6 minute read
Exumação
Para Rud, 48 anos, desenterrar ossos é coisa séria: é a profissão dele desde os 23
OSSOS DO OFÍCIO
Advertisement
Há 25 an os, desente rrar corpos é a profiss ão de Rud, o ex umador mais ant igo do Cemit ério Municipa l São João, na zona norte de Port o Aleg
Texto, fotos e diagramação:
Filipe Batista
filipe.batista@ufrgs.br
re
No cemitério, não foram poucas as vezes que Rud testemunhou o interesse humano por ossos. Como coveiro, logo descobriu que esse interesse podia vir dos tipos mais distintos. Primeiro vieram os religiosos, que entraram sorrateiramente nas terras do cemitério e violaram sepulturas em busca de um crânio para seus rituais. Depois, os cientistas, que chegavam humildes, pediam para visitar os ossários e, uma vez lá, tentavam surrupiar um fêmur ou uma arcada dentária para “fins acadêmicos” – às vezes, até ofereciam dinheiro aos coveiros em troca de um osso ou outro, coisa que Rud nunca tolerou.
“Eu trabalho há 25 anos no cemitério, não vou me vender por quinhentos reais”, assevera. Todos ali se referem a ele como “o Rud”. É o apelido de Rudnei Leão, atualmente, o mais antigo sepultador e exumador do Cemitério Municipal São João, na zona norte de Porto Alegre. “Mais conhecido como coveiro”, comenta.
Rud sabia que não eram só os adoradores da religião e da ciência que visitavam o lugar em busca de tecido ósseo. Os adoradores do rock também eram muito comuns no cemitério. “Os darks”,
Rudnei Leão Sepultador e exumador
assim se referiu a eles Adelar Bertelli, 60 anos, assistente administrativo, que irrompeu na salinha do almoxarifado durante a entrevista com Rud. Os rockeiros, explicou o homem, não desejavam ossos para cultos ou experimentos. A crença deles era na função decorativa das caveiras, que serviriam para ornamentar seus quartos e mostrar às visitas como eles eram punk. Para Rud, no entanto, desenterrar ossos é coisa séria. É a profissão dele desde que tinha 23 anos – hoje, ele tem 48. “O Rud tem muita história, muita coisa pra contar”, antecipa Bertelli.
Rud trabalhava em um banco antes de ir para o cemitério. Quando foi chamado pela prefeitura para o novo emprego, achou que prestaria serviço de jardinagem ou algo do tipo. Nunca imaginou que trabalharia enterrando gente e, muito menos, desenterrando.
Na infância, já havia tido contato com cadáveres quando serviu como bombeiro mirim na Praia das Pombas, no distrito de Itapuã, em Viamão. Mas remover corpos da água era menos visceral do que a morte que ele viria a conhecer no cemitério com as exumações. “Como bombeiro, eu ajudava a tirar o corpo da água, via a pessoa morta. Agora é diferente. Tenho que tirar os ossos.”
As exumações no Cemitério Municipal são quase diárias, tão frequentes quanto os enterros. A regularidade dos trabalhos e o longo tempo de casa ajudaram a tornar os desenterros “coisa tranquila, normal” para Rud: “Os primeiros seis meses”, conta, “foram difíceis, dá uma sensação horrível... tem que ter estômago”.
Nos enterros, saber quem morreu é praticamente inescapável, porque na maioria das vezes há, ali, um rosto que Rud precisa encarar antes de fechar o caixão e conduzi-lo ao jazigo. Nas exu-
Cova aberta para a exumação do cadáver de um homem na sepultura 195 do Cemitério São João
A regularidade das exumações fez com que trabalhar com a morte, para Rud, se tornasse “coisa tranquila, normal”
mações, por outro lado, ele procura não saber absolutamente nada a respeito dos corpos, seus nomes ou quem eram em vida. “Não posso me apegar. É chegar, tirar os ossos e deu. Se a gente se apega, fica muito sentimental, e aqui não pode ter sentimento”, explica o exumador.
Apesar da decisão de não saber nada sobre a vida pregressa daqueles que desenterra, Rud é famoso no cemitério por uma habilidade. “Só de botar o olho na ossada, o Rud já sabe se é esqueleto de homem ou de mulher”, conta Bertelli, com certo orgulho, pouco antes de se juntar a três agentes do cemitério para a exumação do cadáver de um homem.
Por que desenterrar
Mesmo com chuva, o desenterro não toma mais do que uns poucos minutos, apenas o tempo de os operários afastarem as pedras do jazigo e recolherem os ossos a um saco plástico. O caixão jaz esfacelado na cova, como que feito de papelão, e há água escura até os calcanhares dos exumadores – inundações no jazigos são frequentes por conta dos lençois freáticos que se formam o tempo todo no subsolo do cemitério. Acontece muito de precisarem desenterrar as ossadas por conta dos alagamentos, mas essa causa de exumação é uma peculiariadade do Cemitério Municipal devido a suas particularidades geológicas.
Em qualquer cemitério, o ato de remover os restos mortais de uma urna funerária é realizado para dar aos ossos um novo destino. Os ossos são movidos para outra sepultura ou para os ossários; levados para a autópsia ou para a cremação e, às vezes, levados pelos próprios familiares para outra cidade.
“Algumas famílias não têm dinheiro para transportar o corpo do ente querido logo após a morte. Depois de alguns anos, com a exumação, essas famílias podem finalmente recolher os ossos e levá-los de volta para enterrá-los em um lugar mais próximo”, explica o chefe dos cemitérios municipais, Alexsandro da Costa.
Exumações também acontecem por motivos judiciais. Rud se lembra bem de uma menina de 12 anos que enterrou muitos anos atrás. A garota morreu na cadeira do dentista após complicações com a anestesia. Rud exumou o corpo dela uma semana depois, com a chegada de uma ordem judicial. A autópsia revelou que a garota estava grávida, e a descoberta póstuma ajudou a absolver o dentista, que desconhecia a informação. Casos de paternidade são os mais frequentes no cemitério, mas também ocorrem exumações quando alguém quer colher um DNA ou outro para se certificar da identidade do falecido.
Desenterre os ossos, mas deixe a alma em paz
Nesses desenterros, Rud encontrou muito mais do que ossos. Ao abrir sepulturas, já deparou com garrafas de cerveja, cachaça, cigarros e até mesmo uma perna mecânica. “Tem tudo o que se pode imaginar”, conta ele, lembrando-se, logo depois, de um celular que tocou por três dias na cova de um morto que havia doado os órgãos – o que, na sua concepção, diminuía muito as chances de ele atender.
Rud deixou o telefone lá. Ele tem um protocolo muito específico acerca do que fazer com os pertences dos que já morreram: absolutamente nada. Isso porque rememora, ainda com algum espanto, a história de um colega que, certa vez, se encantou por um vaso chinês deixado no cemitério em um dos jazigos. Como achava um desperdício deixar um vaso tão belo ali, para os mortos, levou-o para a casa. E, segundo Rud, o trouxe de volta poucos dias depois, após o armário da sala onde havia colocado o artigo de cerâmica ter desmoronado. “Com as coisas dos mortos não se brinca, isso é uma maldição”, alerta Rud.
Os mortos ganharam ainda mais o respeito do coveiro depois que um rapaz de vinte e poucos anos roubou ossos recém exumados do cemitério. “Ele voltou pra cá, eu que enterrei. Era um guri novo, a gente reconheceu porque ele tinha levado os ossos.”
No entanto, o quarto de século durante o qual já trabalhou no cemitério não serviu apenas para Rud adquirir sua crença em maldições. Com o tempo, ele também adquiriu um medo. “Antes de trabalhar no cemitério, eu não tinha medo da morte. Saía de madrugada, não me preocupava. Agora eu me cuido muito mais, porque sei pra onde eu vou depois.”