Revista Sarau Subúrbio #31 - novembro de 2020

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EXPEDIENTE Edição: V. 3, n. 11 - novembro de 2020

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Periodicidade: mensal

Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais). Diagramação: Marcelo Bizar Capa: Marcelo Bizar a partir de uma foto retirada na Internet Arte e Grafismo: Marcelo Bizar Imagens: as imagens não creditadas são da Internet Distribuição: A distribuição da Revista Sarau Subúrbio é online e gratuita. A leitura da revista pode ser feita em seu sítio: https://revistasarausuburbio.com.br e nas plataformas online ISSUU e Calamèo. Notas importantes: A Revista Sarau Subúrbio é uma publicação totalmente gratuita, sem fins lucrativos. Não contamos com patrocínio de qualquer natureza. Nosso objetivo, em linhas gerais, é servir de instrumento para que os artistas que não possuem espaço de divulgação nas mídias tradicionais possam apresentar seus trabalhos, nas mais variadas formas, seja na literatura, na música, no cinema, no teatro ou quaisquer outras vertentes artísticas, sempre de forma livre e independente. Todos os direitos autorais estão reservados aos respectivos escritores que cederam seus textos apenas para divulgação através da Revista Sarau Subúrbio de forma gratuita, bem como a responsabilidade pelo conteúdo de cada texto é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente a opinião da revista. Editores Responsáveis: Marcelo Bizar, Marco Trindade e Silvio Silva Conselho editorial: Marco Trindade, Marcelo Bizar, Silvio Silva, Ana Cristina e Leonardo Bruno Contato: sarausuburbio@gmail.com


EDITORIAL Lembrando Carolina Maria de Jesus Neste mês de novembro, fica ainda mais evidente que no Brasil existem muitas Carolinas, que além de serem Marias, certamente também são de Jesus. Igualmente sofrem com todos os limites impostos pela cor da pele. A moradia precária, a violência doméstica e institucional, a geografia das periferias e favelas, o salário minguado e o respeito negado evidenciam isso. Sim, aquela Carolina ainda existe à margem da sociedade, vilipendiada, menosprezada, muitas vezes violada nos seus direitos de cidadã. São jovens, solteiras, casadas, mães, pães e tudo o mais que as variações da língua permitem denominá-las. “Lavam roupa todo o dia na quebrada da soleira”1 ou nas áreas de serviço de outras “quebradas”. São Marias de dor e suor sem a “dose mais forte e lenta” 2, pois, não tendo tempo para viverem, apenas aguentam”3. Mas são também (e como são!) de Jesus. Partem e repartem o pão, dividem o peixe, protegem as crias do frio, das balas perdidas e acalentam seus choros. Nesse sentido, assim também agem as Antônias, Rosarias, Josefas, Joanas, Manoelas, e todas as outras que, como a Carolina, “trazem na pele essa marca e possuem a estranha mania de ter fé na vida”4. Fé na força da ancestralidade que por quase quinhentos anos combateu a dor com coragem e resistência, a crueldade com dignidade e a discriminação com luta por justiça e igualdade. Assim, Carolina que era Maria e também de Jesus com suas palavras, que viraram sementes, germina em cada um de nós pretos e pretas, que lutamos para que não existam mais quartos de despejo e que a fronteira dos nossos direitos não seja mais limitada pela cor da nossa pele. Ps.: Não será nenhum “pai João” atrás de uma mesa que irá deslegitimar os nossos justos representantes e ancestrais. “Ele passará”5 e Zumbi dos Palmares, Abdias Nascimento, Elza Soares, Martinho da Vila, Milton Nascimento e todos os outros, “são passarinhos”6.

Foto: Carolina Maria de Jesus. Fonte da fotografia: letrasufmg.br 1 Música Juventude Transviada – Luiz Melodia 2 Música: Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant 3 Paráfrase de verso da música Maria, Maria - Milton Nascimento e Fernando Brant 4 Música: Maria, Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant 5 Paráfrase do “Poeminho do Contra” – Mário Quintana 6 Paráfrase do “Poeminho do Contra” – Mário Quintana


SUMÁRIO

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EXPEDIENTE EDITORIAL SUMÁRIO ADEUS MEU BENGO: O SABIÁ CANTOU PRA SUBIR MULHER PRETA A CIRCULAÇÃO DO VÍRUS NO RIO DE JANEIRO BARRO, CIMENTO E CAL! VOCÊ CONHECE BEATRIZ NASCIMENTO? FIM DE MAIS UM CICLO AGUENTA! ODE AOS MEUS MUHERES NEGRAS PENSADORAS DO BRASIL ESTANTE SUBURBANA VITROLINHA SUBURBANA UM LUGAR NO SUBÚRBIO LENTES SUBURBANAS DE NOVO EU NÃO CONSIGO RESPIRAR - Marcelo Bizar PEDRA DE CAIS Silvio Silva SONHOS PANDÊMICOS - Rodolfo Caruso CONTO DE NATAL Jorge dos Santos VERSOS NEGREIROS - Débora Costa SANGUE NEGRO - Marco Trindade REFLEXÕES - Nelson J. Nascimento MANGUEIRA E SEU CENÁRIO - Leonardo Bruno CINE SUBÚRBIO BLOG DO TIZIU


ADEUS MEU BENGO: O SABIÁ CANTOU PRA SUBIR “Sabiá deu um recado ao Noel e ao Anescar Diga ao Guará e ao Babão/ Pra não perderem a Reunião... (“Salgueiro diferente) Testemunha viva do surgimento da Acadêmicos do Salgueiro, Djalma de Oliveira Costa, o Djalma Sabiá, se projetou como autor de sambas-enredos memoráveis, como Navio Negreiro, em 1957, Chico Rei, em 1964, e Valongo, em 1976, na incrível sequência de enredos sobre a história negra, que valeram sete campeonatos em 15 anos e levaram até a vermelho e branca tijucana a ser recebida por Che Guevara em Cuba, em 1959. Dez anos depois, o grande baluarte viu sua esposa Estandília brilhar como porta-bandeira (como foi sua mãe) no inesquecível título de 1969, quando Bahia de todos os deuses acabou com a história de suposto azar de enredos nordestinos. O extraordinário samba-enredo Chico-Rei (parceria com Geraldo Babão e Bala), perdeu por um ponto o carnaval de 1964, mas entrou para a antologia do gênero, narrando a astuciosa epopéia do rei negro que esconde o ouro nos cabelos dos escravos para comprar a alforria dos mesmos, sendo regravado por Martinho da Vila num disco em que selecionou os maiores sambas-enredos de todos os tempos. Impressionado com a enchente que inundou o Rio, arrasando a quadra da escola em 1966, Djalma passou a selecionar em sua modesta casa de vila na Rua Conde de Bonfim um acervo com farto material sobre a saga salgueirense. A construção de um centro cultural com seu nome esbarrava em obstáculos burocráticos e o Sabiá cantou para subir antes disso, mas partiu com a missão cumprida. Adeus Salgueiro, adeus meu Bengo, eu já vou!

Orl a n d o Ol i v e i ra


MULHER PRETA Quando viu aquela mulher preta em sua casa, Clara pensou em chamar a Polícia. Estava arrumando o cabelo para ir à faculdade quando flagrou o vulto no banheiro. Quase queimou-se com a chapinha. Não aceitaria uma invasora em seu apartamento. Estava adorando a solidão de morar só – fora difícil convencer aos pais, evangélicos, que só aceitaram sua mudança se fizessem uma fiscalização semestral. Além disso, estava apaixonada por um veterano de Economia e ele poderia fazer uma visita. Por fim, havia os autores ingleses pela frente no curso de Letras. Não teria tempo, portanto, para a mulher preta em seu banheiro – preta que, na certa, assaltara alguém na faculdade e veio se abrigar aqui, Clara pensou. Tal convivência velada deu-se até o dia em que o veterano de Economia apareceu com outra. Clara sentou no sofá, ligou um rock inglês melancólico e chorou. Aí a mulher preta saiu do banheiro. Secou suas lágrimas, ergueu-a. Trocou o britpop meloso por um samba. E os pés de Clara dançaram como se soubesse o ritmo há anos - ou milênios. A alegria penetrou na casa: Clara descobriu o jongo, o acarajé; cobriu-se com mais cores e estampas; o cabelo tomou a forma original; por fim, Clara aprendeu qual era seu orixá. Quando Clara pensou que era o fim, a nova moradora jogou em sua escrivaninha um calhamaço de textos de Literatura africanas. Isso sem falar na vez em que Clara sentiu o corpo pulsando de desejo e foi através do corpo da mulher preta que ela descobriu um prazer voraz. Estava apaixonada pela mulher preta escondida em seu banheiro. Foi então que a mãe de Clara anunciou que viria fazer a fiscalização. A moça desesperou-se ao imaginar que os pais descobririam a nova moradora. Clara escondeu a mulher preta dentro do guardaroupas. Depois, foi até o banheiro e fez sua primeira chapinha após semanas. Porém, em frente ao espelho, vendo o cabelo ficar liso, viu o vulto de novo. Seria preciso matar a mulher preta. Clara perseguiu-a pela casa e em frente à geladeira a alcançou. Encostou-a na porta espelhada. Olhou-a nos olhos e, de súbito, achou-se semelhante a ela. Tirando a cor de pele, ambas eram idênticas. Clara perdoou-a por ter escapado do guarda-roupas e também se perdoou por tê-la aprisionado lá, pensado em chamar a Polícia ou até mesmo em matá-la: esparrame-se pela casa e que se dane a fúria dos meus pais. Mas só veio a mãe. Chorosa, disse que tinha descoberto a traição do pai de Clara com uma varoa da igreja. Pediu que colocasse um hino da harpa cristã a fim de obter consolo. Foi aí que Clara chamou a mulher preta. Ela colocou um samba. A mãe hesitou. Travou. Mas logo levantou e as três dançaram em roda até o riso jorrar feito café expresso. Depois, Clara contou das experiências sexuais, alcoólicas e também o que aprendera com a mulher preta. A mãe assustou-se, mas disse que a filha estava certa por aproveitar a juventude.


Clara ficou feliz com a reação positiva. Mas confessa: ficou ainda mais feliz quando a mãe foi embora. Afinal, Clara ama sua solidão. E até nesse quesito a mulher preta a ajuda. Porque a mulher preta não é outra pessoa, senão a própria Clara. A própria Clara, de frente ao espelho, descobrindo-se preta mulher.

J o n a ta n M a g e l l a


A CIRCULAÇÃO DO VÍRUS NO RIO DE JANEIRO Mês de Novembro 2020, parece que a Pandemia já acabou. Após a flexibilidade dada pela prefeitura do Rio de Janeiro, com o funcionamento de atividades laborativas, as aglomerações nos meios de transportes se intensificaram colocando em risco a vida de milhares de pessoas, mesmo o vírus circulando e contaminando inúmeras pessoas. Mas não ficou por aí só não, o governo municipal continuou liberando. Na área social, instituições de ensino começaram a funcionar, seguindo um protocolo determinado pelo governo da cidade. E na área cultural no qual eu me incluo a abertura tão esperada por gestores, produtores e operadores da cultura de um modo geral, provocou uma correria. Uma busca desenfreada começou a se desenhar, aglomerações em eventos por toda a cidade, e os jovens não estão nem aí para Pandemia. Rodas de Samba começaram a voltar e o vírus? No mês de novembro, tomei conhecimento de um número muito grande de sambistas contaminados com o vírus e que foram a óbito. Época de eleições vale tudo. E depois? E desde que o vírus começou a circular aqui no Brasil e em especial no Rio de Janeiro, venho colocando matérias pondo em dúvidas a realização do carnaval em 2021 principalmente do desfile das escolas de samba. No mês de setembro os dirigentes das escolas de samba carioca em reunião com a sua representante LIESA, decidiram que não haverá desfile se não houver vacina. A Sebastiana, liga dos blocos do Centro e da Zona Sul, também decidiu que os blocos filiados não desfilarão sem vacina. A expectativa de vacinação aqui no Brasil é de que a partir do mês de março a população já tenha disponível este antidoto contra o vírus. Pessoas sensatas ficam em casa esperando a poeira baixar, mesmo assim correm o risco de serem contaminadas, pois os jovens não estão nem aí para a Pandemia, sejam filhos, sobrinhos, netos que podem ser assintomáticos. Oremos para que a Sociedade se veja livre deste mal que assola o mundo, neste inicio do século 21.

Onesio Meirelles Jornalista DRT 40.318


BARRO, CIMENTO E CAL! Há tanta paz aqui nesse imenso conjunto residencial! As ruas são arborizadas e silenciosas todavia há muitos íncolas nesse lugar! O tamanho da habitação depende do morador. As residências podem ser horizontais verticais ou em jardins com a profundidade o comprimento e a largura especificados para cada um ocupante. As moradas são numeradas com algarismos arábicos e suas quadras com algarismos romanos. As ruas não são conhecidas por nomes próprios mas sim por números escritos por extenso. Aqui ninguém se perde! Porém se houver dúvidas vá até a Administração e recorra aos Livros. Há muitos Livros! Tem até Livro para Reclamações que certamente nunca foram usados pelos aqui domiciliados. Algumas residências são visitadas apenas em datas especiais Outras nem isso. Há tanta paz aqui! Não há choros e quando há lágrimas não são dos que aqui residem. Já não há mais nenhuma vaidade e nem discriminação. Preto ou branco pobre ou rico letrado ou analfabeto burguês ou proletário Barro, cimento e cal nos igualam!

E d n a C o i mb ra


VOCÊ CONHECE BEATRIZ NASCIMENTO?* Tempos atrás, caminhava pela feira da Mirandela quando encontrou uma amiga de longa data que já não via há anos. - Nossa, quanto tempo! - Não acredito nessa coincidência! - Você não mudou nada! - Como está a vida? Encontraram-se bem em frente à barraca do torresmo. E, ali mesmo, com bicicletas arranhado de um lado, sacolas empurrando de outro, as amigas conversavam empolgadas, tentando, em 30 minutos, atualizarem-se em histórias dos últimos três anos. - E sua mãe? - Ih, menina, do mesmo jeito! E João? - Está bem! Casou e já tem até filho!! E sua irmã, continua com aquele marido? - Que nada, menina! As coisas começaram a mudar quando ela conheceu uma tal de Angela, mas tudo mudou de verdade por causa de uma Beatriz Nascimento. Você conhece? - Não sei quem são, não. Mas olha que o papo tá ficando bom! Vamos procurar um lugar pra sentar? Sentaram-se acompanhadas de uma porção de torresmos e uma cerveja gelada. - Então, me conta tudo! - Primeiro, a Gi começou a enfrentar o marido dizendo que mulheres têm os mesmos direitos que os homens. Não aceitava mais que ele a proibisse de trabalhar. Ela queria ter um emprego, uma carreira, ter seu próprio dinheiro. Depois, fez o ENEM sem que ele soubesse. Ela estudou escondido e fez as provas sem que ninguém soubesse. E a danada passou! Está fazendo faculdade de História. Diz que vai ser professora e pesquisadora. - Que mudança! Queria ter essa mesma coragem. E de onde veio a ideia de estudar História? - Então, menina, é aí que entra a Beatriz Nascimento. Tem certeza que não conhece? E a amiga balançou a cabeça indicando que não enquanto se preparava para mais um gole da cerveja que suava em seu copo. A outra tomava fôlego para continuar a história. - Olha, foi essa Beatriz quem mudou a vida da Gi. Não sei como se "encontraram", mas, um dia, Gi me contou que ela foi uma mulher negra que migrou do nordeste com sua família para o subúrbio do Rio de Janeiro. Acho que era em Cordovil… Viviam uma vida difícil, mas Beatriz conseguiu fazer faculdade de


História em universidade pública e, depois, ainda fez Mestrado. Mas as coisas não foram fáceis para ela, não! Acredita que diziam que ela era desequilibrada só porque era uma mulher negra tentando estudar a história dos negros no Brasil de uma maneira inovadora?! - Estou impressionada! Até eu quero conhecer essa Beatriz Nascimento! - E deveria mesmo! Eu já andei pesquisando na Internet e vi que até roteiro de filme ela já criou. Tinha um jeito muito interessante de falar sobre quilombos. Sabe, dá um orgulho danado de ser negra, de saber que nossa história foi mais do que trabalhar na lavoura. - Então, ela já morreu? - Sim, amiga. Uma tragédia! Mas já está tarde demais. Passou da minha hora, preciso ir. Tá aqui a minha parte na conta. Me procura no Facebook. Você tem a Simone lá? Eu sou amiga dela no Face. As amigas se abraçaram e cada uma seguiu seu caminho para casa. Uma, orgulhosa da irmã. A outra, tomada por uma curiosidade que só a fazia pensar em chegar à casa, ligar o computador e conhecer a tal Beatriz.

Eveline Gomes

* Beatriz Nascimento viveu entre os anos de 1942 e 1995. Foi uma intelectual negra comprometida com a construção de uma nova forma de ver o negro na História do Brasil. Sua luta era pelo e m p o d e r a m e n t o d a p o p u l a ç ã o n e g r a e p e r i fé r i c a , c o m o a g e n t e d a h i s t ó r i a . S e u fo c o d e e s t u d o e r a m os quilombos, vistos por ela como construção de sociedade alternativa em busca da contemplação do sentido de humanidade para o negro. Vale a pena conhecer!


FIM DE MAIS UM CICLO Quando a foice da morte, com o afiado fio do seu corte, fender um lanho no meu ser der fim ao meu viver e apagar o brilho da luz divina que me vivifica neste mundo, leve o meu corpo lá para a ravina que a chuva cavou com inundo. Afunde na lama os meus despojos e reze, na sua crença, fervorosa oração. Não jogue flores sobre o estojo e nem se exceda na comoção. Apenas repasse na mente o nosso convívio e avalie, sinceramente, se valeu a pena, a despeito de meu desgosto ou alívio, nossa relação na esfera terrena. No espírito, sentirei a vibração e refinarei a minha essência para mais uma futura incursão neste denso plano de existência. Somos viajantes do tempo, a esgotar várias passagens, até que chegue um tempo em que findemos nossas viagens.

Kaju Filho


AGUENTA! Eu pensei em chorar, Deixei até uma lágrima rolar. Mas desisti. Desisti da auto comiseração. Eu disse a mim: levanta, menina! Faz o que aí nessa dó? Levanta, sacode esse pó. Sustenta, Aguenta! Sai daí, desse nó na garganta. Deixa descer. Deixa arder! Mas engole! Engole esse choro, anda! Então eu sorri. Agradeci. Afinal, a vida é linda, e mesmo assim, com tudo errado que se apresenta, a gente quer é viver, sentir a felicidade plena. E o que é a plenitude se não houver um cadinho de falta? Só se sabe que se tem tudo, depois de algumas perdas. Eu tenho tudo. Perdas, pedras, danos, enganos, encanto, sorriso, pranto, alma, vida!

Da n i C o i m b r a


ODE AOS MEUS Quero aquilombar as estruturas Para novos cenários favorecer Meu povo não é só o das ruas Mas o que está preparado para arborescer Nosso fruto não é só do trabalho Pois temos as marcas do renascer Desde os tempos de ser escravizado Há uma força que rege o viver e o morrer Regência de dores e curas Todas elas de nos fortalecer Nossas santas julgadas bruxas Recebem a pena de desaparecer O juízo do que é nosso pecado Existe desde a cor que se pode ver Ser negro é ser condenado Mesmo nas terras que faz florescer No entanto nossa fé é bravura Tambores nos nutrem de muito poder Ancestrais acompanham a luta Desde que o passado tende a permanecer No corpo que segue explorado Ainda há muito por se fazer Por séculos colonizados Às vezes fugimos para sobreviver Muito fôlego foi necessário à fuga Dos nossos, sem beber ou comer Essa estrada até hoje não encurta Tentamos atalhos para não esmorecer


Senhor, feitor e cajado Cujo olhar negocia o que pode valer Tão mercadoria quanto mercado Somos objetificados ao nos vender Há muito vivemos às custas Do que tentam nos conceder Vemos remendos e costuras Das feridas que ainda inflamam de doer Cada pé que segue descalço Tenta o sustento do enegrecer Movimentos de desamparo Em que há portas sem nos atender Contam-se as aberturas Onde dedos sobram de se ver Mas há os dedos das calúnias Que apontam no gatilho de distorcer Mas agradeço a cada antepassado Cujo axé norteia todo o meu viver Crio eu mesmo o passo e o cenário Onde a história dos meus se possa ler

Wallace Araujo de Oliveira


MULHERES NEGRAS PENSADORAS DO BRASIL

São buscas de um povo Não posso me abster Mulheres Negras do Brasil que escrevem para sobreviver. Na caminhada, na trajetória Para encontrar o bem viver É fazer parte das nossas Memórias Carolina de Jesus era também compositora BEATRIZ NASCIMENTO e Marielle (Franco) Não deixaram prosseguir Na realidade lutaram para nos salvar Está foi a missão do existir..


Lélia Gonzáles, Sueli Carneiro escrevem contra o Racismo e a opressão Prezam o humanismo Fazem da sala de aula seu local de resistência Conceição Evaristo na sua escrevivência nos traz luz Todas donas da intelectualidade As suas potências nos conduz É neste espelho que faço Minha reflexão Estude não lamente, procure uma direção VIDAS NEGRAS IMPORTAM,VAMOS nos AQUILOMBAR... honrar nossos ancestrais . Jamais deixar de lutar

Márcia Lopes


ESTANTE SUBURBANA

DICIONÁRIO DA ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL - 1ªED.(2013) Autor: Clóvis Moura Editora: EDUS


V I T R O L I N H A S U BU R BA N A

HISTÓRIA DAS ESCOLAS DE SAMBA - SALGUEIRO

Gravadora: Marcus Pereira Ano: 1975

01 Morro Inpiração (Geraldo Babão) - Interpretes: Geraldo Babão 02 Chica da Silva (Anescarzinho do Salgueiro/Noel Rosa de Oliveira) Interpretes: Noel Rosa de Oliveira 03 Nega o Que Queres de Mim (Antenor Gargalhada) - Interpretes: Geraldo Babão 04 Casa do Pequeno Jornaleiro (Carivaldo da Motta/Iracy Serra) Interpretes: Pindonga 05 Romaria à Bahia (Abelardo da Silva/Eduardo de Oliveira/José Ernesto Aguiar) Interpretes: Romário 06 Homenagem a Antenor Gargalhada (Geraldo Babão) - Interpretes: Geraldo Babão 07 As Minas do Rei Salomão (Dauro do Salgueiro/Zé Pinto/Nininha/Mário) Interpretes: Sam Rodrigues 08 Quilombo dos Palmares (Noel Rosa de Oliveira/Anescarzinho do Salgueiro) Interpretes: Noel Rosa de Oliveira 09 Imperatriz do Samba (Carivaldo da Motta/Iracy Serra) Interpretes: Carivaldo da Motta 10 História do Carnaval (Geraldo Babão/Valdelino Rosa) - Interpretes: Geraldo Babão 11 Assim Não É Legal (Noel Rosa de Oliveira) - Interpretes: Noel Rosa de Oliveira 12 Sambista (Iracy Serra/Hayblan) - Interpretes: Iracy Serra


UM LUGAR NO SUBÚRBIO Nossa coluna deste mês saúda um ícone da Zona Oeste, o Estádio de Moça Bonita. Inaugurado oficialmente em 1947 com o nome de Estádio Proletário Guilherme da Silveira, é até hoje a sede do Bangu Atlético Clube. O Estádio de Moça Bonita, localizado na Rua Sul América nº 950 em Bangu, foi construído pela fábrica de tecidos Bangu para ser a sede do time carioca de mesmo nome. Lá, o Bangu viveu muitos momentos de glória, tanto em partidas memoráveis do campeonato carioca (foi campeão em 1966), quanto em disputas de outras competições. Inicialmente construído com capacidade para quinze mil pessoas, atualmente pode abrigar pouco mais de nove mil torcedores. Isso porque sofreu uma reforma recente, que reduziu a sua capacidade. Essa jóia da Zona Oeste carioca sobrevive ao tempo, assim como o seu histórico clube. Já a fábrica que o fundou, hoje é um imponente shopping Center que mantém o mesmo nome do bairro, da fábrica e do clube de futebol. Vale registrar neste mês da consciência negra, onde infelizmente ainda assistimos muitos casos de preconceito e violência racial que, em 1907, o Bangu Atlético Clube, sendo o primeiro clube de futebol do país, foi também o primeiro a utilizar jogadores negros em seu elenco no campeonato carioca. Pagou caro por isso, pois o racismo dos outros clubes de futebol (um esporte que à época era elitista), não aceitou tal “ousadia”. Por conta disso, em sinal de protesto, o Bangu se retirou por dez anos do campeonato carioca. Após uma década afastado do campeonato, o Bangu podendo escalar atletas negros, retornou ao campeonato carioca. Esse fato contribuiu significativamente para a democratização do futebol.

Fonte: Wikipédia / Foto: bangu-ac.com.br


L E N T E S S U BU R BA N A S

Arrebol suburbano Lugar: Parque Radical de Deodoro/Ricardo de Albuquerque Autor: Marcelo Bizar


DE NOVO EU NÃO CONSIGO RESPIRAR Noite de quinta-feira Dia 19 de novembro Véspera do Dia da Consciência Negra João Alberto Silveira Freitas Foi espancado, levando socos e pontapés Sangue no chão, imobilizado Seu último suspiro saiu muito abafado Pela covardia, pelo racismo institucionalizado, Num supermercado Dois homens brancos, vestindo preto Mataram mais um João De pele preta E neste dia A Consciência Negra me chama atenção Se João fosse Um homem branco Teria sido tratado como 'o cão'? João é preto Sua vida importa Seu fôlego não pode ter sido tirado em vão!

Hoje é sexta-feira Dia 20 de novembro O Dia da Consciência Negra no Brasil Abro meu ‘zap’ e o que me chega me chama atenção Num grupo alguém posta que o que importa é a consciência humana meu irmão! Será que essa pessoa não se importa com o suspiro abafado de um João? Pela covardia, pelo racismo institucionalizado em um supermercado?


Dois homens brancos, vestindo preto Mataram mais um João De pele preta E neste dia A Consciência Negra, me chama atenção Se João fosse Um homem branco Teria sido tratado como 'o cão'? João é preto Sua vida importa Seu fôlego não pode ter sido tirado em vão! João é preto Sua vida importa Seu fôlego não pode ter sido tirado em vão! Eu não consigo respirar! De novo eu não consigo respirar! Seu fôlego... Eu não consigo respirar!

Marcelo Bizar


PEDRA DE CAIS O fim dos castigos físicos e outras violentas práticas disciplinares impostas durante todo o século XIX e início do XX aos subalternos da Marinha de Guerra do Brasil, não alterou o quadro geral das relações discriminatórias, muitas vezes racistas, que imperavam (e ainda imperam) entre os representantes de grupos sociais dominantes (oficiais brancos) e as pessoas oriundas de extratos sociais inferiores (marinheiros negros e mulatos em sua maioria), naquela instituição. Entretanto, ao atentar contra a hierarquia e as normas disciplinares, ignorando a falsa superioridade racial dos oficiais da Armada Brasileira, a maruja logrou outro feito, arranhando, mesmo que momentaneamente, a imagem de uma instituição que se pretendia representante dos valores mais elevados da pátria, mas que, no entanto respaldava métodos arcaicos e degradantes de subtração da dignidade humana, entre eles o açoite, aos quais estavam submetidos os subalternos que nela serviam. A declaração do velho marinheiro João Cândido (principal líder da Revolta da Chibata) de que: “– se fosse necessário faria tudo outra vez”, simboliza a transcendência de um feito de homens simples do mar que, embora marcados no corpo e na alma pela chibata, ousaram lutar por liberdade. Na noite de 22 de novembro de 1910, as águas da Baía de Guanabara testemunharam um acontecimento especial. Navios foram manobrados com maestria, não sofreram e nem provocaram acidentes. Porém, seus exímios marinheiros, com a força dos canhões, inscreveram uma página diferente na nossa História, ao lutarem por justiça e dignidade.

Silvio Silva


SONHOS PANDÊMICOS Já passou da hora de se erguer um monumento dedicado a Zumbi dos Palmares aqui no município do Rio de Janeiro; seja através da iniciativa privada, gestão pública ou organização não governamental. Seria uma forma de consolidar o dia da consciência negra no cotidiano da Cidade e do Mundo; uma celebração raçuda em sua essência e afetiva em sua forte raiz africana. Sonhei com uma grande edificação contemplando um museu, biblioteca multimídia, sala de cinema, restaurante e bar, espaço coworking, sala de palestras para sessenta pessoas e um majestoso terraço com um pequeno palco. Do terraço se ergue uma torre elevador de metal culminando em um mirante (ponta de uma lança). Esse monumento deve ter acesso pago (doze reais), de filosofia sustentável e gerador de empregos; funcionando de terça à Domingo para fomentar um turismo voraz pelo encontro com a História e suas inquietações pertinentes e salutares. Quando sonho com um monumento, falo de uma coisa absurdamente enorme com estacionamento subterrâneo e entorno livre com pelo menos trezentos metros de altura; sendo o desenho da edificação todo baseado numa nova cabeça de Zumbi a ser criada; sim essa estrutura estaria toda montada dentro de uma gigantesca cabeça, uma atração turística poderosa e encantadora com uma vista deslumbrante aos olhos dos visitantes; acredito que a região do Engenho de Dentro (na rua dois de Fevereiro) possa receber essa construção arrebatadora e colossal tendo acessos por Trem da supervia e Linha Amarela Sou um péssimo desenhista, entretanto vou arquitetar (desculpem) uma concepção de forma para inspiração dos especialistas em estruturas gigantes, observem que o mirante estará dentro da ponta da lança:

Rodolfo Caruso


CONTO DE NATAL Dolores andava aflita. Havia alguns anos em que, nessa época, isso acontecia. A proximidade do Natal lhe trazia tristes lembranças. Nunca havia sido tão feliz quanto no período - tão curto - em que fora a Rainha do morro. No entanto, a vida virara de cabeça para baixo, desde que o seu excompanheiro – Neném – fora abatido por Sacha, o novo dono do Morro da Portela. Dolores teve de juntar suas tralhas e os filhos, e abandonar a comunidade onde vivera desde o nascimento. Nas festas de final de ano, Dolores dizia às crianças que era perigoso andar nas ruas. As pessoas ficavam muito agitadas. Mais egoístas. Grosseiras. Perigosas. Claro que havia um fundo de verdade nessa ladainha. No entanto, o fundamental ela não lhes confessava. Partia-lhe o coração não poder lhes dar uma pequena lembrança, para que eles não se sentissem tão inferiores em relação às outras crianças. Todas sobraçando os seus carrinhos movidos a controle remoto, bonecas que andavam e falavam, bolas de futebol. Esse Natal seria diferente. Teve uma ideia. Colocou os filhos no banho. Arrumou-os com o que tinham de melhor. Voltaram à moda as sandálias havaianas. Até os mauricinhos e patricinhas usavam. Menos um problema. Pela primeira vez, seus meninos estariam na moda. As roupas tinham sido restauradas há uma semana do Natal. Custara-lhe algumas noites de sono. Valera a pena. Estavam lindos. Felizes. - Mãe, pronde a gente vai? – indagou o mais velho. Dolores, os olhos brilhando, não respondeu. Sairiam. A árvore de Natal do banco em cuja agência sua patroa depositava o seu salário estava realmente bonita. As crianças não criam no que assistiam. Era um sonho. Só podia. Próxima surpresa: ida a um shopping. No ônibus, ocorrera-lhe ir a uma das lojas mais movimentadas e pedir as caixas vazias que os clientes já estressados dispensavam. O gerente, num gesto magnânimo, comovido pelo espírito natalino, doou todas as que a senhora solicitara. Em outra loja, conseguiu os papéis de presente. Completara metade do plano arquitetado. Voltou à pracinha onde deixara os filhos. Retornou com eles à loja onde ficaram seus “presentes”. Em cada caixa, a engenhosa mãe colocou o nome de cada um dos cinco filhos. Indescritível e comovente a cena. Era a primeira vez que recebiam presentes de Natal após a perda do pai. Sorriam e choravam ao mesmo tempo. Abraçavam-se solidários.


Chegara a hora de retornar para casa. As crianças estavam exultantes. O mundo estava feliz. A menina mais velha confessou à mãe que tinha medo de dormir e constatar que tudo não passara de um sonho bom. No barraco, as crianças, ansiosas, pediram para abrir os pacotes para ver o que tinham recebido de Papai Noel. Dolores não permitiu. Disse-lhes que só podiam fazê-lo na manhã do dia seguinte. Até lá, ganharia tempo. E agora? Insone, passava pelo maior drama de sua vida. Não dava para contar a verdade para os pequeninos. Nem pensar. Arranjaria outra saída. Mas qual? Enquanto arquitetava uma solução, resolveu dispor as caixas por tamanho. Ao pegar a primeira, notou, para sua surpresa, que estava meio pesada. Curiosa, abriua. Havia nela uma boneca linda. Incrédula, abriu outras caixas. Bolas de futebol. Carrinhos de pilha. Livros. Tênis. Aqueles brasileirinhos dormiam com um sorriso ingênuo nos lábios. O que o bom velhinho lhes reservara? Na manhã seguinte, eles saberiam...

Jorge dos Santos Nascimento


V E R S O S NE G R E I R O S Os versos De meus avós Foram lançados ao mar Seus cantos, que encanto! A alegria que os sustentava Nos porões a navegar E do mar, esses versos Trazidos por Iemanjá Encontraram novos lábios Um novo lugar para ecoar Os ensinamentos trazidos de lá Se, no corpo, essa marca de dor Registra na memória tanto sofrimento Pelos versos, esses cantos libertos, A História luta contra o esquecimento Cantai, Kehinde! Cantai, Luísa! Cantai, Marielle! Os versos de nossa voz. Pois, com meus avós, aprendi Que nosso povo guerreia a cantar

Dé b o r a C o s t a


S A NG U E NE G R O

Marco Trindade


REFLEXÕES Do ventre de minha mãe fui sangrado, Me tornaram escravo. Não nasci escravo! Nasci livre de corpo e de alma. Outros mesmo livres de corpo Nascem escravos da prepotência, Filhos da obscuridão. A pátria mãe acolhedora Sempre me renegou, Por mais de trezentos anos fui objeto Deixei de ser humano, E hoje, mesmo liberto, Me tratam como abjecto. As chagas em meu peito permanecem abertas, Chibatas não se usam mais, os castigos são vociferados, sons confusos, Palavras são como navalhas, Dilaceram o corpo, Escravizam a alma, machucam tanto! As dores dos açoites Permanecem presentes ainda em meu ser, não me deixam dormir. Os gritos lamuriantes a cada noite São como um presságio, Mais um que se foi, Mesmo sem ter chance de reagir. As sirenes ligadas soam como cânticos, Que nos faz lembra do calvário. Revelam o medo ainda contido em cada um de nós, Prenuncio da rendição, Sem nunca haver a sonhada sedição. Sou feito de estereótipos, Características que teimam em me imputar.


Mesmo sem provas me condenam, Minha raça, minha cor, Minha pena. Não tenho voz, Meu grito não repercute, Necessito de outras vozes, Outras mortes, Para que me faça escutar. Meu canto é triste, Banzo de quem não tem mais O que chorar. Mesmo assim não me curvo, Sigo lutando, Até quando, Minha alma insistir em lutar.

Ne l s o n J . Na s c i m e n t o


MANGUEIRA E SEU CENÁRIO A viagem começa no bairro mais que suburbano de Engenho Novo. Não sei a razão, mas quando ouço ou leio a palavra “engenho”, lembro-me inevitavelmente do célebre poema, de Ferreira Gullar, O Açúcar em cujos versos se faz uma denúncia em relação ao trabalho escravo adotado como prática ao longo de quase quatro séculos: Em lugares distantes onde não há hospital Ne m e s c o l a s , Homens que não sabem ler e morrem de fome Aos 27 anos Pl a n t a r a m e c o l h e r a m a c a n a Que viraria açúcar. Afastando-se dessa imagem construída por conta das linhas rompidas do poeta maranhense, retorno ao meu deslocamento, isto é, à minha jornada que imprimo exatamente na Avenida Marechal Rondon – aliás esse sujeito histórico, embora tenha recebido um título militar, fora um apoiador vitalício às causas legítimas dos índios brasileiros. Se isso foi verdadeiramente a razão para homenageá-lo, estou de acordo. Diferentemente da rua Almirante Cochrane... Mas isso é outra história. Voltando à Rondon, essa via não é tão extensa compara às demais. Muito pelo contrário, é relativamente curta. Corta os bairros de Sampaio, Riachuelo, Rocha e São Francisco Xavier, conduzindo-nos a um espetáculo que, para mim, é inesquecível: o retrato de Mangueira. No final da avenida, há uma relevante subida que, ao percorrê-la, se chega à Radial Oeste. É nesse ponto, justamente nesse local, os versos se realizam “Mangueira teu cenário é uma beleza”. A configuração mangueirense se dá num cenário em que caminham, lado a lado, o belo e o caótico. Um amontoado de casas – outrora “barracões de zinco” – revela que a engenharia do Marechal não esteve presente. Muito menos, a régua e o compasso, de Niemeyer. Entretanto, o retrato é simbólico uma vez que há uma resistência arquitetônica inevitável de não se colocar alinhamento na acepção métrica da palavra. O que reina é o caos. Tudo é desordem. Assim como o progresso. A resistência da favela se dá na reinvenção da narrativa. Analise, por exemplo, os versos do samba-enredo História pra ninar gente grande: “A história que a história não conta / O avesso do mesmo lugar / Na luta é que a gente se encontra”.


Então, a transposição nesse espaço é uma tentativa de ilustrar o cenário que se apresenta a mim quase todos os dias. A jornada se acaba ao virar à direita, na São Francisco Xavier. Passa a Uerj. Mais adiante o Maracanã, todo poderoso. Estou em casa, digitando estas palavras que me fazem recordar Mangueira e o seu cenário. Uma efígie. Uma figura solta no pensamento. Assombração perfeita para essa tarde chuvosa. A fotografia não tem fim. É espelho, é reflexo. Todos a conhecem ao longe pelo som dos tamborins e o rufar dos tambores. Porém, eu a reconheço a partir da figura que se avizinha nos meus sonhos. Viva. Demasiadamente viva.

Leonardo Bruno


C I N E S U BÚ R BI O

Nesta edição prestamos uma justa homenagem à grande obra do Cinema Novo: “Cinco Vezes Favela”, de 1962. Por extensão, igualmente homenageamos a versão desse clássico lançada em 2010: “Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos”. Neste último caso, aproveitamos a ocasião para fazermos um tributo ao jovem cineasta Cadu Barcellos, morto de forma violenta há alguns dias no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Lançado em 1962, na onda avassaladora de produções do Cinema Novo, Cinco Vezes Favela é apresentado através de cinco episódios sem ligação entre si e que retratam sem nenhum tipo de glamourização a realidade das favelas da cidade do Rio de Janeiro em suas várias nuances. O universo das favelas é exposto de forma realista, onde a estética da miséria, os infortúnios do cotidiano, a tristeza e também a alegria se manifestam em meio a uma desigualdade social e econômica abissal entre os seus moradores e os demais habitantes da cidade. Assim, nos episódios “Um Favelado (dir. Marcos Farias), “Zé da Cachorra” (dir. Miguel Borges), “Couro de Gato” (dir. Joaquim Pedro de Andrade), “Escola de Samba Alegria de Viver” (dir. Carlos Diegues) e “Pedreira de São Diogo” (dir. Leon Hirszman), o que se tem é uma realidade que insiste em se fazer presente cerca de cinqüenta anos depois. Em “Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos” (2010), vê-se que aquela realidade de meio século atrás continua praticamente a mesma. Entretanto, essa nova versão que partiu de um projeto de produção coletiva tendo à frente Cacá Diegues e Renata de Almeida Magalhães, parte da premissa de quem poderia melhor falar sobre o cotidiano das favelas nos seus mais variados contextos, seriam os seus próprios moradores.


Assim, tomou corpo uma obra cinematográfica que embora dialogue com a produção de 1962 na temática se difere em muitos outros aspectos a começar pelo protagonismo dos moradores das favelas nas diversas fases da produção, incluindo a direção dos episódios. As questões das desigualdades sociais e econômicas, o cotidiano de incertezas e a ausência quase que absoluta de justiça social, são mostradas em todos os ângulos, mas por quem as vive. Porém, o filme não se reduz a reproduzir lugares comuns e clichês de muitas outras produções que tratam do tema. Na obra, há espaço para a alegria, a solidariedade, ludicidade, amor e a perspectiva de transformação da realidade. Os cinco episódios que mostram isso são: “Fonte de Renda” (dir. Manaira Carneiro e Wagner Novais), “Arroz e Feijão” (dir. Cacau Amaral e Rodrigo Felha), “Concerto para Violino” (dir. Luciano Vidigal) “Deixa Voar” (dir. Cadu Barcellos) e “Acende a Luz” (dir. Luciana Bezerra).

Cinco Vezes Favela Direção: Marcos de Farias; Miguel Borges; Joaquim Pedro de Andrade; Carlos Diegues; Leon Hirszman. Produção: Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Diretores de Produção: Leon Hirszman; Marcos de Farias Gerente de Produção: Eduardo Coutinho; Fernando Drumond; Ivan de Souza Trilha Sonora: Carlos Lyra; Hélcio Milito; Mário Rocha; Geraldo Vandré. Elenco: Flávio Migliaccio, Sadi Cabral, Milton Gonçalves, Cláudio Correia e Castro, Oduvaldo Vianna Filho, Abdias do Nascimento, Jorge Coutinho, Francisco de Assis e Glauce Rocha. Colaboração dos Moradores das Favelas: Cantagalo, Pavão, Cabuçu, Borel e Morro da Favela.


Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos Direção: Manaira Carneiro e Wagner Novais; Cacau Amaral e Rodrigo Felha; Luciano Vidigal; Cadu Barcellos; Luciana Bezerra. Produção: Carlos Diegues e Renata de Almeida Magalhães Produção Executiva; Tereza Gonzalez. Roteiro: Rafael Dragaud Direção de Fotografia: Alexandre Ramos Edição: Quito Ribeiro. Concebido, escrito e realizado por jovens moradores das favelas. Apoio; CUFA; Nós do Morro; Observatório das Favelas; AfroReggae; Cinemaneiro. Elenco; Sílvio Guindane; Roberta Rodrigues; Gregório Duvivier; Hugo Carvana; Dandara Guerra; Flávio Bauraqui; Thiago Martins; Cintia Rosa; Márcio Vito; Marcello Melo.

Fontes Foto 1: br.pinterest.com Foto 2: jornaldosbairros.tv Internet- Wikipédia. As obras estão disponíveis no YouTube. RECOMENDAMOS!!!


S e l e ç ã o d e s a mb a s i n e s q u e c í v e i s . . . CH I CO R E I

(Binha, Djalma Sabiá e Geraldo Babão) Vivia no litoral africano Um régia tribo ordeira Cujo rei era símbolo De uma terra laboriosa e hospitaleira. Um dia, essa tranqüilidade sucumbiu Quando os portugueses invadiram, Capturando homens Para fazê-los escravos no Brasil. Na viagem agonizante, Houve gritos alucinantes, Lamentos de dor Ô-ô-ô-ô, adeus, Baobá, Ô-ô-ô-ô-ô, adeus, meu Bengo, eu já vou. Ao longe Ninas jamais ouvia, Quando o rei, mais confiante, Jurou a sua gente que um dia os libertaria. Chegando ao Rio de Janeiro, No mercado de escravos Um rico fidalgo os comprou, Para Vila Rica os levou. A idéia do rei foi genial, Esconder o pó do ouro entre os cabelos, Assim fez seu pessoal. Todas as noites quando das minas regressavam Iam à igreja e suas cabeças lavavam, Era o ouro depositado na pia E guardado em outro ligar de garantia Até completar a importância Para comprar suas alforrias. Foram libertos cada um por sua vez E assim foi que o rei, Sob o sol da liberdade, trabalhou

E um pouco de terra ele comprou, Descobrindo ouro enriqueceu. Escolheu o nome de Francisco, Ao catolicismo se converteu, No ponto mais alto da cidade Chico-Rei Com seu espírito de luz Mandou construir uma igreja E a denominou Santa Efigênia do Alto da Cruz!


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