorar, a bobona. Mas garoto gosta é do Flash Gordon que viaja pelos planetas. É do Zorro e o cavalo Silver. É de Durango Kid. Frente ao armarinho de Dona Filomena, alunos do turno da tarde da escola fazem alegre algazarra na saída. Lembra que terá prova de amanhã na sua escola. Está quase terminando o primário. Hoje à noite não vai poder brincar na rua de bandeirinha, de boca de forno, nem pular carniça ou pular amarelinha... Não. Amarelinha, não, que isso é coisa de menina. Olha para os dois lados para ver se não vem carro ou o bonde. O guarda para o trânsito só para ele atravessar. Sente-se importante. Obrigado, seu Geraldo! A rua onde mora é calma, cheia de árvores nas calçadas e poucos automóveis. Dá até pra jogar pelada no meio da rua de paralelepípedos. Mas o jogo tem que ser interrompido quando passa gente ou vem carro. Olha a laranja, Dona Maria, se não tiver bolsa, traz a bacia! Bonito é o amolador de facas tirando música de verdade.
Apressa o passo. Ultrapassa zunindo o portão. Num salto vence os três degraus da varanda. Lar doce lar, diz um texto no ladrilho da fachada da casa. Andorinhas de louça em voo congelado na parede, o papagaio grita. Miguelzinhô! Miguelzinhô! Entra em casa anunciando: cheguei! A mesa posta. Xícaras comuns, brancas com desenhos coloridos. Lembra os vizinhos chineses que tomam chá em louças de porcelana com lindos ornamentos orientais. Sua irmã é doida para ter um jogo de chá assim. Mas papai, coitado, operário na oficina de trens, não tem dinheiro para tal extravagância. Menino, vai chamar sua irmã! Lili, tá na hora do café! Vem! Já vou! Vão lavar as mãos, vão, antes que o café esfrie. O branco do fundo da xícara se tinge de marrom bem escuro, depois vai clareando com o leite, até ficar creme. Mãe, deixa cair a nata, deixa. Eu gosto. Hum!... Deliciosa a manteiga derretida no miolo do pão quentinho. Olha aí, tá derrubando cascas no chão! Quero ver quem vai limpar. Claro que é a Lili. Seu bobo. Mãe... O que é? É que... O que é? Fala, menino! Posso comer mais um pedacinho de pão, posso? Ora, é isso. Toma. Irmão guloso! Irmã invejosa! Bobão! Nariz de broa! Aí, mãe, ele tá me xingando! Parem de briga, crianças. Vão lá pra fora que eu vou arrumar a cozinha. Epa! O galo cantou no quintal. Mas ainda nem amanheceu! Galo maluco. O sol baixa lentamente e a noitinha vem chegando quase imperceptível. Andorinhas voam. Da igreja veem soar nos ouvidos as seis badaladas dos sinos replicantes da igreja. Mamãe tá rezando em silêncio, ajoelhada, ouvindo no rádio a Ave Maria. No céu desponta a estrela Dalva. Não é estrela, seu burro! É o planeta Vênus. Eu sei. Sabe nada. Se soubesse falava direito. Eu sei sim. Lili, você é muito boba, sabe? Eu falei assim, porque Estrela Dalva é mais bonito. Ih! Que desculpa mais esfarrapada. Quer saber mais? Na Lua tem São Jorge num cavalo matando o dragão. Bobinho. Acredita em tudo o que se diz. Então a noite chegando. Gostoso é deitar no chão e olhar as estrelas cintilando!... Parece até que o céu está pertinho da gente. O tempo passa e ele ali deitado, quase cochilando. Miguelzinho, vai tomar banho! Seu pai já vai chegar. Você hoje vai dormir cedo porque amanhã tem prova na escola. Curtindo ainda o gostinho de café, desperta de súbito, se levanta e, chateado, entra em casa pela porta dos fundos, acompanhado pelo vira-latas molenga. Sai pra lá, pulguento! Na cozinha a mãe prepara a sopa. Sopa de quê, mãe? De agrião, meu filho. Agrião de novo, mãe! É o que tem. Se não quiser, fica com fome. Vai pro banheiro pensativo. Ora, dane-se a sopa! Ainda tenho o gostinho de café. Toma banho devagar, sem muita vontade. Você não vai dormir sem se alimentar, não é filho? Engole a sopa sem prazer. Argh! Que droga! Estragou o gostinho do café da tarde! E o café da tarde ser tornará um verdadeiro ritual no seu dia a dia, por toda a vida. Só que aquele cheiro e aquele gostinho serão apenas boas lembranças. Acorda, Miguel! Ãh... Puxa... Eu tava sonhando com o café da tarde da minha infância. Deixa de conversa e se apressa, homem, senão você vai acabar chegando atrasado no trabalho.
Luiz Lula Dias
E n s a i o té c n i c o Entre idas e vindas enfim voltou, não devia voltar, pois não devia parar. O povo do Rio de Janeiro ligado ao samba ficou sem assistir os ensaios técnicos no Sambódromo no carnaval passado, uma tristeza só. O primeiro carnaval da gestão do prefeito Crivella os ensaios técnicos já tinham acontecidos ainda na gestão do prefeito anterior. Quando Marcelo Crivella assumiu, em seu primeiros instantes de mandato e em seu primeiro carnaval como prefeito do Rio de Janeiro, ausentou-se da cidade viajando para o exterior, quebrando uma tradição já incluída no carnaval carioca. A entrega simbólica das chaves da cidade ao Rei Momo. Não compareceu no Sambódromo nem um dia, ignorando totalmente a maior festa popular desta cidade. Começava aí o seu desprezo pela nossa cultura. Evangélico que é como bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, ao assumir a prefeitura deveria deixar a religião de lado e governar para todos, mas não. Começou a perseguir sutilmente as religiões de matriz africana, através de seus seguidores e também começou a criar dificuldades para as escolas de samba. Primeiro alegando que o prefeito anterior deixou a prefeitura sem dinheiro, então teria que reduzir a verba destinada as agremiações, pela metade, pois precisava de dinheiro pra investir em saúde e educação, tentando jogar a população contra o carnaval. Ignorou totalmente o acordo que fez com as instituições representativas dos seguimentos do samba, reunindo-se com a Liesa, Liesb, Federação dos Blocos, Associação as Escolas Mirins para que estas lhes dessem apoio. Depois e eleito ignorou tudo e virou inimigo do samba. Para o carnaval deste ano de 2019, mais uma vez reduziu verba destinada ao samba. Os ensaios técnicos mais uma vez corriam o risco de não serem realizados porque segundo a Liesa a prefeitura não passaria verba para esta finalidade e a instituição não tinha dinheiro. Como? A liesa fatura muito dinheiro com os desfiles, como não tem dinheiro? A liga uma entidade muito atrasada com um presidente há muitos anos comandando, não conhece a Internet e até hoje vende ingressos através de fax. Com a Riotour a decidir, sem contestação ou sugestões por parte das entidades do samba.
O carioca de samba vivia angustiado ao saber que em São Paulo não há crise no carnaval e muito pelo contrário vai muito bem obrigado com as escolas de samba realizando pelo menos dois ensaios técnicos em seu reduto de desfile oficial, pois lá apoio não falta. Enfim depois de tantas e tantas criticas quase que em cima do carnaval, os ensaios técnicos na Sapucaí voltaram, para o bem do povo que não tem condições financeiras para assistir o desfile oficial na pista da Marques de Sapucaí.
Onesio Meirelles
M a t e m á t i c a é a p r i m e i r a c o i s a p r a u m b o m d e s fi l e - Foi horrível, professor. - Mas, o que deu de tão errado no desfile de carnaval? - O tempo de desfile. Não seguimos o regulamento e fomos desclassificados. O tempo tinha terminado e só tinha passado pouco mais da metade da escola!" - Pode deixar que a Matemática vai resolver, neste quesito, seu desfile de carnaval pros próximos anos! Disse pro Horácio que a primeira coisa a se pensar na organização de um desfile de carnaval é na matemática envolvida. - Ora, mas não seria na escolha de um bom samba, professor? - Eu lhe respondo que não, usando um único argumento: samba ruim não desclassifica uma escola de carnaval ou bloco, a falta de matemática sim. Foi o que aconteceu com o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Perifa (GRESUP): o tempo de desfile acabou e nem metade da escola tinha passado. - Meu amigo Horácio, o planejamento matemático não vai deixar sua escola se desclassificar por este mesmo motivo nunca mais. Vamos aos cálculos! Para tanto temos uma escola hipotética, Unidos da Aritmética, nossa UA. Nossa escola desfila na Avenida Álgebra, que tem lá sua medida (o tamanho da pista.
Então bastará saber o tamanho da escola e ir gerindo a velocidade de desfile dela, de forma harmônica como deve ser.
Pra você entender basta olhar o desfile do ano passado. O tamanho ideal da sua escola, se ela mantiver as características rítmicas do ano passado, vai da comissão de frente até o componente que estava na metade da avenida de desfile quando tinha corrido metade do tempo de desfile. Assim, você terá o que poderia ser um tamanho ideal para a escola.
Quando tiver passado metade do tempo, se a escola já estiver passado pela metada da pista, a situação estará otimizada, como dizemos em Matemática. Bastará manter a mesma harmonia no desfile até o final. Mas, cuidado, fica de novo o alerta, pra saber se a escola já passou a metade da pista você tem que medir pelo último componente da escola. Assim:
- É tem um pouco de Matemática no carnaval mesmo. Me convenceu, professor. - Horácio, iso é só o começo. Tem Matemática nas fantasias e adereços (nas questões relativas à simetrias, proporções quanto ao tamanho). Tem Matemática quanto ao ritmo e viradas da bateria. Tem Matemática quanto à questão financeira e planejamento antes do desfile. Tem Matemática na questão da administração do tempo. - Caramba, tem muita Matemática no carnaval!
H e r a l d C o s ta
Outros carnavais e os mesmos Vim com os maracatus e os sambas Cheguei co as marchas de rancho, Os metais e seus sopros, Cirandas renegados no cotidiano Esperei outros carnavais e os mesmos Os mesmos blocos de sujos, Pierrots, colombinas, índios Palhaços e outras fantasias Não tenho parabólica, aponto pro mundo um tufão Sou pouco, mas sonho E sangro e já começo a desconfiar Que não quero ser pouco livre, Tenho a liberdade de ser e de estar Quero viver outros carnavais e os mesmos Aqueles carnavais diferentes dos outros E se os carnavais dos outros são os mesmos Carnavais vividos por aqueles do povo
Marcelo Bizar
Bairro: Abolição
Vamos começar pelo bairro do subúrbio chamado Abolição.4 É unanimidade dizer que o nome do bairro se deve ao fato de que a hoje rua da Abolição já foi chamada de 13 de maio. A referência então é quanto à data oficial da "Abolição da Escravatura". Sabemos que a data é forjada e não representa a luta e os movimentos de libertação. Mas, o fato que levou ao nome da rua e depois do bairro do subúrbio carioca é este. Colocamos acima o mapa de satélite para sublinharmos a importância da Av. Dom Hélder Câmara, antiga Av. Suburbana para o bairro da Abolição, a via corta pela metade o bairro. Avenida esta que já foi chamada de Caminho dos Jesuítas, Caminho das Minas, Estrada Real de Santa Cruz, Estrada Imperial de Santa Cruz e Caminho Imperial. Era a via que nos tempos do Império Brasileiro seriva para unir a cidade do Rio de Janeiro ao chamado "sertão carioca"(interessante tema para estudos), fazendo o caminho ao longo da Capitania do Rio de Janeiro, passando pela antiga Fazenda dos Jesuítas, isto nos séculos XVII e XVIII. O Caminho Imperial (Av. Dom Hélder Câmara) então fazia parte da Estrada Real (ligação do Rio de Janeiro a Minas Gerais), caminho interno brasileiro por onde se escoava o nosso ouro para Portugal. Muitos marcos históricos se perderam com o tempo. Entretanto, pesquisandose com cuidado ainda encontramos alguns deles, notadamente no bairro de Santa Cruz como também em cidades como Paraty e Petrópolis há sinalização do caminho. O bairro da Abolição, inicialmente, era um bairro ligado às plantações, lavouras e ao próprio comércio rural. Depois, ainda no século XIX, vieram algumas fábricas para a regição Os ano de 1917 é sublinhado como sendo o dos primeiros registros de loteamentos de terrenos no bairro, ficando o bairro caracterizado por ser uma região de moradias. No ano de 2000 (dois mil) esteve entre os quinze bairros da Zona Norte carioca (Subúrbio Carioca) com os melhores indicadores sociais, correspondento a um IDH de 0,857, considerado elevado. O bairro possui majoritariamente uma população de classe média.
Malkia Usiku
Abaixo temos a ilustração de Ângelo Agostini de como era o carnaval no Rio de Janeiro antigamente. Estamos falando do final do século dezenove, lá pelos idos dos anos 1880. O carnaval tinha outro nome: Entrudo. Como estou saindo agora para pular no Bloco de Carnaval Água Boa Passarinho Não Bebe, neste mês de fevereiro de 2019 deixarei meu leitor do Bloco do Eu Sozinho vendo as ilustrações e lendo um texto do grande Debret logo abaixo. Afinal de contas: "Vou 'deixar-te' agora, não me leve a mal, hoje é carnaval!"
Texto de Debret sobre o Carnaval Carioca em 1830 "O carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra em geral nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas mais frequentadas, nem às corridas de cavalos chucros tão comuns na Itália. Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões-de-cheiro, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas que todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera. O limão-de-cheiro, único objeto dos divertimentos do carnaval, é um simulacro de laranja, frágil invólucro de cera de um quarto de linha de espessura e cuja transparência permite ver-se o volume de água que contém.
A cor varia do branco ao vermelho e do amarelo ao verde; o tamanho é o de uma laranja comum; vende-se por um vintém e as menores a dez réis. A fabricação consiste simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho médio, cujo caule é substituído por um pedacinho de madeira de quatro a cinco polegadas que serve de cabo, e mergulhá-la na cera derretida. Operada essa imersão, retira-se o fruto ligeiramente coberto de cera e mergulha-se nágua fria, a fim de que se revista de uma película de um quarto de linha de espessura, bastante resistente, entretanto. Parte-se em seguida esse molde, ainda elástico, a fim de retirar a laranja e, aproximando-se as partes cortadas, solda-se o molde de novo com cera quente, tendo-se o cuidado de deixar a abertura formada pelo pedaço de madeira para a introdução da água perfumada com que deve ser enchido o limão-de-cheiro. O perfume de canela, que se exala de todas as casas do Rio de Janeiro durante os dois dias anteriores ao carnaval, revela a operação, fonte dos prazeres esperados. Para o brasileiro, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às cinco horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros já espalhados nas ruas a fim de providenciarem para o abastecimento em água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes e das vendas. Vemo-los aí, cheios de alegria e de saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis. Nesses dias de alegria, os homens de cor mais turbulentos, embora sempre respeitosos para com os brancos, reúnem-se depois do jantar nas praias e nas praças, em torno dos chafarizes, a fim de se inundarem de água, mutuamente, ou de nela mergulharem uns aos outros por brincadeira; a vítima, ao sair do banho, pula e faz contorções grotescas, com as quais dissimulam às vezes o seu amorpróprio ferido. Quanto às mulheres negras, somente se encontram velhas e pobres nas ruas, com o seu tabuleiro à cabeça, cheio de limões-de-cheiro vendidos em benefício dos fabricantes. Mas os prazeres do carnaval não são menos vivos entre um terço pelo menos da população branca brasileira; quero referir-me à geração de meia-idade, ansiosa por abusar alegremente, nessas circunstâncias, de suas forças e sua habilidade, consumindo a enorme quantidade de limões-de-cheiro disponíveis. Domingo ainda, mas depois do almoço, o vendeiro procura provocar o vizinho da frente, com incidentes insignificantes, a fim de atraí-lo à rua e jogar-lhe o primeiro limão ao rosto. Alguns jovens franceses empregados no comércio, passeiam como se fossem sentinelas avançadas, armados de limões, e aproveitam a oportunidade para inundar uma senhora, também francesa, ocupada no fundo da loja semifechada.
Vêem-se também jovens negociantes ingleses, consagrando de bom grado 12 a 15 francos a um quarto de hora de brincadeira lícita, passear com orgulho e arrogância, acompanhados por um homem negro vendedor de limões, cujo tabuleiro esvaziam pouco a pouco, jogando os limões às ventas de pessoas que nem sequer conhecem. Alguns gritos, entrecortados de gargalhadas, revelam ao locatário do primeiro andar, cujo cómodo de frente já foi esvaziado de seus móveis, por precaução, que chegou a hora de abrir as janelas, ou para evitar que se quebrem os vidros ou para se preparar ele próprio para a batalha de limões. Alguns curiosos assomam aos balcões e logo desaparecem e a manhã toda decorre entre escaramuças. Depois da refeição, entretanto, sentindo-se todos dispostos ao combate, correm às janelas e alegremente solicitam, de longe, e com gestos, licença para começar; ao mais ligeiro assentimento alguns limões trocados com habilidade e pontaria dão o sinal do ataque geral; e, durante mais de três horas, vê-se grande quantidade desses projéteis hidróferos cruzando-se de todos os lados nas ruas da cidade e estourando contra um rosto, um olho ou um colo. A ducha decorrente, de mais ou menos um copo de água aromática, suportase agradavelmente em vista do calor extremo da estação. É natural que, após semelhante combate, toda a sociedade de um balcão, molhada como ao sair de um banho, se retire para mudar de roupa; mas logo volta com o mesmo entusiasmo. E uma moça sempre se orgulha do grande número de vestidos que lhe molharam nesses dias gloriosos para seus dotes de habilidade". Retirado do site: https://www.riodejaneiroaqui.com/carnaval/carnaval-entrudo.html