Revista Sarau Subúrbio #21

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EXPEDIENTE Edição: V. 3, n. 0 1 - janeiro de 2020 Periodicidade: mensal

Revisão: a revisão dos textos é feita pelo próprio autor, não sofrendo alteração pela revista (a não ser tão-somente quanto à correção de erros materiais). Diagramação: Marcelo Bizar Capa: concepção de Marcelo Bizar e Marco Trindade; Foto, Arte e Grafismo: Marcelo Bizar Distribuição: A distribuição da Revista Sarau Subúrbio é online e totalmente gratuita. Plataformas de leitura: https://revistasarausuburbio.com.br, ISSUU e Calamèo. Notas importantes: A Revista Sarau Subúrbio é uma publicação totalmente gratuita, sem fins lucrativos. Não contamos com patrocínio de qualquer natureza. Nosso objetivo, em linhas gerais, é servir de instrumento para que os artistas que não possuem espaço de divulgação nas mídias tradicionais possam apresentar seus trabalhos, nas mais variadas formas, seja na literatura, na música, no cinema, no teatro ou quaisquer outras vertentes artísticas, sempre de forma livre e independente. Todos os direitos autorais estão reservados aos respectivos escritores que cederam seus textos apenas para divulgação através da Revista Sarau Subúrbio de forma gratuita, bem como a responsabilidade pelo conteúdo de cada texto é exclusiva de seus autores e tal conteúdo não reflete necessariamente a opinião da revista. Editores Responsáveis: Marcelo Bizar e Marco Trindade Conselho editorial: Ana Cristina da Silva, Leonardo Bruno, Marcelo Bizar, Marco Trindade e Silvio Marcelo. Contato: sarausuburbio@gmail.com


EDITORIAL Nosso peito arde igual verão, e nossos sonhos desfeitos são acalentados quando estamos entre nossos pares. Choremos, cantemos, sambemos, a beleza nos rodeia a todo instante, por mais que nos digam o contrário, o subúrbio é flor que renasce todos os dias, e a nossa arte é regá-la com o suor da nossa inspiração. Vamos à luta, armados com versos-sementes, que asfalto nenhum resistirá a nossa semeadura. PINTURA SEM ARTE (Candeia) Me sinto igual a uma folha caída Sou o adeus de quem parte Pra quem a vida é pintura sem arte A flor esperança se acabou O amor, o vento levou Outra flor nasceu é a saudade Que invade tirando a liberdade Meu peito arde igual verão Mas se é pra chorar, choro cantando Pra ninguém me ver sofrendo E dizer que estou pagando Não, não basta ter inspiração Não basta fazer uma linda canção Pra cantar samba se precisa muito mais O samba é lamento, é sofrimento, é fuga dos meus ais Por isso eu agradeço a saudade em meu peito Que vem acalentando os meus sonhos desfeitos Jardim do passado, flores mortas pelo chão Pétala, semente de paixão


SUMÁRIO 02 - EXPEDIENTE 03 - EDITORIAL 04 - SUMÁRIO 05 - ALVORADA PRETA - MARCIO RUFFINO 08 - JUNIOR DA PRATA 09 - VINTE VINTE 10 - CINZA ENTRE CORES 11- O PIONEIRO SAMBA DO ESTÁCIO 12 - "SABENÇA" 14 - UM LUGAR NO SUBÚRBIO - CENTRO CULTURAL OCTAVIO BRANDÃO 15 - ESTANTEN SUBURBANA 16 - VITROLINHA SUBURBANA 17 - MORRO DA CACHOEIRA 20- UM LUGAR CHAMADO QUINTINO 21 - AMIZADES PELA VIDA 22 - MAIS UMA DE BOTECO 23 - ROSA PARKS 25 - SERÁ, AMARAL? (OU A VIOLÊNCIA NEURONAL) 27 - AS CACHOEIRAS DE MARECHAL HERMES 28 - HOMENAGENS 29 - LEMBRANÇAS 30 - ALDRAVIA 32 - OS SONA, DESENHOS GEOMÉTRICOS ANCESTRAIS DA ÁFRICA 36 - BLOG DO TIZIU


ALVORADA PRETA Acordai, status quo! É hora de se atinar! Vim sem demora Lhe avisar Que eu sou O abacaxi Trazido de Angola Que o senhor Esqueceu de descascar! Sou a fruta preta Servida há quase quinhentos anos Na sua mesa. Sou o adorno excêntrico e ilógico Feito para enfeitar O seu grande circo antropológico. Sou o ébano maciço e resistente Feito para produzir sua tora Onde sentarás imponente, Indiferente à dor da minha diáspora. A caravela se transformou Na primeira classe que manténs O navio negreiro se transformou Em ônibus e vagões de trens Na constante higienização do teu engodo; Mas na lavagem deste borralho Insisto em ser, diante do teu todo, A água suja que teima voltar do ralo. Acordai, status quo! É hora de se atinar! Vim sem demora Lhe avisar Que eu sou O abacaxi Trazido de Angola Que o senhor Esqueceu de descascar!


Nas mídias, Promessas de prosperidades, Segundo merecimentos Que são filtros No qual nunca passaremos. Nessa peneira Nos transformaremos Em adubo Para fertilizar asfaltos e calçadas Regado à crack, maconha e cachaça. Diante da imagem da virgem Esperamos graça e sorte, Enquanto nossas mulheres São molestadas Nos meios de transporte. Seu tapinha nas costas Me pedindo para crê Na volta do filho de Deus Me faz lembrar Que hoje vemos nossos filhos Crescendo Sendo crucificados pelos seus Acordai, status quo! É hora de se atinar! Vim sem demora Lhe avisar Que eu sou O abacaxi Trazido de Angola Que o senhor Esqueceu de descascar! As mulheres desorientadas, Usadas como privadas masturbatórias Embaixo dos viadutos e nas praças abandonadas: Todas pretas. Os adolescentes perdidos nos guetos, Sem direito ao sonho: Todos pretos. As famílias nas periferias, Sem representatividade nem referência: Todas pretas. Os antepassados fantasiados de burgueses,


Mas com os olhos doloridos De terror, violência e abandono Nas fotos em preto e branco: Todos pretos. Há quase quinhentos anos A mesma história mal recontada; Há quase quinhentos anos A mesma tortura resignificada; Mas apesar de carbonizados pelo tempo Sigamos em frente; Rente feito pão quente. Lutando de Leste à Oeste; Norte à Sul. Nem que para isso Tenhamos que pintar O nosso sangue de azul; Pois se tu tens o poder da pólvora Nos defenderemos sempre Com o escudo da palavra. Acordai, status quo! É hora de se atinar! Vim sem demora Lhe lembrar Que eu sou O abacaxi Trazido de Angola Que o senhor Vai ter que descascar!

Marcio Rufino


O T E U O LHA R Do teu olhar eu não esqueço Sereno, fixo e muito belo Às vezes distraído Às vezes calmo Em outras atento e forte... Fiquei sem saber onde estava Quando te percebi a me olhar Tentei desviar a atenção Mas foi muito singular Então me prendi àquele momento... Por um instante pensei: Sou um sortudo!!! E foi assim que eu me senti Até você se levantar E caminhar tranquila em minha direção... Senti o coração acelerado Passei as mãos no rosto Admirado com o olhar que me prendeu E quando você passou por mim Eu entendi que o sortudo não era eu... Dei um sorriso, balancei a cabeça Olhei para o alto. Perguntando ao Cara lá de cima Por quê?? Se quase sempre te obedeço??? Éh! Do teu olhar eu não esqueço!!!

Junior da Prata


VINTE VINTE Início da década ou final? Já pode virar enredo de carnaval Esperanças renovadas em Quintino Ricardo , Irajá, Honório e Marechal Já Fiz promessa de soltar doze por um Serão muitas caixas pra comemorar Sabe o que? Prefiro não comentar. Pedi pra Deus e os Orixás Pão, circo e muito mais E um pouco de Paz Pois muita paz Pode ser demais Quero sorrir e chorar nessa caminhada Sentir felicidades na jornada Estar sempre atento ao comando De quem sou Já que sei que sou o tempo em carne e ossos Ataco e me defendo, vivo Percebo, compreendo, projeto Tomo a decisão Deixo a fumaça entrar Pois Minha alma é feita de prece E sabe, meu corpo carece de carinho, mundano e sagrado adora um pecado seguido de uma reza assim bença vinte vinte tenha piedade de mim.

Rodolfo Caruso Poeta todo dia


CINZA ENTRE CORES

Foto de Diogo Mathias Brum para o poema.

Arco de cores no nublado céu Trovões aceleram carruagens urbanas Aos poucos a noite vestindo seu véu Cobertura no início de uma cinza semana A postos telefones móveis Entregas rápidas e contemporâneas Molhados estão sendo os imóveis Em gotas que caem incertas, errôneas Cumprida está a promessa de chuva Assusta ao mesmo tempo que encanta É a primeira de janeiro, carregada de fúria Dos anos passados, peso de cobrança Superstições servidas à mesa No sofá, à espera da manta Que nos abrigue e do mal nos proteja Pedidos e potes de ouro da infância Está posta a beleza em meio à tempestade Pela fé há os que creem na bonança Cenário de mistérios e de novidades Contemplações e anseios de varanda

Wallace Araujo de Oliveira


O PIONEIRO SAMBA DO ESTÁCIO “Creio que jamais saberei quem foi Bernardo Sapateiro, mas a figura fundamental para o desfecho da história foi Tancredo Silva, descrito como o mais jovem dos três. Foi ele quem explicou ao repórter anônimo porque João Mina, durante a entrevista, não quis falar sobre o rabo de arraia. O batuqueiro matou um homem com esse perigoso golpe de capoeira num carnaval da Praça Onze. João Mina foi para detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E batucada virou samba.” 1

No Estácio ficava a zona do meretrício, em torno da qual gravitavam os compositores e cafetões, malandros que ganhavam a vida no baralho e no barulho das brigas de pernada e navalha. A expressão samba de sambar é atribuída a Ismael Silva, líder da brilhante turma, ao lado de Heitor dos Prazeres, Brancura, Baiaco e tantos outros, relembrado no livro SAMBA DE SAMBAR DO ESTÁCIO, de Humberto Franceschi. A talentosa turma do Estácio de Sá passou a ter por volta de 1930 a chance de ganhar alguma grana a partir do início das gravações elétricas. Ismael começou a vender algumas composições para Francisco Alves, O Rei da Voz, mas ainda assim acabou amargando logo depois um período de ostracismo, retratado em sua canção Antonico, superado na década de 50, quando voltou a ser lembrado. Os novos reis do samba carioca também se destacaram pelas inovações rítmicas. Alcebíades Barcelos, o Bide, criou o surdo ao improvisar uma lata de manteiga para marcação. João da Mina é considerado o introdutor da cuíca. Daí surgiu a pioneira escola de samba Deixa Falar, vermelha e branca como o América F.C., muito popular no bairro, onde ainda ficava a sede do time de futebol Império. O craque Leônidas da Silva desfilava também nos blocos do Estácio de Sá. O curto período de existência da Deixa Falar é atribuído pelo autor a uma proposital infiltração de pelegos que tomaram a direção da agremiação, com o objetivo de castrar o caráter libertário do samba estaciano, o que se ampliaria com a instalação do Estado Novo em 1937. Apesar disso, a qualidade da produção musical pode ser aferida pelo DVD-ROOM que acompanha o livro, com todas as gravações realizadas entre 1928 e 1942, um presente especial para os amantes do samba. Orl a n d o Ol i v e i ra

1. “O meu lugar ”, org. Luiz Antonio Simas e Marcelo Moutinho, RJ, Mórula Ed, 2015, pg. 26


"SABENÇA" Desde o instante mágico da fecundação, - Nem sempre fruto de um ato de amor, Coroamento da corte amorosa e clímax da sedução Na qual nos empenhamos com fervor -, Passamos a viver à sombra da morte. Então, a singrar nas marés da existência, Navegaremos por diversos portos: a fazer aporte, A realizar escambos e acumular experiências Que revolverão sentimentos de toda a sorte E apontarão novos rumos e horizontes. E, ao sabor do tempo, de um jeito egoísta, A contornar ou enfrentar tudo o que nos afronte, Muitas vezes, por trás de uma bandeira altruísta, Tentaremos moldar o mundo a nossa feição Sábios que nos julgamos de suas demandas. Apoiados numa estúpida e pretensiosa perfeição, Que uma tola e convencida vaidade comanda, Tudo, para nós, terá solução e nada será problema. Pois, práticos, sempre encontraremos um jeito Para demonstrar qualquer teorema. Claro, se das hipóteses não somos sujeitos Tudo se tornará evidente e de fácil compreensão! Enxergaremos como aquilinos observadores Todos os ângulos inimagináveis de uma questão E dela nos apressaremos sábios interventores. Mas quando nossos dramas na berlinda estão O buraco é mais embaixo e o caso é diferente. Sujeitos às agruras dos seus desdobramentos, Egocêntricos, resistiremos na linha de frente Revelando certo desprezo pelos aconselhamentos.


Não somos o que pensamos que somos! Batemos o martelo constantemente a nosso favor E, a tudo o que hipoteticamente pressupomos, Vivemos a tecer loas com animado fervor E a repercutir com estrondosos discursos. É necessário examinar e ouvir o que além de si ecoa Para dar a devida guinada na direção do curso E, desta forma, ajustar o rumo do que se apregoa Com o que na crua e nua realidade somos E se tornar senhor dos próprios assomos.

Kaju Filho

* O poema saiu originalmente no livro Inquietudes – Poesias – livro II – out – 2019 - pg. 17 - do escritor Kaju Filho


UM LUGAR NO SUBÚRBIO CENTRO CULTURAL OCTAVIO BRANDÃO

* Quem quiser conhecer a História do Centro Cultural Octávio Brandão, ver edição de setembro de 2018, página 07.


ESTANTE SUBURBANA

DIÁLOGOS SUBURBANOS

Identidades e lugares na construção da cidade

Organizadores: Joaquim Justino dos Santos Rafael Mattoso Teresa Guilhon (Orgs.) M ó r u l a E d i to r i a l


VITROLINHA SUBURBANA

LP EXPLOSÃO DO PAGODE Gravadora: CID - Ano:1986 - Artistas: Adalto Magalha/Diversos/Sapato/Cláudio Camunguelo 1 - Papagaio (Almir Guineto/Beto Sem Braço/Luverci Ernesto) 2 - Fonte de Energia (Adalto Magalha/Adilson Victor) Eu Gosto Assim (Adalto Magalha/Adilson Victor) Meu Negócio É Pagodear (Sapato/Acyr Marques/Arlindo Cruz) 3 - Senhor Cidadão (Acyr Marques/Adalto Magalha) 4 - Meu Gurufim (J. Carioca) 5 - Nega Preguiçosa (Sombrinha/Ratinho) - Interpretes: Baita 6 - Joanita (Cláudio Camunguelo) 7 - Volta da Vida (Adilson Gavião/Marquinhos Guadalupe/Jorge Diz) Águas Passadas (Sapato) - Mironga (Osvaldo Cavalo) - Interpretes: Baita 8 - Lá na Favela (Cláudio Camunguelo/Valdir Caramba)

FICHA TÉCNICA: Arranjos: Arlindo Cruz e Sombrinha Músicos: Papão (Bateria), Gordinho (Surdo), Baita (Cavaquinho), Arlindo Cruz (Banjo), Sombrinha (Violão), Ubirany, Ubirajara e Sereno (Ritmo e Coro) e Zenilda e Thelma (Coro)


M O R R O D A C A C H O E IR A Um cano de poucas polegadas sobe o morro ramificado por infinitas divisões que seguem por mais de uma dezena de becos e vielas até chegar à última casa. Essa é a única fonte d’água potável que a comunidade do Morro da Cachoeira tem. A pressão da água diminui na inversa proporção do aclive do morro. Assim, a casa de um cômodo de Dona Cotinha, justamente a última, encravada no limite daquele acidente geográfico, recebe um fio do precioso líquido. Aos olhos de um iniciante na literatura poética poder-se-ia dizer “que o bem mais precioso do mundo move-se preguiçosamente pela teia de PVC relutando em chegar ao seu destino final”. Entretanto, é dali que Dona Cotinha tira o necessário para lavar a roupa (cinco ou seis peças por hora), cozinhar o feijão, abastecer a cumbuca que refresca as três galinhas poedeiras, encher a lata de Zelão, um SRD que só late quando quer. Isso mesmo, um único cano de pequena bitola que chega à casa da velha senhora e que se desdobra em outros ramais: um que se prende ao tanque de cimento, que sem os pés, se assenta sobre quatro paralelepípedos. Outro, que passa pelo basculante enferrujado, amarrado com arame e que abastece o banheiro (reservado separado do restante da casa). O último ramal ligado a uma bica de plástico (igual a do tanque), se estende sobre a pia de lavar a louça. Dona Cotinha não vivia só. Com ela, moravam a filha Sandra Mara, auxiliar de serviços gerais, e os dois netos: Petersonn e Claydersonn, respectivamente de onze e seis anos, filhos de pais diferentes, mas com o mesmo gosto por estrangeirismos. Ano após ano, a situação de abastecimento d’água na comunidade só piorava. Promessas de solução surgiam às dezenas. Todas muito frequentes nos anos pares, onde os cidadãos que queriam entrar para a vida pública, “conscientes” das dificuldades do povo da Cachoeira, faziam verdadeira romaria na comunidade sempre nos meses de agosto e setembro, parando na associação de moradores. Esta, ao nível do asfalto, na entrada da comunidade, era controlada há muitos anos por Joca. Homem de poucas palavras, Joca se dizia bem-feitor da localidade. Gabava-se de ter sido o responsável pela instalação da bomba d’água que, segundo ele, foi a maior conquista do Morro da Cachoeira. Por conta dessa empreitada hidráulica, Joca cobrava, via associação de moradores, uma taxa mensal a todas as famílias por conta dos custos de manutenção da bomba e do labirinto de tubos e conexões. Se precisasse de material novo uma taxa extra era cobrada, naturalmente sem apresentação de nota fiscal.


Dona Cotinha vivia as turras com Joca. Alegava pagar as taxas em dia, mas a água praticamente pingava na sua casa. Ao que Joca sempre retrucava com a mesma justificativa: − a sua casa fica no final da linha e no lugar mais alto do morro. As explicações de Joca não convenciam a velha senhora, que dizia: − quero providências ou diminuição do valor da taxa. Ao que Joca replicava:− Sem taxa, sem água! O desgaste entre os dois era do conhecimento de todos na comunidade. Sandra Mara também participava eventualmente das discussões com o bemfeitor do Morro da Cachoeira, principalmente quando chegava à casa cansada do trabalho e tinha que tomar banho de balde e caneca. Os netos de Dona Cotinha embora crianças, percebiam em seu Joca um ar mandão e não afeito às reclamações da Avó e da Mãe. Todos que moravam abaixo da casa de Dona Cotinha tinham abastecimento regular, embora sofressem com outros problemas. O tempo passava e a comunidade da Cachoeira não via as mudanças tão prometidas acontecerem. A água chegava cada vez menos na casa da Dona Cotinha. As vezes a torneira ficava até três dias sem pingar uma gota sequer. Entretanto, diante da desolação da velha moradora, Joca dava sempre as mesmas desculpas. Sandra Mara, mais impaciente, dizia não ver ninguém da parte baixa do morro reclamando de falta d’água. Diante das cobranças mais incisivas de mãe e filha, Joca mudou a justificativa para o problema. Alegou que a falta d’água era por conta de a bomba estar velha e que precisava comprar uma nova para solucionar a questão, mas seria preciso cobrar taxa extra. Mãe e filha viam com desconfiança tal argumento Sandra Mara, no limite da paciência, ao ouvir do presidente da associação que cobraria taxa extra, quando o mesmo já descia o morro, exclamou: − se eu pudesse, arrebentaria com essa bomba d’água, já que não serve de nada para nós. Num dia quente, como todos os outros do mês de janeiro em Sebastianópolis, a molecada corria solta pelos becos e vielas. Petersonn e Claydersonn não eram diferentes. Todo tipo de brincadeira eles faziam. Ao final da tarde, os dois irmãos, ao fazerem o trajeto de volta para casa se depararam com o motivo de tanta ira da mãe e da avó, a bomba d’água. Esta, se encontrava semi protegida por uma casinha de tijolos, sem cobertura e com uma portinhola de madeira. Nesse instante, Petersonn lembrou-se da frase revolucionária da mãe e, como um Quixote mirim, vendo o objeto como o grande causador da tristeza familiar, não teve dúvida, pegou um paralelepípedo (que para ele parecia pesar três toneladas) e arremessou-o na direção daquele “monstro” que produzia um som estridente. A raiva atrapalhou-lhe a mira e, ao invés de acertar a bomba, acabou acertando a conexão do cano principal. Pronto! Em milésimos de segundos, um esguicho d’água atingia quase quatro metros de altura. A pressão da água que tanto faltava na sua casa assumia uma força elevada a N formando uma cascata que, ao tocar o chão, descia pela rua principal e desviava por entre os tortuosos caminhos do morro, entrando em várias casas e fazendo a alegria da molecada.


A raiva atrapalhou-lhe a mira e, ao invés de acertar a bomba, acabou acertando a conexão do cano principal. Pronto! Em milésimos de segundos, um esguicho d’água atingia quase quatro metros de altura. A pressão da água que tanto faltava na sua casa assumia uma força elevada a N formando uma cascata que, ao tocar o chão, descia pela rua principal e desviava por entre os tortuosos caminhos do morro, entrando em várias casas e fazendo a alegria da molecada. Joca e os outros moradores quando viram aquela cena diluviana, expressaram nos rostos um misto de espanto e desolação. O estado apoplético de Joca não demorou mais do que trinta segundos, pois com a voz grave da indignação, pronunciou a frase ameaçadora: − Vão ter que pagar muitas taxas extras por isso! Ao que Dona Cotinha da frente da sua casa em tom mais elevado, prontamente retrucou: − finalmente, a comunidade faz jus ao nome: Morro da Cachoeira! Frase seguida de gargalhadas dos seus netos. Silvio Silva


UM LUGAR CHAMADO QUINTINO Esse mês eu gostaria de falar sobre um lugar muito especial do subúrbio carioca: o bairro de Quintino Bocaiuva. Localizado entre Cascadura e Piedade, Quintino Bocaiuva, ou simplesmente Quintino, guarda verdadeiras jóias dentro de seus domínios territoriais. A primeira que destaco aqui é a própria casa de Quintino Bocaiuva, que foi uma importante figura no cenário político do início do período republicano no Brasil. A residência, localizada na Rua Goiás 990, encontra-se ocupada por famílias carentes e infelizmente está em péssimo estado de conservação. Do outro lado da linha do trem, temos a Praça Quintino Bocaiuva com o busto do patrono do bairro e o gracioso coreto, o que dá um ar de cidadezinha do interior à singela praça. Avançando pela Rua da República virando à direita da Rua Clarimundo de Melo encontramos a Faetec de Quintino, uma importante escola técnica da região. Lá, anteriormente, funcionou uma das sedes da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor), instituição que tutelava menores infratores. Na Rua Clarimundo de Melo também se localiza a igreja de São Jorge, o santo mais popular do Rio de Janeiro. No dia 23 de abril, as ruas em torno da igreja são tomadas por uma multidão de fieis que além de trazerem os seus pedidos e agradecimentos, ajudam a aquecer o comércio local. Mas Quintino também ficou conhecido como terra do “Galinho” Zico, o maior ídolo do Flamengo. A casa onde Zico passou sua infância e adolescência, ainda pertence à sua família e está situada na Rua Lucinda Barbosa. Outro personagem famoso e que deixou marcas no bairro foi o político Albano Reis, que ficou mais conhecido como o Papai Noel de Quintino. Falecido em 2004, o centro social que leva o seu nome ainda subsiste na Rua Nerval de Gouveia. Quintino também foi cenário de filme na década 1970. O filme O Ibraim do Subúrbio teve algumas de suas cenas gravadas no bairro. Desta forma, apresento com muito contentamento esse arrabalde agradável dos subúrbios cariocas convidando a todos que venham conhecer e andar um pouco pelas suas ruas cheias de história e estórias. An a C r i s ti n a d a S i l v a


A M IZ A D E S P E L A V ID A Amizade palavra bonita De infinitos significados Sentida de várias formas São os pais, irmãos, filhos Amigos de escola, infância, Clubes, associações, Universidades, Bares e etc. Todos os tipos de pessoas que esbarramos pela vida. Porém os Amigos de alma não encontramos todos os dias, são intensos, Falam ao nosso coração compreensão mútua Entendimento simultâneo, sabemos seus gostos, Desejos e até pensamentos. Quando por algum motivo vão embora deixam uma Saudade boa na gente, de momentos vividos. Todos os tipos de pessoas são necessárias para nossa evolução, aprendemos a viver e conviver e até desistir, pois é preciso Caminhar. O caminho é lindo, parte, é arte O coração necessita de amor sincero, nem sempre romântico O tempo corre e nem todos tem tempo Como somos o tempo prefiro meus amores de alma, aqueles que posso conversar e tocar. Aqueles que acalmam meu pensamento e me fazem voar..Minha caneta sempre procura estas pessoas e minha sensibilidade também, continuo com a alma aberta, como diz Marcelo D 2 ,a procura da batida perfeita, meu amor maior é o Samba e a Escrita e meus amores de alma estão aí ,aonde tenho os encontros que acredito, dentro da Filosofia Sambística que tenho registrado na memória e estes encontros me fazem refletir e me perceber como uma mulher que deseja o crescimento, desnuda a alma , enxergo como D. Ivone Lara e Conceição Evaristo que também tenho a minha verdade e é por ela que luto a cada amanhecer e assim vou construindo minha história de plenitude e de paz. Embora tenha um pensamento inquieto, sempre lutando por algo ou alguém. Se isto é ser feliz então esta sou eu e me convido sempre a pensar sobre os fatos da vida, sou minha melhor amiga e já fiz minhas escolhas. Vivo o que é melhor pra mim e busco a liberdade. Amar é a meta na construção de um mundo melhor. Marcia Lopes


M A IS U M A D E B O T E C O Eu gosto de botequim Se houver roda de samba Se houver um bom choro Pandeiro, cavaco, bandolim, Sete cordas...Eu perco a hora Demoro a ir embora E ao chegar em casa, ai de mim Se for na Vila de Noel Lamento não ser menestrel Embora amante da música Esta simples alma Perde ritmo até nas palmas Resta-me a letra, a rima esdrúxula Que me conforta nesse lugar Assim sigo minha vida a versar Continuando a ser o bardo do bar Douglas Adade


ROSA PARKS

Aconteceu no dia 1º dia do mês de dezembro do ano de 1955. Uma data que temos que comemorar sempre. Foi neste dia em que Rosa Parks não cedeu seu assento num ônibus a um homem branco. Dizem que ela marcou o movimento antirracista americano, é verdade. Pra mim ela marcou a História da Humanidade. De forma profunda. Reservavam as primeiras filas dos ônibus em Montgmomery, capital do Alabama, para passageiros brancos, e negros poderiam se sentar somente nos assentos que ficavam mais para o fundo da condução. A lei assim estava escrita. Rosa Parks, numa manhã de dezembro, entrou num desses ônibus para ir ao trabalho, sentando-se num lugar no meio do ônibus. O motorista a viu, viu outros três outros negros também, exigindo que se levantassem para dar lugar aos brancos que entravam na condução. Rosa Parks se negou, ela não se levantou. Rosa Parks não cumpriria aquela exigência. Ela permaneceu sentada. E como não se levantava, levaram-na para a prisão. Rosa Parks não gritou, não brigou, não levantou a mão para ninguém, apenas permaneceu sentada. Um protesto silencioso como esse poderia passar sem ninguém saber, não é mesmo!? Pois se enganaram redondamente. Rapidamente aquele gesto se propagou. Um boicote foi organizado por um conselho, Conselho Político Feminino. O protesto contra os ônibus urbanos e a discriminação racial ganhava o país. Olha que a ação foi apoiada até mesmo por Martin Luther King Jr.


Harry Belafonte, um músico ativista teve sua vida transformada por uma ligação de King chamando-o para apoiar a "mãe dos movimentos pelos direitos civis" nos EUA, como Rosa Parks era chamada. A fala do músico expressa muito bem o que aconteceu: "A atitude de Rosa Parks nos permitiu reagir contra as pressões política e social que caracterizavam nossa sociedade. Quando King me telefonou, me chamando para um encontro, comecei, pela primeira vez, a lutar oficialmente por essa causa. Quando nós nos vimos e falamos sobre seus planos, percebi que a partir dali eu me engajaria no movimento liderado por ele e Rosa Parks. Foi um momento muito importante". Não ficou só nisso. Milhares de negros não tomavam mais ônibus ao caminho do trabalho. Foi o que se deu poucos dias da atitude de Rosa Parks. E foi assim que o mundo aprendeu como pode ser forte e determinada uma mulher como Rosa Parks. Malkia Usiku


SERÁ, AMARAL? (OU A VIOLÊNCIA NEURONAL) - Zé, tira desse jornal, amigo! - O que que tá se passando, Amaral!? - Essas matérias sobre síndrome do pânico, depressão, hiperatividade. Sei não, pra mim é tudo bobageira! - Deixa de ser ignorante! Você não está ligado no que está acontecendo, não!? - E o que é que está acontecendo que eu não sei... agora você vai me dar aula!? Chegou aqui fugido de "Sumpaulo" e quer me dar aula... tá de sacanagem! - Se você se informasse, saberia que nada disso é brincadeira, não! São as doenças da contemporaneidade! - Caramba! Agora deu pra falar bonito é!? - Que bonito que nada... é só você ler. Se você saísse desse tal de "zap-zap" e lesse um jornal, por exemplo, saberia disso! Não é mesmo, Joninha? - Ah! Já vai pedir socorro pro 'Professor'!? Ele tá fora da conversa! - Eu andei lendo num livro que meu filho me emprestou que estamos numa sociedade frustrada! - Frustrado pode ser você, Zé, eu não sou não. Nadica de nada! - Não é a pessoa, ignorante. É a sociedade como um todo. - Começou a filosofar! Fui dar corda... - O tempo todo nos ensinam que tudo vai dar certo, coisa e tal... e que somos merecedores, empreendedores... - E não é verdade!? Nós criamos nossa realidade! Kkkkkkkkk... também sei filosofaaarrrrrrr... - Só que como as coisas não acontecem como nos comerciais de televisão ficamos frustrados e daí tanto transtorno. - Isso aí é falta de uma boa palmatória, isso sim! É fraqueza... muita gente fraca... - Então você acha que o cara que tá frustrado é um fraco!? É isso!? - Sim... merece uns castigos pra aprender! - Amaral, espera um pouco que tem um cliente me chamando... - Viu só, Joninha!? Ele já tá fugindo da conversa... - Tô fugindo não. Espera que eu volto. Deixa eu levar uma cerveja pro Focault que ele me pediu. - Joninha, por que o Focault tá bebendo sozinho? Ele não é seu amigão do peito!? Que que ouve?


- Pronto, Amaral! Já abri uma Therezópolis pro Focault! Agora é com a gente! Como ía dizendo... - Controlar os indivíduos pela disciplina é conquistar o poder. E, claro, controlar os indivíduos! - Ò, Focault! Fica quietinho na sua... bebe sua cerveja que a conversa hoje é entre eu e o Zé. - Mas, ele tá certo, Amaral! Controle é o que nos impõe o tempo todo. - Zé tá com mania de Teoria da Conspiração, meu nego!? Que controle? - Ora, academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers, laboratórios de genética... - Rapaz... você citou tudo o que é mais que o normal hoje em dia! Só falta você dizer que é perseguido por ET. - Pois é, Amaral! Tudo parece tão normal. Parecem coisas para o nosso bem: fique sarado, estude, trabalhe, ganhe dinheiro, viage e gaste muito e todo o seu dinheiro! - E não é isso!? Essa é a verdade! - Amaral, me diga! Você está empregado? - Não. Faço uns bicos! - Então, você não usufrui de nada disso e acha que é o normal pra todos!? - É mas... se eu me esforçar, trabalhar, correr atrás sem cansar eu chego lá! - Será, Amaral!? Será!?

J o n a s H é b ri o


A S C A C H O E IR A S D E M A R E C H A L H E R M E S Meu irmão tinha conseguido ir no último final de semana à cachoeira de Jacutinga. O calor do verão estava com tudo e ele mostrava na sala, para seus amigos da rua, as fotos que tinha postado numa rede social. Eu fui chegando devagarinho para ver as fotos. - Sai daqui pirralho, você ainda não tem idade pra ir nadar na cachoeira. Eu fiquei muito chateado. Minha mãe colocava a roupa no varal e me chamou com gestos carinhosos. Eu fui. - Fica triste não, vou preparar uma cachoeira pra você. A água saía geladinha da mangueira. Eu, de olhos fechados, saí de Marechal Hermes e fui parar na cachoeira de Jacutinga e tantas outras cachoeiras, que talvez sequer existissem no mundo, mas naquela tarde conheci suas águas. Antero Catan


HOMENAGENS O Samba do Doutor ao longo do tempo tem construído um trabalho cultural muito importante. O projeto de Homenagens tem como objetivo homenagear sambistas de todos os seguimentos seja de escolas de samba como as velhas guardas, departamentos femininos, ala de compositores, baianas, seja de rodas de sambas da Cidade do Rio de Janeiro e que se destacaram e se destacam, mas não tenham a visibilidade merecida, pois a grande mídia ignora. Homenagear também os escritores sambistas, os divulgadores e os produtores da cultura do samba. Além desses tem as homenagens in memoriam que buscam resgatar os grandes nomes do passado para mostrar as gerações atuais a sua importância na evolução do samba. No Samba do Doutor já foram homenageados as velhas guardas das escolas de Samba: Estácio de Sá, Unidos da Tijuca, Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense, União da Ilha do Governador, Salgueiro, Portela, Beija Flor de Nilópolis, Tuiuti, Mangueira, Unidos de Padre Miguel, Acadêmicos de Vigário Geral, Acadêmicos do Engenho da Rainha, Renascer de Jacarepaguá, Unidos do Cabuçú, Unidos de Manguinhos. In memoriam já foram: Xangô, Padeirinho e Darcy da Mangueira, Toco da Mocidade, Noel Rosa de Oliveira do Salgueiro, Monsueto, ex-presidente Paulo Amargoso da União da Ilha e Juvenal Lopes da Mangueira e Blecaute. Escritores sambistas como: Haroldo Cesar, Kaju Filho, Rodolfo Caruso, Marilia Barbosa, e Rachel Valença. Seguindo esta linha em 17/01/2020 o Samba do Doutor homenageou os escritores e idealizadores da Revista Sarau Subúrbio, Marcelo Bizar e Marco Trindade e que brilhantemente desenvolveram a revista com apoio dos seus colaboradores que mensalmente se dispõem a escrever seus artigos em variados temas. Ana Cristina de Paula, Elaine Morgado, Marcia Lopes, Dorina, Junior da Prata, Silvio Silva, Jonas Hébrio, Malkina Usiku, Antero Catan, Heraldo Costa, Jonathan Magella, Rodolfo Caruso, Douglas Adade, Kaju Filho, Lula Dias, Leonardo Bruno, Danilo Firmino, Onesio Meirelles e outros colaboradores. Enfim, a noite foi emocionante, tanto para os homenageados, como para o Samba do Doutor. Sexta feira de carnaval, 21 de fevereiro comemoraremos 4 anos do Samba do Doutor. Sambas, marchinhas confetes e serpentinas. Onesio Meirelles


LEMBRANÇAS Alma suburbana vestida de saudade O adulto é triste, mas a criança é feliz O menino lembra do vento amigo, Do cheiro da maçã do amor, Do trinar do chanchão, Do asfalto quente em dia de feira... E o adulto? O adulto é o asfalto quente Sem a sombra e a água fresca Da poesia. Marco Trindade


ALDRAVIA Muito comum em casarios de Mariana, Ouro Preto e Sabará, cidades mineiras, são as aldravas (ou aldabras). Consistem em peças de metal, geralmente argolas, que se prendem aos portões e portas, servindo para bater, anunciando-se para quem se encontra do lado de dentro. Aldravia é um termo que se origina dessas argolas, sendo uma forma poética contemporânea, criada em Minas Gerais. No ano de 2000, mês de novembro, nasceu o novo movimento poético na cidade de Mariana, em Minas Gerais. Hoje em dia, o Movimento Aldravista já chegou a alguns lugares do mundo. A inspiração nas aldravas se deu pela proposta de se fazer poesia que abra portas, portas inusitadas, portas de percepção poética nas inspirações cotidianas que o artista conseguiu enxergar e quer revelar poeticamente. As narrativas poéticas eram longas, até bastante longas, longas até demais, na Antiguidade. Com o tempo, os poetas tiveram a oportunidade de condensarem as poesias em formas menores, tais como os sonetos, as trovas, dentre outras. Em contato com outras culturas aprenderam formas poéticas ainda menores, tais como os haicais japoneses. É sabido que podemos ter muitas palavras com pouco conteúdo, como também poucas palavras com conteúdos profundos. A poesia aldravista busca a síntese da seguinte forma: aldravias são poemas de seis versos, com uma palavra por verso. O poema deve condensar significação com um mínimo de palavras, de forma livre, natural, sem esforços, sem artificialismos desnecessários. Esse limite de 06 palavras se dá de forma aleatória, porém preocupada com a produção de um poema que condense significação com um mínimo de palavras, sem que isso signifique extremo esforço para sua elaboração. É poesia minimalista. A incompletude é bem-vinda pois provoca diversas interpretações. Metáforas devem ser usadas moderadamente. As ideias devem ser claras, mas subliminar. Usos de metonímias e sinédoques devem ser administradas. Os versos aldrávicos se iniciam com letras minúsculas, e as aldravias não têm título, mas há o costume de enumerá-las. Pontuação não é recomendado, a não ser que sejam exclamações e interrogações. Os nomes duplos, tais como Van Gogh, Tom Jobim, Mário Quintana etc, são considerados como um único vocábulo, logo, um único verso. O mesmo se dá com substantivos compostos e formas pronominais que se unem por hífen: representam um único vocábulo, logo, um único verso.


Como gosto muito da proposta aldravista, tenho escrito algumas. As que deixo abaixo escritas foram inspiradas no Dia da Consciência Negra:

I Negrar Consciência é busca nossa ascendência II Nossa Consciência Negra busca vida íntegra III Consciência Negra: Pensar nossa verdadeira História

Até o próximo mês!

Marcelo Bizar


OS SONA, DESENHOS GEOMÉTRICOS ANCESTRAIS DA ÁFRICA I

"O senhor coelho, de nome Sambálu, descobriu uma mina de sal-gema (nzôngua riá môngua), iguaria muito apreciada e valiosa. A notícia se espalhou rapidamente e o leão, a onça (tchisenga) e a hiena (tchimbúngu) vieram exigir o salgema, afirmando o direito dos mais fortes. Sambálu teve uma ideia, realizando-a prontamente, isolou a mina através de uma vedação, impedindo os usurpadores de pegarem seu sal-gema. Esta fábula africana afirma o direito eterno e inviolável dos mais fracos. — — — — —

Sambálu - em b; nzôngua riá môngua (mina de sal-gema) - em a; o leão - em c; a tchisenga (onça) - em d; a tchimbúngu (hiena) - em e.

* Notem que só o coelho tem acesso à mina de salgema.


Imagina uma forma de representar provérbios, contos, fábulas, jogos, mitos, animais, cantos, leis e enigmas através de desenhos geométricos. Isso seria bem interessante, não!? Alguns poderiam até mesmo dizer que seria muito moderno, contemporâneo... O povo Cowe, do nordeste de Angola, cultiva essa tradição há muitos séculos. Os “sona", plural de "lusona", são desenhos geométricos que fazem parte de uma tradição angolana de criar narrativas enquanto desenhos geométricos vão sendo feitos na areia, numa forma em que se incorporam ideias matemáticas com ideias morais, legais, espirituais, simbólicas, dentre outras. O lusona é um desenho na areia feito pelo dedo e hoje em dia são muito estudados pois observaram que ideias matemáticas profundas estão expressas através dos sona. Os sona são muito utilizados e conhecidos no leste de Angola e em países que lhe fazem fronteiras, tais como República Democrática do Congo e Zâmbia. Conteúdos matemáticos de áreas como Combinatória (Contagem, Arranjos, Combinações), Teoria dos Números ( Máximo Divisor Comum e Mínimo Múltiplo Comum), Álgebra Linear (Matrizes) e Topologia (transformação em superfícies) são conceitos utilizados e explorados de forma intuitiva, sem o conhecimento acadêmico ou de fórmulas, nos diversos sona que foram estudados. Triste é constatar que os pesquisadores dos sona reconhecem que, devido ao preconceito, e a falta de apoio em preservá-los muitos sona foram perdidos. Há também a questão política, uma vez que os sona demonstram como povos africanos possuíam formas de escrita e representação narrativa tão profunda, sofisticada e avançada há séculos, desenvolvendo conhecimentos num grau profundo, que só com o Renascimento Africano chegou até nós. A maneira como são feitos os sona que representam narrativas (provérbios, lendas, aprendizados, histórias etc) é muito interessante. Inicialmente o narrador "prepara o terreno" marcando na areia pontos que podem representar muitas coisas (dependendo do lusona) ou não representar algo específico na história (neste caso os pontos servem como grades ou marcadores). Depois ele começa a contar a narrativa e enquanto fala vai desenhando com o dedo na areia - a tradição exige que não se tire o dedo em nenhum momento da areia enquanto se faz o desenho - o lusona (um desenho ilustrativo, simbólico, feito com conhecimento matemático intuitivo com técnicas matemáticas reconhecidas). Através dos sona o conhecimento do povo Cowe era passado de geração para geração. Em algumas interpretações, os sona representariam o "Mukanda", rito de passagem dos meninos jovens para homens adultos. Tradicionalmente só homens desenham e usam os sona. Com um lusona se aprende a contar a narrativa relacionada ou o símbolo que ele representa. Como os sona representam jogos, provérbios, contos, histórias, cantos, leis, parábolas etc., podemos dizer que são verdadeiros ideogramas. Apresentamos a seguir alguns sona, acompanhados da correspondente história que representam.


O cã o e o ca ça d or Cipinda, um caçador, certa feita levou seu cão Kawa para caçar. Pedou uma cabra. Retornando para sua aldeia, o caçador encontrou Kalala, a quem o cão pertencia, dividindo a caça com ele. Os ossos foram dados para Kawa. Na semana seguinte, Cipinda pediu o cão emprestado novamente, mas o cão se recusou a ajudá-lo dizendo: "Cipinda, leve Kalala para te ajudar na caça, afinal de contas é com ele que você divide a carne!"

O leopardo e a cegonha Kajama, o leopardo, certo dia pediu à Kumbi, a cegonha, umas penas pois queria forrar a sua toca. Na semana seguinte, Kumbi, a cegonha, pediu a Kajama que lhe desse um pouco da sua pele. Mas, quando o leopardo atendeu o pedido da cegonha, morreu de tanto frio. O filho de Kajama soube e quis se vingar do pai leopardo. Kumbi, que muito conhecia os caminhos do pântano, conseguiu escapar. O filho do leopardo está procurando por ela até hoje! (O desenho são duas linhas curvas entrelaçadas. Neste lusona nota-se que alinha ondulada é a cegonha fugindo. Os pontos simbolizam o pântano.)


O g a l o , o c h a c a l e a mu l h e r Quando viram uma linda mulher, o galo e o chacal queriam com ela se casar. Foram então pedir ao pai a mão da bela mulher em casamento. O pai da moça disse que eles deveriam trazer-lhe um alembamento (o dote). Um dia, chegou a notícia de que a bela moça havia morrido. O galo chorou muito, ficou inconsolável. O chacal só lamentou mesmo que tinha perdido o pagamento do dote que fizera adiantadamente. Mas a história era um boato espalhado intencionalmente pelo próprio pai da noiva. Ele queria saber qual dos pretendentes merecia a mão de sua filha. O galo, demonstrando seu verdadeiro amor, acabou recebendo a mão da moça em casamento.

Alguns vídeos no Youtube com os sona sendo feitos enquanto a história é contada (a narração é em espanhol, mas vale muito a pena dar uma boa olhada):

Sambalu, o coelho: https://www.youtube.com/watch?v=Y0LXZ_2L6Uw O cão e o caçador: https://www.youtube.com/watch?v=bhdEuKmJOEc A cegonha e o leopardo: https://www.youtube.com/watch?v=CGxOf1SgeXA H e r a l d C o s ta



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