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6. O APARECIMENTO DAS SEITAS

HISTÓRIA DA IGREJA

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O APARECIMENTO DAS SEITAS

Enquanto viveram os apóstolos escolhidos por Cristo, a reverência era geral para com eles, como fundadores da Igreja bem como homens dotados de inspiração divina. Segundo os Atos dos Apóstolos, os primeiros cristãos viviam em comunhão de bens, celebravam o partir do pão em suas casas e oravam diariamente no templo (Atos 2.42).

O fervor dos primeiros tempos gerou nos cristãos um elevado nível de vida moral. Notória nos primeiros tempos da Igreja foi a prática da caridade como se pode observar: “E repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha” (Atos 4.35). Os diáconos e diaconisas encarregavam-se dos enfermos, órfãos, viúvas, escravos, prisioneiros, peregrinos, de modo que todos recebiam cuidados especiais.

No final do primeiro século, o cristianismo espalhou-se por todas as partes do Império. Juntamente com o desenvolvimento da doutrina teológica, desenvolveram-se também as seitas. Além das perseguições do mundo pagão, os cristãos também tiveram que enfrentar as heresias e doutrinas corrompidas, dentro do próprio rebanho.

Vários foram os grupos que se levantaram contra a Igreja de Deus, dentre eles podemos destacar:

6.1 JUDAIZANTES

O rompimento doutrinário com o judaísmo não se deu sem muita luta. O cristianismo poderia ter permanecido uma mera seita judaica, não fosse a visão e a persistência de Paulo, frente às tentativas de alguns grupos de transformar a mensa-

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gem do Evangelho em um apêndice da lei mosaica. Paulo foi o homem usado por Deus para fazer a conexão entre o mundo judaico e gentio. Seu conhecimento de ambos os lados, foi um importante fator de ligação.

Ao ler os escritos paulinos, é fácil perceber que este foi um dos piores problemas enfrentados pelo apóstolo. Sua insistência na salvação pela graça, à parte da lei mosaica, valeu-lhe a inimizade de pregadores com fortes raízes judaicas. Para atacar Paulo, estes opositores buscavam invalidar sua autoridade apostólica, uma vez que ele não fazia parte dos doze. Por conseqüência, ele se via obrigado a defender não apenas o Evangelho, como pregava, mas também sua própria autoridade.

Dos escritos mais significativos sobre este debate, temos a epístola aos Gálatas. Nesta carta ele defende tanto sua autoridade apostólica, quanto combate elementos judaizantes que estavam se introduzindo nas Igrejas daquela região. Definitivamente ele exorta aos seus destinatários cristãos, a não aceitar “outro evangelho” sob pena de maldição (Gálatas 1.8-9). O tom da carta é severo, pois caso estas heresias não fossem rejeitadas, o cristianismo não seria mais do que um judaísmo com um Messias. Paulo sabia muito bem que não se tratava disto. Entre os elementos judaicos existentes entre eles, podemos identificar:

a)A prática da circuncisão – A circuncisão era um sinal do pacto de Deus com o povo de Israel, a descendência física de Abraão (Gênesis 17.10). Mas os judaizantes exigiam dos convertidos a Cristo que se circuncidassem. Paulo protesta veementemente contra aqueles que se deixaram circuncidar (Gálatas 5.3-4). Mostrou que os que assim procederam, o fizeram por motivos falsos. Mostrou que estas coisas não tinham valor em si mesmo, mas que o valor era se tornar nova criatura em Cristo e viver uma vida de fé e amor (Gálatas 6.15). Para o apóstolo a verdadeira circuncisão era do coração e isto estava de acordo com a lei e os profetas (Romanos 2.28-29; Deuteronômio 30.6).

b)A guarda de dias especiais e das festas judaicas – Quando os gálatas começaram a guardar festas judaicas, tanto o sábado quanto as luas novas e demais festividades, Paulo viu isto como um retrocesso chegando a duvidar da

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eficácia da mensagem do Evangelho entre eles (Gálatas 3.3). Na epístola aos Colossenses, entre os quais parece ter havido uma heresia semelhante, ele mostra que as festas eram apenas “sombras”, em contraste com a realidade revelada em Cristo (Colossenses 2.16-17).

c)A lei como padrão de comportamento para o crente – O terceiro elemento da judaização do evangelho envolvia a questão da santificação. A lei não era mais o padrão para o viver diário e Paulo vai colocar a lei como provisória (2 Coríntios 3.11), como aio (Gálatas 3.24-25), como impossível de herdar as promessas (Gálatas 4.30). Ele classifica a tentativa de aperfeiçoar-se pela lei, como uma tentativa carnal, dizendo que: “Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?” (Gálatas 3.3). Condena o pecado tal qual a lei fazia, entretanto demonstra que a cruz e o Espírito Santo são os meios existentes para levar o crente à santificação (Gálatas 5.24-25). Quando foi escrita a primeira epístola a Timóteo, este problema subsistia ainda, pelo que ele teve que mostrar o verdadeiro caráter da lei (1 Timóteo 1.8-10).

Esta foi sua postura frente às heresias judaizantes. Suas colocações inspiradas foram causas da ruptura definitiva entre cristianismo e judaísmo. Seria só questão de tempo e estes elementos desapareceriam do seio da Igreja, pelo menos nestes moldes.

6.2 GNOSTICISMO

Foi uma das piores doutrinas inimigas do Cristianismo. Embora existissem várias correntes diferentes de gnosticismo, todas elas foram influenciadas pelo neoplatonismo e pelo pensamento grego em geral. Segundo o historiador Edward Gibbon, havia mais de 50 seitas gnósticas diferentes. Não podemos chamar o gnosticismo de seita ou religião. O mais correto seria classificá-lo como uma corrente de pensamento, dividida em vários sistemas e escolas. Ao que parece foi uma das primeiras heresias cristãs visto que, conforme a opinião de alguns, os escritos do apóstolo João foram escritos visando combater essas idéias errôneas a respeito de Cristo.

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Podemos classificar o gnosticismo, como a tentativa racionalista grega, de incluir o cristianismo em um sistema filosófico-religioso, com forte predominância do elemento cognitivo. Em outras palavras, embora a fé fosse o elemento primordial no cristianismo apostólico, este movimento tratou de transformar o conhecimento e a sabedoria em elemento chave, bem ao sabor da cultura grega.

Embora variassem os costumes litúrgicos e os elementos mitológicos, é possível descobrir principais conceitos básicos.

a)Dualismo da natureza – O gnosticismo enfatizava a dualidade da natureza. Havia o mundo físico e o mundo espiritual. Até este ponto, nenhum problema. Mas o mundo físico era identificado com o mal, como algo inferior, enquanto o mundo espiritual era identificado com o bem, sendo superior àquele. A partir deste princípio, originado do platonismo e do neo-platonismo, o cristianismo foi desfigurado. Este conceito atingiria toda a doutrina cristã.

b)O Deus criador – Pelo fato do mundo físico ser mal, ele não poderia ter sido criado por um Deus bom. Logo, a criação não foi obra do Pai de Jesus Cristo, o Deus do Novo Testamento, mas foi obra do Deus judaico, que se revela no Antigo Testamento. Esse “deus” criador foi chamado de demiurgo. Ele só podia ser um Deus inferior uma vez que era o criador da matéria. Também por causa disto, o gnosticismo era antagônico a tudo que dizia respeito ao Antigo Testamento, rejeitando a lei e ensinando que o homem se libertava dela adquirindo “percepções superiores”. Os pais eclesiásticos, principalmente Irineu, combateram este ensino, mostrando que só havia um Deus único que foi o criador de todas as coisas e que se revelou aos profetas e por fim revelou-se a si mesmo em seu Filho.

c)Doutrina dos éons – Para explicar essa distinção entre o Deus verdadeiro e o demiurgo, entre o mundo espiritual e o mundo material, os gnósticos criaram a doutrina dos éons. Um dos principais gnósticos, Valentino, ensinava que existia uma corrente de 30 éons que emanavam da divindade, sendo que o mundo material fora originado pelo mais baixo éon da cadeia, não como resultado de um

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desejo criativo, mas como resultado de uma queda. O Deus supremo ou progenitor formava o primeiro éon, também conhecido como buthos (abismo). Depois vinham, em ordem, o silêncio ou idéia, e depois, o espírito e a verdade. Depois por sua vez vieram razão e vida e deste veio o homem e a Igreja. Então os outros 10 éons apareceram. O último éon teria caído como resultado de um ataque de paixão e ansiedade e foi por causa desta queda que o mundo material chegou a existir. O demiurgo que criou o mundo procedeu deste éon caído.

d)Salvação – Os éons mais elevados teriam dado origem a Cristo e ao Espírito Santo. A tarefa de Cristo seria livrar as almas dos homens de seu cativeiro ao mundo material e trazê-las de volta ao mundo dos espíritos. Este era o conceito gnóstico de salvação – um retorno das almas do mundo material, onde tinham caído e sido aprisionadas, para o mundo espiritual. Mas esta salvação só era possível através da percepção superior (gnosis). Era um tipo de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo ao “Pleroma” ou mundo superior espiritual e ao caminho que conduzia para lá. Nem todos podiam alcançar esta salvação, apenas os chamados pneumáticos, que possuíam o poder necessário para receber este conhecimento. Os que não eram capazes disso eram classificados como materialistas. Alguns gnósticos criaram uma classificação intermediária chamada de “psíquicos”, na qual os cristãos eram geralmente inclusos. A grande refutação dos polemistas (pais da igreja que se combateram este e outros tipos de heresias) era que os gnósticos excluíram a fé do seu sistema, substituindo-a por um conhecimento pertencente a um pequeno grupo seleto.

e)Cristologia – A posição gnóstica a respeito de Cristo recebeu o nome de “docetismo”, palavra originária do grego “dokeo”, que significa parecer. Como a matéria era má, Cristo não podia ter um corpo humano apesar de a Bíblia dizer o contrário. Como bem espiritual absoluto, Cristo não se misturava com a matéria. O homem Jesus era ou um fantasma com aparência de corpo material ou o Cristo tomou seu corpo por ocasião do batismo e o deixou no começo de seu sofrimento na cruz.

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6.3 NICOLAÍTAS

Este é um termo que aparece nas cartas do Apocalipse por duas vezes e por isso ganhou a atenção de estudiosos das heresias primitivas. Se considerarmos o ano 90 como data provável para o Livro do Apocalipse, então já temos aqui uma seita bastante desenvolvida, mas de difícil identificação. O Novo Testamento fala em “obras dos nicolaítas” (Apocalipse 2.6) e em “doutrina dos nicolaítas” (Apocalipse 2.15) o que dá a entender um grupo organizado com práticas e doutrinas.

Temos uma referência de Irineu sobre o assunto que diz: “Os nicolaítas têm por mestre Nicolau, um dos sete primeiros diáconos que foram constituídos pelos apóstolos. Vivem sem moderação. O Apocalipse de João manifesta plenamente quem são: ensinam que a fornicação e o comer das carnes oferecidas aos ídolos seja coisa indiferente”. Também Tertuliano de Cartago atribui ao diácono helenista a paternidade da seita ao dizer: “Nicolau de Antioquia, um gentio que seguia a religião judaica, mencionado em Atos 6.5, teria, para se justificar, apresentado sua esposa à assembléia dos crentes dizendo: Quem a quiser pode desposá-la, pois é necessário ter em pouca estima a carne”.

Embora combatido, este movimento herético conseguiu sobreviver até por volta do ano 200, quando então se dissolveu em um tipo de gnosticismo denominado ofita, ligado ao culto às serpentes.

Como podemos ver, o desenvolvimento de certas heresias a partir da doutrina cristã foi bastante amplo. O risco de perder a identidade em meio a tantos desvios diferente era grande. Mas a Igreja reagiu nos momentos certos e se não conseguiu refrear completamente certos elementos, conseguiu firmar sua doutrina de modo coerente, deixando fundamentos que mais tarde possibilitariam o renascimento do Cristianismo bíblico no século XVI.

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6.4 EBIONISMO

Os ebionitas tiveram sua origem no cristianismo judaico de Jerusalém. Embora alguns tenham tentado conceber certo “Ebion” como sendo o fundador desta seita, o certo é que o nome deriva de uma palavra hebraica que significa “os pobres”. A princípio este era um nome honroso para os cristãos em Jerusalém. Este grupo religioso migrou para leste do Jordão e misturou de forma inadequada elementos judaicos e cristãos.

A diferença substancial que separava os ebionitas dos demais judeu-cristãos e dos helenistas consistia na maneira de conceberem a pessoa e a obra de Jesus. Por seu monoteísmo restrito, não admitiam qualquer insinuação sobre a divindade de Jesus.

Alguns supõem que os ebionitas se misturaram e conseqüentemente receberam forte influência dos essênios, povo que praticava um judaísmo ascético e vivia na região do Mar Morto. Com o pouquíssimo material existente sobre eles, é impossível fazer uma descrição minuciosa. Mas podemos ter um pequeno vislumbre do pensamento desta seita.

6.5 MANIQUEÍSMO

Antiga religião que recebeu o nome de seu fundador, o sábio persa Mani, ou Manes ou ainda Maniqueu (216-276 d.C.). Ele afirmava que um anjo lhe havia aparecido e o nomeara como profeta de uma nova e última revelação. Pregou por todo Império persa, inclusive enviou missionários ao Império Romano. Foi preso acusado de heresia e morreu pouco tempo depois. O maniqueísmo reflete uma forte influência do agnosticismo. Sua doutrina baseia-se em uma divisão dualista do Universo, na luta entre o bem (Deus) e o mal (Satã). Esses dois âmbitos estavam separados, porém a escuridão invadiu a luz e se mesclaram. A espécie humana é o produto desta luta. Com o tempo, poder-se-ia resgatar todos os fragmentos da luz divina e o mundo se destruiria; depois disso, a luz e a escuridão estariam novamente separadas para sempre. É difícil não notar a

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forte influência do zoroastrismo nos conceitos estabelecidos por Mani.

Podemos dizer que era uma combinação do pensamento cristão, do zoroastrismo e de idéias religiosas orientais. Em muitos pontos se assemelhava a outros ramos do gnosticismo. Seu ascetismo, por exemplo, era extremo, exaltando o celibato como a maior das virtudes. Os maniqueístas dividiam-se em duas classes: os eleitos, celibatários rigorosos, eram vegetarianos e se dedicavam somente à oração; e os ouvintes, cuja esperança era voltar a nascer convertidos em eleitos. O maniqueísmo exerceu influência durante um bom tempo após a morte de Mani. Agostinho de Hipona, por exemplo, no século IV, foi discípulo deles por 12 anos. Ele se viu atraído por este grupo, devido à sua explicação racional do mundo, bem como pelo seu código moral ascético, que temporariamente lhe ofereceu uma solução para os seus problemas espirituais. Com o tempo, o caráter fraudulento da doutrina maniqueísta foi se tornando evidente para Agostinho, até que decidiu deixá-la. Depois de sua conversão, porém, trabalhou arduamente para refutá-los.

6.6 MONTANISMO

Foi um movimento bastante forte, principalmente na região da Frígia. Seu fundador foi Montano. Ele intitulava seu movimento de Nova Revelação ou Nova Profecia. Montano rejeitava a crescente autoridade dos bispos (como sendo sucessores herdeiros dos apóstolos) e a autoridade dos escritos apostólicos. Considerava as igrejas e seus líderes espiritualmente mortos e reivindicava uma “nova profecia” com todos os sinais e milagres dos dias da igreja primitiva no pentecostes.

Ele alegava ter recebido uma revelação direta do Espírito Santo de que ele, como representante do Espírito, lideraria a Igreja durante o último período dela aqui na Terra. Por isso se intitulava porta-voz do Espírito Santo e acusava os líderes da Igreja de prender o Espírito Santo dentro de um Livro, pois limitavam a inspiração divina apenas aos Livros apostólicos. Montano cria na inspiração contínua e colocou-se como alguém por meio do qual o Espírito Santo falava, no mesmo nível que falara através de Paulo e dos outros apóstolos. Na sua visão, o “mais elevado

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estágio da revelação” havia sido atingido nele. O fim do mundo estava próximo e o Espírito o havia escolhido, juntamente com duas profetisas, Maximila e Priscila, para falar à humanidade sobre os últimos julgamentos de Deus sobre o mundo. Montano cria piamente que ele era o último profeta escolhido por Deus para revelar seus eternos planos

Tertuliano, o mais famoso adepto do Montanismo, em sua obra De Anima (Sobre a Alma), deu o seu relato sobre o movimento. Falando sobre uma das profetisas, ele disse o que segue:

Nós temos entre nós uma irmã que tem sido agraciada com muitos dons de revelação, os quais ela vivencia no Espírito, por meio de visões extáticas, na Igreja, no meio dos ritos sagrados do Dia do Senhor. Ela conversa com anjos e, às vezes, até com o Senhor. Ela vê e ouve comunicações misteriosas. Ela consegue discernir o coração de alguns homens e recebe instruções para a cura sempre que precisa. Seja lendo as Escrituras, cantando salmos, pregando ou oferecendo orações - em todos estes serviços religiosos, oportunidades são oferecidas a ela para que tenha visões.

Além das visões e conversas com anjos, uma das profecias do movimento era a de que, após à morte de uma de suas profetisas, Maximila, viria o fim, com tumultos e guerras por toda a parte. A história provou a falsidade desta profecia. O movimento também se caracterizou por uma moral ascética onde o casamento era proibido e algumas vezes, até mesmo as relações sexuais dentro do casamento. Os jejuns eram extremamente severos.

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