3 a 30 de março de 2022
A sobreposição de acontecimentos nos últimos anos e a necessidade de adaptação a mudanças imposta à humanidade parece acelerar a todo instante aquilo que se entende por contemporaneidade. O Sesc, como instituição sociocultural que tem por missão contribuir para a melhoria da qualidade de vida de seus frequentadores, soma-se a organizações nacionais e internacionais em busca da construção de novos caminhos para um futuro mais esperançoso. A segunda edição da mostra Futuros Presentes, em parceria com Eunic (European Union National Institutes for Culture/ União Europeia de Institutos Nacionais para a Cultura), apresenta ao público sete longas-metragens e uma sessão de curtas que, de maneiras diversas, perpassam temáticas que têm impactado a sociedade contemporânea e que influenciam nos modos de vida, nos permitindo refletir sobre o porvir. Além de filmes da Alemanha, França, Dinamarca, Itália, Bélgica, Suíça e Reino Unido, soma-se à mostra um título brasileiro. O conhecimento das realidades locais e o contato com as poéticas mais diversas estruturam diálogos e cooperações que se mostram cada vez mais fundamentais no mundo contemporâneo. Sesc São Paulo
FUTUROS PRESENTES – CINEMAS EUROPEUS, 2ª EDIÇÃO Chegamos em 2022 com uma pandemia que já dura dois anos. Sociedades e economias em colapso, ecologia e coexistência estão sob fogo. Crise climática que demanda urgência nas ações dos países, das organizações - e das pessoas no mundo. A mostra Futuros Presentes – Cinemas Europeus, uma iniciativa da Eunic SP – European Union National Institutes for Culture presente em São Paulo, em parceria com o Sesc São Paulo, apresenta de 3 a 30 de março de 2022 um total de oito filmes na plataforma Sesc Digital. São sete filmes europeus e um brasileiro que dialogam entre si, com prismas diversos e não hegemônicos do mundo contemporâneo. Os filmes retratados na mostra assumem olhares plurais para bastidores de realidades presentes, e apontam, entre outros desafios atuais, as consequências dos colonialismos e sistemas sociais econômicos. É o que se vê, por exemplo, nos sete curtas-metragens britânicos, “Verisimilitude”, de David Proud; “What’s in a Name?”, de Runyararo Mapfumo, “Left Coast”, de Carol Salter, “Motherland”, de Ellen Evans, “The Forgotten C”, de Molly Manning Walker, “Sucha Punch”, de Iggy LDN; e “Pavement”, de Jason Wingard, em “The Uncertain Kingdom”, um conjunto que aponta as incertezas de futuros. Nesse mesmo sentido, o filme francês “Terra Vermelha” de Farid Bentoumi e o filme alemão “Wood: Viagem ao Mundo da Máfia da Madeira” das diretoras Monica Lăzurean-Gorgan, Michaela Kirst, Ebba Sinzinger, nos trazem ângulos ampliados da devastação dos recursos naturais, captados a partir de diferentes territórios. Dirigido por Pauline Beugnies, o documentário belga “Turno” retrata a vivência de um entregador de aplicativo por bicicleta e o sistema abusivo que o oprime. Em tempos de opressões e guerras, esta mostra de filmes é uma oportunidade para conhecer histórias e lutas de diferentes perspectivas que nos ajudam a refletir sobre o hoje sob o prisma social, econômico e histórico. É o caso de “Guerra e Paz”, dos italianos Massimo D’Anolfi e Martina Pare, mergulho sob o prisma de um filme de arquivo.
Uma das principais propostas da mostra é provocar reflexões e empatia a partir do microcosmo e de diálogos reais na sociedade através das lentes do cinema. Como no caso do filme “Sob a Pele”, dirigido pelo suíço Robin Harsch, que trata transições de gênero a partir do acolhimento familiar e da sociedade. Conhecemos bem as realidades que os filmes desta edição da mostra Futuros Presentes – Cinemas Europeus trazem: valores baseados em acumulações e dominações. A valorização do cuidado, em especial o coletivo, se faz urgente, assim como renovações sociais e novos paradigmas de sociedade. A questão da inteligência artificial, “fake news” e da indústria do algoritmo é retratada no único filme brasileiro da programação, “Carro Rei”, dirigido por Renata Pinheiro e que vem como um contraponto provocador em diálogo com os outros filmes da mostra. A curadoria buscou escolher histórias potentes e transformadoras para as pessoas se inspirarem a partir de diferentes existências e narrativas, além de provocar reflexões profundas tanto existenciais como comportamentais. E que essas narrativas possam ajudar a inspirar coragem em desenvolver novos hábitos e éticas que renovem cuidados com o planeta, as pessoas e os seres viventes. Mesmo por vezes através de filmes um tanto difíceis, como é o caso do filme dinamarquês “Do Mar Selvagem”, dirigido por Robin Petré. Que coragens coletivas possam auxiliar na promoção e cuidado da vida, do bem-estar e da paz. E que estes futuros tão presentes apontem a mudanças de paradigmas sociais vigentes para que tenhamos futuros possíveis. A programação “Futuros Presentes – Cinemas Europeus” em 2022 apresenta uma cinematografia crítica, profunda e inteligente que busca chamar o espectador a adentrar em uma urgência coletiva planetária por compaixão e coexistência pacífica. Eunic São Paulo
ÍNDICE Carro Rei ...................................................................................................................................................... 8 “Carro Rei”, por Neusa Barbosa .................................................................................................................................... 10 Do Mar Selvagem ................................................................................................................................ 12 “Dor Mar Selvagem”, por Filippo Pitanga ............................................................................................................. 14 Guerra e Paz ............................................................................................................................................ 16 “Guerra e Paz”, por Hernani Hefner ........................................................................................................................... 18 Sob a Pele ................................................................................................................................................ 20 “Sob a Pele”, por Marina Costin Fuser ................................................................................................................... 22 Terra Vermelha ...................................................................................................................................... 24 “Terra Vermelha”, por Lorenna Montenegro ...................................................................................................... 26 Turno ............................................................................................................................................................ 28 “Turno”, por Carlos D’Andréa .......................................................................................................................................... 30 6
Wood: Viagem ao Mundo da Máfia da Madeira ............................................................ 32 “Wood: Viagem ao Mundo da Máfia da Madeira”, por Andrea Santos Baca ....................... 34 The Uncertain Kingdom ................................................................................................................. 36 Left Coast................................................................................................................................................... 38 Motherland............................................................................................................................................... 40 Pavement................................................................................................................................................... 42 Sucka............................................................................................................................................................ 44 The Forgotten C..................................................................................................................................... 46 Verisimilitude.......................................................................................................................................... 48 What’s In a Name?.............................................................................................................................. 50 ”The Uncertain Kingdom”, por Flavia Guerra .................................................................................................. 52
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CARRO REI Dir. Renata Pinheiro. Brasil. 2021. 99 minutos. Ficção. 14 anos. Nascido em um carro, desde muito cedo Uno mantém uma relação bastante especial com eles. A partir da reforma de um velho automóvel da família, ele e seu tio, o mecânico Zé Macaco, darão início a um movimento que ninguém pode prever como e onde vai terminar. Ao misturar elementos de vários gêneros cinematográficos, passeando entre a fantasia desbragada e o ancoramento numa realidade bastante específica, Renata Pinheiro constrói um filme único no panorama do cinema brasileiro atual, ao mesmo tempo urgente e atemporal.
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“CARRO REI”, POR NEUSA BARBOSA UMA DISTOPIA ESPERTA DO PATRIARCALISMO MECÂNICO Explorando de maneira imaginativa, na fronteira do delírio visionário, a relação visceral entre automóveis e seres humanos, Renata Pinheiro – uma cineasta e diretora de arte versada em criar mundos fantásticos com muita propriedade –, injeta em Carro Rei o tom da distopia, numa narrativa sintonizada nas duas vertentes que impulsionam a própria vida: a tecnologia e a natureza, cuja inerente tensão aqui é levada às consequências mais radicais. Apelidado de Uno – marca automotiva –, o menino Ninho, que desde a infância é capaz de comunicar-se com os carros, é o paradigma perfeito para a iminente ameaça de hibridização entre máquinas e humanos, no cenário de uma Caruaru em cujas ruas os carros e as motos superam o número de pessoas. A simbologia do poder e da ascensão social ligada à posse dos carros, traço nacional dos mais expressivos, não escapa ao crivo do filme, que a coloca em perspectiva nos protagonistas ligados a uma frota de táxis. Se o carro é ganha-pão, fonte de vida – também ao ser local de um nascimento –, é igualmente espaço da tragédia que priva da mãe (Ane Oliveira) a família, acentuando seu caráter patriarcal e ensejando a exclusão do negócio de Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), o frágil mecânico, irmão da morta. Desterrado para um ferro-velho no limite da cidade, o marginalizado Zé Macaco terá sua habilidade valorizada quando carros considerados antigos são proibidos de circular por decreto governamental – uma metáfora tanto das arbitrariedades do autoritarismo estatal quanto da obsolescência forçada da sociedade de consumo. Retomando contato com o sobrinho, agora adulto (Luciano Pedro Jr.), conhecedor da linguagem até aí secreta dos carros, Zé aprofunda a conexão homem-máquina que o aproxima de um hibridismo que o priva da razão.
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Focada em desmascarar o patriarcalismo predador que nutre o ambiente desta distopia automotiva, valendo-se das máquinas como instrumento de dominação, Renata Pinheiro insere duas personagens femininas, Amora (Clara Oliveira) e Mercedes (Jules Elting), como portadoras não só do desafio aos estereótipos de gênero como da força de transgressão da natureza ancestral – e esta é talvez a maior contribuição de um filme que satiriza acidamente a contemporaneidade brasileira ao oferecer dela um espelho expressionista, mas inquieta na mesma medida em que nos reconhecemos em sua forma extremada do real. Neusa Barbosa Jornalista, crítica e pesquisadora de cinema
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DO MAR SELVAGEM Dir. Robin Petré. Dinamarca. 2021. 78 minutos. Documentário. Livre. Um olhar sobre a relação entre seres humanos e animais selvagens do oceano e a consequência para esses seres, a partir da poluição, dos vazamentos de óleo e de outras interferências. Exibido no Festival de Berlim.
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“DOR MAR SELVAGEM”, POR FILIPPO PITANGA “Do Mar Selvagem” pode ser considerado o mais recente representante da estética de documentários ambientais a transformar em linguagem dramatúrgica os perigos que a natureza enfrenta sob as ameaças do desenvolvimentismo desenfreado do ser humano. Dirigido por Robin Petré, este filme dinamarquês é apenas a ponta do iceberg de urgências temáticas e mise-en-scène desafiadoras proporcionadas pela segunda edição da mostra Futuros Presentes – Cinemas Europeus. Seguindo uma escola estética do naipe do sucesso de “Uma Verdade Inconveniente” de Davis Guggenheim (2006), onde Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA e ativista ambiental, apresentava a repercussão de inúmeros desastres recentes, o tom de denúncia permanece, mesmo que às vezes reforçando o melodrama como chave narrativa necessária para sensibilizar espectadores. É inevitável que tragédias aconteçam, até porque nos apegamos aos encantadores personagens selvagens, como focas, golfinhos e aves afetadas desde por óleo no mar, a detritos de plástico e outros materiais ainda menos biodegradáveis ou tóxicos. Quem não se lembra da marcante cena do filme de Al Gore com o urso polar lutando para sobreviver numa calota de gelo derretendo, sem lugar nenhum para se agarrar à vida e ao ar para respirar? Pois aqui também haverá cenas de partir o coração, não como maniqueísmo, porém como única alternativa em retratar o realismo da gravidade atual com um cinema verité que estabeleça um vínculo de confiança com a plateia. Grande parte do naturalismo com que acompanhamos os profissionais a tentar intervir em nome da vida marinha se dá graças ao desenho de som primoroso do longa-metragem. Mesmo em cenas externas e no meio de condições climáticas imprevisíveis, o som do mar, do vento e dos lamentos dos animais são cruciais para que se possa sentir dentro da narrativa. Da mesma forma, o som das intervenções humanas é reduzido, para mostrar a quem pertence a potência em cena. Tanto que é apenas quando podemos, enfim, ouvir a respiração normal das personagens selvagens no primeiríssimo plano sonoro, que sentimos a real catarse da missão em foco. Vide o fato de que as primeiras cenas pertencem todas aos animais, e os seres humanos participam unicamente de soslaio, com parte de seus
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corpos cortado pelo enquadramento. A terceira sequência do filme se concentra em quase 10 poderosos minutos de atendimento de uma foca, para tentar salvá-la dos males acometidos por nós mesmos. Da mesma forma, na terça parte final da projeção, acompanhamos num ângulo de câmera aproximado sem intervenção nenhuma, as aves transportadas dentro de um carro para serem soltas após o resgate e cuidados médicos. O fato de os enquadramentos conseguirem captar de perto estes retratos naturalistas, como se fôssemos um dos seres em questão, é grande crédito da direção de fotografia representativa, não só por quem entende do assunto, como com olhares plurais – vide a forte presença de mulheres na equipe, como a diretora de fotografia Maria Grazia Goya ao lado da própria cineasta Robin Petré, além da montadora Charlotte Munch Bengtsen. Filippo Pitanga Advogado, Jornalista, Crítico e Curador de Cinema
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GUERRA E PAZ Dir. Massimo D’Anolfi e Martina Parenti. Itália. 2020. 129 minutos. Documentáio. Livre. A história da relação entre cinema e guerra, que dura mais de um século, desde seu primeiro encontro, em 1911, na ocasião da invasão da Líbia pela Itália, até os dias de hoje.
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“GUERRA E PAZ”, POR HERNANI HEFNER Qual é a memória da Guerra? Quem produz a memória da guerra? Onde se arquiva a memória da guerra? O que representa a memória da guerra? Muitas vezes tratada como fenômeno de exceção, a guerra acompanha a história da humanidade desde a aurora dos tempos, sem deixar de fora nenhum continente, época ou cultura. Um dos méritos de “Guerra e Paz”, ensaio cinematográfico de Massimo D’Anolfi e Martina Parent, e é aproximar-se da guerra moderna e contemporânea sem julgá-la a priori, mas também sem esconder suas muitas e muitas contradições, pois como ensina um professor a certa altura, é um evento limite ao lidar com a perspectiva imediata da morte. A estratégia do filme é explorar a composição da guerra em seus mapas, gráficos, sons, fotos, vídeos, filmes, simulações de computador, e gravações de celular. As imagens visuais e sonoras que os conflitos engendram, seus produtores e seus guardiões. Mas ao contrário do uso tradicional e ilustrativo, como suporte de uma narrativa desenvolvida no campo da historiografia, Guerra e Paz se interroga sobre a origem e composição desses registros. Por ocasião do centenário do Armistício de Compienha, que encerrou simbolicamente a Primeira Guerra Mundial, houve um despertar para o fato de que foi o primeiro conflito amplamente documentado pelo cinema. O ponto alto e ao mesmo tempo controverso das iniciativas de celebração foi o documentário Eles Não Envelhecerão (2018), de Peter Jackson. O filme se baseou extensivamente nas coleções fílmicas do Imperial War Museum e as colorizou por computador, alterando as fontes e ao mesmo tempo inventando uma paleta histórica que nunca existiu de fato. Guerra e Paz se propõe a percorrer um espectro mais amplo, estando dividido em sua estrutura em quatro seções temporais. De forma muito discreta, vale dizer mesmo cirúrgica, pelo detalhismo e minúcia de cobertura, e ao mesmo tempo de finíssima ironia para com os processos e sujeitos envolvidos nos atos de preservar, produzir e ver/ouvir os documentos de conflitos bélicos, o documentário de Anolfi e Parente introduz uma outra perspectiva de análise. Ao mesmo tempo em que preserva a percepção imediata de que os registros das guerras dos séculos XX e XXI são essencialmente visuais, indica sutilmente a prevalência do som em anos mais recentes como a camada efetivamente dramática das filmagens, agora principalmente civis. O dinamismo de interação entre imagem e som é um dos grandes trunfos de Guerra e Paz, pois é no comentário de personagens quase sempre ausentes da imagem que se revelam questionamentos fundamentais como o ponto de vista europeu e imperialista da documentação e das ações constituídas, incluindo a do arquivamento. 18
A pesquisa para o filme também se revela um de seus pontos altos, pois traz à tona a efetiva primeira guerra documentada pelo cinema, que foi a Guerra da Líbia em 1911, e várias outras instâncias de mediação quanto aos relatos produzidos. Desde as dificuldades de qualificação de uma imagem audiovisual (encenada/não encenada, propagandística/técnica, genérica/fonte direta, etc.) até a intencionalidade de produção como uma informação dramática, simbólica e artística, algo que se ensina dentro do próprio universo militar documentado pelo ousado ensaio. Como nota particular e distinta, chamo a atenção para as diferentes realidades de preservação e documentos audiovisuais que Guerra e Paz explora e documenta. Uma oportunidade rara de adentrar um universo até bem pouco tempo fechado em si mesmo, como o são os bunkers, quartéis e centrais de comando militares. Descobrir os espaços, técnicos e procedimentos de preservação que salvaguardam coleção fílmicas, como a da Cruz Vermelha Internacional na última seção, é tão importante como perceber que memória é construção, apagamento, poder e uniteralidade. Hernani Heffner Gerente e Conservador-Chefe Cinemateca do MAM
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SOB A PELE Dir. Robin Harsch. Suiça. 2019. 85 minutos. Documentário. Livre. Um filme sobre a transição de três jovens, como isso muda suas vidas e a de suas famílias, e suas buscas por uma identidade escondida dentro deles.
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“SOB A PELE”, POR MARINA COSTIN FUSER Paul Valéry escreve em um poema que a camada mais profunda é a pele. Sob a Pele de Robin Harsch (2019) procura fazer com que o espectador entre em contato com esta camada subcutânea de pessoas que atravessam a linha tênue, porém fina como uma lâmina, que separa o masculino do feminino na sociedade. Entrar na pele é algo físico, trazer para perto as imagens, com close ups próximos à nuca, e uma abordagem intimista, que aproxima e amplia a escala do quarto, do espelho, do mundo secreto, mas que ganha amplidão nas externas, com uma câmera que passeia pelas ruas de Genebra e acompanha as jornadas de Söan, Logan e Effie Alexandra, que vivem no refúgio LGBTQIA+ de Genebra. O documentário explora com sensibilidade o movimento libertador de dentro para fora, da superação de barreiras das personagens. O filme começa com um riso de criança e uma câmera invasiva que vai adentrando devagarinho o quarto de dois meninos. O pai pergunta: “Vocês se sentem mais menino ou menina?” O mais velho, que deve ter em torno de 7 anos, logo responde: “Menino”, e parece bastante satisfeito assim. Quando ele pergunta para Solan, que tem 5 anos, a resposta é “Mais como menina”. Tanto o pai quanto o irmão mais velho procuram entender. “Você tem certeza? Por que?” Ele responde que quer usar as mesmas roupas que elas. Depois ele aparece brincando com as botas e os brincos da mãe, e diz que gostaria de ser os dois: menino e menina. O interlocutor então reflete sobre o quão fácil é, aos 5 anos, atravessar a linha entre menino e menina. Mais tarde, esta linha pode ser instransponível. Mas a população trans tem que superá-la. Nas entrevistas são discutidas as histórias de vida dos três personagens e suas trajetórias até chegar na superação. O filme aponta estatísticas internacionais que mostram que 70% dos jovens trans tentam suicídio, mas há uma queda de 92% nessas tentativas quando há apoio dos amigos e do núcleo familiar. O trabalho do centro de refúgio LGBTQIA+ de Genebra consiste em reforçar esses vínculos face à vulnerabilidade e
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à transição. Falam como foi viver no corpo errado, sentir-se deslocados, tendo que encarar bullying, transfobia, e tendo que enfrentar questões identitárias, relacionadas às formas de tratamento, como nome e gênero social. Uma mãe declara que a superação de muitas barreiras e a aceitação se deram quando viu seu filho florescer e se realizar após a transição. Este é um filme necessário a quem ainda busca entender esse processo. Assim como Tomboy (2013), o filme aborda de forma delicada o universo infanto-juvenil, o crescer, o processo de transição, e como cada um vai criando para si um universo de afetos e de múltiplos devires. Marina Costin Fuser Doutora em Cinema e estudos de gênero pela Universidade de Sussex
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TERRA VERMELHA Dir. Farid Bentoumi. França. 2020. 86 minutos. Ficção. Livre. Recém-contratada como enfermeira do trabalho em uma fábrica de produtos químicos, Nour descobre que existem pequenos acordos entre a gerência e seu pai, Slimane, o representante da equipe. Mentir sobre descargas poluentes, doenças ocultas dos funcionários, acidentes. Nour, pouco a pouco, não aceita mais os compromissos do pai para preservar a imagem da empresa. Ela decide lançar o alerta.
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“TERRA VERMELHA”, POR LORENNA MONTENEGRO O barro, a terra batida e remexida por retroescavadeiras, maculada pela ganância desenfreada do capital também é onde habita os pecados soterrados. A mineração é fundamental para a civilização, mas também é letal para o planeta e aqueles que servem apenas como acessórios descartáveis para extrair as riquezas do solo. Numa localidade francesa, foi aberta há quase 30 anos uma planta de mineração pertencente à uma megacorporação multinacional da indústria pesada. Um acidente resultou na poluição de um lago onde eram descartados resíduos sólidos misturados a metais pesados e materiais tóxicos. Esse é o thriller ecológico Terra Vermelha (Rouge), de Farid Bentoumi, que tem no centro da trama um pai e uma filha que trabalham na planta da empresa química. A história da filha, que se chama Nour, é resgatada por meio de flashbacks que desencavam um momento na vida dela que traz muita culpa à tona - não se sabe se por uma negligência médica cometida ou por ter sido vencida pela exaustão de recursos no sistema de saúde. Terra Vermelha linearmente acompanha Nour chegando na cidade onde cresceu para ser empregada como enfermeira do trabalho na planta. Logo o orgulho do pai, Slimane, dá lugar a desconfiança quando ele percebe que a filha caçula incomoda seus chefes, pedindo exames médicos e fazendo perguntas que apontam para um grupo de operários adoentados que estiveram envolvidos num incidente no lago. A entrada da jornalista Emma só torna a narrativa mais dramática, ainda que façam falta momentos de suspense, a tensão familiar é crescente. Logo Nour e Slimane estão de lados opostos quando ela descobre que ele acoberta os crimes ambientais cometidos pela empresa que ainda trouxe consequências graves para os operários, envenenados pelos compostos químicos. Os atores Zita Hanrot e Sami Bouajila mantêm a tensão e a emoção do filme centrada nesse relacionamento, provocando a grande virada quando o operário, destroçado pela culpa, resolve que é hora de erguer a voz. LORENNA MONTENEGRO Crítica de cinema, professora, roteirista, curadora e jornalista cultural.
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TURNO Dir. Pauline Beugnies. Bélgica. 2021. 61 minutos. Documentário. Livre. A história de um entregador com mais de 20.000 km percorridos com sua bicicleta, que tenta lutar diariamente contra um algoritmo. Funcionário de um aplicativo de entrega há anos, um dia ele se vê obrigado, pelo mesmo, a mudar seu vínculo trabalhista para uma relação de trabalho flexível, na qual passa a ser colaborador e não mais funcionário. Não concordando com esse regime de trabalho, ele então inicia uma briga por direitos e melhores condições de trabalho.
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“TURNO”, POR CARLOS D’ANDRÉA Os pedidos feitos através de aplicativos de delivery não contêm apenas refeições. Facilidade, agilidade e flexibilidade são alguns dos adicionais do “combo” ofertado pelas plataformas quando são acionadas através de uns poucos cliques. Afinal, “desintermediar” atividades cotidianas e econômicas é uma das promessas fundantes do intenso processo contemporâneo de plataformização. Por trás de slogans e campanhas promocionais, no entanto, esconde-se a complexidade de um mundo repleto de pessoas, objetos e instituições permeadas por desejos e por jogos de poder. Dirigido por Pauline Beugnies, o documentário belga Turno nos conduz a algumas das entranhas do chamado “capitalismo de plataforma” através da história e das reflexões de um homem branco de meia-idade chamado Jean-Bernard. Desempregado e desiludido, ele inicia sua saga como entregador da plataforma Deliveroo com uma bicicleta emprestada. A rotina é cansativa, mas aos poucos ele entende como se entrelaçam as dinâmicas da cidade, dos clientes, dos outros entregadores e, claro, do aplicativo. Os acidentes de trânsito nas ruas de Bruxelas e a sensação de que os algoritmos estão programados para enganá-lo são alguns dos percalços diários, mas, para Jean-Bernard, é um alívio saber qual salário receberá ao final do mês. Essa (frágil, diga-se) estabilidade se rompe quando a Deliveroo decide mudar o regime de trabalho. Todos os entregadores passarão a ser freelancers, e não mais contratados; não terão mais uma renda fixa: os ganhos serão por pedido. A assistência social será reduzida, mas agora, argumenta a plataforma, cada um pode montar seu próprio horário. Mais flexibilidade e mais liberdade, repete o diretor da empresa enquanto o processo de precarização se escancara. Circulando com sua bicicleta pelas ruas e ocupando outros espaços urbanos, Jean-Bernard torna-se o porta-voz de uma crescente insatisfação coletiva que coloca face a face as mobilizações locais e a plataforma transnacional, o discurso ensaiado do neoliberalismo e os esforços de articulação política dos trabalhadores através de suas diferentes línguas nativas.
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Diferentes instâncias do Estado são acionadas para mediar as disputas entre os entregadores e a Deliveroo. A judicialização do processo aumenta sua visibilidade midiática, mas posterga decisões e aumenta a incerteza dos indivíduos. Enquanto alguns continuam se mobilizando e tentam não serem banidos da plataforma, as extenuantes jornadas e o desamparo legal vivido por uma nova geração de entregadores – imigrantes negros, sobretudo – revelam outras nuances do movimento batizado de #slaveroo (fusão do nome da empresa com o termo “escravizador”, em inglês). Ao trazer à tona as contradições e tensões da plataformização, Turno nos ajuda a lembrar que as refeições não se locomovem sozinhas pela cidade. O futuro vago prometido pelas Big Tech e as heranças e as ruínas do bem-estar social europeu são colocados frente a frente e evidenciam a urgência dos tempos presentes. CARLOS D’ANDRÉA Professor da UFMG e coordenador do R-EST.
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WOOD: VIAGEM AO MUNDO DA MÁFIA DA MADEIRA Dir. Monica Lăzurean-Gorgan, Michaela Kirst e Ebba Sinzinger. Alemanha, Áustria, Romênia. 2020. 97 minutos. Documentário. Livre. Espiões do meio ambiente se infiltram no sindicato de comércio ilegal de madeira e com a ajuda de uma câmera escondida, documentam atividades ilegais de retirada e comércio de madeira, até chegar às lojas.
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“WOOD: VIAGEM AO MUNDO DA MÁFIA DA MADEIRA”, POR ANDREA SANTOS BACA A presença do mercado em nosso cotidiano está tão consolidada que já o naturalizamos. A operação é quase automática: nos dirigimos às prateleiras cheias em algum estabelecimento comercial e escolhemos o que mais se adequa a nossa necessidade e orçamento. Os rótulos desses produtos destacam suas qualidades e quanto custam. Mas o que sabemos de sua origem, do momento em que são concebidos, produzidos e transportados, até chegarem às prateleiras diante de nós? Uma das magias do mercado é apagar esse processo sempre que não seja relevante para sua comercialização. Mas qual é a relação de nossas compras cotidianas com as tragédias e crimes que assolam nosso mundo de hoje? O documentário “Wood: Viagem ao Mundo da Máfia da Madeira” segue investigadores da Agência de Investigação Ambiental (AIA) dos Estados Unidos em busca de resolver um dos maiores crimes ambientais cometidos no século XXI em solo europeu: a devastação por desmatamento das florestas da Romênia, um dos últimos habitats do tigre da Sibéria. Procurando reconstruir a trajetória da madeira vendida nas prateleiras do maior varejista de pisos de madeira nos Estados Unidos, os investigadores mergulham na oculta, complexa, e muitas vezes violenta, rede do tráfico madeireiro ilegal transnacional. Menos truculento que o narcotráfico, sua eficácia reside justamente em apagar seu caráter criminal. Ao ocultar os traços ilegais da origem da madeira, esse sistema transforma consumidores em cúmplices não intencionais do crime. O filme transita pela difícil saga dos investigadores atrás de provas que permitam tornar visíveis as conexões entre a economia legal e a economia criminal nas complexas e globalizadas redes comerciais da madeira. Fiscalização, governo e novas tecnologias são mobilizados como possíveis respostas a estes crimes ambientais. Porém, quando os investigadores da AIA visitam uma comunidade indígena peruana,
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alvo constante da ação do tráfico ilegal de madeira, somos confrontados com um desafio de ordem diferente. No olhar destas populações, estamos diante da expressão contemporânea da tática secular de pilhagem colonial: em um extremo temos a devastação, a miséria e os trabalhos sujos, realizados pela coerção da necessidade ou da violência. E do outro, empresários de sucesso e mercados cheios de itens de luxo, exóticos, prontos para serem adquiridos por consumidores. Até quando vamos ignorar as consequências sociais e ecológicas no Sul Global dos padrões de consumo dos grandes e opulentos centros urbanos? Ou melhor, por quanto tempo mais continuaremos a reduzir a natureza a mercadoria? ANDREA SANTOS BACA Professora da UFABC
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THE UNCERTAIN KINGDOM Curtas-metragens britânicos
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LEFT COAST Dir. Carol Salter. Reino Unido. 2020. 14 min. Documentário. Livre. Nas cidades costeiras do noroeste da Inglaterra, voluntários dedicados distribuem bondade e comida para ajudar os abandonados.
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MOTHERLAND Dir. Ellen Evans. Reino Unido. 2020. 13 min. Documentário. Livre. Britânicos nascidos na Jamaica, que foram forçados pelo governo do Reino Unido a retornar ao seu “país de origem”, descrevem suas experiências.
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PAVEMENT Dir. Jason Wingard. Reino Unido. 2020. 12 min. Documentário. Livre. Uma parábola moderna sobre uma mulher que vê um sem-teto literalmente afundando na calçada.
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SUCKA PUNCH Dir. Iggy LDN. Reino Unido. 2020. 4 min. Documentário. Livre. Em um grito de protesto, uma jovem expõe as formas insidiosas como as marcas usam as mídias sociais para disfarçar suas verdadeiras intenções.
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THE FORGOTTEN C Dir. Molly Manning Walker. Reino Unido. 2020. 15 min. Documentário. Livre. A pandemia se arrasta e Aisha se abriga em seu apartamento. As visitas de amigos e familiares marcam as semanas que passam, enquanto Aisha luta para contar a eles o que está acontecendo com ela.
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VERISIMILITUDE Dir. David Proud. Reino Unido. 2020. 13 min. Documentário. Livre. Uma atriz com deficiência consegue um emprego para assessorar uma estrela a interpretar uma deficiente no seu mais recente papel.
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WHAT’S IN A NAME? Dir. Runyararo Mapfumo. Reino Unido. 2020. 15 min. Documentário. Livre. Alguns britânicos exploram os desafios que encontraram com seus nomes não ocidentais e celebram como os mesmos expressam quem são.
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“THE UNCERTAIN KINGDOM”, POR FLAVIA GUERRA Não é raro que palavras como "drama histórico" e "filme de época" venham à mente quando o assunto é cinema britânico. James Bond, Harry Potter e dramas shakespearianos também podem entrar nessa conversa. E a família real, claro, continua como um grande personagem. Por outro lado, a chamada escola inglesa de documentários, sempre atenta aos personagens reais que ajudaram a construir a sociedade britânica, povoam o imaginário não só do brasileiro, mas do público do mundo todo. Os cinéfilos mais atentos sabem que a comédia britânica não nos deixa na mão e que nomes que vão de Monty Phyton a Mr. Bean, passando pelo humor contemporâneo de Danny Boyle e, Guy Ritchie, não podem faltar. Já nomes como Mike Leigh, Ken Loach, Steve McQueen, Andrea Arnold, Lynne Ramsay, Shane Meadows e até Kevin Macdonald, cada um a seu estilo, mas com cinema voltado aos temas sociais, raciais, ao trabalho, às relações familiares e pessoais, em meio a grandes dinâmicas socioeconômicas, revelam como ninguém que a sociedade britânica é plural, diversa e complexa. Mas se os longas levam anos para serem feitos e podem perder o frescor do momento, os curtas-metragens têm a possibilidade de não só serem produzidos com rapidez, orçamento mais baixo e maior liberdade criativa. É neste ponto da história que a antologia "The Uncertain Kingdom", abre uma janela importante não só para o cinema contemporâneo britânico, mas, principalmente, para a sociedade britânica atual. Representante da produção do Reino Unido na programação da mostra Futuros Presentes 2022, traz questões cruciais como: O que é ser britânico? O que forma este tecido social tão fascinante? E para onde este certo, e incerto, reino caminha? Eu, que vivi em Londres, onde estudei documentários e frequentei casas e bairros nada turísticos, mas que me ensinaram muito sobre o caráter, a beleza e as contradições de um povo fascinante, vejo na seleção deste projeto a vontade genuína de descobrir e mostrar ao espectador este caleidoscópio que é este reino tão complexo e apaixonante. Dos 21 filmes do projeto original, chegam para nós no Brasil sete títulos que trazem a essência do projeto: Identidade, nacionalidade, racismo, inclusão e exclusão, juventude, família e até a vida na pandemia. O documentário chega com força nesta seleção. O formato, que pede produção mais enxuta que a ficção, permite explorar temas, fazer retratos instantâneos de temas urgentes. “Left Coast”, de Carol Salter, faz um mergulho intimista, observativo, do cotidiano de um banco de alimentos na pequena Blackpool, no noroeste da Inglaterra. Enquanto o som do noticiário, que povoa o pano de fundo do filme, fala dos grandes movimentos da economia mundial, a diretora nos
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revela o cotidiano dos voluntários que, além de comida e assistência, doam seu tempo e afeto aos que não protagonizam as notícias, mas que são os mais afetados pelas grandes crises econômicas. Do outro lado do mundo, “Motherland”, de Ellen Evans, entra na intimidade e na história de cidadãos britânicos nascidos na Jamaica que, décadas depois de viverem no Reino Unido e sem conexão alguma com a Jamaica, foram deportados e nunca mais puderam voltar. Talvez um dos que mais nos questionam sobre o que é ser britânico e se de fato este reino incerto que se expandiu pelos quatro continentes acolhe e reconhece seus cidadãos do mundo. “What ‘s in A Name”, de Runyararo Mapfumo, investiga o que há por trás de um aparentemente simples nome próprio. Manter ou mudar / ocidentalizar um nome para ser aceito em uma sociedade? Assumir e amar seu próprio nome é também uma declaração de aceitação e amor a suas raízes e um sinal à um futuro mais multicultural de fato. “Sucka Punch”, de Iggy London, transita entre o documental e o experimental para questionar o que é ser jovem hoje. Podemos mesmo ser o que queremos ou somos todos, nós e nossa atenção, o grande produto a ser vendido em uma sociedade cada vez mais conectada e consumista? A questão se impõe também na ficção. Ao lado de “Pavement”, de Jason Wingard, “Verisimilitude”, de David Produ, lança luz em personagens que muitas vezes fazemos questão de não enxergar. Em Pavement, um homem em situação de rua começa a sofrer uma misteriosa fusão com a calçada que habita. Até onde vai a invisibilidade dos que não se encaixam no cenário da prosperidade e do chamado sistema? Já Verisimilitude, de David Produ, questiona a verossimilhança, ou a legitimidade, de tratarmos pessoas com deficiência como meros coadjuvantes tanto no dia a dia quanto nas artes. Quantos filmes estrelados por atores e atrizes com deficiência já vimos? Fechando esta lista, “The Forgotten C” revela a intimidade e a angústia de uma jovem que, em meio a uma pandemia, encara um drama pessoal, mas não menos crucial em sua vida. O afeto e o amor em tempos de incertezas e despedidas neste filme curto, mas poderoso da jovem cineasta Molly Manning Walker. Sejam ficções ou documentários, a seleção “The Uncertain Kingdom” nos revela que o novíssimo cinema britânico está sempre com os dois pés na realidade sem perder a capacidade de imaginar um futuro em que estejamos mais presentes e conectados com nossas emoções, ética e verdade. Flavia Guerra Documentarista e jornalista.
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