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Luto Parental

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Exumação

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COM ONDE ESTI

ELE ELE VER

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Quem pe rde um filho en frenta mais que a dor da pe rda. Enfrenta a falta de ap oio do poder público e os est igmas da indesej ável condição de se r um pa i ou uma mãe que vive mais do que se us filhos

Texto: Elivelto Corrêa eolo_4@hotmail.com

Diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com Foto: Maiara Dallagnol e

Rafaela Frison

maiara_dallagnol@hotmail.com rg_frison@gmail.com

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Pim ente F ili pe e o s É m e r s o n S ant

Neiva ainda guarda a camiseta do Grêmio, uma das paixões de seu filho Paulo

O desaparecimento e morte de Paulo Júnior da Costa já vinham sendo noticiados e acompanhados em seus desdobramentos desde o primeiro dia de 2019. Mas a postagem em uma rede social feita no dia 17 de abril por sua mãe, Neiva Amador, chamou a atenção. Foi logo após o Grenal que deu o título de campeão gaúcho ao Grêmio. A postagem dizia: “Meu lindão – dois emojis de coração azul – este título é teu… Te amo!”. Junto havia uma imagem dividida: de um lado, uma selfie de Paulo Júnior, tirada em uma bicicleta em movimento, e de outro, os dizeres em preto sobre o fundo celeste: “Com o Grêmio onde o Grêmio estiver”.

Paulo tinha 22 anos, era morador de Guaíba, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Trabalhava como motorista de aplicativo e cursava engenharia. Foi assassinado em Laguna, Santa Catarina, no dia 31 de dezembro de 2018. Dois criminosos solicitaram o carro pelo aplicativo em Porto Alegre, obrigaram Paulo a levá-los até a cidade de Laguna e lá o executaram a tiros. O caso ainda corre na Justiça, mas os indícios são de latrocínio. O crime teve visibilidade nacional e repete o tipo de ocorrência letal mais comum entre os jovens no país.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a principal causa da morte juvenil no Brasil é a violência interpessoal. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), feita em 2016, apontou, naquele ano, um número de vítimas de homicídio, com idades entre 15 e 29 anos, superior a 33 mil. Na faixa de zero a 14 anos, a maior taxa de mortalidade ocorre em acidentes de trânsito. O Ministério da Saúde contabilizou ao longo de 2015, 1389 óbitos dessa natureza. Como outras principais causas apontadas, ainda estão afogamentos, infecções respiratórias, leucemia e suicídio. São dados que trazem a dimensão de outro elemento que não consta em pesquisas oficiais, mas que é um efeito direto dessas incidências: o luto parental.

Os números no Estado

Existe uma dificuldade em determinar a quantidade exata de pessoas como Neiva, que enfrentam o processo de assimilação da perda de um ou mais filhos, a que chamamos luto parental. Não é apenas um trauma particularmente difícil de ser superado, mas também um tabu social, que não encontra estudos ou políticas públicas específicas a ele direcionado. Estima-se que no Rio Grande sul existam cerca de 17 mil famílias em processo de enlutamento. Oito mil só na Capital.

Esses números, divulgados através da plataforma de dados do Ministério da Saúde (Datasus), foram apresentados na Câmara Municipal de Porto Alegre no dia 9 de maio pela ONG Amada Helena, dirigida por Tatiana Maffini. A ONG foi criada em 2013, após a morte da filha de Tatiana aos 17 dias de vida. A organização busca oferecer alternativas no acolhimento emocional e psicológico para pais, bem como desenvolve um trabalho de humanização do luto parental, promovendo encontros multiprofissionais, palestras e reuniões. “Assim como as pessoas não estão preparadas para um evento dessa gravidade, os profissionais também não estão. Muitas vezes não é por falta de empatia, mas de treinamento adequado”, afirma Tatiana.

A perda segundo a psicanálise

A psicóloga Liane Tonelotto, do Centro Profissional Casa Verde, em Guaíba, explica que o luto é caracterizado, na visão freudiana, como consequência da perda de um objeto: “Todo ser humano inicia sua vida psíquica construindo ferramentas e estruturas para se relacionar com seus ‘objetos de amor’. Os primeiros objetos são os pais; ao longo da vida, vão surgindo outros com os quais nos relacionamos e nos quais investimos a nossa libido. O luto é

o sentimento de perda de elo com esses objetos de amor”.

A psicóloga salienta que a morte de um filho vem com outros estigmas, por romper com a ordem natural da vida, e muitas vezes exige um acompanhamento mais prolongado. “A pessoa precisa elaborar a perda. A singularidade de cada um define quais os elementos serão importantes nesse processo e quanto tempo a recuperação demandará. A incapacidade de restabelecer elos com outros objetos de amor e com a própria rotina após o trauma constitui o luto patológico. É preciso estar atento aos sinais que o acusam”.

No caso de Neiva, ainda não houve tempo para assimilar a perda. Três dias depois da quarta audiência que julga o crime, admitiu estar vivendo uma das piores semana desde o ocorrido: “Hoje faz quatro meses desde a morte do Júnior e eu tô meio assim”, disse ela, balançando o corpo de uma lado a outro, demonstrando instabilidade. Neiva diz que o marido ainda está “bloqueado” e prefere evitar o assunto.

Tatiana acha que é mas difícil para os pais externalizar o luto do que para as mães. Contudo, uma vez que o trabalho da ONG começou a ser desenvolvido, eles perceberam que os pais também tinham necessidade de expressar suas dores. Por esse motivo, substituíram o

“A incapac idade de resta belece r elos com out ros objet os de amor const it ui o lut o pat ológico”

Liane Tonelotto Psicóloga

foco original da campanha que tratava de luto materno e passaram a focar em luto parental. Segundo ela, existe a ideia de que o homem não pode demonstrar fragilidade, mas na realidade ele precisa de apoio tanto quanto as mães.

“Ele costumava sentar bem aí onde tu tá!”, diz Neiva apontando para o sofá. Ela mostra também o quarto de Paulo, impecavelmente arrumado, com as roupas preferidas dele cuidadosamente dobradas sobre a cama, junto às medalhas de torneios de basquete. O caderno e os xerox dos capítulos que lia foram mantidos sobre a escrivaninha na frente do computador desligado. “Tem dias que é mais difícil”.

Em alguns momentos, Neiva se cala para ritmar a respiração e evitar o choro. Nem sempre consegue: “Eu tenho certeza que a dor ela nunca vai ir embora. Eu sei que vai ter dias que nem hoje, mas a gente tem que buscar força para seguir em frente”. Parte dessa força Neiva encontra nas coisas que planejavam realizar, como a pequena loja no centro da cidade inaugurada depois do incidente. Também nos cuidados com o caçula, Arthur, de 10 anos, em seu marido e em seus cães. E ainda no envolvimento que passou a ter na busca por condições de trabalho mais seguras para os motoristas de aplicativo.

Segundo a psicóloga Liane, um objeto de amor não é necessariamente uma pessoa. Pode ser uma atividade, um projeto ou uma realização. Embora fique difícil pensar em substituição, essas ações podem ser uma compensação para preencher os espaços deixados pelo que foi perdido e garantir uma relação mais saudável com a ausência. A ONG criada por Tatiana e o seu próprio exemplo de vida reafirmam isso. Ela conseguiu desenvolver um sentimento de gratidão: “É triste e eu não romantizo o sofrimento, mas tenho certeza que a Helena veio para melhorar minha vida, e isso me dá muita força para continuar todo o trabalho”.

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