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Violência Contra a Mulher

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Espiritismo

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É

ISSO F EMINICÍDIO

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EM UM PAÍS QU E ESTÁ ENTRE OS CINCO QU E MAIS MATAM MULH ERES NO MU NDO , NOM EAR O CRIM E DE GÊNERO AJUD A A ENXERGAR A SUA EXISTÊNCIA E ENTENDER O SEU SIGNIFI CADO

Texto: Luciana Forgiarini lu.forgi@gmail.com

Fotos: Gabrielle de Luna gabrielle.luna@ufrgs.br

Diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com

O Brasil convive com elevada estatística de violências cotidianas praticadas contra mulheres. É o quinto país que mais mata mulheres no mundo, segundo pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Rio Grande do Sul, somente em 2018, 117 mulheres foram mortas em casos reconhecidos como feminicídio. De acordo com levantamento realizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, o número é 40,9% maior do que a estatística obtida no ano de 2017.

Apesar dos dados alarmantes, a nomeação do crime como feminicídio ainda é socialmente questionada. Se já temos o crime de homicídio, por que nomear os assassinatos de mulheres de forma diversa? Segundo Domenique Goulart, advogada e assistente jurídica da Themis, organização referência no Estado em questões de gênero e direitos humanos, a existência da nomenclatura é importante não somente pela visibilização, mas pela conscientização da sociedade sobre o tema: “Normalmente, quando não nomeamos as coisas, é como se elas não existissem no mundo dos fatos. É uma pauta um pouco antiga no movimento de mulheres, justamente para trazermos políticas públicas e ferramentas que levem em conta a especificidade dessa questão”.

A advogada também destaca que há uma diferença de motivação entre o homicídio e o feminicídio. Os homens morrem por diferentes motivos, mas a morte não acontece por pertencerem a determinado gênero, que é o que ocorre com as mulheres: “Pode ser um episódio em que já há um histórico de violência doméstica, com boletins de ocorrência prévios. Ou quando há um fato específico em que duas pessoas não se conheciam e há uma explicitação de uma inferiorização da condição de gênero feminino”.

A LEI AJUDA , MAS NÃO MUDA A SOCIEDADE

Nesse contexto recente de maior atenção às especificidades do crime está a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015. Além de qualificar o crime de homicídio, a lei incluiu o feminicídio no

“Há t oda uma quest ão de mudar uma lógica de misoginia e violênc ia cont ra as mulheres que é muit o arraiga da no imag inário social bras ileiro”

Domenique Goulart Advogada da Themis

rol de crimes hediondos, aumentando a pena prevista. A existência de um enquadramento, com o uso da nomenclatura, é importante, mas não é suficiente diante de uma estrutura social e cultural que inferioriza as mulheres. “É uma discussão bastante complexa se a lei vem para melhorar a sociedade ou se muda primeiro a sociedade para que a lei positive essa mudança social. Se formos pensar na Lei Maria da Penha, ela é de 2006. São 13 anos e a lei nunca foi implementada em sua integralidade. Há toda uma questão de mudar uma lógica de misoginia e violência contra as mulheres que é muito arraigada no imaginário social brasileiro”, destaca Domenique.

O uso da tipificação “feminicídio” nos boletins de ocorrência também tem auxiliado na existência de uma atuação mais especializada do sistema de justiça. Em 2016, um decreto estadual determinou a atribuição da Delegacia da Mulher como responsável pelos casos no Rio Grande do Sul. Ainda assim, a mudança de estrutura e de capacitação de agentes públicos para a atuação nesse tipo de ocorrência acontece de forma mais gradual. A delegada Karine Heineck, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), em Porto Alegre, lembra que há muito a ser aprimorado: “Nós ainda não temos um protocolo para determinar, de imediato, o que é feminicídio ou não. Nós não temos uma estrutura de plantão para feminicídios. Se não é horário de expediente, quem atende no local do crime é a Delegacia de Homicídios”.

HIST ÓRIAS QUE SE REPETEM EM UM CICLO DE VIOLÊNCIA

O feminicídio não é algo que, simplesmente, acontece. Há todo um caminho que a mulher percorre até que ela seja vítima do crime. Forma-se uma cadeia de condutas que amparam os episódios fatais. Essa situação pode ser entendida através da constituição de um “ciclo da violência”. O termo está presente nos estudos de Lenore Walker, psicóloga estadunidense que, em 1979, identificou padrões abusivos que se repetiam em uma relação afetiva.

Para Walker, o ciclo se divide em três fases. A primeira consiste no aumento da tensão, na qual a mulher sofre violências sutis, como chantagens emocionais e humilhações, ações de controle e ofensas verbais, normalmente, ferindo a autoestima da vítima. A advogada Domenique relata que, nessa fase, são comuns os casos de isolamento, nos quais a mulher deixa de ver família e amigos e não pode sair de casa. “As mulheres acreditam que é uma forma de amor, de carinho: ‘Ah, é um ciúme porque ele gosta de mim’”, exemplifica.

A segunda fase consiste no pico de violência, agora com agressões físicas como empurrões, tapas e socos. A terceira fase, por sua vez, é a de calmaria, a chamada “lua de mel”, na qual o agressor pede desculpas e diz que não irá repetir a ação. Assim, o ciclo se fecha e recomeça com a possibilidade de mudança de comportamento que, em geral, não se confirma.

Nesse sentido, é importante ouvir a vítima e legitimar a sua vivência e a sua narrativa. “Costumo falar que as mulheres são as melhores experts na violência que elas sofrem. Quando faço atendimento, sempre procuro respeitar e valorizar a perspectiva das mulheres, que elas consigam ter noção de si próprias e da violência que estão sofrendo”, enfatiza a advogada.

A fim de conseguir interromper esse ciclo, antes que ele culmine em um caso de feminicídio, é também necessária a atuação adequada do sistema de justiça. A existência de uma escuta qualificada de profissionais, que possam perceber as especificidades de gênero presentes no

discurso da mulher, só tem a contribuir para que ela seja acolhida no momento do atendimento e que não sofra novas violências, através de estereótipos socialmente estabelecidos. “A gente que trabalha nisso tem de ter consciência de todo esse contexto. Não existe a mulher que gosta de apanhar. A violência adoece a família, adoece a mulher e é um ciclo muito difícil de romper”, afirma a delegada Karine.

UM CAMINHO ALTERNATI VO PARA O ACESSO À JUSTIÇA

Pensando em formas de articular a formação teórica de estudantes de direito com a prática jurídica, existe o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Saju, serviço dividido em grupos temáticos que auxiliam diferentes setores da sociedade no acesso à justiça. Os grupos atuam no próprio prédio da Faculdade de Direito da universidade.

Entre eles está o Gritam, Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Assessoria para Mulheres. Nele, as estudantes fazem o atendimento de mulheres que sofreram violência e que não sabem como devem agir, desde o momento de realizar uma denúncia na delegacia até a estar presente em uma audiência diante de um juiz. O atendimento é realizado por estudantes de direito, com o auxílio de advogadas e psicólogas, que acompanham as mulheres atendidas nas diferentes instâncias do judiciário.

Ao refletir sobre a dificuldade de uma mulher em situação de violência efetuar uma denúncia, as meninas do Gritam observam a necessidade social de a mulher sempre se justificar como um empecilho que gera ainda mais culpa na vítima: “Onde ela estava, por que ela estava lá, o que ela estava fazendo, por que ela saiu com ele? São perguntas que não se deveria fazer[para uma mulher agredida]. Ninguém tem o direito de te agredir. Mas, para as mulheres, essas perguntas são feitas”, enfatiza Jheinifer Machado, estudante de direito da UFRGS.

Betina Aymone, estudante de psicologia da PUC-RS e membra do Gritam, percebe como as instituições jurídicas também reproduzem o mesmo tratamento: “É muito um sentimento de culpa e de vergonha. A mulher passa por cima desses sentimentos para chegar a uma instituição que deveria acolhê-la, e acaba revitimizada. Ela então passa a se questionar se tem esse direito [de denunciar]”.

As meninas percebem o Gritam como uma alternativa, uma porta de entrada das mulheres no sistema de justiça que, muitas vezes, parece inalcançável. “A gente fala muito desse processo de pedir ajuda, de reconhecer a violência, de se separar ou não do agressor, de procurar o Estado e receber ajuda. É importante falar desse processo, que acontece antes do feminicídio, para poder articular movimentos e traçar estratégias de amparo”, reforça Betina.

Quanto mais o acesso das mulheres à justiça for facilitado, maior será a chance de romper um ciclo de violência que pode culminar em um episódio fatal. Nesse sentido, é necessária a atuação de diferentes esferas da sociedade civil para um melhor entendimento dos motivos pelos quais a violência contra a mulher faz parte do cotidiano social. Que possamos, cada vez mais, ouvir o que as mulheres têm a dizer. Cada palavra pronunciada por elas importa e deve ser reverberada. Falamos de algo que parece inalcançável hoje, na esperança de que, um dia, nenhuma mulher morra pelo simples fato de ser quem ela é.

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