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Muito prazer, meu primeiro disco #3 JOÃO BOSCO

Houve um tempo na Argentina em que ao serem cumprimentadas com um corriqueiro “como estás, bien?”, as pessoas assentiam: “Si, como Gardel y Le Pera”. Com a resposta, tão ordinária quanto genial, os portenhos resumiam que a vida andava na mais perfeita harmonia, azeitada como as criações artísticas da dupla Carlos Gardel e Alfredo Le Pera. Se a moda pegasse por aqui, no Brasil, o difícil seria escolher. Afinal, não são poucas as parcerias históricas, daquelas que basta citar o nome de um dos parceiros para que instantânea e inseparavelmente o nome do outro já venha colado, a reboque. Como Bide e Marçal ou Yvonne Lara e Delcio Carvalho. Ou então Nei Lopes e Wilson Moreira, Erasmo e Roberto, Dominguinhos e Anastácia. Alguns iriam de Jobim e Vinicius ou de Silas e Mano Décio; outros, de Baden e Paulo César Pinheiro ou de Elton Medeiros e Paulinho da Viola. E haveria ainda quem fosse de Noel e Vadico ou de Arlindo e Sombrinha.


Noves fora, munidos de razões afetivas e de argumentos técnicos de sobra – como qualidade, diversidade, constância, repercussão e longevidade –, um sem-fim de brasileiros e brasileiras escolheriam, sem vacilar, João Bosco e Aldir Blanc. Numa época em que as sociabilidades das redes se teciam nas ruas (nos comércios, nas praças, nos bares e lares), João e Aldir foram “o assunto mais comentado” da hora, povoaram -- e ainda povoam -- o imaginário popular com dezenas de canções. De meados dos anos 1970 em diante, ao enlaçar música e letra à perfeição, enfileiraram clássicos atrás de clássicos: de “Dois pra lá, dois pra cá” a “De frente pro crime”, de “O bêbado e a equilibrista” a “Incompatibilidade de gênios”, passando por “Kid Cavaquinho”, “Falso brilhante”, “O Ronco da cuíca”, “Mestre-sala dos mares” e outros tantos. Uma farta coleção de obras-primas que levaram Zuza Homem de Mello, saudoso parceiro de curadoria neste “Muito Prazer, Meu Primeiro Disco”, a escrever em um de seus livros: “Um compositor mineiro de Ponte Nova, que não segue o estilo de Milton Nascimento, e um poeta carioca de Vila Isabel, que não imita Noel Rosa, assim são João Bosco e Aldir Blanc que formaram uma das duplas mais importantes de autores de nossa música popular nos anos setenta”. Antes, porém, já havia os primeiros tijolos, as pedras fundamentais. E elas foram apresentadas ao público em 1973 com o LP “João Bosco”, álbum de estreia de João, que além de compor também cantava e tocava um violão diferente de tudo que se ouvia até então, a ponto de a crítica anunciálo como a maior revelação surgida desde Caetano Veloso, na década anterior. A rigor, ao longo de 1972 João e Aldir vinham distribuindo seus primeiros cartões de visitas musicais em conjunto. Fosse na voz do próprio


João -- com “Agnus sei”, lado B do “Disco de Bolso”, compacto promovido por “O Pasquim” com produção de Sérgio Ricardo e que trazia “Águas de março”, de Tom Jobim, no lado A --, fosse nas interpretações de Elis Regina que em menos de doze meses gravara cinco canções da dupla: “Cabaré”, “Comadre”, “Agnus sei”, “Bala com bala” e “O caçador de esmeralda” (assinada também por Claudio Tolomei). Passados quase 50 anos, embora pouco se fale a respeito, ainda desperta fascínio observar que antes mesmo dos consagrados discos “Caça à raposa” (1975), “Galos de briga” (1976), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Linha de passe” (1979) a veia da essência estilística da parceria Bosco/ Blanc já estava toda ali, condensada e exposta de forma muito madura para um álbum de estreia. Mais impressionante ainda é imaginar como surgiu a primeira leva de composições de João e Aldir. Sem a intimidade do convívio diário, sem olho-no-olho, os dois criaram tudo por troca de correspondências. Num extremo, em Ouro Preto, o estudante de engenharia João Bosco buscando e encontrando, intuitivamente, uma linguagem no violão que encerrasse as mais diversas influências musicais que o formaram. Na bagagem sonora, a música de concerto de Alberto Nepomuceno, os choros de Nazareth e Pixinguinha, as congadas pelas ladeiras ouro-pretanas, os sambas-canção interpretados pelas vozes de estrelas do rádio como Cauby Peixoto e Angela Maria, o rock de Elvis e Little Richards, o baião de Luiz Gonzaga, o forró de Jackson do Pandeiro. E uma pequena coleção de discos que iam de Brubeck a Caymmi, de Jobim a Ray Charles, de Art Blakey a Baden, Moacir Santos,


Sergio Mendes e Bossa Rio e Vinicius de Moraes (que se tornaria um de seus primeiros entusiastas na carreira musical). Na outra ponta, no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que concluía o curso de medicina, Aldir Blanc se alimentava dos mais diferentes saberes artísticos sem o menor pudor. Com o mesmo apetite devorava Ezra Pound e os bambas do Estácio, Maiakovski e Noel Rosa, Cortázar e Geraldo Pereira, Magritte e Moreira da Silva, Louis Armstrong (que lhe rendeu o “primeiro orgasmo jazzístico”) e Wilson Baptista. E tinha mais: àquela altura já compondo com César Costa Filho ou com Sílvio da Silva Júnior, Aldir já tivera canções suas gravadas por Clara Nunes, Lúcio Alves, Taiguara, Claudette Soares, MPB-4, Maysa e Elis Regina. É neste contexto, portanto, que se inaugura a parceria entre João Bosco e Aldir Blanc. Separados por quilômetros de distância (e a anos-luz das facilidades tecnológicas de hoje), tendo experiências e vivências do dia a dia bastante distintas, os dois, num leva-e-traz de letras e músicas, tentavam entranhar e decifrar o universo do outro. Com Aldir se “amineirando” e João se “acariocando”, entregaram ao público um disco em certo sentido experimental, documental e histórico. Referências e formações individuais à parte, a parceria de João e Aldir deslanchou logo de cara porque os dois tinham a mesma visão sobre seu ofício. Sem vocação para romantizar a realidade, ambos enxergavam a arte não como entretenimento pueril, mas como instrumento pulsante de reflexão, de resistência e de contestação de seu tempo. E como aqueles tempos eram de fato sombrios – com o país tomado na mão grande por militares, mergulhado em grave crise econômica, política e social –, nada mais natural que temas tão sensíveis


e agudos do cotidiano permeassem as 11 faixas do primeiro LP de João Bosco. Era o sujeito que “só vive no ano novo” e “veste a mortalha do futuro” (na faixa de abertura, “Tristeza de uma embolada”, com destaque para o rico desenho rítmico dos agogôs), era o vucovuco desavergonhado de “Bala com bala” -- num jogo percussivo de sons e palavras batizado por Zuza Homem de Mello como “samba-tiroteio”, e que abriria caminhos para tantos outros da dupla como “Escadas da Penha” e “Casa de marimbondo”. Eram as marcas latentes de uma nação colonizada e dolorosamente talhada pela escravidão (nas incisivas “Boi”, “Quilombo” e “Alferes”). Eram também as estocadas dos jovens João e Aldir nos mandos e desmandos de um regime ditatorial que cerceava brutalmente liberdades individuais. Diante da institucionalização oficial da censura, a dupla usava da malandragem e da inteligência para driblar alguns vetos. Naquele LP inaugural, por exemplo, tiveram de trocar versos e títulos de duas canções: “Nada a desculpar”, inicialmente chamada de “O grande público”, trazia mensagens nada palatáveis como “o que eu entendo por viver não dá ibope” e “me passe o sal pra botar na sobremesa/ o grande público cansou minha beleza”. A outra delas foi barrada pelos censores sob o argumento de que os autores expunham situações de “penúria social” ao falar de uma mulher que “tem direito a um metro de paisagem, com um filho na barriga” e que acaba atropelada na Avenida Brasil. Para os artistas, a emenda saiu melhor do que o soneto. Originalmente apresentada como “Uma brasileira”, a canção foi lançada com o impactante título de “Fatalidade (Balconista teve morte instantânea)”. Ali, ainda dando seus primeiros passos em conjunto, João Bosco e Aldir Blanc ganharam novos pontos de vista com a adesão de outros dois excelentes compositores à parceria. Ladeados de Claudio


Tolomei em “Bernardo, o eremita”, usaram a metáfora de um caranguejo para camuflar nas entrelinhas coisas que não podiam ser ditas nas linhas -- “Quando tu morrer, entre limo e sal, só vão comentar: é o tal que quis, ah, sobreviver”. Com Paulo Emílio, afiaram ainda mais a lâmina do discurso em “Amon Rá e o Cavalo de Troia” (única faixa não assinada por Aldir) e no galopecontragolpe “Quem será?” (“Mão no punhal, escuridão, vem dali, não vi, foi lá, tem um homem morto (quem será?)”. Por fim, não só pelas letras, mas também pelo aspecto musical, “João Bosco”, lançado no segundo semestre de 1973, firmou-se como um álbum atemporal. A dramaticidade dos versos realistas de Aldir, somada à potência criativa do canto, da divisão, dos caminhos melódicos, das harmonias e da levada do violão de João, resultou em canções que se agigantaram ainda mais vestidas pelos arranjos de Rogério Duprat (craque em criar diferentes paisagens sonoras, principalmente, com a distribuição dos metais) e de Luiz Eça (pianista brilhante do Tamba Trio com imensa facilidade em escrever para cordas, e que fora o responsável por levar João para a gravadora RCA, sob a supervisão de Rildo Hora). Isso tudo sem esmaecer o protagonismo do violão. Parafraseando o que Tom Jobim escrevera sobre João Gilberto na contracapa do seminal “Chega de saudade” nos idos de 1959, nunca é demais lembrar que “quando João Bosco se acompanha, o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele”. A despeito do desencantamento de um mundo que se despediu em 2020 de Aldir Blanc, de Sérgio Ricardo, de Maradona e de Zuza Homem de Mello, aquele disco de 73 permanece atual e relevante. E João Bosco, compondo com antigos e novos parceiros, segue inventivo, combativo e atuante. Por Lucas Nobile


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