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O Preço da Morte

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Paranormal

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ENTERRO DE PO BRE

Para diversas famílias , rea lizar os rit uais de despe dida de alguém próximo não é uma opção viável finance iramente . Em Port o Aleg re, o município é o resp ons ável por rea lizar o sep ulta ment o dign o daqueles que não t êm condições finance iras pa ra arca r com o se rviço pa rt icular

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Texto: Thayse Ribeiro thaysesfribeiro@gmail.com Fotos: Émerson Santos e Filipe Pimentel emersonpds996@gmail.com filipe.pimentel@hotmail.com

Diagramação: Filipe Batista filipe.batista@ufrgs.br

Os túmulos utilizados para enterrar pessoas com baixo poder aquisitivo e gavetas que guardam seus restos mortais no Cemitério Municipal São João não têm nenhum adorno

No Brasil, o pobre começa a ser enterrado ainda em vida. Segundo dados do IBGE, mais de 50 milhões de brasileiros (o equivalente a 25,4% da população) vivem na linha de pobreza e têm renda familiar equivalente a R$ 387,07. Uma cova rasa, em um caixão doado, é o destino da maioria dessa parcela da população.

A realidade do enterro de pobre é mais dolorosa do que a própria morte. Depois de uma vida batalhando pelo mínimo para se manter, não ter nem o espaço para morrer é desumano. O destino do pobre, enterrado em uma cova rasa, sem padre e sem flor, se repete há mais de 500 anos em nosso país e parece reforçar as distâncias sociais que nos assolam. A maior diferença entre o enterro do pobre e o do rico é que no primeiro a tristeza não é só pela partida, mas também pela vida que se viveu.

Assim como viver, morrer também demanda dinheiro. Para enterrar alguém é necessário tomar decisões: qual o caixão? Onde enterrar? Como transportar? Esses são apenas alguns dos aspectos que envolvem um funeral. E todos eles envolvem a questão financeira. Quem não possui condições de arcar com esses custos, despede-se como?

Quanto custa morrer

Em Porto Alegre, é preciso pagar, no mínimo, R$ 976,64 pelo funeral simples de um adulto, valor tabelado pela prefeitura. O custo prevê um caixão de madeira, a atividade de vestir o corpo com roupas fornecidas pela família e o traslado até o cemitério, além da organização do velório e assistência funeral. Vale ressaltar que, após três anos e um dia do enterro, a família ainda precisa arcar com novos custos de manutenção do corpo no cemitério.

Para além do valor tabelado, os preços podem passar dos R$ 20 mil, dependendo do tipo de caixão escolhido, dos enfeites florais, da mesa de condolências, véu e velas. O serviço de sepultamento básico em uma funerária fica em torno de R$ 1.700. Nesse valor está incluso: a higienização do corpo, uma urna e o traslado até o cemitério. Quem optar pela cremação paga ainda mais caro. O serviço crematório básico fica em torno de R$ 6.500 e pode chegar até R$ 20 mil.

Quem deseja ser cremado é melhor que tome a decisão em vida. No Brasil, o processo de cremação é orientado pela Lei Federal 6.015/73. O recomendado é informar aos familiares o desejo em vida e deixar uma Declaração de Vontade escrita e assinada, com reconhecimento em cartório. Caso isso não ocorra, a decisão pela forma de sepultamento cabe aos familiares de primeiro grau. Há ainda a opção dos planos funerários e um seguro, para que a família não tenha despesas ou problemas no momento da morte do segurado.

Com todas essas variedades de opções, ainda resta a dúvida: e quem sobrevive somente com R$ 387,07, diz adeus de que forma? No Brasil, todo brasileiro tem direito ao jus sepulchri, uma garantia à sepultura em cemité

As urnas que são doadas para que pessoas de baixa renda possam enterrar seus familiares ficam em um depósito na Central de Atendimento Funerário

rios públicos e o direito de manter-se sepultado. As famílias que não têm dinheiro para enterrar seus parentes utilizam desse direito para tentar amenizar a dor da despedida. A garantia do serviço, porém, não diminui as diferenças impostas por uma sociedade desigual.

Sepultamento gratuito em Porto Alegre

Em Porto Alegre, aqueles que não possuem condições de arcar com os custos do sepultamento contam com o serviço totalmente gratuito oferecido pela prefeitura. O atendimento é custeado pelas funerárias permissionárias da cidade, que em contrapartida são liberadas para explorar o mercado privado. Para utilizar o serviço gratuito, a pessoa que solicita deve comprovar renda de até dois salários mínimos e provar que o falecido era morador de Porto Alegre.

A diarista Vanessa Rodrigues Coelho utilizou o serviço gratuito em 2017 para o enterro da irmã. Às 5h da manhã de um sábado ela já estava acordada para realizar a tarefa nada prazerosa de dar encaminhamento aos trâmites do enterro. Antes do amanhecer, Vanessa já se encontrava na sede da Central de Atendimento Funerário de Porto Alegre (CAF), já que os atendimentos do serviço de sepultamento gratuito acontecem por ordem de chegada e ela queria garantir um bom horário para que a mãe pudesse se despedir com calma da caçula da família.

Antes, quando o governo municipal não oferecia essa opção, o enterro das famílias que não tinham condições de pagar pelo serviço funerário era realizado por uma ONG chamada “Enterro do Pobre”, no Campo Santo, espaço cedido pelo cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

Desde então, o serviço carrega um estigma. Paulo Fernandez, presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários de Porto Alegre, diz que a prefeitura tem trabalhado para mudar essa visão. “Queremos quebrar essa imagem do Serviço de Sepultamento Gratuito. Não é porque é de pobre que precisa ser ruim”, afirma. Existem

“Queremos quebrar essa image m do Serviço de Sep ulta ment o Grat uit o. Não é porque é de pobre que prec isa se r ruim”

Paulo Fernandez Presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários de Porto Alegre

relatos de que antes o serviço era realizado em urnas de baixa qualidade, com os corpos desnudos e sem o mínimo de dignidade. “A família era responsável por praticamente todo o trabalho: eles tinham que pegar a urna, vestir o corpo e colocá-lo no caixão. E foi assim até 1995, um serviço realizado sem qualquer critério ou controle”, diz Paulo.

Por essa razão, o município criou a primeira lei que tratava dos serviços funerários em Porto Alegre e criava o Sistema Funerário Municipal. A principal função da Lei 8.413/99 é garantir a qualidade e agilidade na prestação dos serviços e assegurar às pessoas carentes o Serviço de Sepultamento Gratuito Municipal, realizado inteiramente pela CAF, sem qualquer custo ao usuário.

A Central oferece as mesmas atividades das funerárias particulares, como o traslado e o sepultamento, que é feito no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa ou no Cemitério Municipal São João. Porém, o momento do adeus não recebe o caráter de cerimônia dos eventos realizados pelas empresas particulares.

A irmã de Vanessa tinha 30 anos quando morreu. Antes disso, ela fez das ruas de Porto Alegre sua morada desde que saiu da casa da família após se envolver com drogas. Morreu de tuberculose, caso que se agravou já que era portadora do vírus HIV. Seu falecimento pegou a família de surpresa e, sem condições de arcar com os custos de um enterro particular, foram orientados, ainda no hospital, sobre como utilizar o serviço gratuito.

Seguindo indicações que recebeu no envelope que continha o atestado de óbito da irmã, ela reuniu a documentação solicitada e dirigiu-se à CAF, onde, após algum tempo de espera, foi recebida por uma assistente social que, além de apresentar à família os detalhes do serviço, realiza a avaliação da situação financeira do solicitante.

Lenice Aurélio de Aguiar, assistente social da prefeitura que realiza esse tipo de atendimento, diz que o trato com as famílias do serviço gratuito é diferenciado: “Ele requer um olhar sensível para cada situação, e por isso até o nosso espaço aqui é diferente, ele é individual para se avaliar cada situação da melhor forma”.

Para Vanessa, o serviço oferecido pela prefeitura, mesmo com toda a sua simplicidade, foi essencial para a tranquilidade da mãe dela, que pôde se despedir de sua filha de maneira digna. “Este serviço é muito importante. Não tenho condições de pagar um serviço particular ou organizar essas coisas com antecedência. Tem coisas que não dá para planejar, tipo a morte, daí, com essa opção, as pessoas pelo menos sabem que têm um auxílio. Como no nosso caso, que fomos pegos de surpresa e não tínhamos da onde tirar o dinheiro.”

O cenário no Cemitério São João, local onde a irmã de Vanessa foi enterrada, explicita diferenças tão marcantes em nossa sociedade. Lá, as sepulturas do serviço gratuito dividem espaço com as do serviço particular. A sepultura no chão, sem nome, somente com um número para demarcar um espaço, quase desaparece no meio dos luxuosos túmulos e monumentos das famílias concessionárias.

Falar de morte ainda é algo incomum e até desconfortável. No entanto, a morte visitará a todos em algum momento. Por isso, o debate sobre uma morte digna deveria fazer parte da formação da sociedade. Morrer envolve aspectos práticos e monetários, e ter de lidar com eles em um momento de extrema fragilidade não precisa ser uma experiência desumana.

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