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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
No percurso dos canais a passagem do seu rosto de Ofélia. Na delicada e distante canção dos carrilhões a sua voz.
Georges Rodenbach BRUGES-A-MORTA
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TÍTULO ORIGINAL: BRUGES-LA-MORTE, ROMAN
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: L. LÉVY-DHURMER, RETRATO DE G. RODENBACH, PORMENOR (1896) REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA 1.ª EDIÇÃO, JULHO 2013 ISBN 978-989-8566-30-0
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DEPÓSITO LEGAL 362652/13 IMPRESSO NA GUIDE – ARTES GRÁFICAS, LDA. RUA HERÓIS DE CHAIMITE, 14 ODIVELAS
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Conhecemos exemplos de toponímias que ao nome central ajustam um qualificativo e lhe conferem uma expressiva precisão. Lembramo-nos de o-Velho e o-Novo, de o de-Cima e o de-Baixo, que estabelecem toda a diferença entre lugares irmãos; lembramo-nos do nome da povoação acrescentado pelo que lá tem uma presença avassaladora, como Aix, na Alemanha, que é la-Chapelle desde que o imperador Carlos Magno lhe deu o esplendor de uma capela palatina. Mas este hábito, que se vê oficializado e posto a circular como identificação administrativa aceite por aqueles que a decidem no país, pode ocorrer apenas a um dos seus habitantes, em segredo ou pelo menos em privado. Mário Cesariny, com o humor que lhe era peculiar chamava a certa Lisboa nocturna e muito punida pela Polícia de Costumes, Lisboa-os-Sustos. Acontece que a personagem principal deste romance, e só ela, sente Bruges como Bruges-a-Morta. Esta designação tem dois planos para invocar «a morta»; um, geral, e que é a cidade; outro, pessoal, e que é memória de uma mulher amada, confundidos na mesma nostalgia. Qualquer belga com conhecimento histórico da sua Bélgica compreende por que pode chamar-se morta à cidade de Bruges. Mas, Georges Rodenbach, aos afastados desta singular realidade nunca o explica por extenso no seu romance. Até ao século XV, Bruges tinha sido um importante centro comercial ligado ao Mar do Norte pelo canal Zwyn, que consentia um tráfego intenso e até pôde conter os navios
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necessários às guerras religiosas do centro da Europa. Mas um fenómeno de marés, nunca totalmente explicado, fez recuar as águas e secar este braço que a Bruges conferia a sua maior força. Em 1888 (ou seja, cinco anos antes de escrever Bruges-a-Morta) Rodenbach evocou o desaire desta cidade da sua literatura num artigo de Le Figaro: «Quantas foram, outrora, as cidades ricas e belas com um fim de vida abandonado; pobres antepassadas que se erguem rígidas e com ares decadentes, conservando quando muito alguns monumentos: brazões de pedra, armas familiares, não mais de que eles a atestarem esta sua antiga e autêntica nobreza. Na sua maior parte voltaram-se para o misticismo, cidades que se fizeram religiosas, que ao fim da tarde desfiam o terço de ferro dos carrilhões. «Sobretudo na Flandres, na Flandres flamenga, neste silêncio de província tão próximo de Paris mas que parece tão distante, há cidades caídas na miséria ou no esquecimento: Ypres, Furnes, Courtrai, Audenaerde, estas melancólicas viúvas dos habitantes das suas comunas; mas entre estas decadências da história e esta tristeza entre todas lamentável, uma agonia de cidade — é Bruges, a rainha destronada que vai morrendo além, com a morte mais taciturna e comovedora porque está hoje esquecida, pobre, solitária nos seus palácios vazios, e que foi verdadeiramente uma rainha na Europa de outrora, uma rainha com o fausto de uma vida de corte lendária à beira das ondas, uma rainha que Veneza saudava como a uma irmã mais feliz, e que invejava para lá dos horizontes. «Como é que este esplendor de ouro e de tecidos sumptuosos deu lugar ao declínio da Bruges que agora treme de frio na nudez das suas pedras?
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«Aqui está o drama. Antes, a cidade comunicava com o mar pelo Zwyn que passava em Damme, punha a correr até ela as suas águas profundas, rio real onde podiam evoluir os 1700 navios equipados por Filipe Augusto contra os Flamengos e os Ingleses. Nessa altura os navios do mundo inteiro chegavam lá e atracavam no seu porto. «Um dia, em 1475, o Mar do Norte bruscamente retirou-se; o Zwyn de repente secou, sem que fosse alguma vez possível desassoreá-lo ou voltar a restabelecer uma circulação de água; e Bruges, de ali em diante afastada dessa vasta mama do mar que lhe tinha alimentado os filhos, começou a ficar anémica, e desde há quatro séculos agoniza. «Como a cidade é comovente nesta tísica com séculos que a faz escarrar, atingida por um golpe mortal, uma a uma as suas pedras — como pulmões — e sobretudo comovente numa manhã de Novembro outonal, como esta, sob um céu de palidez parecida com a sua…» Sob o tecto desta nostalgia, já Georges Rodenbach estava prestes a chegar à história que desde 1892 ficou para momento maior na sua literatura e o fez célebre quando apareceu, como folhetim, em números sucessivos de Le Figaro; sem adivinhar que dezassete anos depois (nove anos depois da sua morte), este mau destino de Bruges seria remediado com um novo canal que a deixaria ligada ao porto de Zeebruge. E se a cidade deixou de ser porto importante, apesar da sua nova ligação ao mar, fez-se animado centro turístico. A sua beleza triste, com velhos edifícios a mirarem-se na água e árvores inclinadas sobre os canais, agita-se com multidões que frequentam as esplanadas da Grand’Place e ali, mesmo ao lado, aguardam a sua vez para entrar em barcos que percorrem motori-
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zadamente um cenário onde melhor ficariam remadores, irmãos dos que persistem em Veneza. (Note-se que a realidade da nova Bruges existe desde 1990 noutro livro com um título oposto; é de Dominique Rolin, explora esta diferença sobrepondo-a à imagem literária que nos resta de Rodenbach, e para tornar claro o impulso que o domina deu-lhe o título provocatório de Bruges-a-Viva.) Mas «a Morta» é, na Bruges de Rodenbach, uma tristeza de pedra e água que ainda agora persiste, e a memória de uma mulher amada. Nos canais da sua história passa uma inextinguível Ofélia e os seus sinos dobram, transformando em som a preservada imagem de um corpo que teima em não desaparecer. * Rodenbach é um sobrenome flamengo com tradição de vida abastada na burguesia belga do século XIX. Quando Georges nasceu (em Tournai e em 1855), o seu pai dirigia os que verificavam pesos e medidas no Ministério do Interior. Mas na sua família havia «cultura». Este pai, funcionário administrativo, escrevia com prosa poética livros turísticos sobre maravilhas da Bélgica; um dos seus avôs era médico e assinava obras científicas; um dos seus primos era poeta e dramaturgo; e ainda tinha aquela avó, animadora de um «salão» para intelectuais onde tinham aparecido em noites de maior glória Charles Nodier e Alexandre Dumas (este quando fugia para a Bélgica, livre das impertinências dos seus credores de Paris). Na sua idade escolar, Georges Rodenbach vivia em Gand, uma cidade bastante próxima de Bruges. Ali frequentou as humanidades do colégio de Sainte-Barbe, e um pouco mais tarde o curso de Direito. Mas apesar de aluno brilhante, mas apesar da elo-
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quência que chegou a exibir na barra dos tribunais de Gand, preferia o jornalismo, preferia escrever poemas — em francês; porque a Bélgica já tinha decidido, depois de algumas lutas linguísticas, mostrar-se nação da língua única imposta por decreto aos flamengos da Valónia dominadora. Com vinte e dois anos Rodenbach foi autor dos versos de Le Foyer et les champs, com prolongamento em outros livros que se chamaram Les Tristesses, La Mer élégante, L’Hiver mondain, La Jeunesse blanche; poeta de aceitável oficina mas sem nada que «aquecesse» os seus leitores; aquele a quem Jules Renard chamou, num voo de seta certeira, autor de uma «literatura de cave fresca». Esta insistência em escrever uma poesia parnassiana que outros nomes, nesses mesmos anos e em francês, atiravam nas estantes para fileiras de trás, foi em 1892 redimida com a publicação de Bruges-a-Morta. Entediado com a lateralidade cultural da Bélgica, Georges Rodenbach tinha-se mudado desde 1888 para Paris. Fora em Bruxelas colaborador de La Paix, de La Jeune Belgique, de La Plage, chegara a secretário de redacção de l’Indépendance belge. Mas Paris era o centro dos parnassianos; e era sobretudo o convívio com Villiers de l’Isle-Adam, as terças-feiras de Mallarmé, o sótão de Edmond Goncourt. Rodenbach aproximou-se desta nova constelação onde Mallarmé sobressaía com um brilho de primeira grandeza. E os belgas deste grupo passavam assim a ser três, misturavam-se na revolução em curso contra uma literatura dominada pelos últimos Românticos e, sobretudo, pelos Naturalistas que somavam nesses tempos vitórias dentro da fórmula de Zola; foram belgas com direito à atenção francesa, pelo que tinham de diferente a mostrar no teatro
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(Maurice Maeterlink), na poesia (Émile Verhaeren) e na prosa (Georges Rodenbach). Esta nova escola, com o seu Mestre em Marllarmé, nunca arranjou melhor nome do que Simbolismo. Era feita com os seguidores de um vento que hostilizava a descrição, a narração, a meditação; que ambicionava ultrapassar o palpável e o real para uma sublime aventura no não-conhecível. Os seus adeptos lembravam-se de precursores: Baudelaire, por exemplo, «tradutor na universal analogia», ou Rimbaud quando se tinha metido no seu barco ébrio; viam Mallarmé como mais alto poeta neste novo programa, e copiavam-lhe a oficina onde os objectos «oscilavam à beira do desaparecimento», «onde mil imagens se dissolviam no nada.». Estas exigências do Simbolismo pareciam bastante mais amigas dos discursos da poesia. Mas o Simbolismo tinha prosadores ficcionistas, como Villiers de l’Isle-Adam, Jules Laforgue, Rémy de Gourmont, Edouard Dujardin, Marcel Schwob…, todos a braços com a rarefacção das intrigas até uma tradução «paralela ao mistério amplo e central da natureza». Para ideal desta prosa temos as convicções de uma personagem de A Rebours de Huysmans: «Escrever um romance concentrado nalgumas frases que conteriam o destilado suco das centenas de páginas sempre utilizadas para definir o meio, desenhar os caracteres e acumular, com ajuda de observações e repetidos factos.» Em Paris, Rodenbach aproximou-se de Mallarmé; e até mereceu que François Ruchon viesse a escrever um livro dedicado a essa amizade: L’Amitié de Stéphane Mallarmé et Georges Rodenbach. Dir-se-á que já pouco entusiasmado com a sua poesia simbolista embaciada ao lado dos cometimentos de Mallarmé e do belga Verhaeren, Rodenbach ainda cedeu a Le Règne du silence (1891)
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mas no ano seguinte foi literariamente assombrado como nunca pela «sua» cidade nostálgica e escreveu Bruges-a-Morta, publicada em sucessivos números de Le Figaro. Quatro meses depois este mesmo texto surgia em livro com o subtítulo «romance», acrescentado por mais dois capítulos (o VI e o XI) e uma colecção de vistas fotográficas dos principais lugares que desfilam na sua história. Agora o autor antecedia o texto com uma Advertência onde explicava: «Neste estudo passional também quisemos, acima de tudo quisemos, evocar uma Cidade; a Cidade como personagem essencial, associada aos estados de alma, que aconselha, que dissuade, determina a agir. E assim esta Bruges, que tivemos realmente o gosto de eleger, surge quase humana… Fica estabelecido um ascendente que ela tem sobre os que lá vivem. Modela-os de acordo com os seus lugares e os seus sinos. O que desejámos sugerir é então isto: a Cidade a orientar uma acção; não só as suas paisagens urbanas como telas de fundo, como temas descritivos um pouco arbitrariamente escolhidos, mas ligados ao próprio acontecimento do livro.» A singularidade desta Bruges-a-Morta, cidade-mulher que pervertia com êxito as vulgares percepções do real, foi de imediato registada. Mallarmé achou que a sua prosa cumpria com êxito o que ele próprio estabelecia como desejável: «fazer o poema chegar ao romance, e o romance ao poema.» Rodenbach não renunciava, porém, a uma explícita intriga; e na sua história criminal, fracasso de uma desejada reincarnação, concentrava muitos dos elementos que essa época encarecia e estavam como centro noutras obras literárias de popularidade bem firmada. O feiticismo da cabeleira já tinha grande força num dos poemas de «Spleen et idéal» de Baudelaire; a mórbida adoração da mulher morta fascinava desde «Ligeia» de Edgar Allan Poe e «La Morte amoureuse» de Théophile Gautier; a
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simbologia dos cisnes andava na imaginação de muitos leitores desde o conto «Le Tueur de cygnes» de Villiers de l’Isle-Adam. A sua personagem principal, o viúvo-celibatário Hugues Viane (este sobrenome é vulgar entre os flamengos e parece nada ter a ver com o Viana português) afoga-se nas sombras, num som de sinos e nos canais de uma velha cidade, cumprindo-se nisto o simbolismo que Rodenbach não desejaria trair, embora o autor não renuncie à intriga nem às personagens que esta escola considerava como concessão ao realismo. Iremos, neste jogo entre a realidade e a rarefacção, entre a prosa e o poema, saber pouco sobre quem eram realmente Hugues, a morta que nunca terá nome, e Jane Scott que a duplicava, mas bastante sobre uma pequena cidade propícia à cintilação dos símbolos. Esta Bruges de torres, conventos e uma religiosidade provinciana e dominante não agradou, porém, aos seus habitantes de 1892 quando Rodenbach a entregou literariamente aos leitores belgas. Acharam-se ali retratados sob uma visão mesquinha e caluniados perante a França, o país vizinho onde o livro vingava, beneficiado por razoáveis vendas, elogiado por alguma crítica. Houve reparos feitos à ideia de o autor introduzir trinta e cinco fotografias de Bruges entre as páginas do texto. (No final deste volume são reproduzidas algumas das fotografias que existem na edição original de Bruges-a-Morta,) Jean-Pierre Bertrand, um dos actuais entusiastas por esta decisão, considera-a precursora da narrativa-foto que viria a ter expressões bem conhecidas em Nadja de André Breton e La Chambre Claire de Roland Barthes. Mas Rodenbach foi confrontado com aqueles que consideravam qualquer ilustração um elemento hostil à imagem mental que deve pertencer em exclusivo ao leitor. Para nos restringirmos às vozes de escritores mais conhecidos, diremos que Rémy de Gourmont consi-
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derou a fotografia só desejável «para ilustrar livros científicos e narrativas de viagem»; que a fotografia, para Pierre Louÿs, era «possível se a aplicarmos exclusivamente às biografias contemporâneas, às narrativas de viagens, aos quadros de costumes, ou mesmo a um romance realista, numa palavra a todos os géneros literários que tenham como ideal a descrição exacta da vida humana e do ser humano». E ainda os mais radicais, como Stéphane Mallarmé («sou a favor de nenhuma ilustração, pois tudo o que um livro invoca deve passar-se no espírito do leitor») ou como Rachilde («a minha opinião é que nunca deve ilustrar-se uma obra literária; e que a fotografia está para a realização da Beleza como uma bicicleta pode estar para um cavalo árabe»). Rodenbach, também interessado pelas possibilidades da expressão teatral, extraiu pouco depois deste «romance» uma peça em quatro actos e chamou-lhe Le Mirage. No ano seguinte propôs-se de novo como dramaturgo, desta vez com um acto único a que chamou Le Voile (o texto que está, desde 1920, na origem do libreto da ópera Die Töte Stadt de Erich Wolfgang Korngold). Seis anos mais tarde, no dia de Natal de 1898, Georges Rodenbach iria morrer de uma infecção intestinal conhecida pela medicina da época com o nome de tiflite. Neste curto período de tempo foi produtivo: em 1894 o livro de contos Musée de béguines, em 1895 o romance La Vocation, em 1896 o livro de versos Les Vies encloses, em 1897 uma das suas melhores prosas, o romance Le Carillonneur, em 1898 os versos de Le Miroir du ciel natal e a novela l’Arbre. O seu amigo Stéphane Mallarmé morreu três meses antes dele, em 9 de Setembro de 1898; e Rodenbach fez um artigo necrológico onde se lê uma frase que bem poderia aplicar-se ao seu próprio pro-
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grama: «descobriu entre todas as coisas secretas analogias, portas de comunicação, maravilhosos corredores». A posteridade de Bruges-a-Morta passa por muitas edições, algumas luxuosas, algumas ilustradas; por transposições cinematográficas do cinema belga (nenhuma assinada por um realizador com prestígio ou que soubesse encontrar, para a sua história, as potencialidades visuais e dramáticas que ela contém); por uma banda desenhada de E. Cels; por uma novela de Sylvie Doizelet, que em 1997 e com o nome L’Un et l’autre retomou as personagens de Rodenbach imaginando-as em Bruges, quinze anos mais tarde, e sujeitas a um novo mas não fracassado amor. A esta Bruges falta, porém, o peso nostálgico de pedras e canais que assombra toda a prosa de Rodenbach. No último parágrafo do livro a autora explica a sua intenção: «Quis escrever uma segunda Bruges-a-Morta, com última imagem que não é a de um homem que tem aos seus pés o cadáver de uma mulher, mas aquela que põe o coração de Hugues ainda a bater de emoção só à ideia de saber que Jane está viva. Quis libertar Hugues, não por lhe dar a cura da sua obsessão, mas por lhe permitir que se faça um OBCECADO FELIZ, com a possibilidade de todas as noites se encontar com Jane e nunca mais se cansar dessas meias-noites silenciosas.» Georges Rodenbach talvez não gostasse das suas penumbras iluminadas por este fugidio raio de sol. Porque a fascinação da sua história implora o mesmo movimento oscilante que Rainer Maria Rilke sentiu ao contemplar O Eterno Ídolo de Rodin: «Na atmosfera desta obra vive qualquer coisa de um purgatório. Um céu está próximo, mas ainda não foi alcançado. Um inferno está próximo, mas ainda não foi esquecido.» A.F.
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i O dia declinava e escurecia os corredores da grande habitação silenciosa, instalando nas vidraças grandes painéis de crepe. Hugues Viane resolveu sair de casa, de acordo com o seu hábito no final de todas as tardes. Ocioso, solitário, passava o dia inteiro no quarto, uma divisão vasta no primeiro andar, com janelas que davam para o Cais do Rosário, ao longo do qual a sua casa se estendia, reflectida na água. Fazia algumas leituras: revistas, velhos livros; fumava muito; com tempo cinzento dava largas a devaneios na sacada aberta, perdido nas suas memórias. Há cinco anos vivia assim; desde que tinha vindo fixar-se em Bruges, dias depois da sua mulher morrer. Já cinco anos! E de si para si repetia: «Viúvo! Ser viúvo! Sou o viúvo!» Curta palavra irremediável, só com três sílabas, sem eco. Palavra ímpar e que designava bem o ser desirmanado. Para ele a separação tinha sido terrível: conhecera o amor no luxo, nos ócios, na viagem, nos países novos que renovam o idílio. Não só a tranquila delícia de uma vida conjugal exemplar, mas a paixão intacta, a febre contínua, o beijo que mal conseguia ser sensato, a concordância das almas distantes e no entanto juntas como os cais paralelos de um canal que mistura os seus reflexos.
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Dez anos desta felicidade que mal sentira por terem passado tão depressa! Depois a jovem mulher tinha morrido à entrada dos trinta anos, só com algumas semanas de cama, estendida depressa no leito do último dia onde ele continuava para sempre a vê-la: murcha e branca como a cera que a iluminava, aquela que tinha adorado tão bela na sua pele de flor, nos olhos de pupila dilatada e negra no seu nácar, com a obscuridade que contrastava junto do cabelo de um amarelo de âmbar, cabelo longo e ondulado que uma vez solto lhe cobria todo o dorso. As Virgens dos Primitivos têm cabeleiras assim, a caírem com calmos estremecimentos. Hugues tinha cortado no cadáver inerte este feixe, que fora nos últimos dias da doença entrelaçado numa comprida trança. Não era como uma piedade da morte? Ela arruína tudo, mas deixa as cabeleiras intactas. Os olhos, os lábios, tudo se confunde e desmorona. O cabelo nem sequer perde a cor. Só nele sobrevivemos! E agora, depois de passados cinco anos, apesar do sal de tantas lágrimas a conservada trança da morta não tinha empalidecido. Naquele dia o viúvo voltou a viver mais dolorosamente todo o seu passado, por causa dos dias pardos de Novembro em que os sinos, dir-se-á, semeiam no ar poeiras de sons, a cinza morta dos anos. Assim mesmo decidiu sair, não para procurar lá fora uma qualquer obrigatória distracção, ou um qualquer remédio para o seu mal. Nem tentava sequer fazê-lo. Mas quando faltava pouco para o anoitecer gostava de caminhar, e em canais solitários e bairros eclesiásticos procurar analogias com o seu luto.
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Quando desceu até ao rés-do-chão da sua moradia, no grande corredor branco viu abertas de par em par as portas que em geral estavam fechadas. Chamou, no silêncio, a velha criada: «Barbe!… Barbe!…» Não tardou que a mulher aparecesse no umbral da primeira porta e adivinhasse o motivo que levava o seu patrão a chamá-la. — Senhor — disse ela — tive de tratar hoje dos salões porque amanhã é dia de festa. — Que festa? — perguntou Hugues com um ar contrariado. — O quê? O senhor não sabe? A festa da Apresentação da Virgem. Tenho de ir à missa e ao ofício da tarde no convento das beguinas. É como se fosse domingo. E não podendo amanhã trabalhar, arrumei hoje os salões. Hugues Viane não ocultou o seu descontentamento. Barbe bem sabia que ele queria assistir a esse trabalho. Nessas duas divisões havia muitos tesouros, muitas recordações d’Ela e de tempos passados, para deixar a criada cirandar por ali sozinha. Desejava ter a possibilidade de a vigiar, acompanhar-lhe os gestos, controlar a sua prudência, espiar o seu respeito. Quando fosse preciso incomodar uma estatueta preciosa, aqueles objectos da morta, uma almofada, um cobre-fogo que ela tinha feito, queria ele próprio mexer-lhes. Parecia que teriam os seus dedos de tratar todo aquele mobiliário intacto e sempre com o mesmo aspecto, sofás, divãs, poltronas onde ela se tinha sentado e que conservavam, por assim dizer, a forma do seu corpo. As cortinas mantinham as eternizadas pregas que ela lhes tinha feito. E parecia necessário que os espelhos fossem roçados ao de leve com esponjas e panos na superfície clara, para
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não se apagar no fundo a sua imagem adormecida. Mas Hugues também queria vigiar e preservar de qualquer ferimento os retratos da pobre morta, retratos em diferentes idades espalhados um pouco por todo o lado, na chaminé, nas mesas redondas, nas paredes; e sobretudo — um acidente que ele sofresse deixar-lhe-ia a alma completamente destroçada — o tesouro conservado daquela cabeleira integral que ele não tinha querido fechar numa qualquer gaveta de cómoda ou caixa obscura — seria como meter a cabeleira num túmulo! — porque gostava mais, uma vez que ela continuava viva e de um ouro sem idade, de a deixar estendida e visível como a porção de imortalidade do seu amor. Para poder vê-la continuamente na grande sala sempre igual, a esta cabeleira que ainda era Ela, tinha-a estendido em cima do piano agora emudecido, não mais do que jazente — trança interrompida, corrente quebrada, corda salva do naufrágio. E para a defender das contaminações, do ar húmido que poderia desbotá-la ou oxidar-lhe o metal, tivera esta ideia ingénua, se não fosse enternecedora, de a pôr debaixo de vidro, cofre transparente, caixa de cristal onde repousava a trança nua que todos os dias ele ia honrar. Para ele, como para todas as coisas silenciosas que ali à volta viviam, parecia que esta cabeleira se ligava à sua existência e era a alma da casa. Barbe, a velha criada flamenga um tanto macambúzia mas devotada e cuidadosa, sabia com que precauções precisava de rodear estes objectos, e só a tremer se aproximava deles. Pouco comunicativa, com o vestido preto e o boné de tule branco tinha o ar de uma irmã rodeira. Aliás, com frequência ia ao con-
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vento das beguinas ver a sua única parente, a irmã Rosalie que era beguina. Sobre estas convivências, sobre estes hábitos piedosos ela tinha guardado silêncio, tinha-lhes dado o deslizamento dos que frequentam as lajes das igrejas. E era por causa disto, por não fazer ruído nem se rir à volta da dor de Hugues Viane, que ele se acomodara muito bem à sua presença, desde que chegara a Bruges. Nunca tivera outra criada, e aquela fizera-se necessária apesar da tirania inocente, das manias de solteirona e devota, da vontade de fazer o que queria como naquela ocasião, em que uma festa anódina do dia seguinte levava-a a pôr, contra a sua vontade e apesar de ordens formais, em desordem os seus salões. Antes de sair, Hugues esperou que ela pusesse os móveis no seu lugar e assegurou-se de que estava em sítio certo tudo o que lhe era querido. Já tranquilo, com persianas e portas fechadas, decidiu dar o seu habitual passeio do crepúsculo, apesar de não parar aquele chuvisco frequente nos fins do Outono, chuva miúda e vertical que lacrimeja, tece a água, alinhava o ar, eriça com agulhas os canais planos, captura e enregela a alma como ao pássaro uma rede molhada de intermináveis malhas.
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locais mencionados
1. Cais do Rosário 2. Cais Verde 3. Cais do Espelho 4. Igreja de Nossa Senhora 5. Grand’Place 6. Torre dos Mercados 7. Rua Flamenga
8. Teatro 9. Casa de Jane (localização aproximada) 10. Convento das beguinas 11. Lago de Amor 12. Catedral do Santo Salvador 13. Hospital de São João
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Fotografias de Bruges (na época do Romance)
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Cais do Rosário e o canal do Dyver
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Cais Verde
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Canal e a igreja de Nossa Senhora
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Rua Flamenga
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Convento das beguinas
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Ponte do Convento das beguinas
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Lago de Amor
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Hospital de São João
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Catedral do Santo Salvador
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Nave da catedral do Santo Salvador
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livros publicados
Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, tradução de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, George Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
No percurso dos canais a passagem do seu rosto de Ofélia. Na delicada e distante canção dos carrilhões a sua voz.
Georges Rodenbach BRUGES-A-MORTA
Georges Rodenbach BRUGES-A-MORTA
Georges Rodenbach BRUGES-A-MORTA romance