EXPEDIENTE Edição: V. 3, n. 6 - junho de 2020
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Periodicidade: mensal
Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais). Diagramação: Marcelo Bizar Capa: Marco Trindade e Marcelo Bizar Arte e Grafismo: Marcelo Bizar Foto da capa: Festa Junina de Leandro Neumann Ciuffo (Paróquia de São Francisco Xavier do Engenho Velho, Subúrbio do Rio de Janeiro). File:Festa Junina (9062891212).jpg - Criação: 16 de junho de 2013 - Licença: Creative Commons Attribution 2.0 - Generic. Imagens: as imagens não creditadas são da Internet. Distribuição: A distribuição da Revista Sarau Subúrbio é online e gratuita. A leitura da revista pode ser feita em seu sítio: https://revistasarausuburbio.com.br e nas plataformas online ISSUU e Calamèo. Notas importantes: A Revista Sarau Subúrbio é uma publicação totalmente gratuita, sem fins lucrativos. Não contamos com patrocínio de qualquer natureza. Nosso objetivo, em linhas gerais, é servir de instrumento para que os artistas que não possuem espaço de divulgação nas mídias tradicionais possam apresentar seus trabalhos, nas mais variadas formas, seja na literatura, na música, no cinema, no teatro ou quaisquer outras vertentes artísticas, sempre de forma livre e independente. Todos os direitos autorais estão reservados aos respectivos escritores que cederam seus textos apenas para divulgação através da Revista Sarau Subúrbio de forma gratuita, bem como a responsabilidade pelo conteúdo de cada texto é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente a opinião da revista. Editores Responsáveis: Marcelo Bizar e Marco Trindade Conselho editorial: Marco Trindade, Marcelo Bizar, Silvio Marcelo, Ana Cristina e Leonardo Bruno Contato: sarausuburbio@gmail.com
EDITORIAL Chegamos a nossa edição de junho ainda vivendo em regime de isolamento social, não tem jeito, esse tal de coronavírus não dá uma trégua, e por outro lado, o mandatário maior da República parece trabalhar a favor do vírus. Logo o mês de junho, logo o mês das festas juninas, logo o mês em que os suburbanos enfeitam suas casas, preparam seus quitutes, separam aquele traje bacana, e as ruas se transformam num grande “arraiá”... Tem até uma galera falando em “festa junina à distância, online”, mas cá entre nós suburbanos, aí já é demais (risos). Que nos inspiremos na música de João de Barro e Alberto Ribeiro, e que os balões lá do céu, das frias noites de junho, nos embalem em sonhos dourados de dias melhores. Boa leitura!
No i t e s d e J u n h o
(João de Barro/Alberto Ribeiro) Noite fria, tão fria de junho Os balões para o céu vão subindo Entre as nuvens, aos poucos, sumindo Envoltos num tênue véu Os balões devem ser com certeza As estrelas daqui deste mundo E as estrelas do espaço profundo São os balões lá do céu Balão do meu sonho dourado Subiste enfeitado, cheinho de luz Depois as crianças tascaram Rasgaram teu bojo de listas azuis E tu que invejava as estrelas Sonhavas ao vê-las Ser astro no céu Hoje, balão apagado Acabas rasgado Em trapos ao léu
SUMÁRIO 02 03 04 05 06 08 09 10 13 14 15 17 18 20 21 22 23 25 26 27 29 32 33 35 36 38 39 40 43
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EXPEDIENTE EDITORIAL SUMÁRIO SURPRESA LUNAR AO MEU SUBÚRBIO NO MEU UNIVERSO SORRIAS! O POETA VAGABUNDO ÁUREA ESTRELA ESPECULAÇÃO SOBRE A VIDA (E A MORTE) PÓS-PANDEMIA MARACANÃ MEMORÁVEL NO TEMPO LENDAS SUBURBANAS - HISTÓRIAS ESQUISITAS NO SUBÚRBIO ESTANTE SUBURBANA VITROLINHA SUBURBANA ANIVERSÁRIO RACISMO ANASTÁCIA O BAÚ DE BAÚZA E O BOI DE PARIS ACONTECEU NUM SÃO JOÃO... A TEMPOSIÇÃO DAS ALMAS ÍNCUBAS - A ESPIRAL DE ULAM LINDAS FLORES NA PANDEMIA UM DIA MUITO ESPECIAL VERDADEIRO ÉBANO - ÁUREA MARTINS POEMAS DE RODOLFO CARUSO VIDAS NEGRAS IMPORTAM DRUMMONIANAMENTE JUNINO MÃE TÂNIA BLOG DO TIZIU
SURPRESA LUNAR Desperto no meio da noite Cansaço, entregue ao sofá Reluzente está ela, de fronte Espetacularizando a beleza que há Me assusto tamanho clarão E com o sono a esvanecer Hipnose e contemplação Encanto total a vencer Lua, um astro, um nome Definições tentando alcançar Com toda possibilidade se rompe Por não haver como explicar Quem dera tocar com a mão Mais de perto a conhecer Humanidade em limitação Querer nem sempre é poder No entanto, concedido ao homem O sentido da visão no criar Outros sentidos se envolvem Nesse despertar que parece um sonhar.
Wallace Araujo de Oliveira
AO MEU SUBÚRBIO O metrô passa como esses dias. São rápidos e incontáveis Nunca pensei que falta eu sentiria. A saudade e a nostalgia estão incontroláveis Já sonho com meu querido Império, Mas meu amor pela Portela é caso sério Mas a Madureira quero ir celebrar o fim Dessa prisão que está sendo pra mim Está sendo um ruim este ano Mas ainda sonho com o povo de Madureira cantando: "Deixa o povo cantar, matar a saudade do Império Serrano", Por favor, não quero ver notícias, me deixa cá sonhando. Quando acabar este tal de covid, Não se acanhe, me convide. Não quero saber aonde vou, mas primeiro vou a Madureira, Mas, depois, vou a qualquer lugar "O mar serenou quando ela pisou na areia" No passo a passo "vou de mar a mar, mareia" E mareando, vou até a terra de Cartola, a Estação Primeira. "Chuva, sol. Meu olhar... saudades do meu São João" A Tijuca manda o abraço do Pavão, Saudades duma Roda, saudades do meu Rio de Janeiro Quero esquecer esse Corona por inteiro Quero ir ao Maraca ver meu Fluzão ganhar, Quero ver minha Águia Altaneira voar Aos meus turistas, guiar E minhas crianças, na escola acompanhar
NO MEU UNIVERSO Às vezes sinto que na minha cabeça eu vivo em um universo próprio. No meu universo eu ando nua pelas ruas e ninguém se direciona a mim com "ô lá em casa". No meu universo as pessoas colocam a racionalidade acima de emoção assim como o cérebro está acima do coração. No meu universo não há fome, pois todos aqueles que possuem riquezas em abundância são solidários com aqueles que nada possuem. No meu universo o livro ideal e fundamental para reger uma sociedade é o "Direito constitucional" e não a "Bíblia sagrada". Eu vivo em um universo muito meu. Eu vivo em um universo coberto por justiça. No meu universo não há poeiras de desmatamento por conta da ganância do homem. Eu moro nos meus maiores e mais profundos sonhos. Tai Crível
S O R R I AS ! Os olhos são a janela da alma e o sorriso, a entrada para o coração. Os olhos falam do que a boca cala e o sorriso abre portas que a palavra fechou. Os olhos podem refletir dor, amor, medo, pavor mas o sorriso pode alentar o carente confortar o desesperado contagiar o embravecido erguer o abatido animar o encarcerado e valorizar o humilhado. Então, por favor, sorrias!
E d n a C o i mb ra
O POETA VAGABUNDO O poeta vagabundo: Vagabundo por repudiar trabalho E também por ser um bardo dos chinfrins, Já poeta porque inventa frases líricas, Porque toca, sofre e canta ao violão. Homenzinho insano, incomum, parece doido, Já criou costume de parar no tempo E também no espaço, pra fitar estrelas; Divagando tanto, ousando fantasias Que não vi neste mundo nenhum louco acalentar. Comove-se co'a musa que adentra o bar, Achega-se a ela e lhe diz galanteios Com olhos luzentes e tão fascinados, Que mais parece menino apaixonado. Quando solitário, acomoda-se à mesa E consome-se em porre pela morena Que há bem pouco tempo o deixou E a linda mulata que o já encantou. Esse vagabundo, na rua lotada, É apenas um ser sozinho e tão errante Que para de repente e faz novamente Que pare o tempo só pr'ele contemplar O céu azulzinho do dia de sol. Esse coisa-à-toa caminha perdido, Soturno e sem rumo na rua deserta Quando sua alma é sombria, escura, sem luz. Despojado, informal, parece esses anjos Desgarrados dos outros, que ficam bebendo Nos bares alegres, em vez de ir pro Céu. Incapaz de acatar, não sabe dar ordens. Parece um cão solto deitado nas ruas: Lírico e livre, o que mais ele lembra? Talvez as cigarras, talvez borboleta, talvez os pardais...
II - (O POETA ENVELHECIDO) Quem é o poeta que chega qual vindo de algum devaneio, saindo de um quarto de vila com seu violão sob o braço? Às plenas três horas da tarde, a grave voz de ressaca, dedilha uma música antiga que é de fazer viajar. Chegando a noite, o opoeta, a língua pesada de bêbado, relata as histórias e amores vividos em tempos de lira. Alguns ouvintes se encantam, uns outro se enchem de enfado, mas cria-se um clima na noite pejado de poesia. Poeta de brancos cabelos, de rosto cortado do tempo, tão jovem porém nos anseios, intenso em seu doce falar. Às altas da noite o bar fecha: os homens urinam nos becos, e o triste poeta, já trôpego, caminha pra ir descansar. Um dia um coma profundo ou uma cirrose ou infarto fará que o poeta soturno não saia do quarto de vez.
I I I - ( O B Ê B A DO A DO R M E C I DO )
Quem é esse traste que dorme, Que fede a fumo e cachaça, Ressona no quarto sombrio, Fechado e desarrumado? É o mesmo poeta que há pouco Cantava o sorriso da moça, Dizia que a noite é um negrume Tão bom de se mergulhar. Quem é esse velho imprestável Que rosna o que não se entende, Enquanto rola na cama, Num sono agitado de ébrio? É aquele poeta que disse Que a tarde é momento divino De a vida dançar de alegria E o peito buscar emoções. Agora é o langanho que dorme, Que atrai desprezo e chacota O homem que traz sempre sonhos, Que sente profundo no peito As dores e o belo do mundo.
Ba r ã o d a M a t a
ÁUREA ESTRELA
Uma Voz negra ecoa... Que Luz Divina! Uma esperança, Uma centelha... Áldima que se tornou estrela A negritude que fascina os casarões Um sorriso ainda de menina Da “carioquice” das noites Da invisibilidade, dos açoites Surge a Generosa Senhora das canções De Campo Grande para o mundo Ensurdecedores aplausos... Presença preta, amor profundo Dama das boates, dos teatros, Da coxia... DNA dos ancestrais Doce Canto mântrico Na grande chance A força dos Orixás Bela Mulher Resistência pro que der e vier Santo Antônio proteja Acolha e liberte das amarras capitalistas a cultura verdadeira! E tu, que és a nossa videira, Ainda possa brindar ao futuro E perpetue no universo Oitenta infinitas vezes A força que tem Uma Cantora brasileira!
M e ri d e Li z
ESPECULAÇÃO SOBRE A VIDA (E A MORTE) PÓS-PANDEMIA Desço do táxi e confiro meu convite: o endereço da festa é este mesmo. Quando entro, vou direto ao homenageado celebrá-lo. Teço elogios, digo o quanto está vívido. Volto ao salão, ornamentado com flores, onde todos já estão comendo e bebendo. Os canapés são ótimos e a cerveja é puro malte. Revejo parentes que há muito não encontrava. Conversamos sobre como o tempo passa depressa. Sob o efeito do álcool, alguns convidados começam a cantar as músicas prediletas do anfitrião. Abraço-os e canto também. Mesmo desafinado. Tive muitas perdas para ceder à vergonha. Pessoas queridas morreram e eu não pude me despedir decentemente. Por isso agora festejamos, não a morte, mas a possibilidade do adeus. Todos juntos, dançando ao redor do caixão aberto, admirando o rosto do morto pela última vez.
J o n a ta n M a g e l l a
MARACANÃ MEMORÁVEL Em 1992, o Maracanã ainda preservava a sua condição inaugural de pertencer ao povo carioca. Aos domingos, religiosamente, as famílias suburbanas se dirigiam ao maior estádio do mundo para celebrar a vida e a dominical democracia esportiva. Todos iam ao Estádio Jornalista Mário Filho. Sem exceção! As linhas de trem levavam – e ainda levam – à grande libertação, expulsão, purgação, catarse e paixão do brasileiro: futebol. Tudo o que era estranho à essência ou à natureza do suburbano colocava-se para fora de modo que purificasse o espírito do morador da cidade do Rio de Janeiro. Um espetáculo trágico, mas contemplativo para os que miravam a cena com olhar oblíquo. Despejava-se na arena o que corrompia a todos. Era um movimento natural: pais mobilizavam seus filhos e, com isso, perpetuava-se simbolicamente a manutenção do amor ao time eleito. Passava-se de pai para filho. Com valor hereditário e hierárquico. Uma espécie de sobrenome. Há de alguém optar por outra paixão representada por rival equipe distinta da do progenitor! Peleja na certa. Tenho uma lembrança magistral que fica guardada em mim e, quando sempre que posso, a recupero com a finalidade de fazer-me rememorar um momento feliz que tive com meu pai. Aconteceu exatamente em 12 de abril. Vasco venceu Botafogo de virada em briga pela liderança do Brasileiro de 1992. Entramos e saímos do estádio gritando “Ê ô, ê ô, o Bebeto é um terror!”. Foi inesquecível! Meu pai e eu tínhamos o hábito de ir ao Maraca aos domingos e, aproveitando a situação, visitávamos e almoçávamos na casa da minha avó. Ela morava na rua Felipe Camarão. A poucos passos do palco do espetáculo. Coincidência ou não, hoje vivo na mesma residência que serve de cenário memorialista para este texto. As pontas se ligam. Confesso que eu tinha poucas coisas em comum com meu pai. Não combinávamos. Não compartilhávamos as mesmas observações sobre a vida. Mas o Maracanã..., aos domingos, o obstáculo que nos separava reduzia-se a um amor em acordo: Vasco. Talvez este texto sirva para eu descristalizar algumas metáforas de vida que estão retidas em mim. Este sufocante assunto familiar, íntimo, próprio. As palavras têm esta função: tiram o nó, desatam o laço, ultrapassam o obstáculo. Maracanã é uma aldeia. É uma ilha. É uma ponte efêmera e invisível. Dura talvez um domingo qualquer. Saudade desses dias! O coro musical ensurdecedor: “Ê ô, ê ô, o Bebeto é um terror!”. E foi. Como em todo enredo fechado sob forte emoção, ele deixou o melhor para o fim. A partida estava 1 a 1, aos 37 minutos do segundo tempo, e o Botafogo corria atrás do gol que lhe daria a liderança do campeonato. Só que, além de toda a equipe do Vasco, tinha Bebeto à sua frente. E ele investiu em direção à área numa corrida fatal. Nem se pode dizer que a defesa adversária estava desprevenida.
O grandalhão Márcio Santos até subiu com ele. Bebeto, porém, conseguiu ir mais alto. Numa espécie de voo de beija-flor, estático no ar marginal, paralisado, Bebeto recebeu o cruzamento de Cássio pelo lado esquerdo e, de cabeça, decidiu o clássico muito disputado. O gol fez com que o Vasco passasse a ser uma festa só. No campo, no toque de bola de seus jogadores; na arquibancada, na sincronia dos cânticos da torcida; e, no pacto temporário, meu pai e eu. O acordo chegava ao fim. Aliás, o jogo chegava ao fim. O Maracanã tinha uma importância para todos: união. Era o momento em que a disputa de classe, por exemplo, se esvaziava por 90 minutos. Suburbanos aproximavam-se. Uma espécie de massa feliz. Havia democracia breve. E como havia! Fui a um jogo há pouco tempo e tive a impressão de que adentrava num shopping. Não vi meu pai. Não enxerguei as partes que compuseram o ex-maior estádio do mundo. Quem sabe verdadeiramente o Maracanã seja o nosso “ex”: distante e oculto ao mesmo tempo. O palco se deslocou do subúrbio. Não serve mais de acercamento das massas; de pais e filhos; do meu pai e de mim.
Leonardo Bruno
NO TEMPO A viver de uma forma atrevida, mas receoso de tornar-me alma penada, sigo pelas quebradas da vida a dar e a levar pernadas. Decididamente, sou o que estou, não vivo num tempo que passou, até mesmo porque não posso, mas o trago presente em mim. Lembranças, sem remorsos, que me fazem um estopim dos estrondos que hoje provoco com os vários temas que invoco, apoiado numa ênfase afetada e impelido por uma verve exagerada nos versos que escrevo. Se, a tais exposições, me atrevo, é porque minhas imperfeições fizeram-me o que estou: um ser perfeito em imperfeições na perfeição do que acho que sou: um fruto de atribulado pretérito, imperfeito mais do que perfeito, com ambição de acumular méritos e se tornar perfeito mais do que imperfeito. Neste incansável anseio: ser e estar poeta, mergulho, sem o menor receio do que a sua ondulação acarreta, num oceano de narrativas. E, diante das marés dos dramas que presencio, nado com braçadas reflexivas para espraiar no que reverencio.
Kaju Filho
LENDAS SUBURBANAS
HISTÓRIAS ESQUISITAS NO SUBÚRBIO Se eu disser que vou te contar uma história assustadora, uma história com fantasmas ou seres estranhos, repleta de segredos de família e crimes do passado talvez você pense em um cenário estrangeiro. Talvez sua mente comece a construir a imagem de castelos em ruínas, ruas cheias de neblina ou o porão escuro de uma casa. Quem sabe talvez você pense em um cenário mais contemporâneo como o centro do Rio ou algum lugar na Zona Sul. E se eu te disser que se você olhar pela janela pode ver o cenário perfeito para uma história desse tipo? Ou o caminho que você usa para comprar pão, para ir ao supermercado ou visitar o cabeleireiro ou barbeiro. Histórias assustadoras podem estar mais perto de nós do que imaginamos. Inclusive nos subúrbios ou na Baixada. E não estou falando das coisas que aprendemos a temer por conta da violência. Não estou falando de dois caras em uma moto ou quatro caras em um carro prateado. Nem das doenças que circulam por aí ou do medo de ter o cartão clonado naquela pizzaria que você visitou antes da Pandemia. Não é do medo que estampa as páginas do jornal, nem o que aparece nos telejornais ou na tela do seu celular. Estou falando de outras coisas. Quanto mais você olha para alguma coisa, mais ela começa a ficar invisível. O familiar se torna parte da paisagem conhecida e não precisamos mais olhar para ele. Sabemos que ele está lá. Paramos de pensar sobre o verniz de normalidade que cobre muitas coisas. Existe um tipo de situação bastante assustadora: quando o conhecido se torna estranho. Quando o motorista do ônibus, ou do aplicativo, ou da Kombi, muda o trajeto e você começa a ver ruas que você nem sabia que existiam. Quando você atende uma ligação de um número conhecido, mas escuta uma voz estranha do outro lado da linha. Quando você vai preparar um ovo mexido e não é bem uma clara e uma gema que você encontra depois que quebra a casca. Quando apagamos a luz e aquela sombra no canto do quarto deixa de ser uma sombra familiar e vira algo esquisito. Eu escuto muita coisa por aí. Não tanto quanto eu queria, mas escuto. Na fila do banco, na sala de espera do médico, na fila do açougue. As pessoas sempre têm alguma história esquisita ou um causo de família pra contar. Algumas que aconteceram ou acontecem na nossa vizinhança. Na minha. Talvez na sua. A Praça Itanhomi, em Mariópolis, foi construída em cima de um grande cemitério indígena. O irmão caçula de um senhor que foi “lanterninha” em um cinema de Olaria me falou que o irmão pediu demissão porque não aguentava mais a sensação de
ser observado no horário da última sessão. Sem contar que ele jurava que escutava alguém chamando seu nome e sentia algo chegando mais perto a cada dia que passava. Na década de 1980, um opala negro circulava pelo túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade. O carro seguia em rota de colisão, assustando os motoristas que passavam por lá de madrugada, só para desaparecer em seguida. Uma senhora que trabalhava nos serviços gerais do Hospital Nossa Senhora das Dores, em Cascadura, disse que, depois de ver uma coisa horrível quando estava com duas colegas, não chegava perto do antigo cemitério anexo ao hospital de jeito nenhum. Um pedreiro conhecido me contou do espaço que encontrou quando quebrava uma parede em Piedade para fazer um puxadinho para um compadre dele. Lá dentro havia um ursinho de pelúcia sujo, cotocos de vela e um caderno mofado. No Museu do Inconsciente Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, algumas pessoas escutam as vozes dos falecidos internos da época em que o lugar era o Centro Psiquiátrico Nacional. Um amigo me falou de um homem grandalhão e barbudo que perambulava pelas ruas de Cavalcante, Engenheiro Leal e Madureira carregando uma bolsa grande. Diziam que ele recolhia gatos e cachorros que encontrava e os enfiava na tal bolsa. Quando trabalhei com corretagem de imóveis, me falaram de uma casa no Engenho Novo que não segurava moradores por muito tempo. Um professor de matemática morou lá com a mãe. Os vizinhos disseram que ele ficou louco e invadia a casa dos outros durante a noite para escrever fórmulas matemáticas nas paredes com pedaços de carvão. Ele faleceu lá pelo ano 2000, mas foi aí que as coisas ficaram mais estranhas. Um motorista de frete falou sobre a vez que foi contratado para recolher o entulho de um terreno baldio em Olinda. Ele e os colegas acharam uma velha geladeira bege no fundo do lugar. Quando abriram, descobriram os esqueletos de vários animais pequenos. Passarinhos, calangos, ratos e até um cachorro. Um conhecido que entregava pizzas na região do Grande Méier disse que fugiu uma vez. Ele estava esperando na porta de um prédio antigo depois de tocar o interfone quando escutou o som de um cachorro rosnando perto de umas plantas que enfeitavam a frente do prédio. Mas não era um cachorro. Estava escuro e ele demorou pra ver o que era. Um homem estava agachado perto dele, nu da cintura pra cima e imitando os sons de um cachorro. O homem correu atrás dele andando de quatro os sobre os pés e as mãos, latindo e rosnando. O subúrbio tem muitas histórias. Algumas são esquisitas. Outras são estranhas. Mas nenhuma dela é desinteressante. Nenhuma delas deixa a dever às histórias assustadoras que acontecem em outros lugares. Vamos resgatar esse prazer de ouvir histórias arrepiantes. Só precisamos de pessoas que queiram escutar. Você tem coragem?
H ed j a n C. S .
ESTANTE SUBURBANA
Lélia Gonzalez De Alex Ratts e Flavia Rios
V I T R O L I N H A S U BU R BA N A
ANIVERSÁRIO Embarco de novo Inicio um novo ciclo Uma nova viagem Engato em mais um engodo Estou mais velho Mais gordo A esperança me fortalece E me faz tolo Em meus pensamentos me enrolo Sem dolo Será que vai ter bolo? De repente no trem que estou Um jovem improvisa um RAP Rhythm and Poetry Ou seria REP? Ritmo e Poesia Nesse momento tanto faz I’m happy Do jeito que aqui se diz: “Estou feliz!”
Douglas Adade
RACISMO Ele se dá quando elementos de uma determinada origem (raça) julga inferior aqueles que não pertencem a sua. A Sociedade do Brasil Colônia declarava sua superioridade racial. O Brasil império era escravocrata e racista. E reconhecia isto. Com a Abolição da Escravatura e o advento da República esta mesma sociedade transformou-se em sociedade casta, discriminatória e racista branda. Extremamente diferenciada em termos de padrão social. A falsa República proclamada por Marechal Deodoro da Fonseca, usou ostensivamente a causa da escravidão, as diferenças raciais, o preconceito e o racismo como bandeira para proclamá-la e depois nada fez pelos ex-escravizados. Canudos foi destruído pelo racista, jagunços comandados por Antônio conselheiro eram contra a república oportunista e com sua farta distribuição de cargos e ministérios. Fraqueza de uma República que procura ser qualquer coisa, menos brasileira conforme dizia Villas Lobos – “Somos uma nação da qual querem ter origem europeia, exatamente aquela cheia de pestes, doenças e falsas imagens”. Alguém quer ser descendente de degredados, marginais portugueses ou de um bugre (Silvícola antropófago) ou de um negro boçal e ex-escravo? O direito a uma legislação antirracista é uma necessidade atual, para que a Sociedade Racial, igualitária não continue a narcotizar os sociólogos, os antropólogos e intelectuais brasileiros. Aos menos desavisados e desconhecidos da historia da África, a epopeia da Confederação dos Tamoios com seus líderes Aimberê, Cunhambebe Cairuçú e a República dos Palmares com seus líderes Zumbi e Gamgazumba se não o que era antes as estruturas indígenas e africanas com seus usos e costumes. Tráficos de escravos africanos para as Américas. A forma simples e natural de vida dos africanos jamais foi entendida pelos colonizadores traficantes acostumados ao capitalismo selvagem e austero do célebre pensamento! Em nome de Deus vencer. Esse era o caminho, acumulação de riquezas. A principio a relação da Europa com o africano era de troca. O africano lhes cedia ouro ou marfins e os europeus lhe forneciam espingardas, pederneiras, rum, rolos de folhas de tabaco, tecidos europeus, etc. Assim, dentro do sistema de troca, procurou dentro de suas posses aquilo que mais poderia interessar ao europeu. De inicio, ouro, pimenta e marfim eram pedidos pelo europeu, mercadorias que também para o africano, também não era tão fácil de conseguir em grande escala. Ai o mercado europeu acena-lhe com a necessidade mercantil ao alcance das mãos, GENTE.
ANASTÁCIA
Anastácia Nasceu no doze de maio E viveu como escrava Anastácia Negra de olhos azuis Mulher forte e guerreira Anastácia Cheia de muita bravura Resistência e fé Anastácia Disse não ao opressor Mas que grande mulher Se mostrou inteira Enfrentando seu algoz Que a desejava por sua beleza Covardemente calaram sua voz Mas a tortura não lhe tirou a nobreza
Malkia Usiku
O BAÚ DO BAÚZA E O BOI DE PARIS Chefe da claque no extinto Teatro Recreio, Miguel Baúzo, comprava samba dos compositores endividados. Baúza, como era chamado, não tinha conhecimento da pauta musical e às vezes comprava a mesma música. Um dia foi visitado por Bucy Moreira, compositor e neto da Tia Ciata. Pediu para Bucy insistentemente comprar queijo. Indagado sobre o motivo, disse que era para evitar que os ratos roessem as partituras guardadas no imenso baú. Baúza sonhava em ficar famoso com o seu imenso acervo. Já o maxixe O Boi no telhado, de José Monteiro, o Zé Boiadeiro, foi adaptado em 1918 pelo compositor francês Darius Milhaud e foi usado num balé roteirizado por Jean Cocteau, ator e escritor. O Boi no telhado também virou nome de restaurante em Paris. Le Bouef Surle Toit ficava no bairro Madeleine, freqüentado pelo próprio Cocteau e pelo casal brasileiro Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Orl a n d o Ol i v e i ra
ACONTECEU NUM SÃO JOÃO... No mês de junho, como de costume, os quintais suburbanos se transformavam em espaços festivos. Era a época de homenagear a santíssima trindade: Antônio, João e Pedro. O colorido das bandeirinhas, as lanternas, os bambus entrelaçados às folhas de coqueiros, formavam o cenário que tinha, em geral, no centro do terreno, uma majestosa e imponente fogueira. Assim, também ocorria no enorme quintal do Senhor Manoel. Lá, essa tradição provinciana insistia em resistir às coisas modernas da cidade grande. Entretanto, uma dessas festas marcou a minha infância pela peculiaridade dos acontecimentos que nela se desenrolaram. Era noite de São João e a fogueira acesa produzia um quê de magia em mim e na molecada em geral. Todos se divertiam com os brinquedos da ocasião, ou seja, bombinha, estalinho, busca-pé, balão japonês e tudo mais. Ao longo do quintal, muitos acompanhavam com palmas uma improvisada e animada quadrilha. Outros tantos se deliciavam nas barraquinhas de comidas e bebidas típicas. Assim, a noite de Lua cheia e de céu estrelado parecia não ter fim. Mas, vamos aos fatos. Ao pé da fogueira, devidamente postados, estavam: Casca Grossa, Roxinha e Amarelão, também conhecido como “Cabeleira”. Este último e o primeiro disputavam cada um ao seu modo, a atenção de Roxinha. Aquela moça sensível e doce era só sorriso para ambos. Mas, segundo amigos, quando se esquentava, ninguém chegava perto. Os três, alheios a tudo que acontecia ao redor, passaram a viver uma aventura particular. E esta se deu quando Casca Grossa se aproximou de Roxinha, tentando puxar conversa de namoro. Ao ver a cena, Amarelão não se fez de rogado e partiu para cima do rival e, tomando posição de briga, quis tirar satisfação. Roxinha, por sua vez, percebendo o perigo da situação, já que os dois se aproximavam cada vez mais do braseiro, tentou acalmar os ânimos. Inútil! Àquela altura, a coisa tomou ares de duelo mortal, para o espanto de muitos que, atônitos, observavam a contenda. Apesar dos esforços de Roxinha, os seus pretendentes não se demoveram das suas trágicas intenções. Pelo contrário, alheios aos fogos de artifício e a evolução da quadrilha, seguiram firmes nos seus propósitos e se prepararam para o combate. Insultos de ambas as partes, entremeados por gestos e ameaças, acabaram conduzindo Casca Grossa e Amarelão às vias de fato. Os dois rolaram pela cinza espalhada ao chão, chutaram tocos e brasas fumegantes, numa batalha épica. Roxinha, contorcendo os dedos, gritava desesperada, em meio às fagulhas que espocavam da fogueira. A coisa ficou feia!
O dramático acontecimento só chegou ao fim, quando o seu Manoel, com a autoridade que tinha, deu um basta puxando um para cada lado. Os dois exaustos e chamuscados pelas brasas mais a Roxinha, que não tinha mais lágrimas para chorar, foram levados para a barraca principal e tiveram de seu Manoel o tratamento que mereciam, sob os olhares curiosos de muitos que acompanharam o desfecho do fato. O mais estranho de tudo, era que os três eram tradicionais frequentadores das festas juninas dali e nunca criaram problemas. Enfim, Casca Grossa (tido como valentão raiz) e Roxinha, desmancharam-se ainda quentes nas bocas de inúmeros participantes, respectivamente como aipim e batata doce! Quanto ao Amarelão, vulgo “Cabeleira”, torrado por fora e macio por dentro, foi debulhado em pedaços pelos dentes afiados da molecada, que preferiu milho assado como refeição!
Silvio Silva
A TEMPOSIÇÃO DAS ALMAS ÍNCUBAS A ESPIRAL DE ULAM
L i t o fo n e
El Heróis de Las Gentes não se lembrava quando ou o motivo pelo qual escrevera o poema que estava sendo cantado pelo ancião e que se encontrava escrito numa pedra, diante de seus olhos, em alfabeto gueês, em pleno Vale do Nilo:
De onde estou ando um passo e me viro para o alto mais dois passos dou e agora para baixo dois passos mais eu dou três passos dou para o lado três passos para o alto quatro passos para o lado e mais quatro para baixo e sempre um passo a mais a cada duas caminhadas assim eu vou sendo minha espiral El Herói de Las Gentes
Depois um tempo contemplando o poema, Hombre Tonto teve uma pequena revelação: o poema descrevia a espiral de Ulam. “A Espiral de Ulam foi descoberta por acaso.
numa convenção e ficou então rascunhando números num papel qualquer que encontravou à sua frente. Qual não foi a surpresa quando Ulam percebeu uma aparente padronização na posição dos números primos. Os números primos são considerados os átomos dos números: todos os outros números que não são primos, os números compostos, são criados a partir deles! Nunca, até hoje, foi descoberta uma padronização da aparição dos números primos na sequência dos números inteiros.”
A espiral de Ulam do 41 indo até o 665. Os números primos estão pintados de azul.
Enquanto pensava sobre os últimos versos do poema: "Assim eu vou sendo minha espiral", foi interrompido pelo ancião que lhe disse: - Escute! O ancião então retirou de dentro do bolso um celular, apertou o play e eles escutaram uma melodia sendo tocada num litofone. A melodia era linda e enigmática. Homem Tonto marejou seus olhos ouvindo-a. - Esta melodia circula pela Internet e ninguém sabe quem ou quando a compuseram. Só que os MESTRESÁBIOSPRIMOAFRICANOS revelaram que se trata da segunda parte do poema. E que já puderam um dia ouvir as Almas Íncubas o entoarem, sendo uma obra de raríssima e impenetrável beleza, mas que se perderam as palavras… ou ainda pior: as Almas Íncubas não o sabem mais cantar! A Tradição-Alquímica-Insular-Suburbenística nos informou que a segunda parte do poema foi escrita pelo poeta UZUZAP. - Eu teria como ter essa melodia!? - Sim, é claro! Anote o endereço eletrônico... é de onde pode baixá-la: https://drive.google.com/file/d/1aHzj1rU6jxgbAsNuaSo7K0J4yDfkFPyY/view?usp=sha ring.
Hombre Tonto baixou a melodia e dirigiu-se ao deserto. Queria ficar só para ouvir melhor a melodia. Enquanto caminhava para o deserto, pensou em voz alta: “Mas… de novo o camarada UZUZAP!?” E riu consigo mesmo.
Pazuzu Silva
LINDAS FLORES NA PANDEMIA "Nenhuma máscara que combine com meu vestido!", pensou mal-humorada. Os cem anos da "Vó"seria comemorado fazendo-lhe um simples aceno pra janela, parada em seu jardim. Limites de tempos epidêmicos. "Vou usar qualquer uma... isso não tem importância!" Ela, a mãe, suas duas irmãs, algumas tias, sobrinhas, netas e bisnetas da "Vó" estavam ali, às dez da manhã, acenando e desejando parabéns para a "Vó", como todos chamavam a vizinha do 108 da Rua Pontes. A "Vó" escreveu algo no cartaz e mostrou pras moças: "Muito obrigada pela surpresa! Vocês estão LINDAS! São as FLORES do meu jardim!".
Antero Catan
U M DI A M U I T O E S PE C I A L Eugênio nem assistira ao Fantástico naquele domingo. Tinha um compromisso no dia seguinte. Finalmente, conseguira aposentar-se. Infelizmente, Regina – a sua rainha –, a companheira de toda uma vida, partira antes. Infarto fulminante. Ficara doente com os escândalos e a posterior cassação do presidente Collor. “Acreditava naquele menino”- repetia ela, decepcionada. O marido passou alguns meses muito deprimido. Os filhos afastaram-se. No começo, ainda ligavam justificando a ausência. Há meses, o telefone emudecera. Sim, claro. A culpa era dele. Ficara ranzinza. Reclamava de tudo. Principalmente da algazarra dos netos. Quando ainda o visitavam. Nunca lhe passara pela cabeça sentir falta daquilo. Paciência. Era forte. Reagiria. Na época da juventude, jogava como zagueiro. Nos momentos mais difíceis das partidas, levantava a cabeça e, aliando a invejável técnica à habilidade natural, saía da área sem dar chutão na bola. Não se bate em quem se ama. Era um sentimento recíproco. Reagiria. Tinha certeza disso. O paletó, há muito guardado, fora mandado lavar e passar com a lavadeira Dona Anita – a melhor do bairro, dizia-se. Os sapatos eram novíssimos. Como o cinto. As meias e as calças, comprou-as na C&A. Com o recebimento do FGTS e PIS, realizaria vários sonhos. Assistir aos ensaios da sua querida Portela era um deles. Pela primeira vez, ir ao Sambódromo. De camarote. Acompanharia o Bangu, pelo Brasil, na Terceirona. Azul e branco, branco e vermelho, seu sofrido coração. Chegou à porta do banco às oito horas e quinze minutos. Os idosos entrariam às nove. Enquanto aguardava, lia as manchetes do dia. As mesmas. Violência. Corrupção. Sempre. A fila começava a se movimentar. Nem se dera conta. A agência da Caixa Econômica, dentro em pouco, estaria lotada. O caixa, reservado aos sexagenários, abrira. Bobagem. Aquele incômodo no lado esquerdo do peito não era nada. Ou melhor, era. A emoção e a expectativa da nova vida. Voltaria para casa de táxi. Antes, passaria no supermercado. Vinho francês. Por que não? Salmão. Almoço de rei. A dor voltara. Fazia tempo que não aparecia no consultório do seu cardiologista. Precisava. Havia, agora, apenas duas pessoas à sua frente.
Súbito, sentira a vista nublar-se. Vozerio à sua volta. O que falavam aquelas pessoas? O alvoroço, por quê? O que fazia, ali, deitado no chão frio do banco? Sentia as calças molhadas. Que vergonha! Logo que se levantasse... Outra pontada. Dessa vez, mais forte. Silêncio. Total. Curioso. Onde estão os clientes? E suas vozes? O gerente da agência? O que Regina fazia ali? Estava diferente. Mais bonita. Bonita, não! Linda! Como nunca! Estendia-me os braços. Acariciava-me com os olhos. Serenos. Divinamente serenos. Tanta coisa pra contar...
Jorge Nascimento
VERDADEIRO ÉBANO - ÁUREA MARTINS Realizadas várias homenagens para Áurea Martins durante a semana do seu aniversário pelo Cantor Acides Sodré no seu canal do Instragam. Áurea completando 80 anos no dia 13 de junho de 2020. Pensei em lhe falar um poema autoral na Internet, porém resolvi expressar toda a admiração e respeito através da escrita na revista do mês de junho. Minha mensagem não chegaria do jeito que queria no meio de tantas emoções. Durante a madrugada conversei com o cantor Alcides que me pediu para fazer um áudio e na mesma hora me disse que podia falar para ela na Live do dia 14. Foi uma experiência maravilhosa, saímos até combinadas para um encontro pós- pandemia. Não cabia em mim de tanta felicidade e emoção. Realizando meus sonhos. Verdadeiro Ébano - Áurea Martins Áureos tempos de Áurea Feito Ouro Brilhando na vida daqueles que circulam pela cidade Oitenta anos de meninice A juventude pulsa Em suas veias Passeia por todos os acordes musicais Como o Amor que chega de repente Na claridade da Alma Boêmia de Copacabana ao Mundo É a invisibilidade mais visível que conheci Sucesso, sabedoria, elegância, perseverança não faltam a esta Diva Sua palavra sempre convence Ética,poder Referência na minha existência Rainha do verdadeiro Ébano.... Gratidão Áurea Martins que veio de Campo Grande para nos brindar com sua Arte...
Márcia Lopes
PO E M A S DE R O DO L F O C A R U S O IDIOSSINCRASIA Silêncio na cela cinco. Depois, outro silêncio, sublime silêncio do fim, único, absolutamente sem som. Foram-se as verdades construídas junto com as mentiras demolidas dentro de um pequeno espaço privado dos raios de sol: só ferro, alvenaria, depressão, na euforia sem respostas desse meu resignado Adeus.
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Hoje, o galo cantou mais cedo, despertei fazendo poesia, o sol chegou encantado. Da janela do terceiro andar, vi um moço e uma moça deitados nus. Amanhecia.
APOSENTADA Vivo como fera vivo passeio pela esfera morto sem plano de saúde amo meu velho cobertor sorte da Helena, minha mulher, minto jájá vou receber Santo. INSS, credo!Um poeta aposentado quando?Será que vai acontecer... ................................................................
Rodolfo Caruso Poeta todo dia
VIDAS NEGRAS IMPORTAM Não consigo respirar... O ar tá pesado? Será que sim? Ajoelhado sobre meu pescoço O assassino exposto ri do meu fim Não consigo respirar... E mesmo assim eu grito, eu vou lutar Pois vidas negras importam E os imbecis não param meu despertar Não consigo respirar... Mas não fujo do meu lugar de fala O opressor que se surta Diante da minha vitória, quando eu chegar! Não consigo respirar... Nunca me falta é fôlego pra levantar As vidas negras importam Nossa sabedoria é que vai ecoar Não consigo respirar... Dentro do negreiro, dentro do barraco, No tronco amarrado, se chicoteado, Mas jamais calado, tenho que gritar: Vidas negras importam!
Marcelo Bizar
DR U M M O N I A N A M E N T E J U N I N O Sim, Poeta Essa lua Esse conhaque... E esse céu Apinhado de balão, Esse friozinho, Essa fumaça cósmica Das madrugadas de junho, Essa música que Vem do radinho de pilha, Esse crepitar vermelho-ardente Da brasa viva, Esse cheiro de pólvora E de quentão, Botam a gente comovido como o diabo.
Marco Trindade
MÃE TÂNIA O empenho foi cumprido: · 2 de 4 patas · 6 de 2 patas · Frutas · Flores · Velas Tudo para o mensageiro, por agradecimento de toda família, por um ano bom com saúde e muita fatura na mesa. Salve Obatalá, olorum, pai de tudo e de todos. Que o amanhecer inevitável siga a noite, que a alma de nossa Orixalá reine no mundo da paz. Que oxum nos traga as águas pros campos pra fertilidade do amor e das mulheres. Depois seguiu a festa com muita comida e bebida para festejar. O que sobrou foi levado pelos irmãos que daquele terreiro sairiam limpos, alimentados e bem vestidos. Era assim que no Terreiro de Mãe Tania em Caxias nós aprendíamos a misericórdia, a justiça o respeito e o amor aos nossos Orixás e ao próximo. Mastro da nossa bandeira branca que cobria todo nosso povo. Herdamos o terreiro do grande Babalorixá Quintino de Xangô, ficou fechado por vários anos e sua sobrinha Mãe Tânia o reabriu. Ela seguia seus preceitos, que não estavam escritos, mas ela com o pouco tempo que viveu com eles fez suas anotações. Amanhã voltaríamos as nossas tarefas cotidianas. No terreiro ficariam as yabás para limpar e manter nossos santos com os agrados. Cheguei atrasada no Banco, logo o gerente me chamou. “Marcia você vai atender os clientes assim? , assim como perguntei, com esse pano branco na cabeça, esse vestido branco. Qual o problema digo logo, para não dar pano pra manga. Ele adverte que alguns clientes vieram reclamar. Melhor você ficar no administrativo, coloco um substituto na gerência de atendimento. “Se o senhor assim prefere.” Toda vez era isso, fazia minhas obrigações com oxum uma vez por ano nas minhas férias e quando voltava dava xabu, eles tinha medo até do meu contraegun.
Como era um banco estadual e sou concursada, não podiam me mandar embora, mas bem que queriam. Depois de 1 hora naquela seção que o povo ficava me olhando esquisito, pedi ao chefe pra ir embora, disse que estava com dor de cabeça, ele me liberou. Soube depois que ele estava com a filha muito doente, e não descobriam o que ela tinha. Eu estava tão leve, com tanto amor, tão sossegada comigo mesma, que não me atingiu o comportamento intolerante de alguns correntistas. Depois de assumir meu cargo de gerência de novo, fechei com duas empresas que passaram a pagar seus funcionários através de nossa agência, recebendo por isso uma boa comissão. Depois de algum tempo vendo o martírio do meu gerente, fui ter com ele. Ofereci ajuda, perguntei se já tinham descoberta a doença e qual seria a causa dos colapsos que a imobilizavam. Ele visivelmente cansado, respondeu que nada ainda tinha sido concluído, eles não conseguiam descobrir o que causava tanta dor aquela menina. — Seu Gustavo, posso sugerir que a levem no meu terreiro? Teremos uma festa pra yemanjá, venha, traga sua filha, não pense que lá precisa pagar, porque não rola isso, somos acima de tudo uma casa de oração num grande terreiro. E naquele final de semana ele foi, levando a mulher e os dois filhos, a menina de 14 anos e o menino de 10. Fizemos a roda, abrimos cantando para todos os orixás. Na hora do xirê de Iemanjá que Mãe Tânia também recebia, foi lindo!Duas das mais belas Iemanjás estavam lá. A menina deles começou a tremer e a chorar. Chorava baixinho, as lágrimas lhe ensopavam o rosto, seus olhos se fecham. Parecia que ia bolar no santo. As yabás vieram de apoio, tiraram seus óculos, soltaram seus cabelos mais que depressa, uma saia branca, e ela dançou pequeno, chorando ao som das cantigas pra Yemanjá( aori do Nilé o Yemanjá, auá a bo). A velha chegou fazendo a felicidade de todos. Cumprimentamos Yemanjá que chamamos para abençoar nossa casa e nos encher de satisfação, usar o rio que escolhemos para nos banhar, pois o rio quem escolhe quem se banha. A menina naquela dança tão bonita, tão comovente. Mãe Tânia a abraçou durante um bom tempo. Quando terminou, fomos servir a comida pra todos. No terreiro é assim, trabalhamos em conjunto. Elisangela, o nome da menina, estava faminta, comeu bastante, seus olhos tinham outro brilho, mas sentíamos também seu medo do desconhecido. Mãe Tânia nos chamou para sala de escuta e explicou aos pais que tudo aquilo que estava acontecendo poderia ser o santo que a chamava e ela não entendendo levava seu corpo a não responder, travando a luta, por isso os desmaios, os colapsos. Se vocês quiserem poderemos recebê-la aqui. Juntas , conversaremos , faremos o bori. Ela aprenderá os preceitos e tudo sobre o fundamento da nossa fé.
Ela olhava para os pais, e eles viram em seus olhos, no seu semblante uma paz, que há alguns meses havia se dissipado do seu rosto. — Me deixem vir, quero saber mais, ainda estou no escuro, mas houve um momento nessa experiência que senti uma paz, parecia que eu sabia tudo que precisava saber e não teria mais o que temer. Toda aquela dor incerta, que eu não sabia de onde vinha, que me causava uma doença, foi dispersa, estou leve, quente, sei lá Mãe, só sei que queria entender mais. Ela começou a ir todo final de semana, tinha afazeres e aprendizados. Mãe Tania logo viu que ela seria também uma mestra por ter tanto amor ao seu orixá. Fez seu bori, usou o quelê (só usar roupa branca e sentar no chão, comer com as mãos). Uma abiã dedicada, depois recebeu seu orô. Sua saída foi uma grande festa. Seus pais até hoje agradecem. Hoje ela é médica, formada pela universidade federal da Bahia. Como medica de família, utiliza os ensinamentos na hora de ver seus pacientes. É Yalorixá do Terreiro do Seu Quintino. Mãe Tânia faleceu. E nós ficamos a frente do Terreiro, eu já aposentada, cuido da cabeça dos meus sobrinhos, não tive filhos, mas Tânia até hoje me considera uma mãe de uma nova vida e eu fico feliz de sê-lo.
Do r i n a G u i m a r ã e s
OS PÁSSAROS!
E já tem uns e outros aí querendo flexibilizar o i s o l a m e n to s o c i a l !
Ah! Flexibilizar!? Isso n ã o é p o s s í v e l ! De v e ser "fake feather" ( p e n a fa l s a ) !
Rapaz! Viu q u a n ta g e n te morreu por causa d es s a p a n d e mi a ?
Nã o é p e n a fa l s a , n ã o ! E u e s to u v e n d o tu d o a q u i d e c i ma !
De p o i s d i z e m q u e o p e ru é q u e é burro porque sofre d e v é s p e ra !