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Muito prazer, meu primeiro disco #6 Fafá de belém

Houve um tempo em que toda produção musical que não fosse realizada na região Sudeste do Brasil era classificada de maneira simplista como “música regional”. Reconhecendo a diversidade e a riqueza da sonoridade que se produzia pelo país, ainda que sem se dar conta do quão absurda e elitista era aquela espécie de rótulo, paradoxalmente as grandes gravadoras enviavam profissionais às mais variadas regiões a fim de encontrar novos talentos que despontavam fora do chamado eixo Rio-SP. Foi numa dessas idas à capital do Pará que o produtor musical Roberto Santana, espécie de olheiro da Philips/Phonogram, ficou siderado com a maturidade e a desenvoltura de uma jovem chamada Maria de Fátima Palha Figueiredo. Ele não fora o primeiro. Antes, um dos maiores musicólogos do país, Zuza Homem de Mello – saudoso amigo com quem tive o privilégio de dividir a curadoria desta série, “Muito Prazer, Meu Primeiro Disco” – também se impressionara com o canto daquela


adolescente. Ela tinha apenas 14 anos e, em pouco tempo, ficaria conhecida nacionalmente como Fafá de Belém. A escalada de Fafá rumo ao estrelato teve início em 1975. Aqui, uma ressalva importante. Naquela época, diferentemente do que acontece hoje, artistas precisavam passar por alguns testes antes de conseguir a oportunidade de gravar seu primeiro álbum. Via de regra, o início desse périplo incluía participações em festivais, em compactos e em discos coletivos. Com Fafá, não foi diferente. O primeiro espanto com o sucesso veio quando ela ouviu pela primeira vez, dentro de um táxi, sua voz tocar na rádio. Era “Filho da Bahia”, de Walter Queiroz, que Fafá interpretara no LP da trilha sonora da novela “Gabriela”, da Rede Globo. No mesmo ano de 1975, ela lançou um compacto simples pela Polydor em que cantava duas composições de João Donato – uma em parceria com Gilberto Gil, “Emoriô”; e outra, com Caetano Veloso, “Naturalmente”. Em 1976, antes de completar 20 anos, Fafá já estava com seu primeiro long play na praça. Era apenas o começo de uma longeva trajetória que lhe renderia discos de ouro, prêmios, turnês nacionais e internacionais que, provavelmente, não teriam acontecido, não fosse a personalidade de Fafá para dizer e cantar tudo aquilo em que sempre acreditou. Afinal, desde aquele início era como se ela tivesse de provar em dobro suas qualidades artísticas. Primeiro, ao superar comparações da crítica “especializada”, que, baseada numa suposta semelhança dos timbres vocais, chegou a classificála injustamente como “uma sub-Gal Costa”. Mérito de Fafá que, desde cedo, quis seguir o próprio


caminho sem imitar ninguém. Segundo, ao driblar com o carisma e o talento de seu canto os olhares machistas de objetificação e hiper-sexualização que os homens lançavam sobre sua exuberante beleza. Ademais, tratava-se de um período em que o departamento mais importante de uma gravadora era o musical, não o de marketing. Para Fafá de Belém, era o que bastava. Ela, que se apresentava dizendo ser “uma menina da Amazônia, mas que canta jazz”, fora formada num caldeirão musical em que se ouvia de Custódio Mesquita a Glenn Miller, de Angela Maria a Duke Ellington, de Ataulfo Alves a Anita O’Day, de Nelson Gonçalves a John Coltrane, de Lucho Gatica a Beatles. Em tempos em que pouco se falava sobre empoderamento, Fafá surgia poderosa, enrolada num tecidovestido em meio à mata, logo na capa de seu LP de estreia, “Tamba-Tajá”. Poderoso também era o repertório do debut fonográfico da artista paraense e “brasileiríssima”, como bem definiu em texto da época o jornalista Sérgio Cabral. Num voo panorâmico pelo Brasil, Fafá entregou ao público um álbum de música “multi-regional”. A começar pelas composições de seus conterrâneos como o maestro Waldemar Henrique, com a lenda indígena das folhas do “Tamba-Tajá”, e os irmãos Paulo André e Ruy Barata, com “Esse rio é minha rua” e a também indígena “Indauê Tupã”, uma saudação aos deuses para abrir os caminhos do disco. Do outro extremo do país, ela gravou canções tipicamente sulistas dos gaúchos Fogaça e Kledir Ramil (“Vento negro”), de Quico Castro Neves (“Haragana”), de Luiz Coronel e Marco Vasconcelos


(“Gaudêncio 7 luas”). De lá, passou pelas Minas Gerais em “Fazenda”, de Nelson Angelo, e pela Bahia de Edil Pacheco (“Siriê”, em parceria com o pernambucano Paulinho Diniz), de Walter Queiroz (“Pode entrar”) e de Caetano Veloso, de quem Fafá interpretou a até então inédita “Ca Já”. Chegando, enfim, aos dolentes e derramados sambas-canção dos cariocas Antônio Maria e Ismael Neto (“Canção da volta”) e Mário Lago (“Fracasso”), sem abrir mão do balanço de Luiz Gonzaga e Miguel Lima em “Xamego” – imperecível desde abril de 1944 na voz de Carmen Costa – com destaque para a participação mais do que especial de Dominguinhos na gravação de Fafá. Quarenta e cinco anos após seu lançamento, “Tamba-Tajá” permanece relevante não apenas por ecoar as vozes e lendas dos povos originários e por decantar as belezas das diferentes paisagens brasileiras, mas, sobretudo, por sua musicalidade atemporal.


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