6 minute read
Música e Luto
Dentro do tom
Há se is an os, Re ina ldo Ávila t rabalha levan do a melodia do violino a ce rimônias de velório. Além de homenagea r o falec ido, a música pode oferece r confort o e bem-esta r aos que fica m
Advertisement
Texto: Gabriela Garcia gabrielavgarcia@hotmail.com
Fotos: Daniel Baptista e
Thaynan Schroeder
danielsbaptista98@gmail.com thaynan.schr@gmail.com
Diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com
Achar um horário na agenda de Reinaldo Ávila para uma entrevista não foi fácil. A conversa com o músico de 44 anos foi reagendada algumas vezes antes de acontecer. “A gente trabalha com o imprevisível, ninguém prevê a morte”, diz ele, que há seis anos trabalha em cerimônias de velório. “Hoje, já fiz dois. À tarde, tenho outros quatro marcados”.
É fazendo malabarismos no dia a dia que, ao fim do mês, ele soma cerca de 90 velórios. Com o violino e palavras preparadas para cada cerimônia, o músico tenta ajudar familiares e amigos de alguém que faleceu a deixar o momento da despedida mais suave e humano. “É um trabalho de muita responsabilidade. Tenho que fazer o melhor possível para tentar tornar esse momento mais leve, embora eu saiba que não vai mudar o acontecido”.
O primeiro contato que Reinaldo teve com a música foi em um coral em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, por volta dos 16 anos. Com apenas 17, depois de ter aprendido a tocar violão e de ter feito cursos de regência, foi convidado para ser maestro de um coral em Sete Lagoas, Minas Gerais. Quando chegou na cidade, descobriu que teria que ser maestro não apenas de um coral, mas também de uma orquestra. “Eu tive que aprender sozinho a tocar contrabaixo, violoncelo, viola, violino”.
Dois anos depois, ele voltou ao Rio Grande do Sul e começou a trabalhar
em Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Chegou a tocar em seis diferentes ao mesmo tempo. Em 2002, contudo, Reinaldo sentiu que era hora de mudar novamente e começou a investir sua força de trabalho em cerimônias de casamento e formatura. Com o tempo, porém, percebeu que o negócio não estava mais se mostrando tão viável economicamente. “Esses eventos só aconteciam nos fins de semana, aí, para ganhar dinheiro é brabo, né?” E, um dia, lendo a página de obituários de um jornal, a ideia de tocar também em cerimônias fúnebres surgiu. “Tem trabalho o tempo todo, porque morre gente todo dia, toda hora”. Reinaldo contatou algumas funerárias e rapidamente ficou conhecido nesse mercado.
Durante os primeiros dois anos, ele apenas prestava homenagem ao falecido tocando violino. Observando as cerimônias, notou que as palavras dos ministros – aqueles que conduzem a cerimônia – eram, em sua maioria, vazias e impessoais. Daí, resolveu oferecer, além de música, palavras reconfortantes. “Entrevisto o contratante para saber quais eram as principais características do ente querido, o que ele gostava de fazer, e monto um texto a partir disso. As pessoas se identificam, não vira uma cerimônia artificial”.
O texto pode ser feito em diferentes formatos, mas, geralmente, Reinaldo costura as informações com alguma metáfora, como a do “livro da vida”,
Reinaldo Ávila Músico
em que o número de páginas é igual ao número de anos vividos pela pessoa que está sendo velada. “Tu tens que construir um diálogo com essa história e a vida da pessoa. Também gosto muito de ler durante a homenagem o texto ‘A morte não é nada’, de Santo Agostinho.” Ao longo da fala, ele intercala três canções com violino, escolhidas pelo contratante em um repertório de mais de cem músicas. As mais tocadas, segundo Reinaldo, são Ave Maria, de Franz Shubert; Como é grande o meu amor por você, de Roberto Carlos; e Eu sei que vou te amar, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.
Conf orto aos que f icam
Lidar com o peso da morte todos os dias já foi mais difícil para Reinaldo. Os primeiros contatos com os familiares eram momentos de tensão. “Eu me abalava mais. Mas, como iniciei trabalhando só com violino, eu já tinha esse contato, via a pessoa morta no ataúde, o sofrimento da família. Então, depois, para falar no velório, foi mais fácil, porque eu já tinha o costume de tudo aquilo, já tinha ideia do que ia acontecer”. O músico também aprendeu a não acumular as tristezas, embora não esqueça do primeiro velório que fez. “Lembro até hoje do rostinho da menina que chorava muito. O pai dela tinha morrido bem novo. Claro que cada velório me marca de uma forma diferente, mas não posso acumular tudo isso, porque não tenho força.” Segundo ele, a chave para realizar o trabalho todos os dias é saber dosar as emoções. “Eu não posso criar uma casca
muito dura, tenho que ter um pouco de sensibilidade. Ou seja, não posso me envolver muito, mas também não posso perder a ternura”.
No processo de morrer, Reinaldo acredita que a música, além de gerar conforto aos que ficam, também ajuda a espiritualizar. “Tem um amigo meu que diz que a palavra instrui, o gesto aponta e a música espiritualiza. Ela faz uma ligação mais rápida com a espiritualidade”.
Luciane Cuervo, professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a musicalidade humana está em toda a história da humanidade. “Não há lugar, período ou grupo social do mundo que não tivesse manifestação de musicalidade e que, nos seus primórdios, não trouxesse a musicalidade como representação de emoções, inspirada pelos sons da natureza ou pela imaginação”. Segundo ela, a musicalidade do luto não é sempre igual. “Em determinados contextos sociais, ele tem uma sonoridade mais melancólica e triste. Em outros, tem mais alegria de ver a morte como uma passagem, chegada no paraíso ou a algum lugar melhor do que este. Tem também a música que transcende a realidade de uma maneira a elevar espiritualmente os pensamentos ou a fomentar essa transcendência da dor, seja vinculada ou não a algum tipo de religiosidade, espiritualidade ou a hábitos culturais e sociais”.
A professora, contudo, concorda que em todas essas situações, se o repertório, o instrumento, a voz e o momento em que ocorre a performance artística diante do luto estiverem conectados com os gostos daquele grupo social, a música pode ser um poderoso suporte emocional num momento de dor. “Assim como em aniversários, casamentos, formaturas e celebrações diversas, o luto também engaja emoções fortes, embora nesse caso tristes ou negativas, e a música precisa fazer sentido para as pessoas envolvidas naquele contexto, promovendo conforto e bem-estar”.
Vida que continua
Há dois anos, Reinaldo sentiu necessidade de ser batizado na Igreja Católica. Faz questão, contudo, de ressaltar que a fé sempre esteve presente na sua vida. “Eu era pagão, mas só na denominação, porque continuo do mesmo jeito. Meu coração não está mais mole ou mais duro agora”. O músico havia sentido que era um momento da vida interessante para se batizar. “Pode ser que a minha vontade de batismo tenha ligação com o meu trabalho, eu nunca havia parado para pensar, mas acho que sim”.
Outras coisas também mudaram para Reinaldo desde que ele começou a lidar com a morte diariamente. A maior delas foi a própria percepção dele a respeito da vida. “É claro que a gente não está bem o tempo todo, mas notei que não dá para perder a chance de ser feliz. Às vezes, o cara que hoje está chorando no velório, pode ser o velado amanhã. A gente tem que buscar a felicidade acima de tudo”. E é dando mais valor à vida que Reinaldo aprende a lidar de uma forma mais branda com a morte, para levar conforto aos que mais precisam. Pois, como diria Santo Agostinho, lido pelo músico durante as homenagens, “você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela, como sempre foi”.