língua brasileira
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Thiago Martins de Melo Tupinambás, Léguas e Nagôs guiam a libertação de Pindorama das garras da quimera de Mammón, 2013 Óleo sobre tela 520 x 360 cm Fotógrafo: Eduardo Ortega Coleção Particular
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ULTRALÍRICOS TOM ZÉ
Danilo Santos de Miranda - Por entre histórias Tom Zé - Língua Brasileira Caetano Galindo - O nosso romance Marcia Londero e Santiago Franco - A atual situação de vida dos Myba Guarani (...) Eduardo de Almeida Navarro - A Terra sem Mal, o paraíso Tupi-Guarani Yeda Pessoa de Castro - Nossa língua brasileira Angelo Krixi /Clenildo Krixi Sabanes / Evanilson Crixi Morimã - Processo histórico (...) Nicolau Sevcenko - Fragmento de palestra Felipe Hirsch e Tom Zé - Conversa Ficha Técnica Roteiro Ultralíricos
2022
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DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo
POR ENTRE HISTÓRIAS Ao longo dos tempos, a humanidade inventou usos da palavra para estabelecer vínculos, criar histórias, registrar legados. Nessa trajetória, as formas de comunicação verbal tornaram-se mais complexas, aprofundaram seu potencial semântico e formal, diferenciaram grupos, povos e nações. Suportes variados foram criados para perenizar aquilo que anteriormente estava a cargo das memórias coletivas. Sendo expressão, a palavra tornou-se condição e matéria-prima para a criação artística em diversas frentes – essa circunstância ajudou a ampliar as possibilidades de discursos sobre o mundo. Em Língua Brasileira, teatro e música se entrelaçam para acolher a palavra e, por meio dela, propor reflexões sobre o país. Recente criação de Felipe Hirsch e Coletivo Ultralíricos, a obra traz o protagonismo de Tom Zé – artista que, desde os anos 1960, busca desconstruir lugares-comuns e repensar a cultura brasileira por meio de suas experimentações –, a partir da canção homônima de seu álbum “Imprensa Cantada (2003)”. Língua Brasileira é um experimento múltiplo: encontro de vozes e culturas. O espetáculo trata de narrativas e personagens que fazem parte da formação do nosso idioma, desde referências indígenas, africanas e europeias até a contemporaneidade, retratando um panorama marcado por diversidades 4
e conflitos. Contando com pesquisa do tradutor e filólogo Caetano Galindo e elementos inéditos da obra de Tom Zé, aprofunda investigações sobre questões nacionais presentes em trabalhos anteriores da companhia, como a série Puzzle, A Comédia e a Tragédia Latino-Americana e Selvageria. Para o Sesc, apoiar iniciativas que conciliem rigor estético com a abordagem de dilemas inerentes ao contexto brasileiro indica uma escolha de política cultural. Nessa escolha, a arte surge em escopo ampliado, sendo privilegiadas suas conexões com múltiplos aspectos da realidade. Os marcadores de identidade de um povo estão entre eles e permitem refletir sobre nosso lugar no mundo, bem como as estratégias para transformá-lo.
TOM ZÉ
LÍNGUA BRASILEIRA Quando me sorris, Visigoda e celta, Dama culta e bela, Língua de Aviz...
Mares-algarismos, Onde um seu piloto Rouba do ignoto Almas e abismos.
Fado de punhais, Inês e desventuras, Lá onde costuras, Multidão de ais.
Verbo das correntes Com seu candeeiro Todo marinheiro Caça continentes.
Mel e amargura, Fatias de medo, Vinho muito azedo, Tudo com fartura.
E o gajeiro real, Ao cantar matinas, Acha três meninas Sob um laranjal.
Cravos da paixão, Com dores me serves, Com riso me pedes Vida e coração, Vida e coração.
Última das filhas, Ventre onde os mapas Bordam suas cartas Linhas Tordesilhas, Linhas Tordesilhas.
Babel das línguas em pleno cio, Seduz a África, cede ao gentio, Substantivos, verbos, alfaias de ouro, Os seus olhares conquistam do mouro.
Em nossas terras continentais A cartomante abre o baralho, Abismada vê, entre o sim e o não, Nosso destino ou um samba-canção.
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CURITIBA
Professor de história da língua Portuguesa na Universidade Federal do Paraná e doutor em linguística pela USP. Tradutor de obras como o Ulysses, de James Joyce, e de autores como T.S.Eliot, David Foster Wallace e J.D.Salinger. Seu primeiro livro de contos, “Sobre os Canibais”, foi publicado em 2019.
CAETANO W. GALINDO
O NOSSO ROMANCE Bem-vinda. Eis uma ideia: você está viva porque todos, todos os teus antepassados chegaram vivos à maturidade sexual e deixaram descendentes férteis, que por sua vez tiveram a sorte de chegar vivos à maturidade sexual e deixar descendentes férteis, e assim por diante. Por milênios e milênios. Você que é o acúmulo das histórias de todos esses indivíduos e carrega no teu material genético essa longa linha de parentes africanos, europeus, americanos. Eis outra: você e todas as outras pessoas que estão ou estiveram com você nessa plateia têm organelas celulares chamadas mitocôndrias, que são herdadas exclusivamente por via materna. Mais do que isso, as mitocôndrias de todos os seres humanos vivos hoje no planeta descendem de uma única mulher, que terá vivido há cerca de 150 mil anos. Por essa via matrilinear, somos todos inquestionavelmente irmãos num passado afastado. Essas duas ideias são muito tocantes, transformadoras. Capazes de mudar nossa forma de olhar uns para os outros. Mas o fato é que mitocôndrias e DNA são realidades concretas com um misterioso quê de abstrato, de intangível. São os tijolos que constroem o teu corpo, mas não necessariamente os que você manuseia para construir a tua visão da realidade cotidiana. 8
No entanto ninguém pode dizer o mesmo da língua que falamos desde que nos concebemos como pessoas. Dessa estranha realidade intangível com tanto de concreto no nosso imaginário. E o fato é que a cada vez que abre a boca para falar, você fornece igualmente um testemunho de gerações, de eras e culturas, de países e povos os mais distintos que puderam entrar em contato e trocar palavras, ideias, construtos para gerar a língua que hoje diz “você”. Falar também é celebrar uma linhagem milenar de transmissão ininterrupta. Um telefone sem fio de sobrevivência imaterial e de irmandade. Mesmo as mais singelas listas de empréstimos linguísticos, que atestam a origem de certas palavras do nosso vocabulário comum, já podem dar uma dimensão da teia de contatos que forma o elenco de palavras de uma língua tão grande quanto a portuguesa. (Línguas faladas por grupos menores, ou mais isolados, é claro, normalmente farão parte de redes mais restritas.) Só que a questão é que se nós formos ainda mais longe do que essas listas costumam nos levar, se buscarmos realmente as origens das origens das origens da língua que falamos, se formos atrás do equivalente linguístico daquela “Eva” mitocondrial, vamos encontrar solo ainda mais fértil, vamos ampliar ainda mais a nossa base de dados, conhecer antepassados mais distantes, renovar nossa ideia de pertencimento. Nossa família vai crescer.
E foi a partir de um sentimento como esse, detonado pela canção “Língua Brasileira”, de Tom Zé, que surgiu a ideia de uma viagem pelo passado, por toda a trajetória que levou à formação do português brasileiro e ao seu estabelecimento por estas nossas plagas. Uma conversa encenada entre os diversos membros dessa família tão antiga. Desde o primeiríssimo momento, no entanto, esteve muito claro que o objetivo não era uma peça “de tese”, um discurso articulado de modo didático, polêmico ou acadêmico. O que interessava era mergulhar na cultura, na mítica, na mística, nas narrativas, no folclore e no ambiente das diversas culturas que puderam de alguma maneira participar da construção do idioma em que estou escrevendo agora: a língua em que nós (eu e você) podemos começar nossa conversa. Bem-vinda. Bernardo de Chartres foi quem famosamente disse que nós, meros anões, só podemos enxergar longe porque estamos sentados nos ombros de gigantes. É essa a dinâmica do próprio trabalho acadêmico. Cada pesquisador, cada pensadora só pode chegar a determinado ponto por contar com o trabalho de pessoas que vieram antes; e uma geração há de sempre deixar a pesquisa a meio caminho, para as outras que virão. E de uma maneira muito especial a história das línguas dá uma forma toda particular a essa formulação, de estarmos empoleirados sobre colossos de um passado quase imemorial, que atualizamos dia a dia, palavra por palavra.
deram as sucessivas ondas de “ocupação” do que viria a ser o território da Europa. É uma maneira incrível de se ter alguma certeza de algo que antes podia parecer inatingível. Mas eu não consigo deixar de ficar emocionado ao pensar em como aqueles sujeitos conseguiram retraçar toda uma árvore genealógica, toda uma história de migrações, além de reconstruir palavras, ideias, sons e gramáticas de idiomas desaparecidos, falados por povos até então ignorados. Arrancando tudo isso do fundo da poeira das bibliotecas. Sem jaleco e sem laboratório. Com pouco mais que páginas, palavras, intelecto. Esse estudo, entre 1786 e… ontem (trata-se de um campo em permanente e acelerada evolução) foi o que levou à elaboração da hipótese Indo-Europeia e à reconstrução extensiva do idioma provavelmente falado por um povo que emigrou da estepes da Ucrânia, indo parar na Índia, de um lado, e na Europa, do outro; um idioma que passou por sucessivas fragmentações e transformações, chegando finalmente à Península Ibérica, cerca de três mil anos atrás.
E foi por aí que começou toda a conversa que acompanhou o processo de elaboração deste espetáculo. Pela história, na verdade, de como um bando de humanistas, dotado apenas de livros e do contato direto com as línguas ainda vivas no século dezoito, elaborou um método revolucionário de comparação entre palavras e construções conhecidas, entre idiomas e dialetos registrados, que lhes permitia supor com um grau absurdo de confiabilidade as formas, os contornos e os dados reais de idiomas que desapareceram séculos antes, milênios antes, muitas vezes sem ter deixado qualquer registro escrito.
Foi o pasmo com a possibilidade de se reconstruir esse passado o que eu tentei transmitir aos Ultralíricos logo no começo. A sensação de que quando um dicionário diz que dada palavra tem origem no latim está apenas fazendo o começo do trabalho. Porque esse latim veio de algum lugar (uma língua indo-europeia que nós hoje chamamos de “proto itálico”) e essa língua veio de alguma outra… e assim por diante até onde a espessura do véu do passado não nos permite mais reconstruir com tanta precisão. Afinal esses povos indo-europeus que ocuparam a península ibérica (povos celtas, mais precisamente) devem ter chegado a uma Europa que já tinha passado por duas outras levas de “povoamento” (sabemos disso graças aos tais estudos genéticos), quarenta mil anos atrás e depois oito mil anos atrás. E no caso desse território nós podemos ter inclusive alguma ideia da constituição da população prévia e, ainda mais impressionante, podemos contar com instigantes suposições a respeito da língua que essas pessoas falavam, e até de palavras dessa língua que resistem nos dias de hoje.
É emocionante poder contar com os estudos da velocidade das mutações do DNA que não codifica proteínas para determinar o momento preciso em que se
Será mero acaso que a palavra “esquerdo” (izquierdo em espanhol) não tenha paralelo nas línguas românicas faladas fora da Ibéria? E será mero acaso que ela 9
se aproxime bastante da palavra contemporânea do basco, aquela misteriosa língua sem parentes, sobrevivendo isolada num cantinho da fronteira entre Espanha e França? Será que essa palavra resistiu a levas e mais levas de invasores, restando quase inalterada em seu recanto escondido? Para outras, essa suspeita é quase uma certeza. Nós podemos hoje dizer com alguma segurança que a cada vez que você usa a palavra barro, por exemplo, está fazendo parte de uma linhagem de falantes que mantêm esse termo em uso há no mínimo cinco mil anos. Talvez dez. Talvez mais. O barro da Ibéria viu chegarem celtas e enterrou seus corpos derrotados pelos romanos. O mesmo barro foi amassado pelos “bárbaros” germânicos e transformado em tijolos para erguer as casas dos árabes. Esse barro foi trazido à América, onde se misturou ao sangue de africanos e de índios e veio a moldar você. E o barro resiste. E mesmo que voltemos àquele latim de onde proviria o português, mesmo que se pense a história só dali para a frente, ainda há muito mais do que se suspeita. Para começo de conversa, num sentido muito vigoroso o português não provém do latim: o português é o latim (latim em pó, como disse o outro Caetano). Além disso, o próprio latim é uma língua com história, com uma sociolinguística. Ele teve uma origem e, quando seu destino foi a Ibéria, não foi levado até lá por gente refinada como Cícero, Tácito ou Marco Antônio. Os falantes que se estabeleceram nas novas colônias seriam em sua imensa maioria pessoas pobres, incultas, iletradas. E o latim que essa gente falava era diferente daquele que nós normalmente estudamos, por sua vez também diferente daquele que a igreja católica mantinha ainda em uso meros sessenta anos atrás. E o português, entre outras muitas coisas, é pó desses tantos latins. E não acaba aí. Falar em “influências” sobre a trajetória posterior desse nosso “romance” (a palavra que designava as línguas derivadas do idioma de Roma) pode também ser uma maneira simples de se tentar minorar o impacto que a presença das outras culturas e dos outros povos teve no processo de se dar forma 10
a essa manifestação peculiar do latim no noroeste da Ibéria, que depois passa a ocupar toda a faixa ocidental da península, mantida por séculos sob domínio islâmico, povoada por árabes e berberes que traziam consigo não pouco da Índia e da Pérsia. (Já se perguntou porque a nossa palavra “azul” não é igual às palavras comuns do francês ou do italiano para a mesma cor? Ela nos veio do antigo Irã.) E a isso tudo se acrescem as complicações, as dores e delícias da trajetória que faz com que essa língua europeia, que de alguma maneira já tinha se diferenciado de suas irmãs (o latim se transformou sob condições diferentes, em locais diferentes), venha a se plasmar numa coisa ainda nova, ainda mais curiosa — e, para nós, mais interessante — durante os séculos de comércio negreiro, ocupação e invasão de um território gigantesco do outro lado do oceano. Você já parou para pensar no quanto é estranha a situação linguística do Brasil? Entre num automóvel em Bagé, no Rio Grande do Sul. Desça em Pacaraima, Roraima, quase uma semana depois, tendo percorrido cinco mil e quinhentos quilômetros. Sotaques à parte, você pode continuar sendo compreendida na língua que se falava no teu ponto de partida. E isso está longe, mas muito longe de ser típico para o mundo todo. Tanto hoje quanto no passado. E essa relevante unidade pôde gerar o mito da total unidade, e pôde facilitar um longo processo de escamoteamento da variedade, da diferença, e do quanto essa diferença foi por vezes ativamente suprimida. Fica cada vez mais claro, por exemplo, para um grupo cada vez maior de estudiosos, que talvez seja simplificador demais contar a história da língua portuguesa no Brasil através de uma narrativa que decanta a permanência do idioma e sua aceitação de uma palavra aqui, uma acolá, um nome de planta de um lado, de bicho do outro, uns termos para comidas e ritmos que antes eram desconhecidos. Primeiro em função da ideia de que tanto a singularidade do português brasileiro quanto sua marcada unidade podem provir diretamente do fato de toda uma população de escravizados ter tido que aprender essa nova língua em circunstâncias, para se
dizer o mínimo, imperfeitas. A ideia de que as culturas banto, por exemplo, teriam fornecido apenas um “molho”, um verniz de diferença à língua que falamos, vem ficando cada vez mais difícil de se sustentar, na medida em que a tese do “aprendizado imperfeito” como um dos grandes fatores de diferenciação do português brasileiro ganha corpo. E o que fazer das línguas gerais, tanto no litoral leste quanto na região norte? Essas línguas foram usadas por nativos, missionários, bandeirantes e, hoje se sabe cada vez com mais clareza, por toda sorte de brasileiros em situação rural e urbana durante séculos. O nheengatu, a mais longeva dessas variedades, é falado ainda hoje no extremo norte do país. Elas não apenas salpicaram o português de um vocabulário colorido e oxítono; conviveram com ele, sobrepuseram-se a ele e o determinaram definitivamente. Para contar a história de mais essa supressão, não é nem estritamente necessário recorrer à intervenção do Marquês de Pombal, que em 1759, como parte das iniciativas referentes à expulsão do poderio jesuíta das colônias, efetivamente proíbe o uso das línguas gerais em nossas terras. O longo projeto de extermínio das nações indígenas brasileiras vem de ainda antes disso, e segue até os dias de hoje, acarretando o apagamento de uma riqueza linguística incomensurável. Se em tempos recentes a linguística mundial pôde receber um grande choque depois da publicação de resultados de análises do idioma pirarrã, hoje falado por pouco mais de cem indivíduos no estado do Amazonas, e que parece contradizer muito do que se supunha ser universal em termos de estrutura linguística, podemos apenas imaginar o que terá se perdido com as mais de mil línguas que desapareceram, foram exterminadas, deixaram de soar com o emudecimento de seus últimos falantes. O Brasil monolíngue, aquele da história simplificada em que o português se estabelece por aqui, acolhe vocábulos variados, muda um tantinho e vai ficando… essa ideia vai dando lugar a uma longa narrativa de imposição, massacre e anulação da diferença. Um processo que talvez só tenha conseguido redundar naquela relativa e impressionante unidade graças à
contribuição forçada de gerações de escravizados que não tinham opção senão aprender de alguma maneira aquela língua, ainda que o fizessem com recurso ao que sabiam dos seus idiomas, e ainda que o fizessem apenas de maneira “imperfeita”. Trocamos a metáfora do rio que recebe seus mirrados afluentes mas se mantém essencialmente o mesmo pela imagem de um rio, ainda tão caudaloso e imponente quanto antes, que passa por quilômetros de corredeiras e cataratas, é agitado violentamente, move moinhos, invade matas ciliares e, quando atinge um novo remanso, conta com outro índice de oxigenação, nova fauna e nova flora. Pode se manter o mesmo rio, mas é já um outro mundo. Entre Bagé e Pacaraima, nome charrua e nome caribe, encravada num mesmo idioma se oculta uma complexa história de violência e de assimilação. E a tudo isso há que se acrescentar que nem mesmo em estatuto oficial o português está sozinho no Brasil. Desde 2002 a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é reconhecida nacionalmente como “meio legal de comunicação e expressão”. No município de São Gabriel da Cachoeira, que tem praticamente o tamanho da Bulgária, são oficialmente reconhecidas como línguas locais, além do português, o nheengatu, o tukano e o baníwa. Várias cidades, de Rondônia ao Rio Grande do Sul, reconhecem variedades dialetais do alemão (hunsrückish, pommersch, plattdüütsch) como línguas co-oficiais. Outras concedem esse estatuto ao vêneto, normalmente chamado de talián. Russos, holandeses, finlandeses, poloneses, ucranianos, japoneses, árabes, chineses e tantos outros brasileiros que vieram para cá especialmente a partir do fim do século dezenove continuam a ver chegar comunidades de migrantes e refugiados: venezuelanos, haitianos, sírios… Há centenas de línguas em uso no nosso país: as indígenas que resistiram, as africanas, europeias e asiáticas. Há ainda crioulos ou anticrioulos (línguas surgidas no local onde são faladas) derivados de comunidades quilombolas, por exemplo. “Minha pátria é minhas línguas”, pois não estamos sozinhos no mundo. Como em tantas outras coisas, 11
nossa pretensa unidade esconde muita variedade. Como em tantas outras coisas, também, a unidade que temos deriva de um longo processo de convívio, abafamento e assimilação. Mas abordar essas questões dessa maneira em nada corresponderia, necessariamente, ao desejo inicial de manter este projeto longe de um tom didático. Foi a partir daí, no entanto, e motivados pelas inquietações e pela orientação do coletivo, que nós começamos a levantar sugestões de lendas, narrativas, poemas e depoimentos provindos de cada uma das culturas que iam sendo incluídas. A esse se somou o processo de localizar cada um dos textos finalmente selecionados — depois de testados nos ensaios — no original e em tradução, além de tentar gerar de cada um deles uma leitura em voz alta para os atores poderem usar como guia. E a isso vinha se acrescentar a dificuldade de encontrar transcrições em alfabeto latino dos textos cujo original estava em persa, ou árabe, línguas escritas com um alfabeto que os atores não teriam qualquer chance de dominar no curto tempo de que dispunham para decorar os textos e seguir com os ensaios. Entre o nosso primeiro contato e a estreia, contando ainda com a suspensão das atividades durante a pandemia, foram quase dois anos e meio de trocas de ideias, de consultas constantes e atualizações de trajetórias, centenas e centenas de mensagens, horas e mais horas de áudios gravados, em geral de manhã bem cedo, tentando fazer com que o meu ritmo circadiano desse conta de lidar com a enxurrada de propostas, perguntas e portas entreabertas pelos ensaios do coletivo, encerrado tarde na noite anterior. Nunca participei de um projeto que evoluísse tanto em tão pouco tempo. A fertilização garantida pela genialidade sem par de Tom Zé parece ter catalisado o processo de uma maneira atordoante. Nunca estive envolvido em algo tão intenso. Na minha opinião, foi uma viagem em todos os sentidos. Um pequeno milagre. Eu fui pisar na sala de ensaios apenas no último dia antes da estreia. Mas mesmo antes disso — eu em Curitiba, eles em São Paulo — criou-se para mim uma sensação raríssima de pertencimento, de acolhimento. Não houve momento deste processo 12
em que eu, o destoante, não me sentisse parte do grupo, Ultralírico honorário. Tenho apenas a agradecer a todos os colegas e amigos que responderam às minhas solicitações e atenderam a mim e à produção do espetáculo com o carinho, a atenção e o profissionalismo que se espera de pessoas que passam a vida dedicadas à pesquisa, e à espera de quem queira ouvir o que sabem; indivíduos que dedicaram décadas ao estudo do passado deste idioma, pesquisando pontos que a maioria dos falantes consideraria desprovidos de interesse e desentranhando dessa história uma estória: narrativa de grandes e pequenos, de humildes e nobres, passado e presente. Durante esses meses, precisamos contar com a colaboração de um inglês que leciona em São Paulo, de uma libanesa, uma turca, uma indiana, um americano que trabalha na Amazônia, uma iraniana, um brasileiro instalado em Veneza… estendemos uma imensa rede atada, nó a nó, pelas vozes diversas desses colegas que também disseram sim. Aceitaram buscar livros, procurar textos, sugerir recortes, gravar a leitura daquele trecho a mais, agora com a pronúncia da Idade Média… Do meu lado da equação, tratava-se centralmente de acadêmicos, quase exclusivamente pessoas ligadas ao sistema público de ensino superior, essa preciosidade que a sociedade brasileira vem mantendo e apurando há décadas, e de onde surge tanto do que se sabe sobre bactérias e robôs, sobre pontes, sobre estrelas, sobre histórias. E o fato de que essas pessoas usaram seu precioso tempo para atender às nossas solicitações, num momento como este, em que a própria validade da existência desse sistema todo, e da própria universidade, está sob permanente ameaça, acaba me enchendo de uma ternura ainda maior. Mas cabe também deixar perfeitamente claro que esse processo todo nada teve de unilateral, com os “universitários” detendo as fontes e o saber. O coletivo participou ativamente de cada etapa da pesquisa, com sugestões, com achados felizes, com contatos próprios e fontes alternativas. Não fosse esse incrível empenho conjunto, no qual eu fui meramente alérgeno, catalisador, se tanto, nada do que você pode ver no espetáculo teria chegado ao grau de amadurecimento a que chegou.
E essa foi, para mim, a maior de todas as belezas dessa viagem de anos pelo passado da língua de todos nós, na companhia dessas pessoas todas que, via de regra, eu vim a conhecer pessoalmente apenas perto da linha de chegada. Eu, acima de tudo, sou um acadêmico e um tradutor. Essas duas atividades treinam o indivíduo para uma espécie de procedimento em-linha-reta. Você sabe onde pretende chegar e aprende a economizar etapas e potencializar o rendimento da pesquisa para chegar a essa meta. Por mais caótico que eu possa ser pessoalmente, tenho sempre de encontrar alguma espécie de “organização” para dar conta do trabalho. Mas nada, nada na minha vida tinha me preparado para o sensacional processo de trabalho de um coletivo que elabora, compõe um espetáculo a partir de um fio tão tênue, moldando e esculpindo uma massa tão gigantesca de dados díspares, vendo o próprio material sugerir caminhos, aceitando os acasos, lidando com os fatos na medida em que surgem, aproveitando para ao menos espiar por cada porta que se abre, e muitas vezes seguindo todo um corredor inesperado. Mas retornando sempre à linha, voltando sempre ao tema, à fonte.
E ele sabe que há de dar certo. Em algum registro animal entende que o amor nos há de salvar da maldade que por vezes nos cerca, porque somos irmãs mitocondriais, porque somos irmãos. E ele confia em quem está à sua volta. Como você. É assim que eu me sento ao teu lado, para ver o espetáculo. Para ouvir a música do nosso romance. Bem-vinda.
É caminhar rumo ao horizonte, sabendo que ele nunca vai chegar, mas aprendendo a andar, aprendendo a dançar. Desde os primeiros esboços de estrutura que pude ir recebendo eu fui ficando pasmado com a beleza, a coerência, a originalidade e o impacto do espetáculo que eles iam gerando a partir das nossas conversas e de tudo mais que conseguiam encontrar. E desde os primeiros momentos fui me pondo na cômoda situação de saber que isto, o espetáculo, estava em mãos tão mais hábeis que as minhas: estava nas melhores mãos. Que ele estava sendo criado por pessoas que lidavam com o texto, com as palavras, de uma maneira inacessível para mim. Mais criativa e mais criadora. E fui misturando ansiedade e expectativa. Curiosidade e total confiança. O abandono de um bebê entregue às mãos dos pais. O abandono de um bebê que, imerso na língua materna desde o útero, precisa ainda aprender a falar. Encontrar uma voz. Precisa achar uma maneira de compreender e manusear a maravilha da língua portuguesa brasileira. 13
PALHOÇA
Marcia Londero, socióloga da EMATER-RS e doutora em Ciência Política pela UFRGS, com tese sobre a participação política indígena no Estado. Santiago Franco, Mbya Guarani, cacique da aldeia Tekoa Yvy Poty - município da Barra do Ribeiro/RS.
MARCIA LONDERO E SANTIAGO FRANCO A ATUAL SITUAÇÃO DE VIDA DOS MBYA GUARANI NO SUL DO BRASIL E A LUTA DOS POVOS ORIGINÁRIOS PARA RESISTIR AO HISTÓRICO DE VIOLAÇÕES A QUE ESTES POVOS TÊM SIDO SUBMETIDOS. “Aos brasileiros que estão assustados com os ataques deste governo, dizemos: sejam bem-vindos ao Brasil! Durante muitos anos lutamos sozinhos, e estamos denunciando a destruição dos nossos territórios, da nossa cultura para o dito progresso. Mas nesse momento em que enfrentamos um governo de viés fascista, estamos estendendo nossas mãos, estamos conseguindo amplificar a nossa voz, nos conectar com outros povos, movimentos e outras lutas.” (Carta da 8a Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa – Palhoça/SC – Terra Indígena Morro dos Cavalos, 24 de maio de 2019). A situação das comunidades indígenas, especialmente acerca das políticas públicas de educação, saúde, habitação, saneamento básico, atividades agrícolas e a demarcação de terras é bastante preocupante porque os governos Federal e Estadual estão promovendo um intenso desmonte destas políticas, o que vem gerando graves dificuldades para todos os povos originários do Brasil.
Reza – onde nos encontramos com Nhanderu, aquele que nos orienta e determina nossa luta contra os que nos discriminam, nos perseguem e negam nossos direitos fundamentais à vida, à terra e à nossa cultura. Nossas lideranças pedem que: A Funai Fundação Nacional do Índio – deve proteger e fazer respeitar todas as nossas terras – Tekoa, demarcar e assegurar que sejam utilizadas para nosso usufruto exclusivo, para que possamos viver de acordo com nossos costumes, cultura, crenças e tradições; A política de atenção à saúde seja executada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI – reconhecendo e valorizando nossos modos de pensar, nossas medicinas tradicionais, nossos líderes espirituais e seus conhecimentos; “Nossas terras aqui no Sul, estão muito degradadas, são áreas pequenas, muitas ainda não estão regularizadas, por isso muitas comunidades ainda passam fome e tem pouca renda para sobreviver. Claro que plantamos e temos nosso alimento tradicional, mas não ainda o suficiente para todo o ano” (Santiago Franco).
Acessamos a fala dos Mbya Guarani através do documento final do Encontro de Caciques e Professores Mbya Guarani na Tekoa Porã, Salto do Jacui - RS, 07 a 09 de maio de 2019:
É necessário também que o Estado e a União assumam, planejem e executem uma política de habitação nas nossas comunidades, assegurando a nossa autonomia e o nosso modo de construir as moradias, bem como que haja o aproveitamento da matéria-prima existente nas áreas onde vivemos.
Nossos Karaí e nossas Kunhã Karaí nos alertam sobre a importância de nos fortalecermos na nossa cultura, porque ela é a principal fonte de resistência diante das agressões promovidas pelos juruá, os brancos, que foram escolhidos para serem as autoridades em nosso país. Precisaremos nos reunir entre as comunidades e intensificar nossos rituais na OPY - Casa de
Por isso, é fundamental que o estado e a União, através de seus servidores, mantenham permanente diálogo com as nossas lideranças e comunidades quando forem propor as políticas de sustentabilidade nas terras Mbya Guarani e que esses programas sejam permanentes e vinculados ao nosso modo de ser e de viver.
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SÃO PAULO
Filólogo e lexicógrafo brasileiro, é titular da Universidade de São Paulo e especialista em tupi antigo, língua sobre a qual publicou importantes obras, como “Método Moderno de Tupi Antigo” e “Dicionário de Tupi Antigo”.
EDUARDO DE ALMEIDA NAVARRO A TERRA SEM MAL, O PARAÍSO TUPI-GUARANI A descoberta da América conduziria, inexoravelmente, à necessidade de um enquadramento das novas realidades geográficas, culturais e sociais recém-conhecidas nos esquemas europeus de compreensão do homem e do mundo e isso para impedir a relativização da Revelação bíblica e salvaguardar a ideia da unidade do gênero humano aceita desde a Antiguidade. Desse modo, a religião e os mitos indígenas foram interpretados segundo os conceitos vigentes no universo mental europeu do século XVI. O mito de Sumé foi assimilado à pregação do apóstolo São Tomé na América, o mito do dilúvio foi compreendido como reminiscência da narrativa do Gênesis. A verdadeira religião tupi-guarani, que tem como essência a crença na Terra sem Mal, passou despercebida, então. Religião sem Teologia, concebia o paraíso como a superação da morte, da ordem social e política. Paraíso de homensdeuses, que teria uma realização histórica e uma localização geográfica. A busca da Terra sem Mal levou a grandes migrações de índios pela América do Sul e a ideia da imortalidade, nela contida, foi assimilada ao conceito de “Vida Eterna” do Cristianismo, o que favoreceu, em grande medida, o bom sucesso do Estado Jesuítico do Paraguai. Na superfície da terra não há, por certo, povo ou tribo a que melhor se aplique do que ao guarani a palavra evangélica: “O meu reino não é deste mundo. Toda a vida mental do guarani converge para o Além”. Egon Schaden
A COMPREENSÃO DA RELIGIÃO E DOS MITOS INDÍGENAS PELOS EUROPEUS NO SÉCULO XVI. De origem remotíssima, a grande nação tupi-guarani ocupava vasta extensão do Brasil, do Paraguai, da Argentina e da Bolívia ao chegarem à América os conquistadores europeus. Desde o início, os relatos e as crônicas dos viajantes e dos missionários eram unânimes em afirmar que os índios tupi-guaranis não tinham religião. Pero de Magalhães Gândavo, em 1576, escrevia: “Não adoram a coisa alguma nem têm para si que há, depois da morte, glória para os bons e pena para os maus”. A própria língua tupi refletia, para Gândavo, afeição desordenada da sociedade indígena: “Não se acha nela F nem L nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”. O Padre Fernão Cardim escrevia em 1592 que “este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador nem de cousa do Céu... e, portanto, não têm adoração nenhuma nem cerimônias ou culto divino”. Religião sem templos, sem adoração de ídolos, sem sacrifícios de animais, sem representações figuradas das divindades, a religião dos índios tupi-guaranis passou despercebida para os europeus e esses acreditaram, mesmo, que não tivessem nenhuma. Para os europeus do século XVI, a descoberta da existência de seres humanos na América colocava uma séria questão: como incluir os índios nos esquemas de compreensão do homem e do mundo daquela época, em que a Bíblia era considerada em sua literalidade? Como ligar os índios à história da humanidade 15
em seu todo, já que desde Santo Agostinho afirmava-se a unidade do gênero humano? Por outro lado, se a Bíblia dizia que a palavra dos apóstolos correria toda a Terra, teria a doutrina cristã chegado até os tupi-guaranis da América?
“Quem são estes que como nuvens voam e como pombas para seus pombais? Esperam-me as ilhas e as naus do mar estão há muito preparadas para que tragam seus filhos de longe e o ouro e a prata delas consigo”.
“Sim, a doutrina cristã foi transmitida aos índios na Antiguidade pelo apóstolo São Tomé”. Isso foi afirmado por Manuel da Nóbrega, pelo Padre Vieira, foi ideia plenamente aceita nos séculos XVI e XVII. Na verdade, o que se fez foi interpretar o mito de Sumé, herói civilizador a quem os Tupis atribuíam, principalmente, o conhecimento que eles tinham da agricultura e de sua organização social, como uma narrativa da vinda do apóstolo São Tomé para a América.
Além do mito de Sumé, outro mito indígena foi interpretado pelos europeus nos termos da narrativa bíblica: o mito do dilúvio. Assim se expressou o marinheiro alemão Hans Staden a respeito:
Com efeito, os nomes “Sumé” e “Tomé” têm semelhanças sonoras. Por outro lado, se os índios não eram idólatras, isso poderia ser consequência dos ensinamentos cristãos que foram dados a seus ancestrais na Antiguidade. Além disso, muitos missionários afirmaram a “inocência dos índios”. Jean de Léry menciona uma verdadeira lição de vida que um velho índio lhe deu. O índio queria saber por que os franceses vinham buscar o pau-brasil de tão longe: “- Mas esse homem tão rico (isto é, o negociante de pau-brasil) não morre? - Sim, disse eu, morre como os outros. - Na verdade, agora vejo que vós... sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos... e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também?” Desse modo, se o índio tinha valores espirituais admiráveis, se se podiam respigar no discurso indígena parcelas da verdade cristã, isso seria um indício da pregação do apóstolo São Tomé no passado. O dominicano Gregório Garcia em 1607 escrevia em sua “Origen de los Indios del Nuevo Mundo” que há menções ao continente americano na própria Sagrada Escritura. O próprio nome de Colombo e os de seus companheiros estariam subentendidos em Isaías, 60:8: 16
“Narram que houve uma vez uma vastidão de águas na qual todos os seus antepassados morreram afogados. Somente alguns escaparam numa embarcação e outros sobre altas árvores. Penso que deve ter sido o dilúvio”. Assim, enlaçando o passado indígena com a história da salvação da humanidade, a percepção do mundo índio se tornaria coerente, a verdade bíblica ficaria a salvo do relativismo geográfico, garantida estaria a universalidade da Revelação e os esquemas de compreensão do homem e do mundo, fundados na Bíblia, não seriam subvertidos. Desse modo, os índios foram, nos séculos XVI e XVII, considerados cristãos adormecidos, esquecidos da doutrina que, ensinada havia muito tempo atrás, ter-se-ia transmitido oralmente, haja vista o desconhecimento da escrita por eles e, assim, teria chegado incompleta e fragmentada, não levando, portanto, a uma prática e a uma correção de vida que deveriam corresponder ao conhecimento pleno da palavra de Deus. YBY MARÃ É YMA, O PARAÍSO DOS HOMENS-DEUSES Contudo, quer fossem pagāos sem conhecimento algum de seu Criador ou cristãos adormecidos, com muitos valores que eram, certamente, os do Evangelho, a verdade é que os índios tupi-guaranis tinham uma religião, uma religião sem Teologia, sem nenhum discurso sobre a divindade, sem um panteio a cultuar e sem deuses para os quais oferecer sacrifícios propiciatórios. A essência de sua religião era a crença na Terra sem Mal, a Yby marã-é’yma dos tupis, a Yvy marã-e’y dos guaranis.
À diferença do paraíso cristão ou muçulmano, que os justos conquistarão somente após a morte, a Terra sem Mal tupi-guarani teria existência geográfica e realização histórica. É um lugar acessível aos vivos, onde seria possível ir de corpo e alma, sem passar pela morte. Nela estão os ancestrais que morreram, mas a morte não seria condição necessária para atingi-la. Não se poderia, por outro lado, assimilar a concepção da Terra sem mal à concepção do Reino de Deus na teologia de Teillhard de Chardin ou na Teologia da Libertação, segundo as quais o Reino de Deus começa já neste mundo: “O Reino de Deus já está entre vós” (Mateus 12:28). A Yby marã-e’yma não admite a temporalidade histórica, a imanência como seu elemento componente, como quer a Teologia da Libertação. Ela é a superação do tempo, a negação da vida social, a completa anulação da ordem estabelecida. Desse modo, não existe, aí, um messianismo verdadeiro. No Judaísmo, a Era Messiânica também teria realização histórica. O Messias judeu seria, com efeito, além de um instaurador da paz e da justiça, um libertador político. Desse modo, na raiz da concepção de uma Era Messiânica estava um projeto político: a libertação de Israel da dominação babilônica e, depois, romana, conduzindo ao advento de uma era em que Israel dominaria o mundo e a lei de Deus triunfaria no plano temporal. Estaria, enfim, superada a dialética entre o plano humano e o plano divino, entre a vontade do homem e a vontade de Deus. Uma concepção messiânica clássica, assim, implica que o religioso e o político convirjam para a realização de um mesmo objetivo: “a sobrevivência de uma sociedade ameaçada por outra na sua própria existência” (Clastres, 1979). O messianismo clássico implica a abolição da dominação e do jugo do mais forte sobre o mais fraco. O Messias viria com força e poder para derrotar as hostes inimigas e implantar uma nova ordem política: “Levantará o seu estandarte entre as nações, juntará os fugitivos de Israel e reunirá os dispersos de Judá dos quatro cantos da terra”. Isaías 11:12. A Terra sem Mal é, ao contrário, a negação de qualquer ordem política e social. O religioso e o político
tornam-se inconciliáveis. Se o Reino de Deus judaico-cristão é a plena e cabal realização da lei de Deus e é regido por seu poder, a Terra sem Mal é a negação de qualquer poder, de qualquer ordem política, mesmo que divina. Isso porque está aí implícita a possibilidade de os homens serem seus próprios deuses. Estamos, aqui, diante de uma religião ateia, sem cultos ou sacrifícios, mas não sem práticas religiosas. Na Terra sem Mal não existe a morte, a terra produz por si mesma os seus frutos, o milho cresce sozinho, as flechas alcançam espontaneamente a caça. Somente opulência e lazer eternos. O trabalho estaria prescrito para sempre. Se há, aqui, algumas semelhanças com o Jardim do Éden, há também diferenças profundas. O Jardim do Éden é governado pela vontade de Deus. Desobedecer a ela (ou desacatar o poder que o governa) implica a punição de perder o paraíso. Pois ao homem tudo era permitido no Éden, menos fazer algo que conferisse a ele o poder de ser igual a Deus. Assim, a sua presença ali era condicionada a sua obediência a um poder maior que limitaria a ação do homem. Na verdade, tudo, sem exceção, ali seria permitido. O mal é a existência da ordem político-social. Danças e bebedeiras seriam ali as ocupações exclusivas. Não é por acaso que no paraíso tupi-guarani só se dança e bebe-se: a festa é a melhor expressão da contra-ordem, é a negação da tirania do trabalho, da submissão ao poder, do controle social, da opressão do tempo. Assim, na Terra sem Mal há a abolição de qualquer poder: lá todos se autogovernam. Recuperar a plena liberdade é assumir a natureza divina que a sociedade destruiu. Nenhuma submissão à divindade, uma vez que o homem se tornaria sua própria divindade. Mas a Terra sem Mal, sendo um espaço real (situado, segundo alguns índios, para além das Cordilheiras dos Andes, segundo outros, no meio do oceano, segundo outros, ainda, no interior da Terra), exige a migração para que seja encontrada. Exige também um profeta que a anuncie e faça ver a possibilidade de atingi-la, tal como Moisés a conduzir seu povo para Canaã. Mas, se atravessar o Mar Vermelho significava para os hebreus libertar-se do jugo dos egípcios, buscar a Terra sem Mal significava, para os tupi-guaranis, 17
libertar-se de si mesmos, de sua própria condição de homens, das peias que a sociedade lhes criava para chegar à condição de deuses. Seus profetas eram os “caraíbas” (ou “caraís”, para os guaranis). Eram homens solitários, que viviam separados da convivência social. Jejuavam, viviam em silêncio e se diziam filhos da virtude suprema, sem pai terreno, descendentes dos heróis celestes, dos heróis civilizadores. Sua missão primordial: anunciar a Terra sem Mal. Tais caraíbas tinham livre trânsito pelas aldeias por onde passassem e eram recebidos com reverência e solenidade. Estavam sempre acompanhados, para onde quer que fossem, por um séquito de índios. Seu poder era eminentemente espiritual e religioso e não político. Seu discurso era sempre sobre o paraíso indígena. O padre Nóbrega ouviu um deles e assim o relatou: “Chegando o feiticeiro (isto é, o caraíba), com muita festa, ... entra numa casa escura e põe uma cabaça de figura humana ... e mudando a sua própria voz como a de um menino, ... Ihes diz que não cuidem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si crescerá e que nunca lhes faltará de comer e que a caça por si só virá à casa e que as flechas irão ao mato caçar para seu senhor e hão de matar muitos dos seus contrários e cativarão muitos para os seus comeres. E promete-lhes longa vida e que as velhas hão de se tornar moças e que dêem as filhas a quem quiserem e outras coisas semelhantes lhes diz e promete”. Também o francês Jean de Léry assistiu, no século XVI, a um ritual comandado por caraíbas, com danças e cânticos entremeados de discursos. Segundo contou o intérprete de Léry, os caraíbas falavam dos mortos e dos ancestrais e da certeza de encontrá-los “por detrás das grandes montanhas” para dançar e festejar com eles; falavam também do mito do dilúvio. A razão de enlaçarem o tema do paraíso com o do dilúvio (ou do fim do mundo) veremos adiante. Se os profetas eram os caraíbas, a viagem para a Canaã indígena, para a Terra sem Mal, era uma penosa travessia em meio a florestas, campos, serras, uma viagem sem destino, sem chegada. Com efeito, as migrações para a Terra sem Mal são feitas há séculos 18
pelos índios tupi-guaranis e já envolveram deslocamentos de milhares de pessoas pelo território da América do Sul. Se encontramos índios guaranis, hoje, no litoral paulista, é somente por esta razão: a busca do paraíso. Eles vieram com a finalidade de atravessar a “grande água”, o oceano, além da qual crêem que ele se encontre. Os movimentos de guaranis do Paraguai para a costa atlântica começaram no século passado. Hoje há muitos deles em aldeias próximas de São Paulo, ou junto ao mar, em Peruíbe, São Sebastião, Itariri, etc. Relata o grande etnólogo Curt Nimuendaju, que trabalhou longo tempo com os guaranis: “Em maio de 1912 encontrei, para surpresa minha, o acampamento de um pequeno grupo de guaranis paraguaios a apenas treze quilômetros a oeste de São Paulo... Eram autênticos índios da floresta, com o lábio inferior perfurado e arcos e flechas, sem conhecimento do português e falando apenas algumas palavras em espanhol. Era o que restava de um grupo maior que, aos poucos, no caminho, havia ficado reduzido a seis pessoas... Eles queriam atravessar o mar em direção ao leste”... A própria existência de índios tupis, os primeiros que entraram em contato com os portugueses, em toda a costa do Brasil desde o século XVI, leva-nos a pensar que a busca da Terra sem Mal fosse a razão de eles estarem ali, imaginando eles, provavelmente, que o paraíso estivesse no meio do oceano, como ocorre com muitos guaranis hoje. Mas se o paraíso estava, segundo alguns caraíbas, no oceano, para outros estaria “por detrás das grandes montanhas”. Essa crença levou milhares de tupis do Brasil até o Peru, rumo à Cordilheira dos Andes, de 1539 a 1549. Depois de dez anos de marcha e milhares de mortes (nenhum maná lhes foi descido do céu, como ocorreu, segundo o Pentateuco, ao povo hebreu, no deserto), os cerca de doze mil índios saídos do Brasil reduziam-se a trezentos e foram capturados na cidade peruana de Chachapoyas. Contaram aos espanhóis que, em seu percurso, haviam passado por um país provido de “tanta riqueza que afirmaram haver ruas mui compridas entre eles, nas quais não se fazia outra coisa senão lavar pedras d’ouro e pedrarias”. Era com efeito, o Eldorado, um mito que fascinou os espanhóis e os levou a grandes expedições pelo
interior da América do Sul, à sua procura. O mito da Terra sem Mal, de um lado, e o do Eldorado, de outro, fariam os índios tupi-guaranis e os espanhóis cruzarem a América do Sul em direções opostas. Há muitos relatos sobre as marchas de milhares de índios para a Terra sem Mal. Outro bem conhecido é do capuchinho Claude d’Abbeville, que veio para o Brasil quando os franceses tentavam estabelecer uma colônia no Maranhão, a chamada “França Equinocial”. Diz d’Abbeville que o capitão La Ravardière, o comandante dos franceses, teria encontrado sessenta mil índios no Maranhão, provenientes de Pernambuco, que iam em busca da Terra sem Mal. Encontrou os índios “no centro de uma floresta desconhecida”. O caraíba que comandava os índios intimara-os a “permanecer ali, dançando, até que seu espírito lhes ensinasse o lugar para aonde deveriam ir”. A dança, com efeito, é uma ascese que torna o corpo sutil e o prepara para a viagem ao paraíso. O transe a que se chega por ela, pela bebida, pelo fumo e pelo canto é o caminho para se ter visões da Terra sem Mal. Um guarani revelou-nos, certa vez, que o pajé de sua aldeia tinha visões dela e as revelava aos outros índios nos momentos de transe. Mas não é somente o desejo ardente de rever os antepassados e de obter a imortalidade que impele os índios tupi-guaranis para a Terra sem Mal. É também a certeza de que o mundo será destruído por um cataclisma. A Terra, que já foi destruída uma vez por um grande dilúvio, será destruída novamente. Pode-se, agora, entender por que os caraíbas a que Léry fez menção falavam, ao mesmo tempo, da Terra sem Mal e do dilúvio. Com efeito, um caraí guarani encontrado por Nimuendaju em 1947 afirmou que estivera em sonho no paraíso e lá “soubera estar próximo o fim do mundo” (Schaden, 1963). Podemos, assim, compreender por que Tupã, a entidade que preside à destruição pelo raio, foi assimilado ao Deus cristão e bem aceito pelos índios. A verdade é que a religião dos índios é comandada pela figura de uma entidade destruidora e não por uma entidade criadora. A alma guarani, voltada para o outro mundo, é essencialmente milenarista, vê sempre diante de si o fim do sistema de coisas e da ordem estabelecida. Todo milenarismo vê no fim do mundo a condição pré-
via para a instauração da nova era que deverá chegar. Se a viagem até a Terra sem Mal é uma experiência de dor, de privações, de sofrimentos e até de morte, recusar sua busca equivale a esperar pelo pior, pelo cataclisma que destruirá o mundo. Desse modo, ao escolher, Tupã, a entidade que presidia ao raio, como o correspondente ao Deus cristão, os missionários do século XVI tocaram um ponto sensível da alma tupi-guarani, algo que, se não fazia sentido para o Cristianismo (cujo Deus é, antes, criador), era pleno de significado para o índios. Bosi (1992) bem percebeu que “a nova representação do sagrado, assim produzida, já não era nem a teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível”. Devemos buscar, sem dúvida alguma, no interior da própria religião guarani uma explicação para o êxito das missões jesuíticas da América do Sul. Desde o início do século XVII os jesuítas passaram a congregar índios para a catequese dentro de um verdadeiro enclave político onde, além dos próprios jesuítas, somente o Papa e o rei da Espanha teriam autoridade. Isto é, criavam dentro do sistema colonial espanhol um território que já foi chamado de “República Comunista Católica” ou “República Jesuítica Guarani”. Duzentos mil índios foram isolados por eles do sistema colonial espanhol, uma população enorme para o século XVII. Devemo-nos perguntar, agora, por que milhares de índios aceitaram viver sob a tutela dos padres jesuítas. Conversão autêntica? Condições econômicas estáveis que garantiam sua sobrevivência? Fuga da submissão aos espanhóis nas grandes propriedades rurais conhecidas como “encomiendas”? Seja qual for a causa determinante, o que é certo é que a essência da religião guarani, a busca da Terra sem Mal, encontrava guarida na religião católica. Que outra coisa seria a Vida Eterna prometida aos justos pelo Evangelho senão a própria realização do sonho de chegar à Terra sem Mal? A grande diferença é que os jesuítas prometiam uma Terra sem Mal após a morte e os caraíbas indígenas para esta vida. Não havia, assim, como os padres frustrarem os índios em sua mais profunda aspiração, a da imortalidade. 19
Com efeito, não foi a crença num Deus que se encarnou, que padeceu e morreu na cruz para a remissão da humanidade que tocou as notas mais profundas da alma guarani. A ideia de um Deus derrotado na cruz pelos homens era-lhes estranha. O que realmente identificou os guaranis das Missões com o Cristianismo foi a possibilidade de chegarem eles à Terra sem Mal, ainda que essa assumisse, agora, uma roupagem cristã. Com o avanço da civilização, os espaços vazios para os índios tupi-guaranis tornaram-se poucos. Migrar hoje para a Terra sem Mal implicaria deparar-se fatalmente com a cultura do homem branco, passar por suas fazendas, por suas cidades, por suas estradas, sofrer a violência policial, a hostilidade dos fazendeiros, a incompreensão da sociedade em geral. Assim, o discurso dos caraíbas teria de mudar, fatalmente. A Terra sem Mal ainda permanece como o tema essencial dos discursos e ritos daqueles índios, mas muitos não acreditam mais na sua existência terrena. Um guarani mbyá da aldeia “Morro da Saudade”, situada dentro do município de São Paulo, em meio à Mata Atlântica, disse-nos que ele chegaria à Terra sem Mal, mas após sua morte. O cacique daquela aldeia, porém, afirmou-nos que ainda em vida ela poderia ser atingida. Mas a migração para ela tornou-se impossível. Hoje tal busca tem um caráter mais interior, mais espiritual que físico. A vida social é, assim, a grande provação, antes representada pela migração em busca do paraíso. Antes obstáculo para que o homem se tornasse um deus, a vida social é hoje validada pelo discurso dos caraís. Isso porque se tomou consciência de que as sociedades indígenas se destroem e estão agonizantes, se não fisicamente, pelo menos culturalmente. Em 1980 o líder guarani Marçal Tupã dizia ao Papa João Paulo II, quando de sua visita ao Brasil: “Ha’ekuera oipe’ apa ore yvy, ndoroguereko véima mba’eve, mba’eichapa roikoveta upéicharõ?” “Eles tomaram nossa terra, já não temos mais nada. Como viveremos assim?” 20
Se os índios chegarão vivos ao novo século (disso não há dúvida, pois sua população está aumentando), sua cultura, com grande probabilidade, se perderá ou se enfraquecerá. A consciência disso é perceptível em muitas tribos. Assim, se o discurso sobre a Terra sem Mal não deixou de ser profético, já não anuncia o advento da plena liberdade do homem, de sua divinização, mas a morte próxima das sociedades. Segundo Clastres (1979), ele “nada mais tem a dizer, a não ser anunciar seu próprio fim”.
SALVADOR
Doutora em Línguas Africanas pela Universidade Nacional do Zaire (Congo). Assessora Técnica no Museu da Língua Portuguesa. Foi diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA.
YEDA PESSOA DE CASTRO NOSSA LÍNGUA BRASILEIRA Da África Do século XVI ao século XIX, o tráfico transatlântico trouxe em cativeiro para o Brasil quatro a cinco milhões de falantes africanos originários de duas regiões da África subsaariana: a região banto, situada ao longo da extensão sul da linha do equador, e a região oeste-africana ou “sudanesa”, que abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria. Apesar dessa notável diversidade de línguas, todas elas têm uma origem comum que é o grande tronco linguístico Níger-Congo. Logo, são todas línguas remotamente aparentadas. A região bantu, banto em português, compreende um grupo de 500 línguas muito semelhantes, provenientes de um tronco linguístico comum, o protobanto, faladas em 21 países: Camarões, Chade, República Centro-Africana, Guiné Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo (Congo-Brazzaville), República Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Burundi, Ruanda, Uganda, Tanzânia, Quênia, Malawi, Zâmbia, Zimbábwe, Botsuana, Lesoto, Moçambique, África do Sul. Entre elas, as de maior número de falantes no Brasil Colônia foram kikongo, falado na República Popular do Congo, na República Democrática do Congo e no norte de Angola, kimbundo é a língua da região central de Angola, e umbundo, no sul de Angola e em Zâmbia. Sua principal característica é o sistema de classes que funciona por meio de prefixos que se ordenam em 10 a 15 pares (cl. 1/2, cl. 3/4, etc.), para exprimir a oposição singular e plural dos nomes, o aumentativo, o diminutivo, o locativo, o infinitivo dos verbos, permitindo ainda delimitar o sentido desse mesmo nome, como
no caso da cl. 1/2, com prefixos mu- / ba-, referentes a seres humanos, a exemplo de m uleke, mukama e ba.ntu, plural de mu.ntu, pessoa. Da classe ku-, a dos termos verbais (ku- é semelhante ao to do infinitivo verbal do inglês, to speak, falar), temos, entre outros, ku.koxila, dormitar, ku.xinga, insultar, ku.samba, rezar, enquanto da classe ka-, a dos diminutivos, temos, kamundongo, rato pequeno, e ki-, aumentativo, em quilombo, grande aldeamento. Quanto às línguas oesteafricanas, chamadas de “sudanesas”, as mais importantes foram as línguas da família ewe-fon, faladas no Golfo do Benim, e o yorubá. O yorubá é uma língua única, constituída por um grupo de falares regionais concentrados no sudoeste da Nigéria (ijexá, oió, ifé, ondô, etc.) e no antigo Reino de Ketu, hoje, no Benim, onde é chamada de nagô, denominação pela qual os yorubás ficaram tradicionalmente conhecidos no Brasil. Já o ewefon é um conjunto de línguas (mina, ewe, gun, fon, mahi) muito parecidas e faladas em territórios de Gana, Togo e Benim. Entre elas, a língua fon, numericamente majoritária na região, falada pelos fons ou daomeanos, concentrados geograficamente no planalto central de Abomé, capital do antigo Reino do Daomé, no Benim atual. NO BRASIL Iniciado o tráfico entre Brasil e África, já na primeira metade do século XVI observou-se a confluência de línguas negroafricanas com o português europeu arcaico, seiscentista e inculto das caravelas, falado por mares nunca antes navegados, cuja consequência mais direta foi a alteração da língua portuguesa na antiga colônia sulamericana. Essa alteração se fez sentir em todos os seus constituintes, léxico, semântico, prosódico, sintático e, de maneira rápida e profunda, na língua falada, o que deu ao português do Brasil um caráter próprio, diferenciado do português 21
de Portugal, principalmente pela riqueza da sua pronúncia vocalizada face ao consonantismo da atual pronúncia lusitana. Explicar o avanço do componente africano nesse processo é ter em conta a participação do negroafricano como personagem falante no desenrolar dos acontecimentos e procurar entender os fatores relevantes de ordem sócio-econômica e de natureza linguística que, ao longo de quatro séculos consecutivos, favoreceram a interferência de línguas africanas na língua portuguesa no Brasil. FATORES DETERMINANTES Como pano de fundo, a densidade populacional estimada entre quatro a cinco milhões de africanos transplantados para substituir o trabalho escravo ameríndio no Brasil que originou, durante três séculos seguidos, um contingente de negros e afrodescendentes superior ao número de portugueses e outros europeus, de acordo com as informações históricas disponíveis e as estimativas demográficas de época, a exemplo do censo oficial de 1823, que apontava 75% de negros e mestiços no total da população brasileira. Podemos, então, supor que essa vantagem, em termos de superioridade numérica, no confronto das relações de trabalho e na convivência diária, teria dado também a sua parte de contribuição para a constituição daquela “língua geral”, que foi usada no Brasil até meados do século XVIII por bandeirantes e catequistas e, segundo Câmara Jr. (1954, p.293) “não deve ser confundida com uma suposta persistência dos falares tupis na sociedade européia do meio americano”. Ao mesmo tempo, já se formavam os falares afrobrasileiros das senzalas, das plantações, dos quilombos, das minas. Mais tardiamente, de alguns núcleos da costa atlântica, até o seu estabelecimento como línguas rituais, a chamada língua-de-santo na Bahia, e, dispondo de um vocabulário menos rico, sob a forma de falares especiais de comunidades negras isoladas, como as que vivem no Cafundó, em São Paulo, e em Tabatinga, Minas Gerais. O LADINO E A MULHER NEGRA Na intimidade desse contexto histórico, o isolamento social e territorial em que foi mantida a colônia pelo 22
monopólio do comércio externo brasileiro, feito por Portugal até 1808, condicionou um ambiente de vida de aspecto conservador e de tendência niveladora, mais aberto à aceitação de aportes culturais mútuos e de interesses comuns. Aqui, destacam-se a atuação socializadora da mulher negra no seio da família colonial e o processo de socialização linguística exercido pelos negros ladinos junto à escravaria. “Ladinos” eram aqueles que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de português e podiam participar de duas comunidades sociolinguisticamente diferenciadas: a casa-grande e a senzala, para tomar o binômio consagrado pela obra do mesmo nome de Gilberto Freyre. Na condição de bilíngues, atuavam como uma espécie de intriguistas, de leva-e-traz, o que deu motivo ao ditado popular brasileiro “diante de ladino, melhor ficar calado”, desde quando podiam falar a um número maior de ouvintes, e influenciá-los, resultando daí por adaptarem uma língua a outra e estimularem a difusão de certos fenômenos linguísticos entre os não bilíngues, no caso, o “escravo novo” e o chamado “escravo boçal”, aqueles que não falavam português. Enquanto na casa-grande eram os preferidos para os trabalhos domésticos, privando da sua intimidade, nas senzalas lhes era confiado o poder da disciplina e do comando que se estendia às plantações e aos engenhos, na qualidade de capitães-do-mato e capangas, guardas pessoais de seus “proprietários”, com interesse dos quais eles eventualmente se identificavam. Entre os escravos de jó (da casa, domésticos), a mulher negra, na função de “mãepreta”, de babá, criadeira, teve oportunidade de interagir e exercer sua influência naquele ambiente doméstico e conservador, incorporando-se à vida cotidiana do colonizador, fazendo parte de situações realmente vividas e interferindo no comportamento da criança através de seu processo de socialização linguística e de determinados mecanismos de natureza psicossocial e dinâmica. Entre eles, os elementos de sua dieta nativa, com comidas temperadas com óleo de dendê, e componentes simbólicos do seu universo cultural e emocional que ela introduziu em contos populares e cantigas-de-ninar, tais como, seres fantásticos
(tutus, mandus, bois-da-cara-preta), expressões de afeto e carinho (dengo, xodó, cafuné), crenças e superstições (o homem-dosaco, o bicho ponguê), interdições alimentares. A LÍNGUA-DE-SANTO Subjacente a esse processo, é notável o desempenho sociolinguístico de uma geração de lideranças afro-religiosas que sobreviveu a toda sorte de perseguições e é detentora de uma linguagem litúrgica de base africana, veículo de transmissão simbólica de valores ancestrais religiosos, éticos, estéticos e de integração e ascensão na hierarquia sociorreligiosa do grupo, porque nela se acha guardada a noção maior de segredo dos cultos. Essa língua-de-santo é a fonte atual dos aportes lexicais africanos que enriquecem o português do Brasil, e a música popular brasileira é, hoje, o seu principal meio de divulgação, em razão de muitos dos seus compositores serem membros de comunidades afro-religiosas, como o foi Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros de igual grandeza, entre os quais os compositores de blocos afros, afoxés e escolas de samba dos carnavais brasileiros. Exemplo relevante é a palavra axé (de étimo fon/yorubá), os fundamentos sagrados de cada terreiro, sua força mágica, usada como termo votivo equivalente a “assim seja”, da liturgia cristã ou então “boa-sorte”, que terminou incorporada ao português do Brasil para denominar um estilo de música de sucesso internacional, tipo “world-music”, produzida na Bahia por Luis Caldas, nos anos 80, e conhecida por todos como “axé-music”. CRIOULOS E MESTIÇOS No século XIX, o processo de urbanização que se iniciava no Brasil a partir da instalação da família real portuguesa no Rio de Janeiro e a abertura dos portos em 1808, exigiram a fixação nas cidades da mão-de-obra escravizada recém-trazida da África, numa época em que a maioria da população brasileira era constituída de mestiços e crioulos. Estes, já nascidos no Brasil, falando português com “sotaque brasileiro” como primeira língua, por conseguinte, mais desligados de sentimentos nativistas em rela-
ção à África e susceptíveis à adoção e aceitação de padrões europeus então vigentes. Testemunho atual desse fato são as vestes e os paramentos sagrados das cerimônias festivas do modelo urbano do candomblé da Bahia, que se organizou naquela época. São saias rodadas, tecidos rendados, espadas, coroas, capacetes de evidente inspiração colonial europeia. Finalmente, com a extinção do tráfico transatlântico para o Brasil em, 1856, até a abolição oficial da escravatura no país em 1888, o tráfico interno foi intensificado. Negros escravizados das plantações do nordeste foram levados para outras nas regiões do sul e sudeste (depois ocupadas por europeus e asiáticos) e, em direção oposta, do centro-oeste para explorar a floresta amazônica, onde os povos indígenas são preponderantes. Em consequência, portanto, da amplitude geográfica alcançada por essa distribuição humana, o elemento negro foi uma presença constante em todas as regiões do território brasileiro sob regime colonial e escravista. Fenômeno semelhante dessa mobilidade humana com sua dinâmica cultural e linguística ocorre presentemente através das migrações de brasileiros afrodescendentes para os estados industrializados do eixo Centro-Sul do país e para as regiões de mineração do Norte e Centro- Oeste, em busca de melhores condições de vida. Na inevitabilidade desse processo de influências culturais recíprocas e em resistência a ele, o negroafricano terminou impondo, de forma mais ou menos subliminar, alguns dos mais significativos valores e traços expressivos do seu patrimônio cultural e linguístico na construção da sociedade nacional emergente e da língua portuguesa do Brasil. No entanto, nesse contexto sócio-histórico, cada língua ou grupo de línguas exerceu uma interferência própria. OS BANTOS No que concerne à interferência banto, ela é muito mais profunda e extensa em razão da antiguidade do povo banto no Brasil, denominado tradicionalmente de congo-angola, da densidade demográfica e amplitude geográfica alcançada pela sua distribuição humana em território brasileiro. 23
A sua presença foi tão marcante no Brasil no século XVII que, em 1697, é publicada, em Lisboa, A Arte da língua de Angola, do padre Pedro Dias. Trata-se da mais antiga gramática de uma língua banto, escrita na Bahia, para uso dos jesuítas, com o objetivo de facilitar a doutrinação dos “25.000 etíopes”, segundo Antônio Vieira, que se encontravam na cidade do Salvador sem falar português, mas, acreditamos nós, não necessariamente falando apenas kimbundo, desde quando poderiam ter sido embarcados em Luanda, mas trazidos de várias regiões de Angola. Situação semelhante deve ter ocorrido no quilombo de Palmares, proporcionando o desenvolvimento de um falar de base congo-angola, a deduzir pelos títulos de seus líderes, Ganga Zumba, Zumbi, Dandara, dos seus aldeamentos, Osengo, Macaco, Andalaquituxe e da própria palavra quilombo. Os aportes bantos ou bantuismos estão associados ao regime da escravidão (senzala, mucama, banguê), enquanto a maioria deles está completamente integrada ao sistema linguístico do português, formando derivados portugueses a partir de uma mesma raiz banto (esmolambado, dengoso, sambista, xingamento, mangação, molequeira, caçulinha), o que já demonstra uma antiguidade maior. Em alguns casos, a palavra banto chega a substituir a palavra de sentido equivalente em português: corcunda por giba, moringa por bilha, molambo por trapo, xingar por insultar, cochilar por dormitar, caçula por benjamim, dendê por óleo-de-palma, bunda por rabo, marimbondo por vespa, carimbo por sinete, cachaça por aguardente. Alguns já se encontram documentados na língua literária do século XVII, na poesia satírica de Gregório de Matos e Guerra. Entre os bantuísmos léxicos, merece destaque a palavra caçula, por ser a única conhecida e usada por todos os brasileiros para dizer “filho mais jovem” em lugar de benjamim que passou a significar “interruptor de corrente elétrica”, fato que vem corroborar a tese da influência sociolinguística da mulher negra na intimidade da família colonial, no desempenho de “mãe-preta”, a começar da babá, cuidadora das crianças e explica a razão de ser do ditado popular “o caçula é o dengo da família”, na voz africana de quem o criou. 24
OS OESTE-AFRICANOS Ao encontro dessa gente banto já estabelecida nos núcleos coloniais em desenvolvimento, também é registrada a presença de povos ewe-fon, cujo contingente foi aumentado em consequência da demanda crescente de mão-de-obra escravizada nas minas de ouro e diamantes, então descobertas em Minas Gerais, Goiás e Bahia, simultaneamente com a produção de tabaco na região do Recôncavo baiano. Sua concentração, no século XVIII, foi de tal ordem, em Vila Rica, que chegou a ser corrente entre a escravaria local um falar de base ewefon, registrado em 1731/41 por Antônio da Costa Peixoto em A obra nova da língua geral de mina, só publicada em 1945, em Lisboa. Esse documento linguístico, o mais importante do tempo da escravidão no Brasil, era para ser utilizado como um instrumento de dominação, como o próprio autor confessa. Seu objetivo, fazer chegar ao conhecimento dos garimpeiros o vocabulário, frases e expressões correntes entre a escravaria local, a fim de que rebeliões, fugas, furtos e contrabandos pudessem ser a tempo reprimidos e abortados. Nina Rodrigues, ao findar do século XIX, também registrou um pequeno vocabulário jeje-mahi (fon) de que ainda se lembravam alguns dos seus falantes na cidade do Salvador. Sob outro ponto de vista, os aportes culturais ewe-fon foram responsáveis pela configuração das religiões denominadas Tambor de Mina, no Maranhão, e pela estrutura conventual do modelo urbano jeje-nagô do candomblé da Bahia. Entre outras evidências, a orquestra cerimonial composta dos atabaques rum, rumpi, lé e do idiofone gã, o barco (grupo de iniciação), o peji, o assento, o runcó, o ajuntó, o decá, o panã, denominações de inegável origem ewe-fon. Ao findar do século XVIII, a cidade do Salvador, então denominada de Bahia, passa a receber, em levas numerosas e sucessivas, um contingente de povos procedentes da Nigéria atual, em consequência das guerras interétnicas que ocorriam na região. Entre eles, a presença nagô-yorubá foi tão significativa que o termo nagô, da Bahia, começou a ser usado indiscriminadamente para designar qualquer indivíduo ou língua de origem africana no Brasil. Rodrigues mesmo
dá notícia de um “dialeto nagô”, que era falado pela população negra e mestiça da cidade da Bahia naquele momento, que ele não documentou, mas definiu como “uma espécie de patois abastardado do português e de várias línguas africanas”. Logo, não se tratava da língua yorubá. Devido a uma introdução tardia e à numerosa concentração dos seus falantes na cidade da Bahia, os aportes do yorubá são mais aparentes, especialmente porque são facilmente identificados pelos aspectos religiosos de sua cultura e pela popularidade dos seus orixás no Brasil (Yemanjá, Xangô, Oxum, Oxóssi, etc.). Por isso mesmo, a investigação sobre culturas africanas no Brasil tem sido baseada nos mais proeminentes candomblés de tradição nagô-queto em Salvador, uma abordagem metodológica que vem sendo observada desde Rodrigues, e que terminou por desenvolver a tendência de interpretar os aportes africanos no Brasil através de uma óptica yorubá, mesmo quando não o são. No entanto, Rodrigues também documentou, à sua época, uma dezena de vocábulos das línguas hauçá, tapa (nupe), fulani e grunce, entre alguns dos seus falantes que ainda viviam na cidade da Bahia. Esses povos islamizados, embora ali numericamente minoritários, encontravam-se num centro urbano que lhes permitia uma relativa liberdade e facilitava suas relações interpessoais, numa condição favorável à promoção de revoltas que se sucederam nas primeiras décadas do século XIX, a princípio lideradas por hauçás, povos do grupo linguístico afro-asiático do norte da Nigéria. A mais importante de todas ocorreu em 1835 e ficou conhecida como Revolta dos Malês, palavra fon-yorubá para dizer muçulmano. O PORTUGUÊS DO BRASIL Depois de três séculos de contato direto e permanente de falantes africanos com a língua portuguesa de feição arcaizante no Brasil, o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português padrão europeu, descontada a matriz indígena menos extensa e mais localizada, é, em grande parte, o resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano.
Essa interação linguística, apoiada por fatores favoráveis de ordem sócio-histórica e cultural, foi provavelmente facilitada pela proximidade relativa da estrutura linguística do português europeu antigo e regional com as línguas negroafricanas que o mestiçaram. Entre essas semelhanças, o sistema de sete vogais orais (a, e, ê, i, o ô, u) e a estrutura silábica ideal (CV.CV) (consoante vogal.consoante vogal), onde se observa a conservação do centro vocálico de cada sílaba, mesmo átona. Esse tipo de aproximação casual, mas notável, provavelmente possibilitou a continuidade do tipo prosódico de base vocálica do português antigo na modalidade brasileira, afastando-a, portanto, do português de Portugal, de pronúncia muito consonantal. (Cf. a pronúncia brasileira *pi.neu, *a.di.vo.ga.do, *ri.ti.mo em lugar de pneu, ad.vo.ga.do, rít.mo). Nesse processo, o negro banto, pela antiguidade, volume populacional e amplitude territorial alcançada pela sua presença no Brasil colônia, como os outros, adquiriu o português como segunda língua por transmissão irregular, tornando-se o principal agente transformador da língua portuguesa em sua modalidade brasileira e seu difusor pelo território brasileiro sob regime colonial e escravista. Ainda hoje, inúmeros dialetos de base banto são falados como línguas especiais por comunidades negras da zona rural, provavelmente remanescentes de antigos quilombos em diversas regiões brasileiras, a exemplo da língua banguela em Minas Gerais. Ao encontro dessa matriz já estabelecida, assentaram-se os aportes do ewe-fon e do yorubá, menos extensos e mais localizados, embora igualmente significativos para o processo de síntese pluricultural brasileira, sobretudo no domínio da religião. Considerando que o português do Brasil não é um todo, um bloco uniforme, mas um conceito coletivo que se pode desdobrar em níveis, de acordo com as ocasiões, as regiões e as classes sociais, os aportes africanos estão mais ou menos completamente integrados ao sistema linguístico segundo os níveis de linguagem socioculturais, enquanto o português de Portugal (antigo e regional) foi ele próprio africanizado, de certa forma pelo fato de uma longa convivência. A complacência ou resistência face a essas influências recíprocas é uma questão de ordem sociocultural, e 25
os graus de mestiçagem linguística coincidem geralmente, mas não de maneira absoluta, com os graus de mestiçagem biológica que ocorrem no Brasil. NÍVEIS DE INTERFERÊNCIA Aportes lexicais p.d., palavras africanas que foram apropriadas pela língua portuguesa em diversas áreas culturais, conservando a forma e o significado originais: a) Simples: samba, xingar, muamba, tanga, sunga, jiló, maxixe, candomblé, umbanda, berimbau, maracutaia, forró, capanga, banguela, mangar, cachaça, cachimbo, fubá, gogó, agogô, mocotó, cuíca. b) Compostos: lenga-lenga, Ganga Zumba, Axé Opo Afonjá. 2. Aportes por decalque, palavras do português que tomaram um sentido especial: a) por tradução direta de uma palavra africana, mãede-santo (yalorixá), dois-dois (ibêji), despacho (ebó), terreiro (casa de candomblé); b) em substituição a uma palavra africana considerada como tabu, a exemplo de “O Velho”, por Omulu, e “flor do Velho”, por pipoca. 3. Aportes híbridos, palavras compostas de um elemento africano e um ou mais elementos do português: bunda-mole, espada-de-ogum, limo-da-costa, pó-de-pemba, Cemitério da Cacuia, cafundó de Judas. Nessa categoria estão os derivados nominais em português, a exemplo de molecote, molecagem, xodozento, cachimbada, descachimbada, forrozeiro, sambista, encafifado, capangada, caçulinha, dengoso, bagunceiro. INTERFERÊNCIA NA MORFOLOGIA E SINTAXE 1. Não há de ser por mero acaso ou seguindo apenas a deriva interna da própria língua portuguesa que, na linguagem popular e descontraída do falante brasileiro, a tendência é assinalar o plural dos substantivos apenas pelos artigos que sempre os antecedem, a exemplo de se dizer “as casa“, “os menino”, *os livro, segundo o padrão do plural dos nomes, feito por meio de prefixos nas línguas bantos. 26
2. As línguas africanas também desconhecem a marca de gênero, como em português padrão, a/o (menina x menino), o que pode contribuir para explicar melhor a instabilidade de gênero dos nomes (*minha senhor) que por vezes é observada no cancioneiro português antigo e também ocorre na linguagem popular e na fala do “preto-velho”, entidade muito popular na umbanda, tida como negros muito idosos que viveram o tempo da escravidão no Brasil. INTERFERÊNCIA NA FONOLOGIA, PRONÚNCIA 1. A tendência do falante brasileiro em omitir as consoantes finais das palavras ou transformá-las em vogais, *falá, *dizê, *Brasiu, coincide com a estrutura silábica das palavras em banto e em yorubá, que nunca terminam em consoante. 2. Ainda de acordo com a estrutura silábica dessas línguas, onde não existem encontros consonantais, como ocorre em português, também se observa, na língua brasileira falada, a tendência de desfazer esse tipo de encontro, seja na mesma sílaba ou em sílabas contíguas, pela intromissão de uma vogal entre elas, que termina por produzir outra sílaba, para seguir o padrão CV, consoante+vogal, a exemplo de pineu por pneu, ritimo por ritmo.
JUARA
Angelo é da etnia Apiaká. Integra a associação indígena inhã-apiaka e cursa Ciências Sociais pela UNEMAT - campus Barra do Bugres.
Clenildo mora na aldeia Mayrob, Juara - MT. Acadêmico da FAINDI, cursa Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso Carlos Alberto Reyes Maldonado.
Evanilson é o atual presidente da associação indígena inhã-apiaka. Trabalha como professor e cursa Ciência da Natureza pela UNEMAT.
ANGELO KRIXI CLENILDO KRIXI SABANES EVANILSON CRIXI MORIMÃ PROCESSO HISTÓRICO, SITUAÇÃO E ENSINO DA LÍNGUA MATERNA APIAKÁ. Nós indígenas do povo Apiaká somos do tronco lingüístico tupi, estamos localizados no estado de mato-grosso. As margens esquerdas do rio dos peixes município de Juara-MT, á 65 km. Na terra indígena Apiaká/Kaiabi. A nossa população é de aproximadamente duzentos e oitenta e cinco pessoas na aldeia mayrob. O povo APIAKÁ ainda tem outras aldeias em mato grosso, Mayrowi, Pontal e aldeia matrinxã que se localizam no município de apiacás e colider. Em levantamento oficial feito na década de 1950 os Apiaká foram contados extintos, mais estamos presentes até hoje na sociedade nacional. Na minha comunidade as pessoas se comunicam apenas em língua portuguesa e o idioma como a segunda língua. A história dos apiakas e uma historia de resistência. Entre o final do século XIX e o inicio do século XX, os apiaká serem fortemente alvos de massacres promovidos por patrões e vitimas de epidemias de doença de não-indígena “tapóga”, por esse motivo a população diminui bastante no século XX algumas
família mudaram-se para Missão Cururu, no Pará; outras continuaram trabalhando na seringa ao longo do rios Juruena e Teles Pires; algumas voltaram para a região de floresta nas imediação do rio São Tome, recusando o contato com os não-indígena “tapóga”; algumas foram tentar a vida em cidades do Mato Grosso, Pará e Amazonas. Fomos proibidos de sermos indígenas Apiaká, proibido de praticar os dialetos e até usar nosso idioma, era de extrema proibição. Depois de muita dificuldade e por falta de conhecimento dos idiomas Apiaká, a comunidade se organizou para busca-lo um falante e conhecedor do idioma, um senhor “Apiaká puro” Pedrinho Kamaçuri. Vindo do estado do Pará até o Mato grosso, a vinda dele teve como objetivo fortalecer, o conhecimento na língua materna. É o esforço conjuntos de professores da aldeia mayrob, com ajuda de dois estudante de pós-graduação da universidade de Brasília (UNB), o linguístico Alexandre Jorge Pádua e a antropologia Giovana Acácia Tempeste, realizaram trabalho de campo na aldeias apiaká nos anos de 2006 e 2007, fazendo coleta de palavras, frases, historias, musicas, danças e origem para elaboração de material didático que contaram
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com a colaboração dos professores Aryion Dall’lgna Rodrigues e Ana Sully Camara Cabral, do Laboratorio de Linguas Indigenas da universidade de Brasília na publicação de uma cartilha com (PALAVRAS APIAKÁ NHANDÉ NHE’ENH) para desenvolver as atividade dentro da escola, pois tínhamos perdido. Com essa produção e em cartilhas ficaram mais pratica de repassa e manter viva a nossa língua materna por meio de palavras, frases, cantos, danças, pinturas corporais e mito de origem que são ensinadas através da escola, pois estamos trabalhando para o fortalecimento, com objetivo que ela se torne primeira Língua na alfabetização das crianças. E uma das ações que a escola e comunidade tem feito para contribuição e fortalecer no incentivo a língua materna buscando uma alternativa para o desenvolvimento bilíngue, dentro das ações da escola começaram a buscar conhecer os traço da língua materna e buscar junto pessoa falante no idioma apiaká em outras localidade através de informação e pesquisando. Atualmente ela é ensinada aos alunos através alguns matérias produzidos na língua e por meio de atividades didáticas que contam a historia do povo. Essas ações estão contempladas no projeto politico pedagógicos (PPP) da escola e são desenvolvida por professores com formação em nível superior. Percebemos que esse material é muito útil para o ensino do nosso idioma, mais a comunidade também está caminhando junto com a escola para manter o ensino da língua materna viva no dia a dia. Uma da dificuldade e que não tem nenhum falante da língua e isso se torna difícil para o povo. Uma das politicas linguísticas que a comunidade tem a dotado foi a comunicação oral falada por todos os membros e famílias da comunidade e a escola tem traçado uma politica de fortalecimento e complementação de preservação da língua através da escrita e produção de matérias didáticas. Pois a partir do seis anos de idade ela começa a praticar língua materna na escrita e oralmente dentro da sala de aula e em casa as crianças já desenvolve e tem conhecimento de algumas palavras na língua materna como nomes de animais, peixes, aves e comprimentos. Um dos resultados desse trabalho é busca pelos direitos básicos não apenas o direito a terra, a saúde, a educação escolarizada, mas principalmente o direito de ser indígena, portanto, a cultura e o reconhecimento étnico como básico de sobrevivência a onde o povo Apiaká esta sobrevivendo na expectativa de seguir em frente na luta pela revitalização do idioma. Nota: Respeitando as características autorais do texto, foi mantida a grafia e concordância originais.
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SÃO VICENTE
Historiador e pensador brasileiro, foi professor titular da Universidade Harvard e da Universidade de São Paulo, entre outras. Como autor, publicou importantes obras da historiografia brasileira, entre elas “Orfeu Extático na Metrópole”, “A Revolta da Vacina” e “Literatura como Missão”.
NICOLAU SEVCENKO FRAGMENTO DE PALESTRA (...) Uma pesquisadora chamada Ellen Dissanayake estudou longamente em comunidades no Sri Lanka, na Nigéria, em Papua, Nova Guiné, chegou a uma compreensão bastante profunda do significado específico da maneira como a voz funciona pra produzir um efeito de criar nexos afetivos entre as pessoas e chegou a essa conclusão, de que não há nenhum outro instrumento capaz de produzir essa conexão afetiva tão profunda e tão fortemente quanto à canção. Uma das conclusões dela eu cito aqui: não importa o quão importante os significados léxicos e gramaticais eventualmente venham a se tornar. O cérebro humano é, primeiramente, organizado – ou programado – pra responder aos aspectos emocionais e entonacionais da voz humana. A razão porque é assim não é muito difícil de compreender. A gente adquire o nosso acesso à língua particularmente através das trocas sonoras que a gente, quando recémnascido, faz com a mãe – em especial. E como a criança não domina o código linguístico, não domina o código léxico-gramatical e a mãe, portanto, não pode usá-lo, a relação afetiva entre os dois se faz através de fraseados que são simplesmente a repetição de sílabas ou alongamentos e encurtamentos de vogais e consoantes. E é essa troca que produz a relação forte. A relação de ligação emocional entre a mãe e o filho e aquela a partir da qual a gente vai construir a matriz de todas as outras que a gente vai desenvolver ao longo da vida. Logo, a voz humana é o esteio da gente, da comunicação e da troca emocional – da troca afetiva. Nós, no entanto, pertencemos a uma comunidade cultural oriunda da Europa Ocidental, que tem um desenvolvimento histórico da música que privilegiou elementos sobretudo instrumentais e harmônicos, colocando a
voz num plano secundário; tratando praticamente a voz como um instrumento – como se a voz devesse seguir o registro instrumento e não o contrário. Nesse sentido, o livro do Tatit é extremamente estimulante, porque ele inverte essa relação e mostra como a cultura brasileira tá no sentido contrário e, portanto, muito mais em conexão com essas outras culturas extra-europeias. A primeira frase do livro do Tatit é exatamente essa: “o cancionista é um malabarista”. E é extremamente inspirada. Porque ela de imediato cria a conexão entre o cantor e o homem do circo, que tava conjugada na palavra francesa jongleur, que era o nome que se dava, simultaneamente, às pessoas que faziam malabarismos ou acrobacias no circo ou aos poetas cantores que cantavam nas feiras, nas praças e, eventualmente, nas cortes europeias. E o que é que fazia o jongleur cantor? Ele era um poeta que fazia com a voz o que os outros artistas circenses faziam com as tochas, ou com bolas, ou com quaisquer outras formas de malabarismos ou equilibrismos. É exatamente essa conexão que o desenvolvimento anterior na música europeia na direção instrumental e harmônica acabou comprometendo e da qual ela acabou se desligando. Esse jongleur também era conhecido como o troubadour. Troubadour que vem do verbo trouver. Aquele que acha, aquele que encontra, aquele que é, portanto, o compositor. O compositor compõe a partir de um processo de busca e de encontros, de soluções originais pro encaminhamento dessa relação entre o potencial da melodia, o potencial da voz e o contexto social da fala. No caso do troubadour, assim como no do jongleur, o alaúde ou a harpa são apenas instrumentos de acompanhamento, a música não é feita com eles. A música é feita toda com a voz. Essa tradição era a culminação de algo bem mais arcaico, que era a cultura celta – a cultura original da Europa anterior ao processo de romanização. Se a gente for investigar um pouco, por exemplo, nessa cultura, o nome que se dava às formas de canto, que 29
eram cantos basicamente religiosos, ou cantos-rituais, eles eram chamados de cantalons. Essa palavra possui a mesma raíz da palavra “encantamento” no sentido de mágica, ou de enfeitiçamento. E é dessa palavra que deriva no românico tardio a palavra chanson. Portanto, a canção – a origem histórica da canção – é o hino religioso, hino ritual, cuja função é exatamente produzir o efeito mágico de encantamento, de comunhão humana. É muito interessante observar que, no contexto da cultura celta original, os poetas místicos cantavam seus poemas sem acompanhamento instrumental. Eram canções estritamente vocais. Eram canções – e não música – nesse sentido. O que ele mostra, portanto, é que o canto é primordial ao desenvolvimento da música, e que a música em relação ao canto é vista como uma técnica. Os músicos tinham, na cultura celta, um status de homens livres e de artesãos superiores, mas não pertenciam à classe sacerdotal – que era exclusiva dos poetas cancionistas. No nosso caso, isso tudo é bastante relevante, porque todo mundo há de lembrar da velha poesia do Bilac, que nós somos a “última flor do Lácio. Inculta e bela.”, o que significa que nós fomos tardiamente e superficialmente romanizados. O lastro de tradição celta ainda é muito pesado na nossa cultura. E, como a gente sabe, ele foi fertilizado por um longo período de convivência com uma outra cultura de forte tradição cancionista que é a cultura árabe. E é dessa fusão celta-árabe que, em particular, vem a nossa tradição da canção – não da linhagem europeia – provavelmente, da linhagem europeia tardia. E, dentre os árabes, a mesma coisa; a gente pode observar a importância que tem para os árabes a canção, especialmente na tradição mística dos poetas sufis, da Pérsia. Para eles, o canto é de fato o elemento lógico central, o elemento ritual central no processo de incorporação da divindade que era a razão de ser da prática mística sufi. Segundo os sufis, o modo de se comunicar com os homens é através dos anjos, de maneira que quando os anjos se dirigem aos homens e abrem a boca pra se comunicar com eles, é Deus quem fala através deles. E Deus fala aos homens em forma de canção. Daí a música como canção ser a suprema forma de ciência – e não de arte – entre os sufis. Daí a distinção que eles fazem, semelhante aos celtas, entre a música cantada e a música instrumental. A música instrumental sendo praticamente subsidiária em relação à música cantada, e não o inverso. 30
Quem teve a felicidade de ler um texto seminal nesse sentido, “Vozes de Marrakech”, do Elias Canetti, o Canetti fez essa visita a Marrakech por mera curiosidade, mas ele não conhecia absolutamente nenhuma palavra em árabe. Ele não sabia dizer sequer sim ou não em árabe. E tendo chegado em Marrakech, ele se põe a passear pela cidade e se depara com uma cerimônia no portão da cidade, que depois, durante toda permanência dele, ele vai procurar reviver todo dia, que era o momento no pôr do Sol em que os homens das caravanas, que paravam sempre fora da cidade, e só alguns entravam pra fazer seu comércio na praça principal, no final da tarde, quando voltavam pras caravanas, se reuniam na porta para contarem histórias das suas viagens por toda a região do norte da África. E o extraordinário era isso: o Canetti se acercou pra ouvir coisa que ele não podia entender, porque ele não entendia árabe. E ele ficou um longo tempo intrigado se aquilo era narrativa ou se aquilo era canção, porque ele não conseguia distinguir entre as duas o que se passava ali. Mas o que ele percebeu é que, embora não entendesse nenhuma palavra do que tava sendo dito, ele se empolgava da mesma maneira como todos aqueles que estavam se empolgando ao redor, porque a voz vinha num tal ritmo, numa tal entonação, e tinha fluxos tão regulares, que ele podia rapidamente se dar conta de quais eram as formas que correspondiam a determinados tipos de emoção, de elevação, de sublimação, e, portanto, ele podia, sem entender palavra alguma, ter uma convivência afetiva intensa com aquela comunidade de forma que ele ria enquanto todos riam; chorava quando todos choravam; se empolgava quando todos se empolgavam. E aquela passou a ser uma cerimônia de que ele não abria mão durante toda sua permanência naquela cidade. E é nesse sentido que eu acho que essa experiência do Canetti lembra muito o que a professora Dissanayake concluiu nas suas pesquisas na África e no sul da Ásia. Na música árabe, a tendência – ao contrário do Ocidente, como eu disse –, é de que os instrumentos tendam a imitar as modulações da voz. Um dos grandes mestres sufi que é o al-Ghazali, escreveu numa obra seminal, o “Ihya” ou “Ulum al-Din”: não há outra forma de entrar no coração dos homens senão pela antecâmara dos ouvidos. Os tons musicais modulados e agradáveis ressaltam o que há no coração, revelando sua beleza ou seus defeitos. Sempre que o espírito da música e da canção tocam o coração, eles agitam e precipitam o que no coração tende a predominar.
RIO DE JANEIRO
Eu lembro de ver um show teu mais ou menos na época do Hips of Tradition – eu acho que devia ser aquela turnê ou logo depois – eu acho que era a primeira turnê que você fez depois do seu encontro com David Byrne; alí você usava esmeril ainda, você ficou um tempo usando esses instrumentos, e depois voltou a usar no Jogos de Armar, os instrumentos inventados. Você ainda usa algum desses instrumentos?
FELIPE HIRSCH TOM ZÉ
Rapaz, quando eu olho assim eu não sei nem como era, nem o que era. (risos) Você não lembra mais de alguns deles? Nada… Mas na época dos Jogos de Armar você… Bom, aí a gravadora pagou pra fazer tudo que a gente fabricou… Mas era uma coisa muito ligada àquela época e depois disso você foi… É cansativo o negócio da manutenção disso… Foi mais ou menos no final da década de 70, foi entre o Correio da estação do Brás e o “Nave Maria”… porque eu lembro que tem algumas imagens de shows, você tocando esses samplers, as enceradeiras…
IRARÁ
É, e tem também umas reportagens até boas da TV Cultura. 31
Isso, essas que eu assisti, da TV Cultura, exatamente. Isso é no final da década de 70, né? É, eu lembro que eu vendi uma casa que a gente tinha lá em São Sebastião pra construir aquelas coisas… Pra construir os instrumentos… você vendeu a casa. E aí você construiu o sampler, as enceradeiras, as buzinas… O sampler não é propriamente uma coisa que empenhe dinheiro. É uma delicadeza. Eu me lembro que o Roberto Maia pegou um toque de campainha e montou isso numa caixinha de madeira… Me lembro que Serginho Leite, que nesse tempo tava rapazinho ainda, disse assim “nossa, isso aí vai dar aquela coisa da eletricidade” e aí nunca deu… Nós ficávamos admirados. Porque naquele tempo eu tinha em casa uma enceradeira que Neusa mandou consertar e, como o defeito que tinha era interromper completamente a corrente, eu disse “isso aqui é um instrumento musical!”. Por causa do defeito da enceradeira. É, porque ela prrrrr, e ela parava imediatamente. Você tirava o componente da disparação… Eu me lembro que Maia era tão criança, tão invocado com música de outra maneira, que eu falei assim “puxa, isso deve ser uma coisa idiota” e eu lá, “prr, prr, prr, prr”... quando eu olhei pra trás, ele tava com os olhos cheios d’água, e realmente ele 32
ajudou febrilmente. Um dia eu fui cedo pra casa deles – eles não tavam nem em casa – parece que eu tinha a chave, ou algo assim… que a família dele tinha se mudado da casa… eu subi, e liguei o aparelho, e botei pra funcionar, e eu mesmo coloquei uma música, uma coisa inesquecível que nunca mais… É uma coisa impressionante como a gente perde as coisas… depois de eu ter perdido tudo, e tudo desaparecido, eu fico assim, como... eu botei um anúncio pros amigos. E aí um camarada, um espanhol que era empresário aqui há muito tempo, disse “será que é isso?” aí a gente disse “deve ser isso”, e ele me mandou essa gravação. Eu gravei uma porção de coisas, repeti e tal e tal, e tornei a perder. Então, quer dizer, você não tem esse material gravado dessa época. Nem um A. Foi tudo por água abaixo. No Nave Maria você não teve vontade de retomar esse tipo de experimentação? Ah sim, em 1980, Cesare Benvenuti, que era o diretor técnico do disco… e montou o estúdio no Rio, falou “eu vou gravar seu disco lá”. Ele nunca tinha visto as coisas. Então, uma noite– a primeira noite que voltou a ter aquela corrida que começava meia-noite em Interlagos – a gente passou a noite ouvindo ronc ronc de motor. E então eu achava que – eu tinha várias teorias – eu achava que podia fazer um negócio que eu chamava
de “geográfico”, que qualquer coisa que se tocasse no braço do instrumento, que fosse igual, daria certo. Mas aí, rapaz, foi uma tristeza. Não sei quantas pessoas tocando essa guitarra. Aquele “tu di gan, tu di gan…”. O riff de Nave Maria. É, e não se conseguiu tocar, a noite toda perdida. E as gravações começavam meia-noite que era quando o estúdio tava desocupado. Nós voltamos de lá às 4h da manhã, e a hora que a gente ia saindo eu disse assim “puxa vida” e íamos abandonar a ideia. E eu disse “o interessante é o que eu gravei lá em casa”. Aí eles quiseram ver, aí eu peguei o aparelho, peguei, toquei… e falaram “ah, então nós vamos gravar aqui”. “Então você tem que reduzir essa coisa”. Aí eu vim pra casa com um problema técnico pra resolver. Passou um mês e eu resolvi, porque eu descobri que o contrabaixo tocando, com a guitarra, uma oitava acima, mas a guitarra com distorção fazendo “tum dimba tum dimba tum dimbadabadá”... que parecia que tinha dez instrumentos. Era uma coisa incrível! A distorção não é nada… todo mundo faz, mas aquele… É a mesma frase de Mã, não é? No Mã, era um disco da Continental e o José Briamonte fez o arranjo, ajudou bastante, e ele botou metais, tinha dinheiro pra botar tudo né, era uma gravadora… então é muito bonito com o trombone… e depois, o fato de fazer só com um baixo e uma
guitarra substitui todos aqueles trombones... foi um milagre, uma bênção de Deus. Por que você revisita a mesma frase no Nave Maria? Sim, sim… acontece uma coisa: eu dizia assim, “meu Deus, a batida de baião é assim ‘tá, tantan, tá, tantan’”. Se fizesse um e dissesse “acabou”. Como é que fica? Eu pensei “aquilo é uma batida. Pode fazer trezentas milhões de músicas”. Mas eu, no Mã, eu não tinha aproveitado nem o mínimo possível porque eu fiz sem os instrumentos, a conversa entre o gênero da canção e o ritmo, e quando eu fiz Nave Maria, eu consegui com alguma felicidade, alguma sorte. Tanto que David Byrne me perguntou “o que é isso, é um bis?”. É, ele abre a coletânea com Mã e fecha com Nave Maria. É, porque ele queria que esquecessem esse riff (risos). Mas, por acaso, na peça, a gente usa as músicas muito próximas, porque as duas músicas tratam de assuntos cosmogônicos: nascimento. Eu disse assim “como é que o disco se chama?” Nave Maria. O Helinho viu isso que você tá dizendo e fez uma capa comigo nascendo. Na peça existe um certo prólogo cosmogônico assim, a gente usa cosmogonias guaranis, saudações iorubás e o protoindo-europeu também. E também
existe uma cosmogonia do Tom Zé ali. Mas eu queria te perguntar sobre a música nova, Hy Brasil Terra Sem Mal, porque só você mesmo para chegar na relação da busca por aquela ilha nesse mito celta, com a da terra sem mal dos tupis.
ficar uma ideia de samba mais respeitável. E ele disse que tinha posto isso, e eu não ouvia e nem ele, porque as caixinhas lá de cima eram pequenas… e quando desceu aqui, você já ouviu num estúdio grande? Quando ele botou ali pra ouvir, eu caí pra trás!
É claro que suas palavras tavam aqui no meu ouvido o tempo todo e os textos também, pra me orientar (risos). E eu um dia tinha uma espécie de base, que era aquele começo do violão que passa quase 20 segundos… e eu mostrei a Daniel Maia e ele disse “isso é bom”. Eu comecei a tentar fazer algo a partir daquilo. E ia experimentando colocando uma coisinha ali, uma coisinha acolá. E eu fiquei refazendo o refrão trezentas vezes. E tinha que ter um contra-refrãozinho, essas coisas de fazer um samba que é A e B. Ali fica A, A’ e B. Tem uma certa complicação. Aí eu botei um negócio, é “uma ilha sem fuzil, sem ba-ba-baba-bala civil” que acabou sendo uma ideia boa, aquele ba-ba-ba-ba-ba. Eu tinha escrito aquelas partes meio sem esperança e por acaso tive a felicidade de fazer uma música ótima pra aquela parte. Depois quando eu botei a parte do índio, eu já fiz pra ter o formato do alongamento de cada texto, de cada linha do texto, igual ao de cá pra cantar depois… Daniel sofria pra me ajudar porque, por exemplo, ele trouxe uma batucada pra gente botar, e as batucadas que ele trouxe eu não gostei de nenhuma. Mas você não pode ficar dizendo “não, não, não” à pessoa que tá te ajudando né… e ele só botou um surdo, pra poder
Você escutou todos os graves… Quando tocou no estúdio aqui embaixo, que eu fui ouvir os surdos, os graves, a música bem mixada, que ele mixou bem, botou a voz bem clara na frente… quando eu botava na frente, ficava parecendo um escândalo. Eu fiquei assombrado, parecia que eu nunca tinha feito aquilo. E eu fiquei tão feliz. O Daniel realmente é um arranjador, um ajudante técnico, eu sempre disse isso, mas eu tenho que continuar. Por exemplo, agora eu vou fazer o iorubá e eu vou fazer sem ele, vou dar a ele depois, com algumas ideias de arranjo. E o que significa fazer sem ele, é fazer no violão? Não, eu vou compôr. Que agora eu tô numa fase boa, que eu tô conseguindo fazer melodias assim com facilidade. Eu começo a cantar e aparece a melodia com algum… A melodia do samba é lindíssima… A preocupação no todo, que vai acontecer no Hy Brasil é a de 33
fazer uma base que deve estar bem longe da região onde a voz humana canta, agudíssimo com cavaquinho ou bem no grave com contrabaixo; bem passível de sobrepor textos, situações, coros, voz masculina e feminina. Eu, então, peguei esse acento e comecei a cantarolar o nome da ilha Hy Brasil. Em a Língua Prova Que eu tornei a investir em uma narrativa, tanto que ficou uma música de dez minutos. Ora, uma música de dez minutos, tem que ser dez músicas de um minuto. Foram dez canções se montando na minha cabeça. Na medida em que eu ia fazendo, ia te mostrando, era uma coisa que você intervia com muitas opiniões que pra mim foram uma beleza porque me ajudava a definir que caminho devia tomar. Isso foi uma beleza. Foi incrível o jeito que você me ajudou a ter coragem e força para perseguir essas músicas. É engraçado, porque a gente foi pra tantos lugares nesse projeto, desde que a gente começou a conversar… A verdade é que a gente começou a conversar muito brevemente através de e-mails lá atrás, num espetáculo que eu fiz lá atrás, há muito tempo, mas ainda, muito… muito como... a minha admiração por você… Você tinha gostado daquela peça. E a gente passou por algumas fases. Mas quando a gente ouviu Língua Brasileira, que foi uma sugestão da Neusa, eu acho… e foi uma revelação pra gente. 34
É, eu falo porque eu acho que “Mares-algarismos” é o maior verso que eu fiz na minha vida. A letra é uma coisa linda, a música é linda. E, sobretudo, a gente achou um caminho pra peça, assim… e isso foi fundamental. Pois é, eu lembro disso. Eu me lembro de sua alegria quando você disse “é a Língua Brasileira”, olha que ideia! É, e de alguma maneira tinha a ver com o que a gente vinha fazendo. Então foi um casamento perfeito. E aí você começou a pesquisar com aquelas criaturas, que quando a gente lê as coisas que eles escrevem, a gente só falta chorar. E a gente não acredita mesmo na quantidade de gente que a gente reuniu em torno disso. O Eduardo Navarro nos ajudando com o tupi, o Caetano Galindo, o próprio Viveiros de Castro que nos deu informações… é tanta gente reunida. O Caetano escreveu até um texto sobre isso, assim, uma rede fraterna… todo mundo ajudando um pouco pra construir esse trabalho. Mas veio, de fato, dessa música, Língua Brasileira. Você lembra de quando você compôs essa música, qual o contexto na sua vida, porque ela foi lançada no Imprensa Cantada. É. Eu achava a música muito boa. Mas ela ficou num disco que,
aparentemente, foi um disco improvisado. Eu tinha cantado num show em São Bernardo aquela música antiga, sem acompanhamento. E eu dizia “puxa, deve estar um abacaxi aqui!”. Qual música você tá falando? Que eu ouvia no alto-falante de Irará. Lupicínio! Mas quando eu comecei a cantar no palco, mesmo sem acompanhamento, eu achei uma coisa muito bonita. Então eu botei aquilo pra abrir o disco. Que é impressionante, tinha umas músicas sobre censura. Daniel disse que agora é o disco preferido dele. Ah, é? A tal Imprensa Cantada que você faz… E quando eu fui ver, tomei susto na hora. Porque era um disco lá abandonado e tal… e essa música lá que eu achava uma música… Eu me lembro que um dia eu ia fazer um programa numa televisão aí qualquer e um americano, o nosso amigo lá dos Estados Unidos, Christopher Dunn, tava conosco. Eu falei “puxa, ele vai pra televisão ver eu cantar uma música, então eu vou cantar Língua Brasileira porque era uma coisa que tinha representação e tal… e ficou muito bonito… E você tocou isso com a banda ou com o violão? Eu toquei sozinho. Eu sempre também achava essa música uma coisa fora de… parecia uma coisa perdida dentro daquele disco.
É interessante que ela tenha então dado origem a isso… Eu não sei que dia me veio a ideia… se eu tivesse a letra aqui, pra me lembrar… “Quando me sorris, visigoda e celta”… “Quando me sorris, língua de aviz”… Ah, foi um negócio que me comoveu. Foi um negócio da mulher que foi tirada do enterro e foi beijada pelos nobres. Inês! Inês. Aquilo me impressionou no ginásio. E então, veja bem, Inês ocupou só um versinho: “Dama, culta e bela...”. Eu tava lendo muito o Rosa e o Euclides. Aí esse verso do “dama, culta e bela”. Isso é do Olavo Bilac, né? Inculta e bela… Aí isso entrou aqui… e “Língua de Aviz” é coisa que a gente ouvia… “Fado de punhais / Inês e desventuras / Lá onde costuras / Multidão de ais”... Eu fiz versos felizes como esses… “Mel e amargura / Fatias de medo / Vinho muito azedo / Tudo com fartura”, e depois, “Cravos da paixão” eu soube, por acaso, como tinha sido aquela revolução dos cravos e fui feliz… “Com dores me serves / Com riso me pedes”. Essa segunda pessoa do plural, que é uma coisa difícil na língua portuguesa… “Babel das línguas em pleno cio / Seduz a África, cede ao gentio / Substantivos, verbos, alfaias de ouro”... Essa importância da presença
árabe na Península Ibérica, eu já fiz um disco todo sobre isso. Isso tava na minha cabeça. “Os seus olhares conquistam”... Aí vem esse verso, que, Deus abençoe! “Mares-algarismos / Onde um seu piloto / Rouba do ignoto / Almas e abismos”. Minha nossa senhora! (risos) Outra… “Verbo das correntes / Com seu candeeiro / Todo marinheiro / Caça continentes”. Puta que pariu! (risos) Que inspiração. “Ao cantar matinas”... Neusa gostava muito disso… como é que chama isso? Era a... Nau Catarineta. Está na peça! “Ao cantar matinas / Acha três meninas / Sob um laranjal”. É lindo isso. Chora Portugal… era uma porção de coisa, aí Neusa achou que era melhor “sob o laranjal”. Aí vem um verso: ”Última das filhas / Ventre onde os mapas / Bordam suas cartas / Linhas Tordesilhas” que é aquele acordo… “Em nossas terras… a cartomante...” Essa ideia da cartomante, “corta o baralho”. Eu queria saber sobre esses últimos versos! Queria que você falasse desses últimos versos. Isso foi achado logo no começo da tentativa da música. Uma cartomante que abre o baralho e “Abismada vê / Nosso destino num samba-canção”... Isso eu fiz de várias e várias e várias maneiras, até ficar dessa.
Tem um certo parentesco com a ideia do samba-canção como um formador da bossa-nova, você sempre fala. Mas aqui foi, eu vou te falar, o destino num samba-canção, aquele destino português; aqueles fracassos, que o samba-canção era… Eu lembro da gente lendo o poeta português que ficava na janela, o… Pessoa. Sempre tentando salvar Portugal… daquela defecção, não sei se é isso… daquele abandono, da força investigativa que se manifestou na navegação e tal… E aí saiu isso: “Nosso destino em um samba-canção”. O Fernando Pessoa tem aquela frase famosa no Livro do Desassossego, “Minha pátria é a língua portuguesa”. E… agora, há pouco tempo, em 2016, um pixador subiu num relógio, agora, no meio dessa crise política brasileira, ele subiu no relógio na Central do Brasil e escreveu “Pátria é o lugar onde somos amados”, frase do Lermentov. E exatamente por essa frase aqui do Olavo Bilac, esse que fala que é uma língua de esplendor e sepultura, porque a gente passou pela graça da Babel das línguas, e ao mesmo tempo por uma tragédia enorme. O glotocídio. Mil línguas destruídas, devoradas como diz o Krenak. O Antônio Abujamra foi à Europa, passou algum tempo, e quando ele voltou, disse assim: “Essa língua é a língua do abandono. Quando eu fui fazer meu primeiro show no exterior, lá na Suíça, foi 35
quando eu descobri que podia cantar no exterior, que eu não sabia. Eu até ensinei ao público, falando em inglês desgraçado, que ninguém tá ligando pra isso, o povo até me ajudava a falar inglês, ensinei eles a cantar a palavra saudade, e eles fizeram o coro de Augusta, Angélica e Consolação. Eu e Lauro ficamos… Porque depois de 22h na Europa, não tem lugar nenhum que venda bebida. E tinha, no hotel, um cara com a cara de mais alemão, tinha uma cerveja que ele tirava, de 5 dólares. E a gente passou a noite toda comemorando. A noite toda bebendo e fumando, que eu não fumava há muito tempo. Porque nós descobrimos que era possível fazer show no exterior e eu não sabia. Foi uma tristeza fazer a despedida aqui no Brasil. Nós transformamos em despedida… o povo cantando “que saudade”... todos os refrões e tal… Quando eu vou pra Europa cantar com essa língua?… Mas foi um sucesso… (risos) A gente tem, hoje, quase duzentas línguas em extinção nesse país, sendo mais de uma dúzia delas faladas por muito pouca gente, por três, quatro pessoas… todas essas línguas nativas. E, no entanto, o Brasil está aprendendo a entender um pouco disso, do esplendor da mistura dessa língua, e, da sepultura. Essa perpetuação da escravidão, o extermínio de povos nativos indígenas, e várias línguas consumidas por isso. A peça não é nada didática, nunca é uma peça de tese, mas é uma peça poética, assim. Uma epopéia, como é a Língua Brasileira. 36
Eu tenho paixão por esse espetáculo. Tem um dado que nos impressionou muito durante a construção da peça: conversando com o Viveiros e conversando com o Navarro, nós entendemos que não há nenhum registro tupi. De todo o povo nativo tupi da costa da época. A gente não tem nenhum. Só temos registros em tupi já catequizando, ou seja, Anchieta, João de Barros... as cartilhas e peças em tupi, português e latim, para que eles começassem a rezar. Tem dois índios potiguares, os Camarão, discutindo se ficam do lado dos holandeses, mas já cristãos. E todas aquelas rezas que eram impostas escritas em tupi. E os franceses que registraram a passagem deles pelo Brasil. Mas nós não temos nenhum registro em tupi antes disso. Línguas com três mil ou quatro mil anos no nosso continente. Temos o mbya Guarani. E a gente continua sendo, de alguma maneira, massacrado e colonizado por esse tipo de sistema. O Caetano tem essa frase, acho que você leu, que uma língua tem um exército, uma marinha e uma aeronáutica. Há, háa, háaa!!! Oh, meu Deus, que maravilha! Agora somos invadidos de outras formas. É a mesma coisa… É o Vale do Silício, a linguagem, a Netflix, mas isso é um outro assunto enorme… Queria
te perguntar, qual é a próxima? Você tá trabalhando em cima da língua do iorubá... Sim, sim. É claro que aquilo é de uma beleza de doer. Puxa vida! A língua é a maior e a pior comida. Jesus, que povo criador, hein, rapaz? Você falou algumas vezes em entrevistas que você sentia que existia uma relação na música que você ouvia – não sei se são os aboios – com as músicas árabes… Isso, no sertão tem escalas que não são papais, não são diatônicas. Tem escalas mesmo. Você canta certas posições diferentes, você nasce cantando e ouvindo. De dó pra ré tem dóooooooOOOOO… até chegar no ré, entendeu? Tem nove sons de dó pra ré. E o que eles contam do aboio é que ele teria vindo dos cantos religiosos do Oriente até o Brasil, e que chegaram com os escravizados… então talvez esses cantos tenham vindo de uma parte muçulmana da África? Sem dúvida. Eu que sou madrugador, eu ouço um programa da moça lá que se chama Mapa Mundi. E esse Mapa Mundi só tem o Oriente (risos). Que parece tudo igual, quer dizer, igual pra nossa ignorância, né? Eu ouço toda manhã uma porrada de música que eu chamo de música do Koellreutter. Música do Koellreutter porque ele gostava de música japonesa.
Não, não é propriamente música moçárabe. Eu fiz um disco onde a gente faz tudo que a garganta humana pode fazer sem ser cantar.
nho Le Petit disse: “agora que eu entendi o que era janela” (risos). E eu em cada música fazia uma janela, que era o seguinte: vinha aquela coisa toda irracional, aí ia tomando uma certa racionalidadezinha, aqui ficava uma racionalidade, uma música racional, e aqui se desmanchava novamente pra acabar. E aí fizemos isso doze vezes e no fim ele percebeu o que era janela.
O que você dá nomes de revoltas…
E por que você relacionou a nomes de guerras…
Danç-Êh-Sá. Dança dos herdeiros do sacrifício. Danç-Êh-Sá.
Parece a intuição de um povo que tinha uma música que não era essa música do Papa Gregório IX. Era uma revolução onde a música diferente se transformava em gesto diferente, em povo diferente, em raça diferente, aí tinha encontros e desentendimentos com a raça branca.
É. E você falou que fez um disco sobre música moçárabe. Que disco é esse, que eu conheço todos os seus discos.
Eu acho esse disco incrível na sua discografia, porque ele é… bom, claro que você sempre é extraordinário, mas ele, pra além de tudo é um disco que já parece um remix… Como foi essa experiência? Eu estudei bastante o que é que eu posso fazer com o meu aparelho fônico – não sei como é que chama – sem ser cantar? É claro, eu posso pigarrear, eu posso… há há há, eu posso he he he, eu posso iiinheeeinnn, eu posso uma porção de coisas com as quais eu fiz música. Como espirrar… tem uma música de espirros.
Eu acho esse disco incrível… E outra coisa, um dia um cronista americano fez um comentário geral, estudando Tom Zé, quando eu fiz Estudando o Samba, ou uma coisa qualquer… ele disse assim: “Olha, e não se pode desprezar a brutal beleza de Danç-Êh-Sá”.
Mas você não acha que tudo que você faz ali é melódico?
É, eu acho esse disco muito, muito especial. Você chegou a fazer show desse disco?
Tem melodia sim, “atchiiiiim”, mas tá muito longe de canção, né? Tinha uma coisa no disco, que eu chamava “janela” e o técnico de som era Paulinho Le Petit que é um cara muito bom. Quando o disco acabou, Pauli-
E ensaiar isso com a banda! E dava certo, o público entrava na festa, fazia festa com aquilo. Eu me lembro daquela cantora Suzana Salles, que era uma cantora craque, né, canta até em alemão. Suzana Salles tava um dia
debaixo duma ponte e a gente ia fazer um show. Ela tinha acabado de gravar conosco o Pagode. E aí quando ela viu Danç- Êh-Sá, disse assim: “que isso? Ele acabou de fazer uma coisa daquela e aparece com uma coisa dessa? Em que mundo nós estamos?” (risos). Eu acho que ele vai ser descoberto e redescoberto ao longo dos tempos… Ah, eu também acho. Como você descobriu essa música, querido? Ah, mas essa música já foi descoberta há muito… Não, como você descobriu e viu a capacidade que ela tinha de… Essa música é uma epopeia. Bom, enfim… Foi bom você fazer a entrevista hoje, que eu sou assim pra entrevista: eu viro o meu pai, falo sem parar, grito… Ah, mas assim que é bom. Eu adoro quando você conta a história de você aprendendo a ler. (risos) Você sabe que essa história se compara a outra coisa que eu acho ainda mais bonita. Vou contar. Dizem que aos 2 anos é a fase que você mais aprende na vida. Você nunca mais aprende como você aprende aos 2 anos; olha que coisa maluca! Você não fala a língua da tribo e você tá aprendendo?! Quer dizer, tem línguas que são línguas... tem línguas que Deus… o amor, por exemplo, que língua é essa? (risos) 37
É a transição do ser da natureza pro ser da cultura. Você sai da natureza pra entrar na cultura. Então tem um dia na minha infância que eu lembro que eu mudei… que eu fiz um procedimento que não era da minha idade. Assim, eu ficava deitado num berço, como toda criança fica naquele mundo nosso. Se não incomodar, é santa. Se incomodar, é doida… você fica lá o dia todo… Aí, uma hora eu senti que a casa… porque aí eu tava com outros ouvidos, que a casa mudou; a circulação de ar, a quantidade de ar. E percebi isso. Aí falei assim: é meu pai que tá entrando pra almoçar. E aí, pronto. Daqui a pouco voltei ao normal, voltei à minha língua normal e tal. E depois teve outra coisa que você perguntou como é que eu… Aprendeu a ler. Ah, quando a gente é criança, no meu tempo que criança não entrava na escola pré-primária; você entra na escola quase adulto, com 8 anos de idade pra fazer o primário, então sua mãe de vez em quando lhe chamava e bê a bá bé bi bó, e você tinha que aprender e tal, e eu dizia “pô, é cada coisa que existe pra apurrinhar criança, né”, criança é perseguida… Aí 1, 2, 3, 3 e 3 6, 3 vezes 4 12… e você aprendia que cada dia tinha uma hora pra você se entregar praquele castigo que não servia pra nada. Aí quando eu, chegando na escola, a professora mandou ler um texto… aí eu vi que aquelas 38
sílabas formavam um som que era uma coisa que eu conhecia (risos). Aí ela fazia assim “Pedro, que estava sentado, no fundo da sala, pediu à professora que tava doente”. Eu olhei pra ver se tinha Pedro, mas sabia que não tinha Pedro nenhum lá na nossa turma, mas falei “como é que uma coisa assim é tão poderosa? Será que uma pessoa, em qualquer lugar do mundo, que leia isso vai entender o que eu tô entendendo? Isso é um absurdo!”. Fiquei arrepiado. Aí “Pedro veio pra falar com ela, perguntar pro”. Aí eu falei “minha nossa senhora, isso faz a pessoa andar? Que maravilha!”. Aí “Pedro ia sair porque em casa tinha um problema e ele tinha que ir e quando saiu tava chovendo”. Eu falei “nossa, isso faz chover!!!” (risos). Isso faz chover!!! Mas isso aí você não fala nada com ninguém nessa sua idade, nem chega em casa não fala nada com ninguém. Aí eu “vamos dizer que a pessoa esteja na prefeitura, que é do outro lado da rua, a pessoa vai entender a mesma coisa que eu tô entendendo aqui do outro lado, esse sinal tem tanto poder? Que coisa, como é que se inventa uma coisa dessa! (risos) Que lindo… a partir daí é uma mudança de vida, não é? Mudou tudo na tua vida. Eu cheguei em casa, não falei nada com ninguém. Criança não falava com adulto. Nem tinha vocabulário. Vocabulário pra explicar o quê? Aí eu tava assombrado, né… e aí eu me sentei numa escada, curiosamente é um negócio simbólico, porque da es-
cada só tinha o pré-cabralino, as fazendas, as roças, no máximo uma estradinha de barro, e tal… E fiquei de costas pra cidade, que é a civilização que me fez ver aquele negócio naquele dia… eu passei aquela tarde toda ali pensando nisso, passei três dias pensando, depois falei “olha, o mundo é assim mesmo, tá acabado. Deixa pra lá!”. Você falou em pré-cabralino, você teve uma relação com o pré-cabralino no sertão? Nossa educação no interior era moçárabe. A criança depois de nascer ficava num lugar onde tivesse gente. O lugar que tinha mais gente era o pátio onde ficava a cozinha, a arrumação da casa, e era assim num quintalzinho, que cada casa tinha pelo menos um quintalzinho. Aí, imagina, entrava um aguadeiro que era do bumba meu boi. Aí eu vivia a aprender coisa que o cão duvida, no falar dele… que eu não entendia a língua, mas o jeito…Aquelas coisas que Resnais fez um filme sobre isso… Ah, e outra coisa, criança não se brincava com ela, ela não falava papai e mamãe antes dos três anos com ela. Ninguém ia lá bibi bibi com ela, trazer brinquedinho, nada… Ela ficava lá. Se ela é uma criança normal tava lá no mundo. E claro que ela tava aprendendo coisa E por que você faz o uso da palavra moçárabe pra isso? Porque a concepção de mundo que nos livros se chama moçárabe. Não sei nem se é…
Mas da cultura moçárabe? É. Por causa da invasão portuguesa, e uma coisa curiosa, que depois eu juntei a tudo: quando eles conseguiram expulsar os árabes de Portugal, a última possessão foi Granada. E isso foi um século antes da navegação. Eu aí digo brincando: só foi plantar as árvores, colher, fazer os navios, sair navegando o mundo porque tinha cultura pra isso. Porque os árabes eram o povo mais culto. Divulgaram ou inventaram o zero. E aí eu dizia assim: meu Deus, como é que o zero só foi inventado no século VII, agora, eu posso pegar com a mão, pegar com a mão o século VII. Como é que a civilização babilônica construiu, fez arquitetura sem zero? E os textos do Alcorão são dessa época, né? Porque na verdade os moçárabes eram cristãos. Mas uma mistura entre o mundo muçulmano e o mundo português. É, e nasceu por causa do filho – eu li isso no Thomas Mann – do filho de Abraão que era o filho da empregada e que, criança sabe como é, tem brincadeiras mais ou menos sexuais, e ele pegou duas crianças brincando e expulsou, porque o filho dele ele queria que fosse o pai da humanidade. Deus tinha prometido, disse a ele que seu filho ia ser o pai da humanidade. Então expulsou a mãe e o menino. Tom, você fala muito da entrevista do Sevcenko, que ele conta um pouco da formação da composição popular a partir da
formação entre celtas, árabes, persas, isso tá um pouco na essência da música, dos visigodos que seriam… O principal povo bárbaro do mundo moçárabe são os visigodos. Que já eram cristianizados. Qual a influência do Sevcenko nisso? Você fala que é uma coisa muito pessoal sua. Você chegou a falar pra mim “só eu sei disso porque escuto o Sevcenko falar isso e sempre tive isso na cabeça, nunca falei sobre isso”. Quando eu fui convidado por Luiz Tatit, porque ele me tinha como um grande compositor; no lançamento do livro dele, me deram a palavra, eu tentei falar coisas que tavam no livro dele, no trabalho dele, e que parecem com o trabalho de Charles Sanders Peirce, o americano da semiótica. Mas é claro que eu falei – eu não sou preparado pra nada disso – falei bobagem como o diabo. Aí ele, pra chamar outra pessoa, “não, Tom Zé, não é nada disso” e tal, e eu, que até entendo quando tão falando mal de mim, que já é uma coisa difícil, eu fiquei lá, disse muito bem, agora vou ficar meio quieto aqui. E ele chamou o Sevcenko pra falar. Quando ele começou, eu tava com aquela dor de humilhação, não era nada, mas eu tava. E lá vai ele falando e eu também ouvindo. A partir de certo ponto eu me interessei, pensando que tava me interessando dentro da tristeza que eu tava. Mas quando eu vim pra casa e que a tristeza passou, eu disse “porra, o que é isso?” eu tô estudando isso há dez anos, sobre a influência árabe na coisa portuguesa, na
música, e ele então fala dessas coisas, fala que o religioso persa, os sufis saem com as caravanas pra vender Deus e o diabo, que a vida deles é vender. Entram no oceano, pegam os navios, passam pelo Magreb, se influenciam com ritmos africanos… Os berberes também, né? O povo do deserto tem uma relação. Faz a volta e entra por Andaluzia pra vender na Espanha. Quando entra lá, encontra o povo árabe recém-chegado, com a força da música deles, pega na música celta do lugar, da cultura do lugar, e aí entra na sua também e essa trindade forma a música brasileira. Engraçado que ele fala assim: as primeiras peças tiradas dessa miscigenação são de uma sublimidade. Por que os caras na Inglaterra, por exemplo, quando falam do bicho que virou gravador, eles vão lá em Nova York e visitam o bicho. Como foi que eles acharam essas músicas? São as trovas galegas, os trovadores também. E também tem essas coisas que eu aprendi com seus colegas e com você, que conseguem de algum modo, saber como falavam civilizações que acabaram há séculos e séculos. É, a partir do DNA, da construção… É bonito isso, né? É inacreditável o que o ser humano pode investigar. Isso é muito recente. Por exemplo, a peça começa 39
falando de uma descoberta razoavelmente recente de uma ossada de uma criança com seis semanas de vida. E aquela que eu tô falando que tomou nome de uma música dos Beatles. Ah, isso é na África, Lucy. Mas aqui, a gente começa falando no Alaska, de uma ossada de criança de seis semanas que foi encontrada – de um nome paleo-esquimó que dizia Menina do Nascer do Sol – e de muito pouco tempo pra cá eles conseguiram analisar o DNA a partir de ossadas, e com isso conseguiram datar que há mais ou menos doze mil anos essas migrações chegaram do leste da Ásia no nosso continente. Então toda formação do povo ameríndio vem do leste da Ásia e todos somos irmãos, porque todos vêm do que seria hoje a região da Mongólia, da Sibéria, etc. Agora, isso muda a cada dia, porque o estudo de DNA é… a cada dia ele vai… é inacreditável, é muito bonito. É muito emocionante. “Somos um povo feliz bombardeado pela infelicidade. Somos um povo infeliz bombardeado pela felicidade”. Ah, é. Na ditadura de 64, o ambiente era muito duro. E eles diziam que o Brasil tava muito bem. É isso. Que o Brasil tava muito bem, tava progredindo, que aumentou o… como chama? A renda per capita… 40
Mas você ainda acha que somos um povo infeliz bombardeado pela felicidade? Agora a gente tá novamente numa coisa que ninguém podia imaginar. Seguimos um povo infeliz bombardeado pela felicidade. Sem a menor dúvida. Ontem eu vesti, pra fazer o show, uma roupa toda pelo avesso. Aí, falei “eu não vou falar nada, só vou...”, a roupa tava claramente pelo avesso e… mas tentei fazer uma canção de tarde “nossa vida anda agora muito pelo avesso” começando assim… mas a música era tão difícil, eu agora tô porque eu tô fazendo um exercício oriental de dizer assim “muita coisa boa vai acontecer na minha vida” e faz dez minutos por dia. E você começa a ficar alegre por dentro e começa a tomar contato com outras esferas, porque teve uma plantação de coisa negativa quando eu era criança, quando comecei a entender o mundo, minha família plantou um cultivo de árvores negativas que eu passei a vida molhando e vendo crescer. E lutei com isso, com essa outra coisa que me apareceu que foi um negócio de música, que eu fazia… Então a vergonha que eu tinha de subir num palco… Naquele livro que eu falava assim “meu Deus, eu preciso subir, pode ser que eu precise subir no palco”, eu estremecia de vergonha, de medo, e que aí fui estudar o homem da mala… tudo tem método. Sou inventor de métodos. (risos) Você sabe o homem da mala, né? Que vende
remédio fitoterápico na rua, na praça “aqui cura não-sei-o-quê.” E aí junta gente, ele é um mago, um falador, rima e tudo… E aí eu também vi esse homem, eu falei “como é que ele tem coragem de, na praça, num lugar…”. Porque o teatro já tem o palco e o lugar do público. Já tá estabelecida uma relação. E a praça não é nada. E ele transformava, como se tivesse prego, madeira e tal, constrói o palco e começa a vir o público. E eu ia pra lá todo sábado de manhã ver… eu aprendia a saber quem era, porque vinha com uma mala um pouquinho maior, saltava num caminhão pau-de-arara, abria a mala… e aí começava “e tal e tal e tal…” e aí juntava dois, três, dez, cem… Um aprendizado de como subir no palco um dia. É. Como é que se faz isso, subir num palco? Como é que se tem cara dura pra isso? E isso me serviu até o ponto de… o primeiro dia que eu fui na televisão, eu usei tanta coisa dessa natureza…(risos) E continua, né? O programa chamava Escada para o Sucesso. Eu fiz uma música que chamava Rampa para o Fracasso. Que eram os fracassos dos governos mais ou menos até ali. As coisas que eles diziam que iam fazer e não faziam… Bom, o material que fez a música do mundo e quando eu compreendi que era um material e que, sendo um material, podia se multiplicar... Por exemplo, eu dizia assim “uma coisa tá ali, se você trabalhar com ela, ela um dia… diz assim: eu já posso ir para o palco, eu já sou uma
linguagem, eu converso com outros instrumentos”. E você continua montando dessa forma, né? Claro, eu quando trabalho trabalho assim. É claro que eu tô velho… eu tenho 83 anos… e quando você ficar velho, tem algumas coisas que vão se diluindo, mas na paixão que eu tomei por essa peça, eu virei criança outra vez! Que maravilha saber disso. Eu fiz uma operação de coração agora, eu tinha um stent, botei em 2004. Agora botei mais dois stents que os de 2004 já tinham enferrujado, não sei como tava vivo. Aí o médico que botou os dois stents nas duas veias que tavam soltas por aí e por aqui, disse assim “ô, Tom Zé, que bom que você veio aqui hoje, senão a gente só ia ouvir de você no Jornal Nacional”. (risos) Mas eu tava aqui do teu lado e você tá à toda de novo… Tom, e a história do Correio da Estação do Brás que é a história dos nordestinos do Brás que você… isso é uma coisa bonita. Faro me chamou, e me disse “olha, eu vou fazer um filme de uns nordestinos que dessa vez não vão passar – que é uma tristeza – não vão passar o Natal no Nordeste…”, e aí ia uma repórter pro Brás, eu fui… “e eu quero que você faça as músicas, então eu quero que você veja pra poder se inspirar naquele programa”. Aí quando
eu vi a moça tentando conversar com o povo do Nordeste, eu falei “nossa, faça uma experiência: deixa eu fazer pergunta a ele, que ele fica menos acanhado, porque eu falo igual a ele”. Aí ela me deu… fiz um e ela me mandou fazer o resto. Aí pronto, falei com eles o tempo todo. Depois eu vim fazer as músicas. A primeira música que eu fiz, é uma que Neusa ama, foi “bença, mãe!”. A menina que… porque eu vi esse fato, né? Nós conversamos com a mãe que a menina ia, criança dela de seis anos ou coisa assim, e ela não ia, porque ia ficar trabalhando. E não tinha estação rodoviária, os ônibus do Nordeste paravam no Brás. Era o ponto de ônibus do Nordeste. Ela ia, entrou no ônibus, foi pra janela e “adeus, mãe”, e aí quando o ônibus fez a curva, ele ficou bem assim no meio da rua e a mãe aqui… e aí como foi que ela disse, meu Deus…”beeeeença, mãe”. Eu aí fiz aquela música “beeeeença, mãe. Deus te faça feliz, minha menina Jesus”! E depois teve a outra da carta… Tem a própria Correio da Estação do Brás, “Viajo segunda-feira Feira de Santana”... “Feira de Santana”! Porque era assim… em minha terra eu nunca fui à Feira de Santana em dia de segunda-feira porque eu ia a Salvador, muito mais elegante, né? Mas o homem que lidava com martelo, o homem que lidava com madeira, o homem que consertava isso, consertava aquilo… os donos de pequenos negócios…Iam pra Feira de Santana, e lá tinha tudo isso à mão
pra eles comprarem por preços razoáveis… então eu me lembrei disso quando vi aquela coisa deles indo pra o interior… “Viajo segunda-feira Feira de Santana / Quem quiser mandar recado / Remeter pacote / Uma carta ca...” aí eu me lembrei muito da linguagem, “Uma carta cativante / À rua numerada / O nome maiusculoso / Pra evitar engano / Ou então que o destino / Se destrave longe”. Porque tem essa coisa, o destino lá é um bicho danado, se destrava pra qualquer canto… “Bote aqui seu endereço / Sem deixar tropeço / Pode seu destinatário / Ter morrido ou se mudado / Pousado ou avoado / Nas sentenças do seu fado...”. Eu vi essas coisas a vida toda na loja de meu pai, eu trabalhei até me formar. Mesmo quando eu fui pra Bahia estudar, voltava nas férias, trabalhava na loja e eu gostava daquele povo, essa coisa engraçada, quando eu li Guimarães Rosa que eu desconfiei que ele tava falando daquele povo que eu conhecia, eu sabia que aquele povo era conhecido de algum lugar. Só que aquilo era depois do fim do mundo. Depois de onde o vento faz a volta, né? Eu comecei a ficar excitado e cada dia eu lia mais, aí no dia que eu tive certeza, fiquei chorando dentro do quarto. E naquele tempo criança que chorava a mãe batia, o pai batia porque tava ficando doido. Criança que chorava apanhava porque o pai ficava com medo de ele tá ficando doido. E eu, é claro, quando eu vi a minha mãe pisando lá naquele assoalho barulhento que era o piso de nossa casa eu já tava pronto lá que se ela entrasse 41
no quarto não ia me pegar com a menor cara de choro.
que dá o valor que eu dou, ave, isso é muito difícil…
Você é filho de Irará e dessa mistura com São Paulo, mas, Salvador ficou muito em você ou Salvador foi uma…
Tom, eu tô muito feliz, muito emocionado de fazer esse trabalho.
Não. Não ficou. É, eu percebo isso. Caetano e Gil salvadorenses, eu não sou. Porque eu tinha tanta vergonha de viver em Salvador. Era uma coisa mortal. Por exemplo, eu vivia dia e noite, a farda feita em Irará era diferente que a farda feita em Salvador, e eu achava que todo mundo via aquela farda que o botão não apregava aqui, que aqui a coisa ficava, sabe… eu morria de vergonha. Eu morria de vergonha! E no trato com outras pessoas, mesmo em Irará, eu morria de vergonha na sala. Teve um menino que compreendendo essa minha aflição começou a me roubar. Malandro, começou… aí todo dia ele… – nesse tempo meu pai tinha padaria – ele ia comprar uma coisa na loja, e eu dava a ele no troco o que eu devia a ele, mas eu sentia uma humilhação nisso… Eu não tava fazendo uma malandragem. O roubo a meu pai dava medo, porque uma hora ele ia saber. Mas eu ficava numa humilhação, como é que eu ia viver? Tinha que pagar uma criatura… Quando você vem aqui sempre é um encanto. Você sabe disso. Ainda mais você ouvir essas coisas, porque isso eu não tenho com quem falar, ninguém tem ouvido pra essas coisas. Uma pessoa 42
É uma glória da minha velhice (risos). É um encontro maravilhoso. Felipe, li mitos do livro de Prandi. Filiam-se a bonitas crenças animistas. De repente, um, falando sobre a língua, discute conceito moralmente profundo. Mergulhando no máximo, Kant dizendo que duas coisas o enchem de assombro: o céu estrelado sobre mim e a moral dentro de mim. Pois é aqui que se relacionam Urumilá, o primeiro babalaô, mais Obatalá, mais a língua. De touro. Mas, língua. Kant iorubá. A gravação está indo. Termino final da segunda parte. Entendo na alma o assombro de Kant. Acho linda a relação com o mito da língua, sobre moral, sobre saciedade ou fastio e também sobre perspectivas ou ângulos, pontos de vista. Por isso moral também. Kant e Nietzsche. Achei linda a letra, não vejo a hora de ouvi-la. Ando impressionado desde ontem com esse Haitiano domando a insensatez com voz paterna. Dizendo “estou falando brasileiro”, acho isso uma virada de roupa, a tal roupa ao contrário que você me disse, “pátria é onde somos amados”, “o Haiti é aqui”, o imigrante, as novas línguas chegando em São Paulo, o portunhol selvagem dos habitantes da fronteira, os bolivianos, os paraguaios, os nordestinos,
os venezuelanos, os haitianos dizendo “estamos falando brasileiro” para esses patriotas obscurantistas. Uma outra ideia de pátria como Policarpo vislumbrou na prisão, uma que não seja outra prisão em si, que admita sua história, e invente outra, mais livre, menos perpétua, mais negra, mais indígena, mais universal.
língua brasileira 43
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FICHA TÉCNICA
LÍNGUA BRASILEIRA
uma peça dos Ultralíricos e Tom Zé música e letras
direção geral
elenco
direção musical
músicos
(Gui Calzavara)
Tom Zé
Maria Beraldo diretora assistente
Juuar
dramaturgista consultor geral
Felipe Hirsch Fábio Sá
(Gustavo Sato)
Fernando Sagawa
(Cuca Ferreira)
Luiza Brina Thomas Harres
Caetano Galindo
(Gabriel Basile) (Daniel Conceição)
figurino
direção de arte
Cássio Brasil
design de som
Tocko Michelazzo design de vídeo
Henrique Martins
direção de palco
Nietzsche
assistente de cenografia e design gráfico
Bárbara Bravo
produção primeira fase
Bruno Girello Ricardo Frayha
assistente de produção primeira fase
Renata Bruel
Daniela Thomas Felipe Tassara preparação vocal
Yantó
assistente de direção e operação de vídeo
Sarah Rogieri
assistentes de iluminação
Sarah Salgado operação de luz
Sarah Salgado Igor Sane assessoria de imprensa
Factoria Comunicação Vanessa Cardoso difusão internacional
Ricardo Frayha
direção de produção
Luís Henrique Luque Daltrozo 46
Amanda Lyra Danilo Grangheia Georgette Fadel Laís Lacôrte Pascoal da Conceição Rodrigo Bolzan dramaturgia
Coletivo Ultralíricos Felipe Hirsch Juuar Vinícius Calderoni iluminação
Beto Bruel assistente de pesquisa
Adriano Scandolara assistente de figurino
Alice Tassara Marcelo X
operação de som
Le Zirondi Lúdi Lucas
produção Tom Zé
Neusa Santos Martins produção executiva
Arlindo Hartz
assistente de produção
Diogo Pasquim
CONSULTORIA EM LÍNGUAS
Santiago Franco mbya-guarani Otunba Adekunle Aderonmu iorubá Márcio Renato Guimarães protoindo-europeu Caetano Galindo Guilherme Gontijo Flores Paulo Martins grego e latim Pablo Gomes Théo de Borba Moosburger nórdico antigo / islandês antigo Aïcha Hocine Esra Sahtiyanci Öztarhan Jibril Keddeh Magida Hilal Maha Zawill Mamede Mustafa Jarouche Yasmina ben Mbarek árabe Teresa Aurora Thomas Finbow moçárabe Paulo Fernandes Miras Thomas Finbow galego Carlos Alberto Faraco língua portuguesa
Luis Gerald Fonseca Marcelo Módolo Simão Valente português antigo / europeu Miguel Fernandes patuá macaense Rogério Silva Lima crioulo cabo-verdiano Eduardo Navarro Romildo Gûyráakãnga Potĩgûara Thomas Finbow tupi antigo Marcel Twardowsky Ávila Thomas Finbow nheengatu Miguel Lubwatu quimbundo Israël Hounsou fon Elissandra Krixi Morimã Evanilson Morimã Luana Morimã apiaká Yeda de Castro Pessoa Caetano W. Galindo línguas africanas
Cláudia Carmo Jorge Louraço Figueira Fátima Madeira 47
ROTEIRO
título: Ayvu rapyta (A Fonte da Fala) autor: povo Mbyá-Guarani do Guairá, mito coletado por León Cadogan tradução: Josely Vianna Baptista revisão: Teodoro Tupã Alves consultoria da língua: Santiago Franco título: Ìjúbà Olökun (Saudações) autor: anônimo (Rezas de Ifá) consultoria da língua: Otunba Adekunle Aderonmu título: Avis akvāsas ka (A Ovelha e os Cavalos) autor: August Schleicher - reconstrução da língua protoindo-européia consultoria da língua: Márcio Renato Guimarães título: Psamético autor: Heródoto consultoria da língua: Guilherme Gontijo Flores título: De raptu Proserpinae. Metamorphoses, anno dcclxi ab urbe condita autor: Ovídio consultoria da língua: Guilherme Gontijo Flores título: Bronces de Botorrita (Placa de Botorrita) autor: anônimo consultoria da língua: Thomas Finbow título: Tabellae Defixionum (Tábuas de Maldição) autor: anônimo tradução: Arthur Ribeiro consultoria da língua: Guilherme Gontijo Flores título: Protocelta autor: anônimo consultoria da língua: Thomas Finbow título: Pompeii pixo-scriptum, (corridoio dei Teatri), 832 ab urbe condita autor: anônimo tradução: Bruno Fregni Bassetto consultoria da língua: Caetano Galindo e Guilherme Gontijo Flores
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título: Rio de Janeiro pixo-scriptum, (Relógio da Central do Brasil), século XXI autor: Kadu Ori
título: Hávamál (Rúnatal) autor: anônimo tradução: Théo de Borba Moosburger consultoria da língua: Pablo Gomes e Théo de Borba Moosburger título: Mu’allaqat (Poemas Suspensos) autor: Imru al-Qays tradução: Mamede Mustafa Jarouche consultoria da língua: Aïcha Hocinel, Maha Zawil e Mamede Mustafa Jarouche título: Carja Anônima Moçárabe autor: anônimo consultoria da língua: Teresa Aurora e Thomas Finbow título: Ai ondas que eu vim veer autor: Martin Codax consultoria da língua: Paulo Fernandes Miras e Thomas Finbow título: Ai fremosinha, se bem hajades autor: Bernal de Bonaval (Trova Medieval Galego-Portuguesa) tradução: Caetano Galindo consultoria da língua: Paulo Fernandes Miras e Thomas Finbow título: Amiga, vistes amigo (Trova Medieval Galego-Portuguesa) autor: Pedro Amigo de Sevilha tradução: Caetano Galindo consultoria da língua: Paulo Fernandes Miras e Thomas Finbow título: Bailade hoje, ai filha, que prazer vejades (Trova Medieval Galego-Portuguesa) autor: Airas Nunes tradução: Caetano Galindo consultoria da língua: Paulo Fernandes Miras e Thomas Finbow título: Nau Catrineta autor: Almeida Garrett consultoria da língua: Luis Gerald Fonseca título: Lusíadas autor: Luís Vaz de Camões consultoria da língua: Marcelo Módolo
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título: Cartas de D. Ignez de Castro ao príncipe D. Pedro autora: Inês de Castro consultoria da língua: Claudia Carmo e Jorge Louraço Figueira título: Chegada ás Ilhas de Cabo-Verde (trecho de Lusíadas em caboverdiano, variante da ilha de Santo Antão) autor: Luís Vaz de Camões tradução: Cónego A. da Costa Teixeira consultoria da língua: Rogério Silva Lima Rocha título: Môrt Dum Ónje (caboverdiano, variante da ilha de São Vicente) autor: Sérgio Frusoni tradução: Simone Caputo Gomes consultoria da língua: Rogério Silva Lima Rocha título: Peregrinacam autor: Fernão Mendes Pinto tradução para patuá macaense: Miguel Fernandes consultoria da língua: Fátima Madeira, Marcelo Módolo e Miguel Fernandes. título: Mid Back Tupinambá Tremendão Treme Terra autor: Andir Corrêa, AndirJr, Dinho e Toninho título: Língua Portuguesa autor: Olavo Bilac título: Cartinha com os Preceitos e Mandamentos da Santa Madre Igreja autor: João de Barros consultoria da língua: Guilherme Contijo Flores e Marcelo Módolo título: Teatro em Tupi de Anchieta (segundo manuscritos originais do séc. XVI) autor: Padre José de Anchieta tradução: Maria de Lourdes de Paula Martins consultoria da língua: Thomas Finbow e Romildo Gûyráakãnga Potĩgûara título: Discurso de Itapuku para Luis XIII no Louvre em 1613 autor: coletado por Claude d´Abbeville tradução do francês: Caetano Galindo consultoria da língua: Caetano Galindo e Thomas Finbow
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título: O nascimento de Yurupari autor: anônimo (mito dos povos indígenas da região amazônica) tradução para nheengatu: Marcel Twardowsky Ávila consultoria da língua: Marcel Twardowsky Ávila e Thomas Finbow título: O Guesa Errante autor: Sousândrade título: Sabu Ya Kitutu Kya Wongo Kizwela autor: anônimo (mitologia bantu) tradução para quimbundo: Miguel João Lubuato consultoria da língua: Miguel João Lubuato título: Obra Nova de Língua Geral de Mina autor: António da Costa Peixoto título: Carta de Teodora da Cunha e Claro Antônio dos Santos autora: Teodora da Cunha título: Galáxias - fecho encerro autor: Haroldo de Campos título: PanAmérica autor: José Agrippino de Paula título: Palavras em Apiaká autor: povo Apiaká consultoria da língua: Elissandra Krixi Morimã, Evanilson Morimã e Luana Morimã
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ULTRALÍRICOS
Em 2013, o coletivo Ultralíricos anuncia o projeto Puzzle (a); (b); (c), especialmente criado para a participação brasileira como Convidado de Honra da Frankfurter Buchmesse. Um dos principais jornais da Alemanha e da Europa, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, classifica a obra como um “tríptico fulminante (...) finalmente uma maratona teatral extremamente estimulante”. José Miguel Wisnik no jornal O Globo afirma que “(...) Puzzle, sobre textos de vários escritores contemporâneos brasileiros, é sensacional. Uma sucessão de ideias que vão se articulando de maneira surpreendente, com momentos inesquecíveis (...)”. Danilo Santos de Miranda, Diretor Geral do Sesc São Paulo, lembra o “estrondoso êxito de Puzzle em Frankfurt”, e diz ser “(...) imperdível essa mostra da complexa identidade brasileira, sem nenhum clichê, criada pela brilhante cabeça de Hirsch e suas adaptações literárias”. Em 2014, Felipe Hirsch e os Ultralíricos criam a parte (d) do projeto para a abertura do Festival Íbero Americano, Mirada. A temporada em São Paulo estreia na sexta-feira 13 de carnaval de 2015 e se transforma rapidamente em um dos maiores sucessos do projeto, com plateias lotadas e críticas arrebatadoras como a de Jefferson Del Rios no jornal O Estado de S. Paulo: “Uma maratona verbal de alto nível, inteligente, pleno de força literária e cênica, Puzzle (d) é um espetáculo com um elenco excepcional a criar polêmica e diversão. Lembra o Café Voltaire, de Zurique, onde se reuniam os dadaístas, e parece chegar a Cataguazes, Minas Gerais, onde viveu Rosário Fusco, o insolente e esquecido romancista de O Agressor, que Orson Welles pensou em filmar (...) o Brasil, o continente e o mundo são passados a limpo e a sujo. Desfilam diante do público o nosso ufanismo oficial, delirante e alienado, comércio religioso, manifestos estéticos, o isolamento do idioma português na América Latina (...), estes temas todos estão no palco em palavras, músicas e um humor cético. Puzzle é assim, uma maratona verbal de alto nível com a surpresa de convidados especiais a cada dia. Uma brilhante anarquia-protesto artístico”. O Jornal O Globo escreveu: “O quebra-cabeça lítero52
-teatral proposto pelo diretor Felipe Hirsch e que provocou estrondo na Feira do Livro de Frankfurt, no ano em que o Brasil foi o país homenageado, mergulha no caos humano e social do país através de algumas de suas feridas abertas, com desconcertante ironia e brilhante seleção de textos. Demolidor, vibrante, transgressor!”. O jornal francês Le Monde também rasga elogios em uma página inteira dedicada a P uzzle (d): “Aqui está a porta para a jovem e rica literatura brasileira. Talvez seja aqui neste teatro da louca metrópole paulistana, centro intelectual tão criticado como querido, que o país tenta mostrar o caminho. A literatura brasileira se inspira com prazer no cotidiano do país, nos percursos de seus habitantes, ricos ou pobres, sãos ou loucos. Uma sociedade jovem, apressada, pronta para tudo. Como um quebra-cabeça”. Em 2015, o coletivo anuncia A Tragédia e Comédia Latino-Americana, projeto dividido em duas partes, que estreia no Sesc Consolação no início do ano seguinte. O trabalho estende a pesquisa literária por todo continente latino-americano, e viaja para Alemanha, Portugal, Chile, além das apresentações históricas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A peça recebe os prêmios Shell, Bravo! e Governador do Estado de melhor espetáculo do ano, e Felipe Hirsch é convidado para dar uma conferência na Sorbonne Paris 3, sobre seus projetos envolvendo a literatura latino-americana no cinema e no teatro. O Estado de S. Paulo classifica o trabalho do coletivo Ultralíricos como “o projeto teatral mais importante dos últimos anos no Brasil”. João Paulo Cuenca, na Folha de S.Paulo, escreve que o coletivo é “(...) a visão do espírito de sua época, do seu lugar, de uma nova forma de fazer teatro, literatura, arte. (...) Cultos, anárquicos e eternamente subversivos, são como um farol varrendo o escuro do nosso abismo”. Luiz Felipe Reis afirma em O Globo que “(...) é contra os monolitos que o trabalho de Felipe Hirsch se impõe. Brinca de construir e desconstruir o mundo, modelando as muitas ideias que formam seu complexo quebra-cabeça”. Eliane Brum, no El País, define as peças como “extraordinárias” em um longo ensaio, enquanto os jornais na Ale-
manha se referem ao trabalho como “(...) visualmente deslumbrante, espirituoso, empolgante, e diverso (...) uma monumental obra de arte.”. Leandro Nunes em O Estado de S. Paulo conclui: “(...) Se O Rei da Vela do Oficina encontrou o seu próprio momento, A Tragédia Latino-Americana tem força para acrescentar, na linha histórica, mais uma pedra fundamental ao famigerado histórico da arte no Brasil”. Selvageria é a terceira parte da Trilogia involuntária. Se as quatro partes de Puzzle, e as duas de A Tragédia e Comédia Latino-Americana foram dedicadas à ficção, Selvageria é a parte documental do projeto. Composta sobre livros históricos e documentos brasileiros recolhidos na biblioteca Guita e Mindlin na USP, e baseada na bibliografia brasileira de Rubem Borba de Moraes, Felipe Hirsch a considera sua obra mais importante. Selvageria é constituída de testemunhos escritos entre o século XVI e XIX. A Folha de S.Paulo descreve o palco “(...) transformado no que parece ser uma enorme ampulheta cujos grãos de areia são sacos de lixo pretos caindo sistematicamente. A história é representada como uma montanha de entulho, barbárie e escombros. (...) São momentos em que se constitui de fato a imagem de um país alicerçado na escravidão e na supressão do outro. Essa selva- geria que lastreia quem somos”. O espetáculo é indicado para o prêmio Bravo!, e a revista estampa uma imagem da peça na capa declarando que Selvageria “(...) é o espetáculo mais contundente da obra recente de Felipe Hirsch”. André Gravatá, no UOL, reitera que “Selvageria é mais do que uma obra de teatro, é na verdade um chamado para nos espantarmos com o rastro de insanidade que nos trouxe até o presente”. Em 2019, Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos estreiam FIM, escrito por Rafael Spregelburd, que havia trabalhado com Hirsch no espetáculo Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamerica. Jean Claude Bernardet escreveu sobre FIM: ““(...) dizer que é deslumbrante é pouco. É um espetáculo magnífico, extraordinário. São fogos de artifício de inteligência, com um elenco fantástico. É brilhante, é brilhante! (…)”. Luiz Carlos Merten afirmou que “(...) sem câmera no palco, FIM é cinema. A implosão de uma utopia chamada Brasil. A terra em transe. Foi como ter encontrado Glauber naquele palco”. Já Marcio Aquiles reafirmou as críticas sempre positivas dizendo que
“(…) Fim é uma joia rara. De uma radicalidade acirrante, o espetáculo é um deslumbre sensorial, tem punch, é uma mistura de rock n’ roll com ópera. Sublime, provoca um estado de êxtase e arrebatamento que somente uma excepcional performance ao vivo pode alcançar. Imprescindível para quem quiser presenciar um evento estonteante, do mais alto nível artístico.” A Veja São Paulo fez coro aos outros veículos: “”(...) FIM é capaz de mostrar que, em tempos repletos de obstáculos, a arte busca incansavelmente a possibilidade de salvação”. E o Estado de São Paulo completou: “”(...) o palco de Fim transforma-se em um angustiante inferno dantesco, suspenso no tempo. Ao implodir o ideal, o sentido democrático da luta política, o espetáculo derrama seu copo de fúria no Brasil que existe no interior de cada brasileiro”. Amilton Azevedo disse “FIM, o espetáculo de Hirsch e seus Ultralíricos é potente em todas as suas camadas”. Macken Luiz escreveu: “”(...) FIM é um quarteto de entrechoques, culminando com um ruidosa performance cética-demolidora, um desabafo-manifesto, um corte sem suturas”. Para 2020, o coletivo Ultralíricos preparou a estreia do musical Língua Brasileira, desenvolvido com Tom Zé. Este espetáculo é a quarta parte de uma Tetralogia involuntária. A partir da música “Língua Brasileira” de Tom Zé, nasceu a colaboração entre o compositor, Felipe Hirsch e o coletivo Ultralíricos. Desse trabalho conjunto surge uma apaixonada epopéia dos povos que formaram a língua que falamos: seus mitos e cosmogonias, passando pelas remotas origens ibéricas, por romanos, bárbaros e árabes, pela África e América Nativa. Língua Brasileira é um passeio pelo inconsciente do Português Brasileiro, suas graças e tragédias, seu “esplendor e sepultura”. Sete dias antes do início da temporada, o espetáculo foi cancelado pela pandemia. Agora, quase dois anos completos depois, Língua Brasileira estreia no palco do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.
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AGRADECIMENTOS
Adolfo Almeida Jr., Alexandra Golik, Alberto Mussa, André Barroso, Antônio Pinto, André Oliveira, Armazém da Luz, Arthur de Faria, Ave Terrena, Caco Ciocler, Caio Blat, Camila Bevilacqua, Camila Márdila, Casa Líquida, Clayton Martin, Dagoberto Feliz, Daniel Maia, Daniel Ganjaman, Deoclécio, Dimítris Protopappás, Eduardo Viveiros de Castro, Elia Mrak, Fernando Catatau, Flavio Silvestre,Gabriella Marra, Glenn Shepard, Guilherme Weber, Helena Obersteiner, Jaff Martins, Jamille, Pinheiro Dias, João Marcelo Iglesias, Julia Feldens, Kiko Dinucci, Kimia Ghorbani, Lello Bezerra, Luaa Gabanini, Lucia Gayotto, Mahonir Nadim, Maria Cristina Ortiz Lyra, Mariá Portugal, Mariana Brasileiro, Mariana Prates, Michele Boesche, Monique Gardenberg, Murillo Carraro, Natália Nery, Nicolas Voss, Paula Mirhan, Pedro Fonseca, Rahim Nasirkkham, Raquel Hoffmann, Regis Myrupu, Roquildes Junioir, Roberto Taddei, Sandra M. Stroparo, Saskia, Sergio Machado, Sergio Siviero, Só Palco, Solange Gonçalves Rocha, Tatiana Fadel, Tânia Lopes, Tarina Quelho, Teatro Viradalata, Thiago Martins de Melo, Verônica Julian, Victor Ribeiro, Vijeta
Kumar, Wagner Barbosa, Well Coelho
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língua brasileira 06/JAN a 06/MAR de 2022 Quarta a sábado, às 20h Domingo, às 18h Teatro Anchieta Não recomendado para menores de 16 anos
sesc consolação
Rua Dr. Vila Nova, 245 01222-020 São Paulo - SP Higienópolis-Mackenzie Tel: (11) 3234-3000 /sescconsolacao sescsp.org.br/consolacao
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