1o Concurso de Narrativas e Poesias do Sindprevs/SC
Esta publicação é de responsabilidade do Sindprevs/SC (Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência do Serviço Público Federal no Estado de Santa Catarina) Organização: Departamento de Comunicação Sindprevs/SC Edição, textos e fotos: Rosangela Bion de Assis (Mtb 00390/SC JP); Marcela Cornelli (Mtb 00921/SC JP) e Clarissa Peixoto (Mtb 0003609/SC JP) Projeto gráfico e editoração: Sandra Werle (Letra Editorial) Revisão: Isabel Maria Barreiros Luclktenberg Catalogação na fonte: Maria Guilhermina Cunha Salasário CRB 14/802 Arte: Frank Maia Tiragem: 3.000 exemplares Primavera 2013
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SINDPREVS/SC. 1. Concurso de Narrativas e Poesias do Sindprevs/SC. / Sindprevs/SC – Gestão Resistir, lutar e avançar sempre. – Florianópolis : Sindprevs/SC, 2007 92 p. : il.
1. Título. 2. Literatura brasileira – Poesia. 3. Poesia – Literatura brasileira. 4. Literatura brasileira – Conto. 5. Conto – Literatura brasileira. CDD 869.108
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edicado a todos os trabalhadores, em especial aos servidores do MinistĂŠrio da SaĂşde, do INSS e da Anvisa no ano em que comemoram 25 anos de lutas, sonhos e conquistas.
GESTÃO RESISTIR, LUTAR, AVANÇAR SEMPRE [2011- 2014] Valmir Braz de Souza Coordenação Geral
Vera Lúcia da Silva Santos Diretora do Depto. Jurídico
Fátima Regina da Silva Diretora da Secretaria-Geral
Rosemeri Nagela de Jesus Diretora do Depto. Jurídico
Elaine de Abreu Borges Diretora da Secretaria-Geral
Rosi Massignani Diretora do Depto. de Aposentados e Pensionistas
Valéria Freitas Pamplona Diretora do Depto. Administrativo e Financeiro Osvaldo Vicente Diretor do Depto. Administrativo e Financeiro Luiz Fernando Machado Diretor do Depto. de Política e Organização de Base Ana Maria Pereira Vieira Diretora do Depto. de Política e Organização de Base Luciano Wolffenbüttel Veras Diretor do Depto. de Formação Sindical e Estudos SócioEconômicos Rodrigo Poggere (licenciado) Diretor do Depto. de Formação Sindical e Estudos SócioEconômicos Janete Marlene Meneghel Diretora do Depto. de Comunicação Marco Carlos Kohls Diretor do Depto. de Comunicação
Clarice Ana Pozzo Diretora do Depto. de Aposentados e Pensionistas Maria Nilza Oliveira Diretora do Depto. de Política de Seguridade e Saúde do Trabalhador Jane da Rosa Defrein Lindner Diretora do Depto. de Política de Seguridade e Saúde do Trabalhador Teresinha Maria da Silva Diretora do Depto. SócioCultural e Esportivo Terezinha Ivonete de Medeiros Diretora do Depto. SócioCultural e Esportivo Márcio Roberto Fortes Diretor do Depto. de Relações Intersindicais e Relações de Trabalho Giulio Césare da Silva Tártaro Diretor do Depto. de Relações Intersindicais e Relações de Trabalho
Sumário Apresentação Homenagem a Ademir Rosa Poesias
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Carlos Alberto da Silva 4 Poema à Ilha
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Doralice Oro Holz 4 Nós, servidores
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Elisabete Fátima do Valle 4 O amanhã 4 Na TV 4 Revolução assunto em questão
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Jacira Nunes Pereira 4 Nada para nada 4 Tempo sem tempo 4 Mãos
31 32 33
Lea Palmira e Silva 4 Sindprevs
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Luiz Sperb Lemos 4 Sísifo 4 Mistério 4 Amargo
35 35 36
Osmar Salgado 4 Soneto Os sindicalistas
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Terezinha Ivonete de Medeiros 4 Presságio
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Narrativas
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Carlos Alberto da Silva 4 A aparição (lenda) 4 Visão 4 Preâmbulo
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Inêz Cascaes Porto 4 Menina de luta 4 Casinha amarela
55 65
Jacira Maria Nunes Pereira 4 O gato na porta do armazém 4 Cachorro número 1 4 Acredite se quiser
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Léa Palmira e Silva 4 Bodas de Prata do Sindprevs 4 Por onde meus sapatos andaram
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Apresentação
A
o organizar a programação dos 25 anos do Sindprevs/SC, a Diretoria Executiva Colegiada incluiu a realização do 1º Concurso de Narrativas e Poesias com o propósito de valorizar e estimular a produção literária dos trabalhadores do Ministério da Saúde, do INSS e da Anvisa.
O poeta e diretor do Sinergia, Dinovaldo Giliolli, a escritora Priscila Lopes e a jornalista Elaine Tavares foram convidados a compor a comissão selecionadora, que não chegou a atuar pois o número de inscritos não atingiu o mínimo previsto no Regulamento do concurso, que era de 30 poesias e 15 narrativas. Apesar de toda campanha de divulgação realizada ao longo de três meses, foram inscritas somente 14 poesias e 10 narrativas. Como explicou o membro da comissão selecionadora Dinovaldo Giliolli, “escrever é tirar coisinhas da cabeça. Tirar coisinhas da cabeça não é tirar caspas, cabelos brancos (na tentativa de “esconder” a passagem do tempo). Tirar coisinhas da cabeça é deslavar a lavagem cerebral reinante. Escrever é um modo de dizer imprimindo letrinhas. Mas quanto custa tirar as letrinhas da cachola? Ah! Só quem escreve com criatividade, honestidade de propósito e despojamento sabe quanto”. Por isso a Direção do Sindprevs/SC avaliou a necessidade de publicar o livro com todos os trabalhos como forma de valorizar os autores que se inscreveram. Trata-se de um processo novo, vivemos numa sociedade que não estimula a criação literária, muito menos quando esse estímulo vem de um sindicato. Este livro, reunindo os trabalhos inscritos no 1º Concurso de Narrativas e Poesias do Sindprevs/SC, é mais uma semente que o Sindicato lança na construção de uma sociedade mais fraterna, justa e igualitária.
Mensagem enviada por Dinovaldo Giliolli, poeta e diretor do Sinergia: Aceito o convite com muito prazer e alegria para compor a comissão, mas também por perceber que a Direção do Sindprevs, através de várias iniciativas e esta é mais uma delas, tem buscado ir além das “questões corporativas” da categoria, questões essas “aprisionadas”, limitadas muitas vezes numa campanha de data-base, por exemplo. Ato que se repete todos os anos, e haja criatividade! Quando uma direção sinaliza para a categoria iniciativas como a de um concurso literário, pode estar querendo sugerir: Trabalhadores, há vida para além do local de trabalho, para além do seu bolso... Enfim, outras formas de luta, outras ações são necessárias para demonstrar que uma entidade sindical não deve restringir suas atividades à esfera econômica. Pode e deve aguçar, bem como ajudar a alargar o sentido humano, despertar para o verdadeiro sentido da vida! De que servem a arte e a cultura se não nos ajudarem a ampliar a visão de mundo sobre nós mesmos e a humanidade? De que serve verdadeiramente um sindicato para os trabalhadores e na perspectiva da construção de uma “nova sociedade” se se limita a agir no campo que
pretende o sistema capitalista? Dinheiro e dinheiro, consumo e consumo... Estimular o senso crítico e propiciar espaços para o exercício da criatividade é papel de entidade sindical antenada no seu tempo! Parabéns, Sindprevs/SC, desde já, não só pelos seus 25 anos, mas por não se deixar dobrar ao sindicalismo de resultado, às disputas mesquinhas de poder, aos egos inflados que habita, infelizmente, nosso “mundo sindical”; os discursos revolucionários, para manter a coerência, precisam se traduzir em práticas e, sobretudo, em exemplos de que é possível fazer diferente. Oxalá a arte e a cultura, juntamente com uma prática sindical transformadora, realimentem sonhos e perspectivas de um mundo mais humanizado!
O
Homenagem a Ademir Rosa
Sindprevs/SC não poderia deixar de se lembrar de Ademir Rosa neste livro. Na verdade, não sabemos ao certo, tudo indica que foi Ademir que se lembrou de nós. Quando o Sindicato lançou o 1º Concurso
de Narrativas e Poesias, o texto “O Previdenciário” foi encontrado no arquivo pessoal de um Diretor. Ele foi escrito em 1993, mas poderia ter sido ontem. A viúva, Edilma Guimarães Rosa, emocionada, autorizou sua publicação. O Sindicato precisa contar para os novos servidores que estão chegando ao Ministério da Saúde, ao INSS e à Anvisa quem foi Ademir Rosa, porque é urgente e necessário que resgatemos sempre a sua obra. Hélio Silva, ex-diretor do Sindprevs/SC, no livro Ademir Rosa: paixão pela arte, paixão pela vida, organizado por Pedro Uczai em 2007, fala do trabalho sistemático que Ademir fez ao longo da sua vida “para tentar fazer que cultura e arte fossem absorvidas e usadas como ferramentas de politização de uma categoria anestesiada por anos de regime militar”. Ademir atuou no Sindicato, de 1990 a 1996, como diretor e coordenador. Sociólogo, lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na rede estadual de ensino. Trabalhou no Centro de Reabilitação Profissional (CRP), participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), colaborou com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e fez parte da Pastoral da Terra. Ademir foi membro do Grupo Armação e atuou em 17 peças de teatro, seis filmes e um vídeo, no período de 1970 a
1993. Escreveu cinco peças teatrais. Morreu em 28 de fevereiro de 1997, aos 47 anos, após três anos de luta contra um câncer no estômago.
Capa do livro Ademir Rosa: Paixão pela arte, paixão pela vida, organizado por Pedro Ukzai em 2007.
Em sua homenagem, os servidores aprovaram na Assembleia Estadual Geral, realizada em 5 de dezembro de 1997, dar o seu nome ao Complexo Esportivo e de Lazer de Ponta das Canas, uma das suas bandeiras de luta. Um mês antes, a Assembleia Legislativa aprovara por unanimidade o Projeto de Lei nº 297/97, do deputado Pedro Uczai (PT), apoiado por lideranças de todos os partidos, cineastas, atores e atrizes catarinenses, que denominou de Ademir Rosa o teatro do Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis. Era consenso o reconhecimento do seu talento e da sua luta na defesa dos artistas e da cultura catarinenses. Seus exemplos de coerência, simplicidade, coragem e alegria estão muito presentes em iniciativas simples, como este concurso, mas também nos apontam para metas grandiosas como a construção de uma sociedade não mais dividida entre oprimidos e opressores.
Diretoria Executiva Colegiada do Sindprevs/SC
O Previdenciário
S
ou Everaldo Peixoto Pires, 40 anos de idade, casado, dois filhos, 2º grau completo, 12 anos de Previdência, ganho três salários mínimos mensais, possuo casa própria, com dois rádios, uma geladeira, um aparelho de TV colorido, um fusca 84, adoro filme de drama, no teatro gosto de comédia. Em ambos vou raramente. Assisto muito a rede globo, mas isso pela noite, pois, pela manhã, ouço a rádio alegria FM, pois toca muito som sertanejo. Shows, só o do esporte. Saio às vezes de casa para ir a um bar, comer algum X. Mesmo gostando de futebol, não sou torcedor, só quando joga a seleção. Política? Tenho simpatias pelo PT, mas não sou filiado. Sindicalizado sou, pois acho que ele luta pelos direitos dos trabalhadores. Estou apresentado? Absolutamente. Tenho mais do que esses dados pessoais, normais. Tudo começou num dia quente de verão. É verdade: o primeiro dia a gente nunca esquece. Me colo-
caram numa sala com cadeira, fria, sem pia. Me disseram para fazer isso e aquilo. Fiz, fui fazendo, sofrendo, até que, quando me deparei com o primeiro contracheque, levei um choque. Em casa meus pais dando a maior força, bruta, não reluta. Viajei um dia e me apontaram uma arma, não simbólica, mas verdadeira, que pensei que fosse a derradeira. Voltei e não mais me reencontrei. Comecei a ler jornais diários, começando com as notícias populares: polícia e futebol, e, quando a noite chegava, me enrolava num lençol. Tive tonturas e dores no peito por pura falta de afeto. Amanhecia com greve, greve. Apostei na utopia e tive tempo de amar. É pouco? Foi muito. E o público por detrás do vidro, anônimo, rouco e roto. Somos, eu e ele, iguais na desigualdade e na adversidade. Que tanta ironia. Vivo no litoral, mas dependo muito do vale: é o refeição, o transporte, o creche, o família, além do patronal. Será mesmo que vale a pena? Duvido sempre e me preocupo quando penso que fatos
aconteceram primeiro como farsa e depois como tragédia. Não é bem o nosso caso, pois somos tanto quanto um pouco pacatos, ordeiros em demasia, seja de noite ou de dia. Mas por favor não me trate como se eu fosse um João ninguém ou um Macunaíma, pois até recém fui intimado a fazer alguns cursos de relações humanas no trabalho, holística, datilografia, que mal sabia eu que rumo da minha vida poderia mudar, e quem sabe eu pudesse me arrumar, encher de orgulho meus pais. Sou um desiludido, alienado, derrotado. Mas como um fênix, ressurjo, estou aqui presente, inquieto. Bem verdade que um pouco desarrumado: mas você é forte, José, você não morre. Quando nós, humanos normais, pensamos numa coisa, não pensamos mais do que numa porção delas.
Ademir Rosa - 1993
Poesias
Poema à Ilha 20
I Florianópolis, capital mar, de encantos mil Belezas ímpares, de céu cor de anil, Seus vultos, no passado, nos deram Victor Meirelles, Luiz Delfino e Virgílio Várzea, E o suo poeta maior Cruz e Sousa! II Ilha de casos e ocasos raros, cheia de matas e passarinhos, onde sempre a cantá-la o poeta Zininho, que nos brindou com sua imortal canção-hino, onde destaca a ilha com os seus matizes – Carlos Alberto da Silva
que nos fazem alegres e felizes...!
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III Acolhedora Ilha mãe, que de todo o país chegam migrantes do Sul e do Norte, aqui tentando a sua sorte, e acabam encontrando o que sempre quiseram! IV Suas praias ao redor somam quarenta e duas ou mais... como os guardiões que representam, em CERES- Espanha, os antigos ARVAIS (sacerdotes)! V Também a nos brindar o Vento Sul – velho amigo sempre presente a mexer com a gente; além dos manezinhos de ditos espirituosos, repletos de realismo.
Nós, servidores 22
De nossa história, protagonistas, das conquistas, ativistas, Vivida por uma geração que não mediu esforços, disposição, Empenhando corpo, alma e coração para escrever a história Em páginas de lutas, coragem, contam os anais, vitórias! História recente, escrita por servidores, por essa gente, Que ousou lutar, ousou vencer, batalhou para conquistar Condições dignas de trabalho, com respeito aos usuários, Ao cidadão, acima de tudo! E o óbvio, melhores salários!
Doralice Oro Holz
Demos o melhor de nós, nossa juventude, nossas vidas, Nossas forças, quase exauridas! Reconhecimento? Pouco, Enfim! Ainda assim, mal sabíamos que o pior estava por vir, Na contramão viria um mal para, sobretudo, fazer calar!
Como explicar, da forma como acontece, difícil diagnosticar A humilhação sofrida, sentida, doída, que vem sem avisar Às vítimas de ataques velados, ataques à alma, da dor calada Que, emudecida e apavorada, retrai, sem aos outros suscitar! Os seus alvos são escolhidos, insidiosamente seduzidos, Enredados, deprimidos, iludidos, passam até a duvidar! De suas próprias atitudes, de sua capacidade laboral, Antes espontânea e ágil, agora ansiosa, frágil, anormal! Pergunta-se, por que a escolha de alguém que não é mau, Indefeso ou incapaz! Mas tem caráter, índole e moral! Acontece que o agressor, no âmago do seu vazio interior, Num contrassenso de ódio e amor, precisa compensar! Age assim por ciúmes, inveja, mais ou menos consciente, Inveja tudo que lhe falta, inveja a alegria de viver! Precisa, Como precisa! Sua imagem realçar, agindo impunemente, Visa desqualificar! Mui habilidoso na arte de manipular!
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É daí que o perverso, na ânsia de mais e mais poder, Ou quiçá, por mero prazer, agindo sem nenhum pudor, Do alto de seu andor, impondo medo e pavor, Leva à destruição total vítimas do assédio moral! As vítimas impotentes não conseguem nem pensar, Revoltadas, envergonhadas, tentam inutilmente provar! Pecam novamente sendo solícitas, tentando agradar, Sem saber que mais e mais a ira do algoz vão provocar! Precisamos, urgentemente, dar um basta na omissão, Precisamos, tão somente, esclarecimentos ou então, Do contexto atual, que história teremos pra contar? Se nada fizermos por elas, de que adianta reclamar? Vamos nos mobilizar, acreditar que tudo pode mudar, Se soubermos como resgatar princípios esquecidos, Valores éticos e morais sucumbidos, e não divagar, Achando que a lei escrita, por si só, milagres vai realizar! Urge compreendermos que respeito, humildade e amor São virtudes do criador, porém, o princípio da dignidade É direito fundamental, positivado, na Constituição atual. Para que todos façam bom uso, aos seus direitos invocar! Somente assim outra história iremos contar!
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O amanhã O imperialismo econômico-militar perde sua face cada vez que em cada pessoa nasce o poder de decisão, de mudar tudo então. Solta teu brado retumbante! Grita, te agita, mesmo que de forma inconstante. Se ergueres tua cabeça e te unires às demais, juntas, tão desiguais, irão conquistar seus ideais. Por isso o amanhã já é agora. Salta de teu divã, não vês que te demoras. Solta tua voz sonora. Elisabete Fátima do Valle
Liberdade, mesmo que tarde!
Na TV 26
Tua televisão acesa em cima da mesa te monitora, te explora. Tu, trabalhador robô, do sistema escravo, alheio, não tem receio. Pensas que és Senhor, mas és apenas escravo. A máquina funciona, tu és parte da engrenagem, mas o que tu não sabes é que és apenas uma peça. Que peça! Escravo que adora seu Senhor e pensa sem pudor que sabe pensar, mas na verdade de nada sabe, a não ser pactuar.
Tudo gira em torno qual carrossel e tu, encantado, não vês o real. A realidade não é aquela que vês pela janela do monitor. Ela é teu Senhor! Comes, dormes, consomes. És escravo do Consumismo! Assim mesmo não te conheces. Não sabes o que é real ou o que é factual. Apenas sonhas, envolto em trevas medonhas. Dita a máquina o que tu usas, pensas. Quem sabe pensas que pensas! Pura ilusão, és escravo da situação.
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Atrás da TV 28
tu não vês, lá está: – O Imperialismo Econômico-militar.
Revolução assunto em questão Nunca dantes pensei e jamais imaginei esta questão singela que me surgiu pela janela da TV. Na TV: – Neste país um ascensorista parlamentar recebe dez vezes mais que uma professora! Uma professora, para quê? E se o trabalhador entender sua real situação? Sem saúde, sem educação, muito trabalho, pouco salário e um mar de corrupção.
Através da educação quem sabe o que acontecerá? Uma revolução. Essa é a questão. E um militar, para quê? Para guardar interesses de uma minoria secular? Coibir manifestação democrática da população? Para a população, circo e pouco pão! Que sucesso a novela, em que capítulo está? E como terminará? E no futebol, meu time ganhará? Trabalham duro sem pensar – Não dá tempo. Apenas seguem o trotar da carruagem e sorriem para a paisagem. Assim que, com muito cuidado, todos os valores são acordados: 1 - não roubar pouco, porque quem rouba pouco não tem e rouba de quem tem. – Ah! Isso é pecado!
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2 - trabalhar como escravo sem reclamar, nada no meio do mês de salário irá sobrar. – É malandro, é pobre porque é preguiçoso e, além de tudo, invejoso! 3 - não reinvidicar nada, esta greve está prejudicando a população. – Só nessa hora se recordam da massa que se amassa para ganhar um tostão! Será que só nos resta pactuar? Esta é a sociedade onde quem trabalha não ganha e quem ganha não trabalha, está confortável em sua cama, enquanto morrem crianças de desnutrição. – Azar, elas fazem parte da população!
Nada para nada
Jacira Nunes Pereira
Verso solto Verso vazio Verso sem nexo Verso sem sexo Verso obscuro Verso comum Verso empenhado Verso poeira Verso sem posse Mas verso Que é teu Que é meu Que é nosso. Verso confuso Como o mundo Verso galaxiático Verso terrestre Verso lunático Verso lamento Como um tormento Desencadeado Desmoronado Apavorado Alunissado Escorregado
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Por uma linha Sem fim... Assim... Em mim...
Tempo sem tempo Homem sem tempo. Quando? Como? Onde? Homem com lua Mas lua sem tempo. Homem no espaรงo. Homem na terra. Homem no mar. Mas sempre sem tempo E o tempo a passar. Homem mรกquina Sempre sem tempo. TEMPO! Tormento! Lamento do homem da mรกquina; da mรกquina do homem; sem tempo a perder!
Mãos Mãos ardentes, Mãos macias, Mãos enrugadas de sabedoria. Mãos calejadas do dia a dia. Mãos perfumadas, Mãos sujas de graxa. Mãos desesperadas Que escrevem na faixa: “É preciso Paz”. Mãos que falam, Que pintam, Que amam, Que curam, Que brincam. Mãos que pedem, Mãos desejadas, Mãos inesquecíveis... E na calada da noite... Como um afoite... Se juntam para orar!
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Sindprevs 34
Saúde, direito de todo cidadão Individualidade de cada ser Nacionalidade brasileira é o meu orgulho Dedico o meu afeto a todos os sindicalizados Pra frente na luta por melhorias Resistir a políticas desnecessárias ao nosso país Enfrentar de cabeça erguida Viver para lutar sempre Serviço de qualidade e bem-estar para a população e os trabalhadores
Lea Palmira e Silva
Sísifo Eu nem deveria ter feito este poema. Quando terminar um verso, ele já devia ter sido outro. Até uma palavra perde sentido em seu final. Mas devemos fazer alguma coisa, mesmo sabendo que é inútil. Contribuímos assim para que tudo se realize de acordo com o que também foi escrito em uma linguagem bem mais antiga.
Mistério No fundo do pátio de minha casa existe uma árvore
Luiz Sperb Lemos
Que me dá uma sombra tão misteriosamente protetora
Que não tenho palavras para dizer o que sinto.
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Mistérios não se dizem e eu não gostaria de tentar fazê-lo. Se fizesse, tocaria com mãos impuras no que não devo tocar. E perderia o mistério da sombra da árvore que fica no fundo do pátio de minha casa. Preciso dele.
Amargo Em homenagem aos que foram os maiores amores de minha vida A estas horas minha mãe e minha filha Devem estar à sombra de uma árvore frondosa no paraíso De cuia nas mãos, charlando no más.
E eu aqui, esperando e tomando um mate Cada dia mais amargo.
Soneto Os Sindicalistas Eis que lá se vão os grevistas que passam... Mas que bando é este que a todos movem Pelas praças, pelas ruas, livres percorrem Vastas distâncias e os seus braços enlaçam.
São os sindicalistas que se dedicam À causa nobre que suas conquistas cobrem, Suas glórias, seus feitos e então descobrem Que todo o labor em prol da causa gratifica.
Osmar Salgado
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Todas as suas lutas que não foram feitas em vão Pelos nossos salários melhorados pelas greves, Feitas com amor, brio, garra e coração.
Todas as lutas, todas as paralisações, ainda que breves Vindas das assembleias, plenárias – a concentração, Que nos deram, pois de parabenizar o Sindprevs.
Presságio “A arte é uma mentira que nos ensina a compreender a verdade.” (Picasso) Somos da Previdência, Saúde e Anvisa Pobres coitados, assalariados Aturamos ponto eletrônico e metas E os reclames dos segurados. Às seis horas é a Compensação E o ministro nos tira a motivação Tememos a Privatização. Na folha de pagamento Só tem desconto Nada de reconhecimento. É sublime poder sonhar Incorporar as gratificações E poder viajar. Terezinha Ivonete de Medeiros
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Narrativas
A aparição (lenda)
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Carlos Alberto da Silva
omo na mitologia, distante no mar em frente à Lagoa da Conceição, uma espuma branca vai se formando, está se aproximando trazida pelo vento, qual “Zéfiro” levou até a sua margem. E dessa espuma sai uma imagem de aparência imortal que, conforme a lenda, os antigos moradores a batizaram de “aparição” – essa de rara beleza e que, em suas aparições, tinha as vestes brancas, irradiando um relevo de “traje imortal”, e lhe adornavam os loiros cabelos com singelas flores de “manacá”. Essa pureza espalhava-se por toda a Lagoa, que naquela época as suas prodigiosas águas cristalinas imita como se fossem um mar setentrional e, sob essas águas, a abundância de vários cardumes de peixes, siris, camarões e muitos outros crustáceos que ali se criavam. Segundo a lenda, aquela “aparição” era nascida do mar e a tinham como celestial, por isso protegia toda a Lagoa, inclusive toda vegetação que a contornava – e já tinham visto nas manhãs de inverno, em meio ao orvalho sutil que o ar levantava, sentir então... aquela “moça”, que trazia no
seu semblante uma radiosa alegria que se refletia naquelas águas cheias de vida. Era, portanto, na consciência daqueles humildes pescadores a guardiã da Lagoa. Todavia, os tempos foram se passando sem o devido ordenamento das gerações posteriores em preservá-la, foi a Lagoa da Conceição se transformando pelo assoreamento de suas águas, proveniente de esgotos e construções clandestinas, além de poluírem-na com herbicidas de alta periculosidade. E isso tudo motivando a morte do seu “ecossistema”. O que dizer se aquela aparição agora fosse vista na Lagoa, certamente o seu semblante não seria de alegria como dantes, mas sim esse deveria estar obnubilado, mortificado. Mas a esperança ainda existe, se todo o poder público e/ou os empresários se juntarem e, ainda com a força da crença popular do nosso povo ilhéu, acreditarem que, como na lenda, ainda aquela aparição venha a interceder para que a Lagoa da Conceição volte a ser o que era antes, pois essa é parte de um acervo inigualável de nossa Ilha.
Visão
E
ra uma daquelas noites lindas em que só o fulgor do plenilúnio (luar) na Ilha pode proporcionar. Assim, Flávio Antonio quis fazer um passeio de ônibus a Canasvieiras, pois há muito deixou de dirigir automóvel, não explicando por quê. Sabia que só voltaria de madrugada, ou seja, no último ônibus. Pelo seu ar
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distraído, não se apercebeu que estava sentado ao lado de uma atraente jovem. Nas repetidas curvas que o ônibus fazia, o seu corpo se inclinava e consequentemente se encostava a essa. Mas ele estranhava não sentir esse contato. Então Flávio passou a fitá-la, notando que ela se encontrava em estado de aflição. No entanto, já com ele se passava coisa diferente – via-se nitidamente em seu rosto aquela auréola do amor à primeira vista que passou a nutrir por aquela moça. Numa curva mais fechada feita pelo ônibus, a sua mão esquerda bateu na mão direita dela, sentindo um calafrio. Não sabendo explicar se pela emoção de tocá-la ou se era assim mesmo “gelada”. Mantinham-se ambos calados o tempo todo, sem trocarem palavras – foi quando o ônibus parou num ponto e a moça saltou, Flávio a seguiu, acompanhando-a de longe, até que, no final de uma ruazinha, deram em frente a um jardim todo florido que era senão um cemitério. Aí a moça saiu correndo e passou a adentrá-lo – Flávio, seguindo-a, viu quando ela entrou numa lápide e foi lá confirmar e ler... aqui jaz Florinda dos Anjos Silva, 19 anos, morta por atropelamento. Flávio começou a ter arrepios e passou a lembrar-se de que tempos atrás, após ter batido com seu automóvel em algum vulto numa daquelas estradas, era noite muito escura e chovia forte, não ligou para os gemidos que ouvira nem parou para ver o que tinha acontecido. Por isso, mais tarde, lhe pesou na consciência, não vindo mais a dirigir, pois, quem sabe, tivesse batido em alguém e poderia ter salvado sua vida. Não
seria aquela moça a que atropelou – e tenha se materializado para lhe atormentar e dizer o quanto foi covarde e insensível ao não ter lhe prestado socorro? Depois disso tudo, agora teria que conviver com esse “carma”. 45
Preâmbulo 1ª Parte: Prelúdio
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as biografias dos grandes Mestres Compositores, veremos manifestações surpreendentes: alguns com assomos de irritação, seguida de crises de “abulismo”, como é o caso de Beethoven; outros, como Tchaikovsky, que tinha sentimentos afetivos em excesso; o caso de desprezo de Franz Schubert, obstinado em estar sujo e maltrapilho (esquizofrênico); ou ainda, Roberto Schumann, que tinha alucinações (psicose); Liszt, que mantinha e vivia paixões amorosas, podendo casar-se e de repente entra para um convento (não seria um caso de demência?); Paganini, que era perdulário, ganhava fortunas, mas as perdia com mulheres e jogatinas; e ainda o caso de precocidade de Mozart, que aos cinco anos de idades compôs um concerto. Assim, se formos palmilhando outras biografias de compositores “clássicos”, encontraremos muitas esquisitices. Entretanto, como se viu, são seres privilegiados, super-
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sensíveis em maior ou menor incidência. Esses compositores clássicos assimilavam, em suas composições musicais, a engenhosidade de utilizar o “popular” dentro da chamada música erudita, essas eternas! Convenhamos que as músicas (muitas) que hoje se editam e ouvem, como as do ano anterior, já não servem mais pela vulgaridade. Com toda essa minha empolgação nessas citações, esqueci que estava restrito neste espaço.
2ª Parte: Quando adolescente, em minhas memórias farei responder... Esta pequena conversa, à maneira de Prefácio, que farei ao lembrar-me, nestas minhas memórias, daqueles ilustres que abrigava a nossa Ilha dos “casos e ocasos raros”; desses, alguns “esquizofrênicos”, outros em crise de “abulia” e ainda psicopatológicos e, por isso, as suas “precocidades” surpreendentes que os transformavam em “seres privilegiados” ou em estado “psicopatológico”, por isso a frequência das atitudes extravagantes, as manifestações de originalidade às vezes nem sempre favoráveis, pelos seus hábitos desconcertantes quando lhes provocavam. Quero deixar claro, por exemplo, que não possuo a vaidade de considerar-me “escritor”, tenho também as minhas maluquices, como iniciar a leitura de uma narração à maneira de Prefácio. Começo a perceber que irei “narrando” até o fim adotando, como então,
Preâmbulo e assim o faço – não era o que queria – oh, decepção! Justamente o título que idealizava para esta narração não o encontrei; no entanto, contentei-me em dar-lhe o título de Preâmbulo. Consolo-me, é que, também na mais alta Antiguidade, Heródoto e Tucídides, historiadores gregos, tinham certas dificuldades em suas narrativas de viagens, qual o nome a dar como “título”. Morávamos numa casa com ampla chácara, onde ali a minha mãe mantinha, para pequenos serviços de jardinagem, ou “Horácio Repetidor” e/ou “Adolfo Torquês” e esquizofrênicos; portanto, eram considerados como “moradores fixos”. Em seguida o casal “Papo Amarelo e a Catarina eternos noivos”, também “hóspedes temporários”; ainda os irmãos e primos Pedro, Manuel, Reduzindo e Benjamim, que se abrigavam em nossa casa, “onde ali ganhavam também almoço e lanches” e ficavam à espera de recados. Apareciam também os de visitas diárias, ganhavam lanches, banhos e etc. Esses eram os “ilustres”, a começar pelo Brügman alcoólatra, citando ainda o Preguiça, o Coceira (sofriam da doença abulia) e o Teresa (homossexual). E os “ilustres” que viviam nas ruas e com quem sempre nos deparávamos: o Beliscão das Moças, o Ivo Bode, o Corvina, o Barão da Meia-Noite, o Navia “esquizofrênico” e o Barba de Forquilha “alcoólatra”; as “ilustres” Marta Rocha, Barca a Quatro, Traça, Pandorga e Lourdes da Loteria, essas um misto de psíquicas e/ou esquizofrênicas; e, finalmente, o nosso mais “ilustre” picareta, engraçadíssimo, ardiloso, seu nome Spridião, assim lhe chamavam.
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A seguir, à guisa de “biografias/manias”, a começar pelo Horácio Repetidor, cuja excentricidade, por qualquer palavra dita, repetia, por exemplo: rapazes, a tua mãe está chamando para o almoço. Em “ato contínuo, repetia para si em voz baixa as mesmas frases”. O Adolfo Torquês, idem, não podia ver qualquer pessoa com o “bumbum” abaixado que apertava com a sua torquês, havendo muitas reclamações que incomodavam muito ao meu pai, que às vezes tinha que comparecer à polícia. E “a vida romântica do Papo Amarelo e da Catarina” (psicóticos), mas, ao contrário daqueles acometidos de abulia, com muita vontade de viver. A Catarina, sempre vestida de noiva e com grinalda de enfeites de flores de laranjeira (minha mãe a mantinha sempre assim, era o pedido dela). E o Papo Amarelo, sempre vestido com seu terno de brim-coroá, ambos católicos fervorosos presentes em todas as procissões. Certa ocasião, numa dessas procissões ao redor da Praça XV de Novembro, cantavam em “coro” o verso “Os anjos, todos os anjos”. Nós, “a nossa turma de estudantes”, acompanhávamos de dentro do jardim e gritávamos: Papo Amarelo! Ele não gostava desse apelido e, no mesmo tom, respondia, em voz bem alta, de dentro da procissão: “Papo Amarelo é a p... que te pariu”. Quanto aos irmãos e primos Pedro, Manuel, Reduzindo e Benjamim (negros musculosos), esses, sem quaisquer “anomalias”, mas extremamente pobres, davam como referência a nossa casa para contratá-los nas mudanças e também carregavam pianos e, quan-
do acontecia, usavam uma “cantilena” que, se não me falhe a memória, era mais ou menos assim: “quecuê Maria Joana”, seguindo-se de outros estribilhos para ajudar nessa cadência a suportar seu peso. Quanto aos “ilustres visitantes”, somente vinham para filar o café da manhã, as sobras do almoço ou do jantar e, em certos casos, um banho. Um desses visitantes, o Brügman, como o chamavam, exigiu que fosse construído no fundo da chácara um tanque à parte para tomar seu banho de água fria, fosse verão ou fosse inverno, e não usava sabão ou sabonete, somente “creolina”, exalando “esse perfume”, e, juntamente, uma garrafa de caninha, que, após alguns goles (ele era alcoólatra), saía às ruas cantarolando...! Na sequência vinham os “ilustres” apelidados de Preguiça e Coceira, ambos sofriam de “abulia” – passavam os dias e as noites, literalmente, o primeiro se espreguiçando procurando não fazer nada e o segundo coçando-se, não tinha nenhuma vontade (abulia). Minha mãe os tratava com desvelo, haja vista, por terem aquela doença, lhes ministrava remédios por consulta médica de nossa família. Num certo dia apareceu o Teresa, “ilustre” homossexual... exigindo da minha mãe um banheiro à parte em que tivesse água morna para os seus banhos de assento, que se davam quase sempre às 18h30. Após esse banho, encharcava-se de um perfume barato, saía às ruas à procura de “seus clientes”. Também nas ruas encontravam-se todos os tipos de “ilustres” de esquizofrênicos, psicóticos, psicossomáticos, a começar pelo Beliscão das Moças, que
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se postava numa guarita da igrejinha do asilo dos órfãos, em frente ao jardim da Praça Getúlio Vargas. Para saber, de fato, se era considerada uma “moça bonita”, teria que “passar pelo teste”, ou seja, assim que uma “moça passasse em frente ao asilo”, esse saía correndo... e, se considerasse a moça bonita, pregava-lhe um “beliscão”, caso contrário, se não desse beliscão, a moça podia considerar-se como feia! Assim o era! Quanto ao Ivo Bode, que trazia sempre consigo uma “vara” que usava para desferir nos moleques que enticavam com ele, principalmente nas procissões, quando lhe chamavam de “bode”, corria atrás da molecada, a ponto de às vezes desequilibrar o “andor” com o risco de quebrá-lo. Era uma cena! E, por falar em cena, havia outros “ilustres” como o Corvina, bem arrumadinho, vestido com paletó de casimira todo abotoado, embaixo do braço direito trazia um saco de aniagem e no braço esquerdo segurava um “porrete”, mas nunca feriu ninguém, só ficava furioso quando enticavam com ele e saía correndo atrás da molecada. Outro “ilustre” que vivia sempre alcoolizado era o Barba de Forquilha, tinha sido foguista da Marinha Mercante, conhecia boa parte do mundo, mas, ao contar as suas recordações, essas eram consideradas confusas e irritava-se facilmente quando alguém ria – a ponto de brigar com a pessoa! Outro “ilustre”, o Barão da Meia-Noite, totalmente psicótico, não gostava que o apelidassem desse nome e, quando assim a molecada o chamava, saía correndo atrás dela completamente furioso para, quem sabe... bater nela,
mas não, quando a molecada parava, esperando a reação dele, que nada, esbaforido pelo cansaço da corrida, dizia: – Oh, meu nome é Barãozinho somente, e não Barão da Meia-Noite, ouviram? Outro “ilustre” psicótico, o Navia, entrava nas repartições públicas e tratava de aposentadoria, atrás de uma suposta, e ficava furioso quando lhe negavam. Seguem-se as “ilustras” como a Marta Rocha, encarquilhada, mas tinha-se como linda e a maior parte do tempo espelhando-se! A Traça Magrinha, com seu vestido apertado e abotoado dos pés ao pescoço, na cabeça um chapéu e um véu e, enrolada no pescoço, uma echarpe de imitação de raposa; e isso tudo em pleno verão. Ainda tinha a Barca a Quatro, malcriada, agressiva. Em seguida vinha a Pandorga, maltrapilha, às vezes com trajes (à época) obscenos, não era muito receptiva. A Lourdes Lotérica vendia loteria federal e, no seu tratamento a qualquer pessoa, a chamava de eminências, excelências e reverendíssimos. Essa era a sua psique. Abro aqui um parêntese para falar de um caso raro de que era acometido o Marrequinha, tratava-se de um mulato muito forte, excelente marido e pessoa e muito sério, fazia carretos no mercado municipal com seu carro de mão, mas completamente diferente dos outros, pois esse media mais ou menos três metros, era grande e pesado. E isso fazia a partir de 1º de janeiro até 30 de junho; entretanto, do dia 1º de julho até 31 de dezembro, era completamente outra personalidade, transformava-
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-se em “guarda de trânsito”, nas ruas mandava parar o trânsito de automóveis, caminhões etc.
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Agora o nosso maior “ilustre”, a notabilíssima, picareta, engraçadíssima e ardilosa figuraça Spridião, assim o chamavam. Aparentava uns 35 anos, sempre vestido de preto, de altura média, magro de complexão frágil: vivia de expediente, em certa ocasião promoveu uma “rifa de um carneiro”, inclusive os meus pais compraram, pois ganhar um carneiro era uma boa. Após ter vendido toda aquela sua rifa, houve um ganhador e o felizardo foi o Dr. Sizenando, médico muito caritativo e estimado, e o Spridião foi levar o seu prêmio. Entretanto, o dito “carneiro” não era o “animal”, e sim um carneirinho de barro que se vendia no mercado público! Em outra feita, o nosso especialíssimo “ilustre” tornou-se um “ator”, mas terei que ser prolixo para contar como isso aconteceu. O nosso Teatro Álvaro de Carvalho, uma réplica do Teatro São Carlos de Palermo, Itália, é um dos que detêm a melhor acústica no país. Em seu palco se apresentavam pequenas representações – e numa ocasião, passava pela nossa baía sul o navio do Lloyde Brasileiro trazendo uma Cia de Ópera que iria se exibir no Teatro Colón, de Buenos Aires; entretanto, devido a um grande temporal que estava se aproximando da costa, achou por bem o seu comandante mantê-lo ali ancorado, não queria se arriscar a prosseguir viagem. E a ópera que iriam encenar seria “Tosca”, do compositor consagrado
Giacomo Puccini, um dos maiores compositores operísticos, através da professora de canto e música erudita, Sr.a Judite Simone, que se dedicava aos ensinamentos com aulas práticas e teóricas de óperas, concertos e sinfonias, ou seja, estudo da mais bela de todas as artes. Ela trouxe-nos grande contribuição por várias gerações que ali passaram, onde se formaram vários mestres, aliás, faço aqui uma comparação com Tucídides, aquele mestre grego da Antiguidade que dava aulas aos seus discípulos na prática e na teoria. E, por seu intermédio, conseguiu trazer metade dos personagens daquela ópera para a encenação no Teatro Álvaro de Carvalho e o seu enredo operístico. Tosca era uma cantora famosa, ela e Mário Caravadossi eram amantes. Scarpia, chefe de polícia de Roma, tinha uma paixão por Tosca e aproveitou-se de uma oportunidade para prender Mário. Ela é intimada a comparecer para prestar depoimento e ouve gemidos de Mário sob tortura. Para salvá-lo, Tosca entrega-se a Scarpia, que providenciou um passaporte a ela e ao amante. Agora voltemos à encenação em nosso teatro, no local onde se achava Mário preso, em frente ao palco, iria se acender uma fogueira para a iluminação. Para surpresa, surge um “bispo” católico para acendê-la, aí é que entra o nosso Spridião (o ator), que representa o “bispo” (foi contratado como protagonista) que a nossa turma de estudantes indicou ao responsável para aquela ópera. E assim procedeu-se... ao levantar o pano do palco (que seria provavelmente o terceiro ato), aparecia o nosso Spridião vestido de indumentária de bispo, ou
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seja, “uma bata” que lhe cobria do pescoço aos pés; nesse ínterim, bem ao centro do palco, Spridião levanta a “sua bata”, aparecendo as suas pernas magras e cabeludas, e retira de um suposto bolso um isqueiro composto de uma “isca” de 1,5 metro que se arrastava no palco e juntamente duas pedrinhas que, flexionando, emitiam faíscas que ascendiam aquela isca... Nisso o público reconheceu o Spridão e caiu numa gargalhada – a ópera tornou-se uma ópera cômica. Ao finalizar, direi que não tive a estultice pretensão de “narrar episódios da minha adolescência”. Na maior parte, não sei os nomes verdadeiros desses “ilustres” e nem o porquê das suas excentricidades; mas uma coisa era certa, muito nos deleitávamos, menos minha mãe, “a Tudinha”, que os estimava como “seus filhos” e dispensava todo o seu carinho a esses, não permitia que os desaforasse, pois eram para ela todos singulares. Espero que me perdoem pela “chatice e pelo tempo perdido” ao lerem estas minhas memórias.
Menina de luta
C
om oito anos de idade, Lúcia sonhava em ser atriz; depois de lavar a louça do almoço, escutava atentamente sua novela no pequeno rádio da cozinha. Dizia à sua mãe que queria trabalhar na rádio. A mãe, com toda sua simplicidade e com um sorriso nos lábios, falava: Sonha sempre, minha filha. A pequena Lúcia estava sempre atenta a tudo que acontecia à sua volta. Obediente com sua mãe, estava sempre pronta para ajudar; família grande com 18 irmãos, tempos difíceis. Ainda arrumava tempo para ajudar na arrumação da casa e cuidar dos filhos da vizinha, que era costureira de mão cheia e muito bondosa. A vizinha, por sua vez, compensava os trabalhos da pequena menina costurando para toda a sua família, sem nada cobrar. Suas irmãs mais velhas trabalhavam em um seminário, ajudando assim o sustento da grande família. Inêz Cascaes Porto
Todos os domingos, a pequena menina se arrumava para ir à missa na igrejinha de seu bairro, levando consigo suas irmãs mais novas. Depois da missa,
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Lúcia e suas irmãzinhas caminhavam até o seminário para visitar as irmãs mais velhas, pois dormiam no trabalho. O encontro com as irmãs era muito divertido. Lúcia conversava atentamente com as freiras do seminário, questionava bastante as freiras sobre a vida religiosa e como fazer para ser uma freira. Achava muito lindo seus hábitos, vestidos longos, véu; e, sendo esposa de Deus, achava tudo maravilhoso. As freiras disseram que, quando ela completasse 12 anos de idade, poderia dar seu nome e esperar a vaga para o internato. O tempo passou e Lúcia conseguiu se internar no Colégio de Freiras. À medida que o tempo passava, a pequena menina acordava todos os dias às cinco horas da manhã, estudava muito, trabalhava bastante na lavação de roupas. Por volta das seis horas da manhã, participava da missa, sete horas tomava café, sete e trinta assistia às aulas com os alunos externos, à tarde ajudava os professores com as crianças que frequentavam o jardim de infância. No fim do dia, assim que as crianças iam embora, limpava as salas de aula. Ainda arrumava um tempinho para jogar vôlei. No colégio era bastante participativa, fazia teatro, concurso de poesia, em que ganhou o prêmio de primeiro lugar com a poesia do Pequeno Príncipe. Que diz assim: “Senhor, Tu vens do céu, parece tão alto e estás tão perto. Vieste de outro planeta, Senhor. Porque os homens fizeram da terra um deserto e Tu te sentes no meio dela...”. Não se lembra do restante da poesia, mas diz que é muito bonita; os anos se passavam e Lúcia não se esquecia de seus sonhos. Percebeu
que sua vocação talvez não fosse a de ser freira. Durante as férias escolares, sempre passava em sua casa, em companhia de seus pais. Aos domingos sempre ia ao cinema. Nunca esqueceu o que as freiras falavam a todas as meninas internadas que faziam limpeza geral em todo o colégio: “Limpem bem, porque Deus vê tudo”. À medida que o tempo passava, percebia que sua vocação mudava, pois, quando ia ao cinema nos domingos, sentia-se emocionada com as histórias de amor, como “Romeu e Julieta” e outras. Um belo dia ajoelhou-se diante da imagem de Deus e pediu que o Espírito Santo mostrasse seu caminho; como num passo de mágica, quando estava muito pensativa, uma das freiras, percebendo seu estado, disse: Lúcia, por que andas muito pensativa? A menina falou à freira que estava em dúvida quanto à sua vocação. A irmã Dalva, como era chamada a freira, disse: Terminaste o curso regional, sabes o que vais fazer o normal ou o científico. Então sugeriu à menina Lúcia que fosse dar aulas, ou seja, lecionar, só assim saberia o caminho a seguir. Lúcia seguiu o conselho da irmã Dalva. No final de suas férias, tomou uma atitude, foi a uma cidadezinha do interior onde, falando com o prefeito da possibilidade de lecionar, foi contratada e assim veio a ser professora para uma bela turminha de alunos da primeira, da segunda e da terceira séries primárias e mais dois alunos do quarto ano primário; tinha que ser artista para dar conta de tudo, pois ensinava a todos ao mesmo tempo, na mesma
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sala de aula. Naquele mesmo ano em que foi ser professora no interior, a menina Lúcia sentiu fortes dores de dente; não tendo condução para ir ao dentista, foi montada em um cavalo, uma loucura. Dona Anita, a mulher da pensão, era quem puxava o cavalo na frente. Todo final de cada mês, todas as professoras da região tinham reunião na cidade próxima e lá estava ela participando. Certo dia, não querendo chegar tarde na escola, decidiu então ir a pé, não esperando sua condução, o cavalo. Como não conhecia bem o lugar, acabou se perdendo pelo caminho. Dona Anita, a mulher da pensão, saiu à procura de Lúcia, encontrando-a perdida à beira da estrada. A menina, então, pediu desculpa por não esperar a sua condução. Nesse dia todos os alunos estavam muito preocupados com a professora, porque ela não chegava; quando então chegou na sala de aula, ela sorriu e disse aos alunos que tinha se perdido pelo caminho, mas foi encontrada; isso provocou fortes gargalhadas nos alunos. O ano letivo terminou e, para alegria da professorinha, todos os alunos foram aprovados. Foi uma experiência fantástica em sua vida. Já com 16 anos de idade, a menina Lúcia queria continuar seus estudos, pois tinha muito que aprender ainda. Apesar de ter gostado muito da experiência de ser professora, porém achou que não era o seu caminho. Retornando para sua cidade de origem, arrumou um emprego no hospital, na função de atendente. Dando continuidade a seus estudos, matriculou-se no científico, que, nos dias de hoje, seria o segundo grau. Como era uma excelente funcionária, destacou-
-se entre as demais, sendo então convidada pela diretora para fazer um curso pago pelo hospital. Então, Lúcia e outras três moças embarcaram no ônibus com destino à capital, onde ficaram durante um ano estudando, formando-se em Auxiliar de Enfermagem. Após a sua formatura, Lúcia retornou à sua cidade, enquanto as outras três moças ficaram trabalhando na capital. Retomou seu trabalho no hospital, agora como auxiliar de enfermagem; durante alguns meses foram descontados 20% do seu salário para pagar o curso. Para chegar até o trabalho no hospital, a mocinha Lúcia acordava muito cedo todos os dias para pegar o ônibus das cinco e meia da manhã que passava em frente à sua casa. Como trabalhava também aos domingos, a mocinha tinha muita dificuldade de chegar até o trabalho, pois não tinha ônibus. Ela e sua irmã Alba iam a pé ou pegavam carona com sua amiga Tereza, que tinha uma charrete, pela época era uma condução muito boa. Num certo domingo, sua amiga Tereza pegou folga, a mocinha Lúcia pegou a bicicleta de seu irmão José emprestada, assim ela e sua irmã foram trabalhar; enquanto uma pedalava, a outra seguia na garupa e, quando cansavam, trocavam de posição. Nesse dia a bicicleta furou o pneu e, para não perder a hora do trabalho, correram tanto com a bicicleta na mão, pois tinham que bater o ponto as sete da manhã. Nesse mesmo domingo, perceberam que um homem vinha em sua direção, que sufoco, correram tanto que seus corações pareciam sair pela bo-
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ca, mas, para sua tranquilidade, o tal homem corria atrás de uma outra mulher.
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Quando ainda cursava o científico, Lúcia conheceu um jovem, bonito e atraente, de nome Edson, pelo qual se apaixonou e com quem se casou. Desse matrimônio nasceram duas lindas meninas, Patrícia e Maria. Com muita dificuldade, o casal economizou e comprou um Fusca 1500, de cor amarela. Lúcia teve que aprender a dirigir em dois dias para levar suas filhas até a casa de sua irmã para ela cuidar delas, pois de vez em quando não tinha com quem deixar seus pimpolhos. Da primeira vez em que veio a dirigir seu Fusca 1500 amarelo, o motor apagou, porque, em vez de engatar a primeira marcha, com certeza engatou uma terceira, nisso chegou um homem todo feliz e disse: legal uma carona. Prontamente, Lúcia respondeu que estava apenas aprendendo a dirigir. Aos domingos, as crianças ficavam com seu marido, porque tinha que trabalhar. Ele reclamava muito por ter que ficar sozinho com as meninas. Lúcia dizia: Deus é tão bom para nós, quem sabe não aparece um emprego que não precise trabalhar aos domingos, e não é que a chance chegou? Lúcia escutou pelo rádio a abertura de inscrição para um concurso no Ministério da Saúde, na área da Enfermagem. Fez o concurso e foi aprovada, exercendo suas atividades em sua própria cidade. Na mesma época, seu marido também fez concurso público no estado e foi aprovado. Como
funcionários públicos, os dois tiveram muito tempo para curtir suas filhas aos domingos. Como funcionária pública federal, participa intensamente das atividades do Sindicato. Luta junto com a classe trabalhadora por melhores salários e melhores condições de trabalho e está sempre atenta com os acontecimentos de classe. Quando solicitada para participar de algum evento ou manifesto, está sempre pronta. Representante da classe trabalhadora dos aposentados, como diretora de base, está sempre presente nos manifestos públicos pela luta pelos direitos, desistir nunca, esse é seu lema. A vida só para quando partimos para outra dimensão. Mas conta que, quando era solteira, trabalhou dois anos à noite para fazer um outro curso, Técnico de Enfermagem, pela manhã. Saía do plantão diretamente para a sala de aula e muitas vezes acabava dormindo, mas suas notas sempre foram boas. Pensava em ser promovida, com a realização do curso técnico, mas esse não foi reconhecido pelo Ministério da Saúde. Educou muito bem suas filhas, hoje casadas. Os anos chegaram, hoje já não tão jovem, está muito feliz, com seus quatro netos, é só alegria. Alcançou sua aposentadoria cedo; pensando em realizar seus sonhos, entrou num curso de Teatro pela Prefeitura, mas seus colegas de curso eram muito jovens, sentiu-se fora da casinha.
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A vovó Lúcia parou e pensou: Vou curtir meus netos e me tornar uma atriz com eles. E assim ela leva a vida numa boa. Cuida de sua boa forma fazendo academia, inclusive seu professor perguntou o que ela queria conseguir fazendo academia, prontamente respondeu que gostaria de levantar o bumbum e os seios, ter pernas bem definidas e muito mais. Percebendo a seriedade do professor, ela, bem descontraída e espontânea, sorriu e disse: Manda-me fazer uma plástica, professor, mas ele nada retrucou. Ainda em conversa com o professor, contou que foi fazer um checape com um cardiologista, o médico perguntou o que sentia, ela sorriu e disse: Um homem lindo na minha frente, já estou curada, meu coração normalizou, minha pressão baixou. O médico ficou sério, ela falou: Não me processe por assédio sexual, pois sou muito bem casada com um marido maravilhoso. Disse ainda: Assim que eu sair, ele entrará para consultar com o senhor. O jovem médico sorriu, e Lúcia continuou falando: Sabe, doutor, deve ser um saco escutar sempre a mesma ladainha, dor aqui, dor ali e assim por diante. À minha irmã, em uma consulta dias atrás, o médico perguntou: O que a senhora não sente? Ela ficou eufórica e pensou: Este é um médico bom. Além de clínico geral, ele também era formado em Psicologia, sabia como se relacionar com as pessoas, sem ofendê-las. Aposentados, foram morar na praia. Muito bom. Mas, quando o inverno chega, praia deserta, seu marido
diz: Aqui é o céu. Lúcia, mulher comunicativa, de luta e bem-humorada, sentia ansiedade, angústia, pois gostava da cidade, ver gente e vitrine e conversar. Decidiu certo dia consultar um psicólogo. Conversou tanto com o psicólogo, já cansada de falar, ela mesma encontrou a solução para o seu problema. Disse então ao profissional: Já sei o que vou fazer. Ficarei três dias na cidade, farei academia, vou brincar com meus netos, vou visitar meus irmãos, minhas filhas, depois volto para a praia para curtir meu marido, com minhas energias carregadas. Lúcia observa que, enquanto falava, o psicólogo estava bastante pensativo e tomava bastante água. Pensou consigo: Eu canso de falar e ele é quem toma água. Muito educado, o psicólogo olha para o relógio e diz: A senhora já falou por uma hora e dez minutos. Marca uma nova consulta para eu me apresentar e fazer uma acupuntura. Lúcia saiu do consultório, aliviada por ter encontrado a solução dos seus problemas, mas brava porque o psicólogo nada falou e cobrou caro pela consulta, pois seu plano de saúde não cobria. Falando ainda em consulta, outro dia Lúcia consultou com um médico ortopedista, pois sua lesão de menisco estava doendo muito. Enquanto aguardava na sala de espera, encontrou-se com uma colega de trabalho de tempos atrás. Cumprimentou sua colega Mary perguntando se estava tudo bem, prontamente ela respondeu: O que achas? Estamos no médico. Lúcia, com seu bom humor, retrucou: Isso faz parte da vida, nosso corpo é uma máquina, também pifamos, e continuou falando... Nos 45
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anos temos labirintites. Nos 50 anos capsulite, problemas de bursite etc. Nos 55 anos ataca a coluna. Mas não te preocupa, chegando aos 60 anos, começamos a pular, escalar muro, pular corda, jogar corrida com os netos e então conseguimos uma lesão de menisco, doença de jovem, de jogador. Daí por diante não temos mais nenhuma doença, pois já tivemos tudo; sua colega sorriu dizendo: Que papo fúnebre! Lúcia fala que, quando tu encontras com pessoas mal-humoradas, é preciso brincar um pouco. O tempo passa e certo dia conversa com seu marido sobre a possibilidade de mudar de praia, justificando que aos 60 anos gostaria de dar uma viravolta em sua vida. Por exemplo, alugar uma casa no próximo verão em um outro lugar qualquer. Para sua surpresa, seu marido disse: Então por que não colocar à venda a nossa casa de praia? Lúcia responde: Tu sempre falaste que aqui era o céu, quem sou eu para te pedir algo assim. Mas seu marido, decidido, chama um corretor para avaliar a propriedade da praia para colocá-la à venda. Cola fotos no site da imobiliária e inclusive placas de “vende-se”. Em uma semana vende a casa de praia para um casal, muito simpático de Concórdia, que queria morar no litoral. Na mesma semana compram um apartamento novinho por um preço mais elevado, ficando até sem carro. Lúcia se diverte no apartamento sem móveis. Diz recordar do tempo de acampamento, dorme em um colchão no chão, lava e escova os dentes no tanque. Enquanto o apartamento da praia não é mobiliado, seu marido voltará a trabalhar
para terminar de pagar os móveis. Por enquanto, Lúcia e seu marido retornaram a morar no apartamento da cidade e, assim que o da praia ficar pronto, novamente voltam a morar na praia. Recomeçar é vida. “Legal”, comentam os irmãos de seu marido. Lúcia diz que ousar e arriscar não tem idade, sair da rotina, tudo de bom. Sonhar e lutar é sempre seu lema. Ao ter bons sonhos e lutar, podemos conseguir tudo o que desejamos. A vida é um teatro e nós somos os artistas, ter atitudes é tudo que devemos ter. Se algo der errado, rasgamos as páginas e começamos novamente. Ah, para findar este conto, não nos esqueçamos de agradecer todos os dias pelo grande milagre que é a vida.
Casinha amarela
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nita e João se amam muito, decidiram se casar. Juntam suas economias e compram uma pequena casinha. Nos finais de semana, João trabalha na pintura da pequena casinha, pintando-a de amarela e as janelas de marrom. Anita ajuda fazendo bolos e salgadinhos. De bicicleta, sai de casa em casa a vender seus produtos. Alguns anos depois, conquista muitos clientes, juntando um
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bom dinheiro. O casal decide que é hora de ter um filho. Anita engravida, tendo uma gestação sem problemas. Nasce uma linda menina a que deram o nome de Ana, a menina é amamentada pela mãe durante um ano e meio, cresce bastante saudável. A casinha amarela fica ainda menor com a chegada de Ana. João faz trabalhos extras para aumentar a renda da família. Anita arruma um emprego, mas continua fazendo bolos e salgadinhos com o objetivo de aumentar a casa. A criança é colocada em uma creche ainda muito novinha. Chegando ao mês de maio, numa sexta-feira, próximo ao Dia das Mães, Ana brinca com sua boneca em seu quarto. Pega uma vela e acende. Sua mãe, apressada, chama Ana para levá-la à creche. Ana estava brincando com sua boneca Lili no quarto e sai correndo quando ouve a voz da mãe, deixa a boneca em casa, se não suas amiguinhas do jardim vão querer brincar. A menina coloca a boneca no balanço da árvore. As casas do interior ficavam distantes umas das outras, a vizinha mais próxima percebeu fumaça no ar. Olhando, viu a casinha amarela pegando fogo. Chamaram alguns vizinhos e, com mangueira, baldes, tentaram salvar a casinha. Porém, o fogo consumiu tudo e, quando os bombeiros chegaram, nada mais restava. Os vizinhos fizeram uma grande corrente de solidariedade, dando-se às mãos em frente à casinha queima-
da, à espera dos proprietários. Anita, vendo o que tinha acontecido, dizia: Meu Deus, onde tu estavas? Ana dizia: Olha, mamãe, Jesus salvou minha boneca, ela está no balanço da árvore. Com certeza ela tinha esquecido que havia deixado ali. Anita chorava muito. Seus vizinhos diziam: Vamos fazer um mutirão e construir uma nova casa. Nesse dia os vizinhos colocaram suas casas à disposição do casal, até que a nova casa fosse construída. João ficou transtornado dizendo que isso não estava acontecendo: Eu fazendo horas extras para aumentar a casa e agora estou sem teto. Dona Tereza consolava: Vocês não estão sozinhos. Os vizinhos aproveitaram o Dia das Mães para se organizar na reconstrução da casinha amarela. Um ficou responsável de arrumar os tijolos, Dona Tereza ficou responsável de fazer uma rifa para angariar recursos e assim cada vizinho ficou com uma tarefa. Como João era pedreiro, falou que trabalharia nos finais de semana para construir a nova casa e, muito otimista, disse que logo, logo, nossa casinha estaria pronta. Muito ajuda apareceu, como roupas, alimentos, eletrodomésticos e tudo de que precisavam. Antes do almoço, Dona Tereza fez uma oração em homenagem a todas as mães agradecendo a refeição. Anita lembrou e disse: Esqueci de acender uma vela para minha santa manzinha. Ana, sempre atenta a tudo, falou: Mamãe, como você estava trabalhando muito, eu acendi a vela, mas vovó se esqueceu de apagar. Então foi você que
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colocou fogo na nossa casa? – perguntou Anita. Não chora, mamãe, eu só queria que a vovó encontrasse o caminho para nos visitar, você poderia esquecer e a vovó não acharia o caminho de volta, disse Ana. 68
Era comum Anita ascender uma vela todos os anos no Dia das Mães em homenagem à sua falecida mãe, Ana sempre perguntava por que ascendia a vela e Anita respondia que a vovó viajou para muito longe e, acendendo uma vela, ela poderia voltar a visitá-las. Devemos saber responder às perguntas de nossos filhos para não sermos surpreendidos. Anita aprendeu a lição pagando caro, disse que com tantos afazeres damos qualquer resposta aos nossos filhos e acabamos pagando um preço muito alto por não explicar direitinho. Graças aos vizinhos, a casa ficou pronta. João e Anita voltaram a economizar para fazer um banheiro. Certa vez, quando Anita estava grávida, levou um susto, estando na patente de madeira, localizada nos fundos do terreno, coisa comum naquele tempo, porque uma cobra d’água estava entrando e teve que sair correndo. Os anos se passaram, João começou a fazer um curso de mecânico para arrumar um novo emprego e ganhar um pouco melhor. Ana já estava com 10 anos. Sempre com muita devoção, participavam da missa todos os domingos, em que agradeciam a Deus pelos vizinhos maravilhosos que tinham, verdadeiros irmãos. Anita engravida novamente, mais uma gravidez tranquila, nasce um lindo menino de parto normal que
recebe o nome de Miguel. O menino cresce e sua inteligência já é notada. O pai de Miguel consegue um bom emprego. Em 10 anos de trabalho consegue juntar um bom dinheiro. João reúne a família e revela sua intenção de montar seu próprio negócio. João e seu irmão mais velho viajam para a cidade de São Paulo, comprando uma máquina usada, pois uma nova era muito cara. Para comprar a máquina, teve que vender tudo que tinham conseguido, carro, moto e inclusive a própria casa em que moravam, tudo com o apoio da família. Foi um recomeço de muito trabalho, no início muitas dificuldades, mas aos poucos a esposa e os filhos começaram a trabalhar na pequena empresa, que estava dando certo. Assim, em pouco tempo, conseguiram comprar uma nova casa, carros e terrenos para alojar sua firma. Ana e Miguel cresceram trabalhando na empresa, hoje estão casados e administrando a empresa do pai, João então se aposentou. A vovó Anita está muito feliz porque a filha Ana deu à luz um casal de gêmeos, a menina recebeu o nome de Maria Laura e o menino, de Pedro Manoel. O vovô às vezes reclama, gostaria de ter mais atenção do genro quando vai visitá-lo, esse trabalha muito e, quando está em casa, fica bem à vontade, fazendo o que mais gosta, jogando pela internet futebol de campo. Ana diz que ele a faz muito feliz. Com certeza é a maneira dele, costumes diferentes, mas tem uma grande virtude, de ser um bom pai e um bom marido. Vamos aproveitar
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e viver cada segundo, da melhor maneira. Não vamos deixar coisas pequenas interferirem na família. Se pudermos ajudar, vamos estar sempre de prontidão. 70
Anita e João estão aproveitando muito bem a aposentadoria. Nunca se esqueceram da solidariedade de seus amigos e vizinhos quando sua casa pegou fogo. Hoje, com mais tempo, o casal frequentemente visita essas pessoas e leva presentes. Dona Custódia sempre fala que seu marido, Geraldo, saiu de casa para arrumar emprego e nunca mais retornou. E, para viver, ela faz bolos e salgados para vender. Anita e João ajudaram a pagar o INSS de Dona Custódia para que tivesse garantias de seus direitos no futuro. Determinado dia, quando Dona Custódia vendia seus bolos e salgados, sofreu um acidente grave, foi atropelada por um caminhão de lixo, sua bicicleta teve perda total e ela foi parar na UTI do hospital, ficando em coma aproximadamente uns dois meses. Grande era sua fé, se recuperou, porém com algumas sequelas, na vista e nos joelhos, tendo dificuldades de locomoção, mora com sua filha e dois netos. Graças ao pagamento do INSS, conseguiu sua aposentadoria por invalidez. Mais uma vez, teve a solidariedade de seus maravilhosos vizinhos. A vida é uma caixinha de surpresa, nunca sabemos como será o nosso dia de amanhã, mas, se tivermos bons amigos e bons vizinhos, tudo ficará mais fácil. Após o acidente, Dona Custódia ficou muito preocupada e falando de seu marido que ainda não retornou
para casa. Sempre comenta que ele pode estar doente, passando fome longe da família. Já se passaram mais de 10 anos que ele não dá notícia. No início, quando saiu para trabalhar, ele sempre telefonava para um de seus irmãos. Falava que, quando ganhasse um bom dinheiro, voltaria para a família. Todos os seus amigos lhe questionavam por que se preocupava ainda tanto com ele se foi abandonada. Dona Custódia, ainda se recuperando do acidente grave, respondia que conhecia bem seu marido, para ele ter ido embora devia ter suas razões e nós não sabemos quais foram. Com tanta preocupação na cabeça, não parava de pensar no marido, pedia ajuda para um amigo policial localizá-lo. Dona Custódia ficou estarrecida quando, dois meses após, foi informada de que seu marido havia falecido no mês de fevereiro do ano anterior no interior do estado de Minas Gerais e tinha sido enterrado como indigente. Sentiu-se mais aliviada, não mais sentia aqueles arrepios, ficou em paz.
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E
O gato na porta do armazém
ra manhã de agosto. Inverno. Tempo irrequieto. Tempo de chuvaradas.
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– Anda tão esquisito este tempo! – pensei cá com os meus botões. Ora, um frio rigoroso que faz a neve tombar lá pelos lados da serra, empurrando aqui para a Ilha um friozinho de enregelar qualquer mão desprevenida; ora um calor intenso, que faz o ilhéu festeiro correr para as praias, iludido com a chegada antecipada do verão atropelando a primavera. Os tempos mudaram. E como mudaram!!!... Precisava sair de casa; ir até a Conselheiro Mafra, resolver particulares na Prefeitura. Coisas que não poderiam ser adiadas.
Jacira Maria Nunes Pereira
Olhei pela janela em direção ao Morro da Cruz. Céu encoberto. Nuvens preguiçosas, deitadas no morro, escondiam parcialmente as antenas e as torres que lá existem. Estiquei o braço para fora a fim de sentir se chovia. Ainda não.
– Vou de carro ou vou a pé? – pensei... melhor ir a pé – respondi para mim mesma. Pois este tempo chuvoso faz dobrar o número de carros no Centro da cidade e o trânsito parado me irrita. Reforcei meus agasalhos. Botas, sombrinha, luvas etc. e lá me fui. Avenida Mauro Ramos, Parque Dona Tilinha [aquele dos pombinhos], Visconde de Ouro Preto... Mas... espere!!! O que será aquilo lá pros lados do sul???!!! Rolos de nimbos se entrelaçavam e se devoravam vertiginosamente. Amedrontada, pensei: Será uma nova visita, dessas desagradáveis que deram de nos surpreender? Será que a bruxa anda solta na Ilha da Magia? Ou será um daqueles fenômenos meteorológicos que nos igualam a certos países de primeiro mundo? Tornado??? Catarina??? El Niño??? La Niña??? Continuei a andar apressada, olhando de esguelha para o céu, temendo o que estaria por vir. – Senhor, senhor, desculpe-me! Poderia me dizer o que está acontecendo lá pelos lados do sul? – Do sul??!! – Olhe lá o céu! – A senhora não sabe? O Mercado Público está em chamas – falou-me enquanto andava apressado em direção contrária.
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O Mercado Público... – Vamos, filhinha; é a bota da Xuxa, não é? Aquela rosa ali, por favor; é a cor preferida dela. – Quanto? 74
– Pronto, senhora... – Obrigada!!! – Chegue, por favor; aqui temos mercadorias de bom preço... – A senhora está servida??? – Aqui, por favor!!! – Sim, desculpe. Eu, agarrada, cuidando de minha filha, que, com os olhinhos pretinhos, iguais a duas jabuticabas, olhava atenta para todos os lados, curiosa de ver tantas bugigangas e novidades. Nos recreamos muito quando vimos ao Mercado Público. Como é bom vir aqui aos sábados, pela manhã, sem compromissos de horários – pensava. – Mamãe, mamãe, estou com sede, quero um caldo de cana – falou Letícia, com carinha ansiosa. – Oh!! Boa ideia, senti que faltava alguma coisa para completar o passeio, filhinha. Vamos então tentar sair deste aperto. As pessoas iam e vinham. Eram tão próximas que causavam até incômodo.
E lá íamos nós olhando e escolhendo, ora uma bijuteria, ora um chapéu de palha; um sapato aqui, uma sandália ali... Rindo e brincando, atravessávamos de ponta a ponta aquele verdadeiro túnel de diversões. Quantas vezes fiz isso??? Sei lá... – Olha, filhinha, o gatinho ali na porta do armazém!!! – Onde, mamãe? Onde??? – Ali, perto do saco com amendoins! Era um armazém, daqueles que não existem mais. Um desses armazéns do interior que vendem no varejo; feijão, milho, pinhão, linguiça e até panelas. Um daqueles que nos fazem voltar ao tempo da vovó. Um cheiro forte de fumaça. De mil coisas assando ao mesmo tempo. Um cheiro de plástico e borracha queimando e dominando o ar. Um cheiro de medo. Olhos lacrimejando. Um ardume no nariz, uma irritação na garganta me fizeram tossir e voltar à realidade. – Nossa, já estou chegando na Felipe Schmidt e nem me dei por conta. Meus pensamentos foram longe. Bombeiros, aglomeração, agitação e a fumaça dominando tudo. Pessoas atônitas, boquiabertas, apavoradas e desatinadas corriam de um lado para outro; tinha-se a impressão de que meia cidade estava em chamas. O ar era irrespirável. A Conselheiro Mafra interditada. Um verdadeiro “Deus nos acuda!”.
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Cheguei o mais perto que me foi permitido. Não acredito!!! O túnel de diversões havia ido pelos ares. Era o fim. Nada se salvara. 76
Nada? O gatinho. O gatinho, que, para se livrar daquele inferno, entrara no freezer adentro e lá ficara até que tudo se acalmasse, até que se provasse que gato tem realmente sete vidas. São e salvo, saiu de lá. Gatinho! Vou aproveitar a tua ideia e colocar no freezer as minhas lembranças também.
Cachorro número 1
–A
cho que no próximo ônibus ela virá com certeza – pensei enquanto levantava daquela cadeira de palhas, ao lado de muitas outras. Não, não veio. Sentada numa pequena sala daquela rodoviária, fiquei esperando-a por muito tempo.
Escureceu. Pouco conhecia a cidade, comecei a me preocupar e a ficar com medo de me aventurar sozinha até a casa onde eu me hospedara. Nela já estava reservada sua cama ao lado da minha. Tudo já estava certo. Ela estava sendo esperada não só por mim, como também pela pessoa que me indicara aquele local para ficarmos enquanto nos preparávamos para o Vestibular. Oba! Mais um ônibus chegando, agora é da empresa São Cristóvão. Terá ela vindo nesse? Fiquei esperançosa. Seu César, bonachão, rechonchudo e com todo o seu jeito de supercavalheiro, como de costume, aguardou que o ônibus estacionasse e, quando as portas se abriram, apressadamente chegou para dar boas-vindas a todos os passageiros. Tímida e ressabiada, como uma moça recém-chegada do interior, esperei ansiosa que, dentre aqueles passageiros, estivesse a tão esperada irmã. E nada. Lentamente a tarde findava e o sol escorregava – se por trás do montes. – E agora? Que faço? Poucas eram as pessoas, mas já me olhavam com curiosidade pelo tempo em que me dispunha a ficar naquela cadeira. Na verdade já estava me sentindo um
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pouco dona daquele cantinho e procurava me acomodar, ficando o mais inerte possível como se fosse um camaleão que se mistura ao ambiente para não ser notado. 78
– O próximo será da empresa Santo Anjo e só chegará às nove horas! Falou alguém do guichê ao lado para um senhor que queria seguir viagem para o norte. – Hoje não teremos mais ônibus para o sul – afirmou para outro casal que se aproximara interessado em seguir para o sul. Estranho. Numa capital e esta rodoviária tão simplória – pensei com meus botões. Nesta época, com a saída dos trens do meio urbano com a finalidade de diminuir os acidentes e com o avanço das novas construções, a antiga Estação Ferroviária passou a ser a nova Estação Rodoviária de Tubarão e a nossa capital não possuía senão algumas salas improvisadas do antigo Mercado Público com guichês locados por algumas empresas [autoviação]: São Cristóvão, Santo Anjo, Santo Amaro... por que será que a maioria dessas empresas tem nome de santo? Não. Não chegava. Não chegava. Não chegou. Onze horas. Jamais ficara na rua até aquelas horas, principalmente sozinha e sem conhecer, ao certo, a cidade. – Que faço agora? Tenho que ir, de nada adianta ficar aqui, pois fora informada de que só lá pelas seis
horas da manhã é que chegaria, vindo do sul, o próximo ônibus. Tenho que ir. O que pensará de mim aquela senhora que tão bem me acolheu? Acreditará em toda essa história? Teria que ir. Muitos dos funcionários já haviam se despedido de um único que ficaria para atender passageiros que chegariam do norte. De qualquer maneira eu seria convidada a me retirar. Saí, acabrunhada, ressabiada e triste porque minha irmã não viera. Procurando o lado da rua em que pudesse menos ser vista, saí da Hercílio Luz, subi lentamente até chegar ao Parque Dona Tilinha, hoje o dos Bombeiros. – Será que estou no caminho certo? Coragem! Vais ter que atravessar esse parque abandonado e sem iluminação. E se encontrar algum malfeitor?! Várias histórias, de fins tristes, povoavam a minha mente. Quanto mais andava, mais conversava com meus pensamentos e mais medo tinha de que alguém os ouvisse. E agora? Será que esse parque foi sempre tão grande assim? Andando, continuava a não ver nada, a não ser árvores que pareciam querer me abraçar. Meu peito arfava, e eu escutava perfeitamente tum.. tum... tum... descompassado do meu coração; mas não pa-
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rava. Algum galho que quebrasse parecer-me-ia estar próxima de um devorador. Apressada, ansiava logo avistar a Visconde de Ouro Preto. – Deus meu! 80
Latidos de cães cada vez mais perto vinham em minha direção. Fiquei paralisada. Chegou minha hora – pensei. Auuuaauuu.. hmmmm...
auu...
au...
Grrrrrr...
hmmmm...
Fechei os olhos para não ser testemunha da minha Própria emolação. De súbito... silêncio. Fui abrindo lentamente os meus olhos e vi que estava cercada por diversos cachorros. Acreditei serem uns 10. Diferentes. Uns enormes, com olhares que fulminavam na minha direção, outros médios tentavam chegar mais perto latindo e rosnando para me intimidar, assim mais outros e outros mais com latidos estridentes e que me rodeavam nervosamente, rosnando à medida que mais se aproximavam. Pensei... [se é que naquela hora alguém tem condições de pensar]... faço de conta que sou conhecida deles e que não tenho medo algum. Tento caminhar com naturalidade, mas minhas pernas tremem. Segui meu caminho. E qual não foi o meu espanto; acho que sentiram o meu abandono e resolveram me acompanhar. Isto
mesmo, me acompanharam até terminar o parque, ou seja, aquele aglomerado de árvores. Uns até pararam de latir. Alguns na minha frente, outros no meio da rua, um que outro tão perto dos meus pés que chegavam mesmo a atrapalhar meus passos. Seguiram-me. Já na Praça Pereira Oliveira, encontrei algumas pessoas que, apressadamente, caminhavam. Olhavam curiosas, ora para mim, ora para os cachorros, desconfiadas e lá se iam sem entender nada. Não sabiam elas que nem eu estava entendendo coisa alguma, só sei que me sentia a pessoa mais protegida de todo o mundo. Confesso que cheguei mesmo a me orgulhar quando, ao virar a esquina para entrar na Tenente Silveira, avistei dois rapazes que faziam o caminho inverso, nem precisei me preocupar porque meus amigos dispararam latindo, espantando-os para bem longe de mim. Voltaram e continuaram seu trabalho de sentinela. E lá fomos nós. Tenente Silveira, Deodoro, parei. Toquei preocupada a campainha do apartamento. Já era muito tarde. Abriram. Olhei em minha volta. Que alívio! Eles estavam todos ali esperando que eu entrasse e ficasse segura. Uns sentados nas patas traseiras, outros me cheirando como quem diz: – Agora somos amigos, nosso trabalho está concluído. Olhares tristes de quem parte, mas todos com a certeza de terem praticado uma boa ação. Entrei. Fechei a porta.
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Acredite se quiser
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eriado de Páscoa. Desses feriados que se emendam, emendam...
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Os dias estavam mornos. Poder-se-ia dizer até quentes demais para a estação. Verdadeiro convite para se abraçar uma praia. Naquele ano a Páscoa caiu tarde, como se costuma dizer, isto é, foi comemorada lá pelas tantas do mês de abril. Tudo pronto. Turma organizada. Em três carros rumamos para a Praia do Campeche, a Praia do Pequeno Príncipe, assim conhecida, pois o autor Antoine de Saint-Exupéry, do livro de mesmo nome, aterrissara ali várias vezes com o seu pequeno avião-correio. A caminho da praia, ainda na Avenida Jorge Lacerda, na Costeira do Pirajubaé, paramos numa peixaria. – É necessário garantir o nosso “rango”, disse Cláudio, olhando de soslaio para os outros. – Confia em mim, estou acompanhada de um ótimo pescador – falei. A gargalhada foi uma só. – Lá vem a história do bom pescador – disse Márcia. Compramos: virotes, camarões, siris e até cocorocas. – Vamos, não podemos perder muito tempo! Falou Eugênio.
Retornamos aos lugares e partimos rumo ao nosso destino. – Olha lá o mar, como está lindo! – Falei. – Em contrastes com o azul do céu, hoje ele parece mais verde – disse Eugênio. – É mesmo! “Verdes mares bravios da minha terra...”, como falou nosso escritor José de Alencar – retrucou Marcus, com olhares de romance. Num gramado montamos as barracas, umas ao lado das outras. A maior servia de sala de refeições e cozinha; as outras, separadas, eram os quartos. Leváramos tudo o que seria necessário para um bom acampamento: liquinho, utensílios de pescaria, velas, panelas, pratos, talheres, copos, roupas de cama, roupas pessoais, alimentos, carvão, pois ainda naquele dia faríamos um belo “surraxco”, como diz o manezinho. – A pinga, onde está a pinga e o limão para aquela caipirinha? – perguntou Murilo. – Está tudo lá na barraca “mãe” – falou Luiza referindo-se à barraca maior, aquela que servia de cozinha e sala de jantar. E a festa começou. A caipirinha estava maravilhosa. O churrasco, uma delícia. Dançamos e cantamos. E fomos noite afora. E o violão e a cantoria não cessavam. E a festa continuava. A lua cheia, típica desta época, estava linda, acima
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daquela Ilha do Campeche. O mar rugia. As ondas pareciam querer chegar até as barracas, mas se esguelhavam espalhando-se e sumindo na areia como quem não quisesse perturbar tanta alegria. 84
Passaram-se os dias. Quinta-feira Santa, Sábado de Aleluia, e a comida já estava rareando. Onde estávamos era longe de qualquer supermercado ou venda de alimentos. – Hoje não temos carnes nem peixes para o almoço – disse Karina. – Ó, pessoal! Esqueceram-se de que o Eugênio já foi pescar? Tenho certeza de que trará o suficiente para todos nós! Falei toda convencida. Ouviu-se um coro só de gargalhadas. Só poderia ser a Vera, pois acredita em tudo o que o Eugênio fala – diz Jorge sorvendo o final de uma caipirinha. – Acredito, sim. E acredito tanto que irei agora mesmo até lá para ajudá-lo a trazer os peixes. E fui direto para a praia, levando comigo toda a certeza de que o que falara tornar-se-ia realidade. A areia estava escaldante. As ondas iam e vinham com grande ruído e força como para me dizer que eu tinha razão. Eugênio, de costas, não percebeu a minha chegada.
Concentrado na pescaria, só tinha olhos para aquela linha que, partindo de suas mãos, entrava mar adentro e sumia. De repente um puxão forte, mais um, outro e outro mais. Peguei, peguei!!! Gritava eufórico Eugênio. E pelo puxão é grande! – Viva! Viva! Eu tinha certeza, eu tinha certeza – gritei, enquanto pulava em seu pescoço, beijando o meu herói. Eugênio começou a enrolar a linha numa velocidade vertiginosa. Mas o que estava do outro lado relutava com muita bravura, tamanha era a dança da linha e o esforço que Eugênio fazia para não perder a presa. Vi uma verdadeira luta se travar naquela praia. E eu, curiosa, não tirava os olhos da água para ver o que realmente fazia toda aquela dança. O que estaria tão firme e com tanta valentia e disposto a não largar? O que Eugênio havia pescado? – Olha!!! Veja só! Olha um “baita” linguado! – disse Eugênio. O peixe se contorcia na areia, pulava tanto que tive a impressão de que tentava voar, mas Eugênio o venceu no cansaço.
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Chegamos próximos às barracas fazendo um verdadeiro escarcéu.
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– Eu não falei?! Eu não disse que iria buscar o almoço? Pronto, está aí! E toda convencida da minha premonição, ajudava Eugênio a levar as coisas. A turma ficou estupefata. Se não estivéssemos tão longe de supermercados e vendas e se o peixe não estivesse ainda rebolando, diriam que o teríamos comprado. Paulo, “o Tomé”, com suas mãos enormes, fez questão de medi-lo. É... da cabeça ao rabo são quatro palmos do meu. Acredite se quiser.
Bodas de Prata do Sindprevs
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abemos que, para estas Bodas de Prata serem festejadas, precisamos de união e muito empenho. Sei que esta festa vai ser muito aconchegante, virão associados das mais diversas regiões do estado, e que bom que venham! Numa grande confraternização nos uniremos dentro dos nossos objetivos e reveremos uns aos outros. Pensar que às vezes passamos 30 anos com um colega de serviço, depois aposentamos e nunca mais fazemos contato um com o outro. Aquela amizade sempre ficará, pois foi ao lado daquele colega que trocamos muita energia. Tenho saudades das minhas colegas de serviço.
Léa Palmira e Silva
Nestas Bodas de Prata estaremos unidos também para pedir mais clareza em nossas reivindicações, para que elas possam ser atendidas pelos nossos representantes legais do Sindprevs. E que todos os associados da ativa, aposentados e pensionistas possam usufruir desta festa de direitos.
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Assim estaremos juntos nestas Bodas de Prata para cada vez mais fortalecer esta Entidade que é de classe e que presta tão relevante serviço à população, aos trabalhadores em geral, estimulando a capacitação, abordando todos os preconceitos, ajudando a construir uma nova democracia de paz, estimulando o aprendizado escolar com dignidade, na saúde, no social e na política. Enfim, por todos nós... Quero parabenizar a todos os diretores de base que, durantes estes 25 anos, passaram e deixaram o seu legado de bem o mesmo desejo aos que ainda se encontram em seu posto. Aos diretores executivos que, ao longo destes 25 anos, souberam também levar o nosso Sindprevs à frente, o meu parabéns. Sei que é bastante conflitante levar um ideal que é o da maioria, que são nossas reivindicações e lutas por melhorias. Mas, com garra e organização sindical bem composta, ele nos representará bem em todas as situações. Ao longo destes 25 anos, avançamos muito, nós como aposentados já obtivemos alguns benefícios através das lutas sindicais. Mas ainda o Sindprevs tem muito a conquistar. Desejo que o Sindprevs viva por mais e mais 25 anos para que nos represente bem em todos os anseios dos filiados. O meu presente é o meu agradecimento aos membros da Diretoria Executiva Estadual e a todos os que,
de uma maneira ou de outra, souberam muito bem elevar o nome desta Instituição, sei que a luta é grande, mas não devemos perder a esperança jamais. Vamos todos à festa de Bodas de Prata, confiantes de que Deus estará sempre ao lado dos que se propõem a um bem melhor. Feliz “Bodas de Prata”, “Sindprevs”!
Por onde meus sapatos andaram
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oi em quatro de agosto de 1971... que iniciei minha caminhada pelo serviço público federal, por meio de um concurso. Muito caminhei, muito estudei, até chegar ao cargo... O meu órgão de acolhimento foi o Inamps. Com meus sapatos brancos, andei pelo laboratório como auxiliar de enfermagem, coletando sangue e demais materiais, na Rua Sete de Setembro, em Floripa. Ali fui muito bem recebida e tive um ótimo aprendizado. Logo em 1972 pedi minha transferência para Joinville, onde fui trabalhar no posto do Inamps. Meus sapatos brancos me levaram a muitos lugares, na Rua Nove de Março, onde funcionava a Superintendência do INSS.
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Tive muito aprendizado com o povo de Joinville: os colegas e os segurados.
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Depois meus sapatos brancos me levaram até o posto do Inamps na Rua Itajaí, ainda como auxiliar de enfermagem, a luta era grande, muito serviço e poucos funcionários, mas fazíamos o possível e o impossível para dar o melhor dos atendimentos aos senhores e às senhoras segurados que ali iam buscar atendimento, tanto para eles como para seus filhos. Com meus sapatos brancos andei muito, dentro do Inamps, subi e desci muitas escadas, acompanhei muitos segurados, mas também obtive muito aprendizado, dos quais eu agradeço. Foi lá que experimentei lutar por reivindicações justas de trabalho e de remuneração adequada e pela nossa data-base em janeiro. Lembro-me das represálias sofridas pelas chefias! Nossos representantes eram de Florianópolis, pois, naquela ocasião, nós tínhamos apenas a Associação, a categoria começou a se organizar e passou a ser o Sindprevs. Nas lutas de greve pelas quais passamos, nós, funcionários, baixávamos as portas do posto e ficávamos pelo lado de fora, informávamos aos segurados através de cartas, a pressão era grande, mas não havia conflitos. Oh! Que saudades da minha Patronal, que era a nossa assistência, éramos poucos funcionários, então era adequada a nós, servidores.
Com os meus sapatos brancos andei muito, lutei por mim junto com os meus colegas, tenho certeza de que meus sapatos me conduziram por lugares longos e tortuosos, mas com muita firmeza na busca e pela luta. Hoje, aos meus 66 anos, se tenho uma aposentadoria, foi porque lutei no momento certo da minha vida. Logo depois, o Inamps foi extinto... Veio o SUS e deixei de calçar os meus sapatos brancos, o que me deixou com muita saudade, pois fiz uma prova de acesso para agente administrativo, mas só mudou a cor dos sapatos, porque as lutas continuaram. Meus sapatos me levaram ao Posto de Benefícios do INSS, na Rua Nove de Março. O que eu digo aos funcionários novos que ainda estão na luta é que não deixem de calçar seus próprios sapatos de abrir caminhos: que não deixem de lutar por seus sonhos e seus direitos de servidores públicos. Lembrando que servir ao público, com dignidade, é nosso dever, mas também do governo, que nos deve condições para que possamos atender o público da melhor maneira, nos capacitando para o melhor. Quero agradecer aos colegas que naquela época se engajaram dentro das lutas por melhoria de serviço, de mais dignidade, agradeço aos segurados que respeitaram nossas lutas. E também ao nosso Sindicato, que sempre esteve nos orientando e protegendo.
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