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Para alegrar a boca e a alma
Nos primeiros anos de ocupação da colônia, os desbravadores que se aventuravam pelas regiões desconhecidas do interior eram obrigados, por decreto da Coroa portuguesa, a semear culturas nos sítios onde acampavam, principalmente milho, feijão, abóbora e mandioca. O propósito da determinação ofi cial era garantir a alimentação dos futuros viajantes que se aventurassem por aquelas trilhas. Um bom reforço no farnel dos bandeirantes, que comiam o que eram capazes de caçar ou pescar ou retirar da mata, principalmente frutas, palmitos e mel.
A alimentação e o preparo dos alimentos se aprimoraram com o passar dos tempos e o Brasil experimentou uma saborosa associação entre as culturas portuguesa, índia e africana. Com os índios, o colonizador aprendeu a dar tratos à mandioca e produzir beijus, biscoitos, bolos diversos, mingaus e pirões. Dos africanos escravos, a principal contribuição foi o azeite-de-dendê e a posterior adaptação dos pratos servidos na senzala, entre os quais pontifi ca a feijoada. Outro ingrediente dessa culinária multiétnica é a farinha de mandioca, à época em geral consumida com a carne-seca na forma de uma paçoca socada com pilão, ou misturada com feijão.
As escravas que trabalhavam nas cozinhas das sinhás foram personagens importantes nesse processo de interpenetração cultural sob o signo do preparo de alimentos. E as escravas libertas, que inventavam doces e compotas para vender e garantir seu sustento, deixaram receitas que atravessaram os anos.
No auge da prosperidade derivada dos lucros crescentes da cultura cafeeira, os hábitos se modifi caram e os grandes fazendeiros puderam se dar ao luxo de adotar hábitos sofi sticados então correntes na Europa. Esse movimento em direção ao refi namento refl etiu-se nas cozinhas comandadas pelas escravas, sob a supervisão das sinhás, principalmente no preparo dos doces.
Em dezembro de 2007, os pesquisadores do Centro de Memória da Unicamp (CMU) Héctor Hernán Bruit, Eliane Morelli Abrahão, Deborah D’Almeida Leanza e Fernando Antonio Abrahão lançaram uma preciosidade de dar água na boca. O livro Delícias das sinhás – História e receitas culinárias da segunda metade do século XIX e início do século XX (Arte Escrita Editora, Campinas, 2007) é resultado de uma minuciosa pesquisa em cadernos de receitas que pertenceram a Custódia Leopoldina de Oliveira – irmã de Bento Quirino dos Santos, de tradicional família campineira do ciclo do café. Os documentos estão sob a guarda da área de arquivos históricos do CMU. Deles, os autores selecionaram 82 quitutes para testes, que depois de provados e aprovados foram registrados no livro.
A denominação dos doces, por si só, já denota uma aura de delicadeza, requinte e bom gosto, no sentido pleno e no figurado. O livro ensina como fazer meiguice da sinhá, beijinho de moça corriqueira e brasileirinhas; e também cocada gostosa, bolo da imperatriz, bolo da rainha, passando por biscoito da casa, biscoito inglês, bolo da mãe benta, pudim de pinhão, pudim de banana da terra e fatias douradas (as conhecidas rabanadas). Em entrevista à Agência Fapesp (19/1/2008), Eliane Morelli Abrahão, uma das autoras, ressaltou que os doces tinham grande importância social para as senhoras de elite, que faziam questão de criar, supervisionar o preparo e dar o toque final ao trabalho das escravas. “A tradição de doçaria vem desde a época colonial. Servir os doces nos banquetes e festas era o momento em que a sinhá mostrava o diferencial de sua casa”, explicou. “As escravas eram escolhidas a dedo para fazer os doces, porque o requinte era fundamental. Para aquelas mulheres, receber bem um convidado do marido era um ingrediente fundamental na manutenção de alianças políticas e econômicas.”
Bonde trafegando pela Rua Barão de Jaguara, no fim dos anos 1920. Campinas (SP), 1929