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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
O dedo apontado… Um humor negro.
Albert Londres COM OS LOUCOS
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Albert Londres
COM OS LOUCOS
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: CHEZ LES FOUS
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: DESENHO E COLAGEM DE JOÃO PEDRO ROSADO 1.ª EDIÇÃO, JULHO DE 2012 ISBN 978-989-8566-05-8
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Foi antes deste céu incomodado pelos aviões, quando as viagens longas eram à superfície do mar. Hotéis flutuantes chegaram a ter nomes que todos reconheciam. Dizia-se aqui «vou no Pátria, vou no Império…», como se dizia mais acima «vou no Queen Mary…». Em Maio de 1932, as Messageries Maritimes preparavam-se para um destes prestígios sob bandeira francesa: o Georges-Philippar. Vinte e uma mil toneladas e setenta e dois metros de casco ofereciam um luxo envernizado, e orquestras, e bailes, e variedades de music-hall e (o que era novo na época) uma piscina. A sua viagem inaugural começava em Xangai e tinha Marselha como ponto de chegada. Albert Londres foi passageiro nesta estreia do Georges-Philippar. Ocupou os camarotes 32 e 34 da primeira classe, um para a grande desordem dos seus papéis e dos seus livros — todas as notas, toda a documentação que em quatro meses de inquéritos, entrevistas e testemunhos juntara para o grande trabalho jornalístico sobre um surdo movimento político «que talvez fizesse cair o governo na França», dizia a meia voz. 7
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Albert Londres foi quase invisível na ociosidade social que enfeitava — como memórias o lembram — estas travessias marítimas. Metido nos seus camarotes, escreveu; mas fez aparições nocturnas, todas no círculo apertado de um casal, os Lang-Willar, que anos antes conhecera na Argentina. «Trago comigo dinamite!», diz-se que afirmava, pouco desvendando do tema que tantas horas o confinava aos seus aposentos; que o roubava ao espectáculo do mar; que o negava à brisa fresca que sopra nos passeantes do convés da proa. O Georges-Philippar atracou em Ceilão, depois em Colombo (hoje grande cidade do Sri Lanka), numa das ilhas Nikitoi, no cabo Guardafui. Entrou a 15 de Maio no golfo de Adem e nesse Mar Vermelho que concentra a navegação com hora marcada para os degraus do Suez e o Mediterrâneo europeu. Albert Londres foi entretido no camarote dos Lang-Willar por um bridge, até à 1 hora e 30 minutos da manhã. Fechou-se então nos seus aposentos, vinte minutos antes de um «desastroso curto-circuito» no camarote de uma tal Madame Valentin. E o que se mostrou acidente dominável por extintores, não tardou a atacar ferozmente as madeiras, as borrachas, aquelas cortinas que não poupavam metros a espessos tecidos. Diz-se que um grande espectáculo de chamas se sobrepôs à imensa desorientação na equipagem e nos passageiros do Georges-Philippar. 8
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Em meia hora a devastação já não pôde ser vencida pela duvidosa eficiência da equipagem; e metade das baleeiras tinha ardido. Quando o comandante Vicq ordenou a concentração em todos os barcos de salvamento disponíveis, havia mortos confirmados e desaparecidos. Se transcrevermos parte do discurso directo que em 14 de Janeiro de 1933 surgiu em L’Intransigeant, teremos uma versão dialogada da tragédia de Albert Londres. Alguém perguntou «onde estava Monsieur Londres», e salvadores improvisados gritaram: «Londres!» Ouviu-se a resposta: «Estou aqui!», e o vulto de Albert Londres surgir na varanda dos seus camarotes. Houve incansáveis incitamentos: «— Suba e venha juntar-se a nós! «— Impossível — berrava ele. — Estou cercado pelo fogo. As duas extremidades do corredor dos meus camarotes estão a arder. O fogo aproxima-se. «— Então salte! Os homens dos barcos vão buscá-lo à água.» (O Georges-Philippar tinha vários navios do tráfego do Mar Vermelho parados a distâncias mínimas de segurança e dispostos a participar no salvamento de pessoas caídas nas águas.) «— Não vou saltar. «— Não consegue?… «— Consigo, mas não vou saltar.» 9
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Os que se tentavam a explicar esta recusa várias vezes repetida, admitiram as hipóteses de um bloqueamento psicológico, de Albert Londres não saber nadar, e mais romanticamente de o jornalista preferir a morte a não salvar com ele o material da sua «mais explosiva reportagem». O mesmo jornal registou o que teria sido seu último grito: «Estou a arder. Salvem-me!» O Georges-Philippar afundou-se com Albert Londres, às 8 horas da manhã de 16 de Maio de 1932. O balanço da tragédia veio a fixar-se em 675 pessoas salvas, a parte favorável da notícia que teve de ser acrescentada com cerca de uma centena de mortos e desaparecidos. Albert Londres — o nome célebre neste desastre — alimentou depois a surpresa, a consternação e a veia mórbida dos jornais. Era o jornalista intrépido, o jornalista «literário», aquele que fizera a França embaraçar-se com a sua Guiana, o seu Biribi, os seus asilos psiquiátricos. Vinte anos depois, o jornal anarquista Libertaire soube defini-lo com esta evidência: «Na sua carreira não isenta de quixotismo procurar-se-ia em vão uma reverência ao dinheiro, uma deferência para com os que governam ou financiam, a docilidade perante as ordens e as recomendações, a aceitação dos factos consumados e dos poderes estabelecidos, a fuga perante as responsabilidades.» E em Junho de 1932, ou seja, um mês depois do desastre, o público de um teatro parisiense esgotou a sala 10
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onde se representava Au Bagne, peça extraída de um dos seus livros mais polémicos, e longos minutos aplaudiu de pé num gesto «onde se misturavam o respeito e a admiração», para repetirmos Pierre Assouline na que é a sua mais pormenorizada biografia. * A família Loundres tinha perdido no seu nome escrito o estranho u que os gascões de Labarthe-Rivière se habituaram a ignorar. Jean-Marie, vendedor ambulante, foi conhecido por Monsieur Londres; e o seu filho seria Albert Londres, jornalista entre os mais notados na França do princípio do século XX. Mas até aos vinte e cinco anos de idade, poeta. Londres sentia-se poeta; e os seus quatro livros de versos publicados tiveram de fazê-lo aceitar-se num jornalismo de sobrevivência emVichy, em Lião, em Paris, enquanto procurava a palavra de reconhecimento que os críticos literários, marcantes na sua época, não quiseram dar-lhe. A este poeta desiludido restou a carta amável de Maurice Barrès, seu leitor de La Marche des étoiles: «Obrigado, meu caro poeta, por estes versos directos, arrebatados, espirituais, nunca pesados. Gosto do seu ímpeto e do seu bom senso, e da estrela que eles têm na testa. Cordial aperto de mão.» A delicada reticência de Barrès talvez tenha feito chegar mais depressa o jornalista «literário» e com ritmos 11
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hábeis, o dedo apontado através de inesperadas invenções verbais, de venenos oferecidos por um humor negro sobreposto, a sorrir, às maiores desgraças humanas. Albert Londres — o estilo de Albert Londres — trouxe muitos leitores a Le Matin e a Salut Public; mas foi a catedral de Reims incendiada pelos alemães de 1914 a decisiva alavanca que o levantou ao estatuto de grande repórter. Londres começou a trabalhar para o Petit Parisien, que pressentiu a futura «estrela» e já em 1915 lhe financiou uma longa permanência na Grécia, nas zonas orientais da guerra europeia e no mais aceso da frente italiana. Depois, em Março de 1920, Albert Londres percorreu a União Soviética até a sua polícia política desconfiar do que poderia uma caneta audaciosa escrever a respeito daquele país com discutíveis aplicações práticas do comunismo; que o fez sair de lá, mas não a tempo de impedir as reportagens do livro Dans la Russie des soviets. Logo a seguir surgiu La Chine en folie, que contém os seus textos mais «estilizados» e onde começou a ser claro que a sua prosa de repórter se destinava a um predomínio da forma sobre o fundo político. Foi a consagração do Londres picaresco, o que encantou leitores mas não pôde impedir esta crítica: «no vaudeville talvez esteja sua verdadeira vocação». Neste período ainda houve as reportagens da Cochinchina e de uma Índia que ele fez oscilar entre Gandhi e Tagore. 12
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Com quarenta anos de idade, Albert Londres era uma figura notada pela fama que algumas invejas se esforçavam por embaciar, mas ainda pelo ícone onde a calvície ampliava generosamente a testa (hoje pouco apreciável nas fotografias que o mostram quase sempre de chapéu) e com uma desforra feita por cabelos que atrás lhe caíam até aos ombros; a maior parte das vezes com uma barba aparada pela sua mão cheia de pressa; tudo isto acrescentado pela inesperada voz que as transformações da adolescência não tinham feito descer dos timbres altos e femininos, e transtornava de um modo burlesco a sua cultivada masculinidade. Este ícone de um jornalismo em permanente fuga ao previsível, preparava-se para os três temas que embaraçariam a França da liberdade, da igualdade e da fraternidade. O novelista escondido atrás do repórter, o escritor com grande sentido do gag, com o gosto por aquele hénaurme que faz êxito entre os caricaturistas, que já soubera retratar países transformando reconhecíveis verdades num espectáculo grotesco e digno do rei Ubu, ia pôr a sua frase curta e directa, o seu grande sentido dos ritmos, dos efeitos secundários, das elipses, ao serviço de três realidades incómodas — os cárceres da Guiana, os deportados das prisões militares do Norte de África, os alienados dos asilos franceses; primeiro em reportagens publicadas pelo Petit Parisien, depois nas suas versões em livro que foram, respectivamente, Au Bagne, Dante n’a rien vu, e 13
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Chez les fous (Com os Loucos). «Quando contamos o que vimos, temos de misturar-lhe as nossas impressões pessoais. E haverá ainda que fazer a triagem, a escolha, e só escrevermos o que vale a pena ser retido. No que respeita à forma, o pensamento só deve usar as palavras indispensáveis e, entre elas, escolher as que transmitem com maior precisão o objecto de que estamos a falar.» Estas as palavras escritas numa carta à sua filha Florise, onde Albert Londres talvez não quisesse chegar às verdadeiras receitas do seu enorme êxito popular. Com estes talentos e estas disciplinas literárias, o Petit Parisien ofereceu ao público o «seu» Albert Londres; e tudo fez para mantê-lo como um dos seus, se não o maior dos seus, prestígios. Facilitou-lhe a viagem à Guiana francesa para as reportagens e para o livro Le Bagne (que também foi base para uma peça de teatro e chegou a projecto cinematográfico de Jean Vigo com o título Adieu Cayenne, não realizado por este realizador ter entretanto morrido); a deslocação até às penitenciárias militares africanas para se inteirar das realidades do Biribi (trabalho que fez dele Grande Dignitário na Ordem Universal do Mérito Humano); por fim os apoios à sua digressão pela França quando decidiu «observar a vida dos loucos». Num epíteto-dedicatória à primeira edição de Com os Loucos, não pôde ser mais franco o reconhecimento de Londres a estas disponibilidades por parte do jornal onde trabalhava: 14
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«“— E se agora eu fosse até aos cárceres? «— Então vá.” «Oito meses mais tarde: «“— E se eu partisse para o Biribi? «— Então parta.” «“— E se eu tratasse agora dos loucos? «— Então trate.” «Assim me respondeu Élie-Joseph Bois, capitão-mor dos repórteres que somos. Que ele aceite aqui a homenagem deste livro.» Se Albert Londres tinha enfrentado dificuldades com as resistências dos administradores da Caiena e dos oficiais do Biribi, pior lhe aconteceu com o veto dos directores nos asilos psiquiátricos. A lei de 38 que regia os asilos de alienados era um arsenal jurídico com quarenta e um artigos e um grande papel atribuído ao segredo profissional. Depois, a sua tentativa de passar ele próprio por louco não teve êxito; mas chegou a percorrer uma significativa parte da loucura da França; penetrou em muitos asilos do oeste e do sul sob promessa de não revelar que era jornalista, de não citar nomes no seu trabalho, ou alterá-los de forma a não serem reconhecíveis. Os loucos, que a Antiguidade e a Idade Média tinham deixado à solta ou em espaços tão malditos como o das leprosarias, conheceram por fim uma era de asilos. Em Histoire de la folie, Michel Foucault põe o dedo nas 15
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limitações que esta nova estrutura, sob uma capa de méritos, enfrentou: «Fechado sobre valores fictícios, o asilo estará protegido da história e da evolução social. No espírito de Tuke tratar-se-ia de organizar um meio que fizesse a mímica das formas mais antigas, mais puras, mais naturais da coexistência: um meio o mais humano possível. De facto, ele recortou a estrutura social da família burguesa, reconstituiu-a simbolicamente no asilo e deixou-a derivar na história. O asilo, sempre a deslocar-se em direcção a estruturas e símbolos anacrónicos, por excelência estará inadaptado e fora do tempo. E no próprio sítio onde a animalidade manifestava uma presença sem história e sempre recomeçada, virão lentamente ao de cima as marcas sem memória dos velhos ódios, das velhas profanações familiares, os esquecidos sinais do incesto e do castigo.» Albert Londres teve consciência desta realidade cruel que espreitava, mais ou menos visível, nos cerca de oitenta asilos públicos da França; e de que, ao seu trabalho de jornalista leigo e com irreprimível veia satírica, mais conviriam os retratos do que análises com veleidades científicas e psicanalíticas; ou seja: a sua falta de formação médica e o seu «estilo» aconselhavam a que ele não ultrapassasse o exigido pela eficácia jornalística. «Eu quis olhar para a vida dos loucos», diz o princípio do seu livro estabelecendo desde logo por onde ficarão os seus limites. Cumprindo esta decisão, chegou a textos que foram doze, quando em Maio de 16
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1925 surgiram nas páginas do Petit Parisien ilustrados por Georges Rouquayrol, e que foram vinte e dois quando os organizou para formarem o livro Com os Loucos. Voltemos a Michel Foucault, e agora ao seu texto Folie et déraison: «Loucura e não-loucura, razão e não-razão, vemo-las confusamente implicadas; inseparáveis, já que uma perante a outra ainda não existem na alternativa que as separa. […] No meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não comunica com o louco; há, por outro lado, o homem de razão que delega no médico a loucura só autorizando assim a relação através da universalidade abstracta da doença; há, por outro lado, o homem da loucura que só comunica com o outro por intermédio de uma razão de igual modo abstracta, que é ordem, sujeição física e moral, pressão anónima do grupo, exigência de conformidade. Linguagem comum não a tem; ou, antes, já não a tem; a constituição da loucura como doença mental, no fim do século XVIII, elabora a verificação de um diálogo interrompido.» E ainda no século XIX; e, em muitos lados, nos séculos XX e XXI. Duras realidades como estas, e sentidas com humor negro, tiveram o mérito de incomodar bastante o meio psiquiátrico francês; eram verdades gritadas pela visão grotesca dos asilos e do espectáculo da sua grande feira de crueldades e absurdos. E mais do que esta luz desagradável sobre as condições desumanas e precárias dos asilos, enfureceu os 17
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visados pelo retrato do «Senhor Psiquiatra» (feito «sem ódio», disse ele, «mas sem temor»). A passagem dos artigos jornalísticos a livro teve porém de alterar os nomes que não apagavam suficientemente o dos originais e também (sob ameaça judicial ao Petit Parisien) de eliminar o relato denunciador das razões do internamento de uma certa condessa (a que surge no capítulo XXI e que passou a ser designada por «a senhora proibida»). Durante os sete anos finais da sua vida, Albert Londres publicou ainda Le Chemin de Buenos Aires (1927), que o fez viajar incógnito até à Argentina para denunciar o tráfico de mulheres destinadas aos bordéis de Paris; L’Homme qui s’évada (1928) sobre o seu encontro no Brasil com Eugène Dieudonné, o condenado a prisão perpétua que conseguiu evadir-se dos cárceres da Caiena; Terre d’ébene (1929) onde se denunciam os excessos da colonização e a «boa consciência» dos colonos; Le Juif errant est arrivé (1930), isto é, aquele judeu errante que só tinha, desde Varsóvia até à Palestina, possibilidade de residência nos ghettos; Pêcheurs de perles (1931) sobre o trabalho desumano dos pescadores de pérolas no Corno de África; Les Comitadjis (1932), onde se tentava contar a complexa história da organização macedónica que foi centro de uma sangrenta guerra civil na Bulgária. No princípio de 1932, este Albert Londres «redresseur de torts» (endireitador do que está torto, dir-se-ia em 18
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português) fez uma viagem à China para satisfazer (afirmou-o ao seu entrevistador de Xangai) «um prazer pessoal». Mas só um estranho prazer poderia dar-lhe a escolha daquele país onde Chineses e Japoneses, por causa da invasão nipónica da Manchúria, se confrontavam no que ficou conhecido por conflito sino-japonês; um estranho prazer se avaliado pelo que ele próprio veio a relatar nas suas reportagens para o Petit Parisien. A sua voz calou-se, porém, durante todo o mês de Abril; e pareceu muito inquietante a inutilidade dos esforços que o seu jornal fez para o localizar. Mas houve, nos últimos dias do mês, notícias que lhe diziam respeito e davam-no como passageiro da viagem inaugural do Georges-Philippar. Albert Londres não ocultou, àqueles que puderam aproximar-se dele na viagem marítima, que trazia consigo elementos para a mais «explosiva» reportagem da sua vida. Os mais próximos ouviram-lhe referências vagas e sibilinas, mas que deixavam a ideia de um tráfico de armas, droga, a intromissão da Rússia soviética na política chinesa, ramificações que atingiam em cheio o governo francês. Foi portanto inevitável, logo a seguir àquele incêndio em pleno mar, que surgissem na imprensa francesa interrogações sem possibilidade de ser respondidas e que entretiveram durante muitos dias a curiosidade do público. O estranho «curto-circuito» no camarote de Madame Valentin não seria obra encomendada por uma qualquer organização política? A 19
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imaginação dos jornais chegou a fantasiar uma misteriosa e bela jornalista alemã que teria sido companheira de Albert Londres até ao seu embarque em Xangai, embora uma esforçada investigação do Petit Parisien não tivesse conseguido dar-lhe nenhum rosto. Pelo seu lado, o governo francês nomeou uma comissão de inquérito que só deu como provável a hipótese menos entusiasmante do «curto-circuito». Mas ainda havia a pista dos Lang-Willar, que em Djibuti tinham confirmado ao jornal Le Rappel: «Sabemos quanto basta para ser nosso desejo advertir o governo francês quando chegarmos a França.» De imediato o Petit Parisien fretou um monoplano para trazer a Paris o casal que poderia prestar-lhe declarações decisivas e exclusivas sobre o caso Londres. Mas esse monoplano, depois de levantar voo em Brindisi para conduzir os Lang-Willar a Paris, despenhou-se numa colina perto de Roma. E assim ficou por esclarecer, de vez, o «mistério» de Albert Londres. Numa carta à sua filha Florise, ele tinha escrito: «Oh! O que haverá nesta profissão para nos impulsionar assim, sem descanso? Partimos. Saberemos para onde vamos? Um dia, sei lá onde, vou morrer sozinho num sítio qualquer, daqui a um ano, daqui a cinco anos, talvez agora.» E morreu, de facto, meses depois; em pleno mar, numa madrugada de Maio de 1932. A.F. 20
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i DAQUELES QUE NÃO ME LIGARAM NENHUMA
Embora eu não seja louco, pelo menos à vista, quis olhar para a vida dos loucos. E os serviços públicos franceses não ficaram satisfeitos. Disseram-me: «A lei de 38, segredo profissional, o senhor não vai olhar para a vida dos loucos.» Fui ter com ministros, e os ministros não quiseram ajudar-me. Um, no entanto, teve esta ideia: «Alguma coisa farei por si se alguma coisa fizer por mim: submeter à censura os seus artigos.» Pus-me longe dele, e ainda lá ando. Fui ter com o prefeito do Sena. É um homem muito amável: «Graças a mim», diz ele, «visitará as cozinhas e a despensa.» Como receei que também me levasse a ver as telhas da cobertura, fui-me embora. Voltei-me para os médicos dos asilos. Fulminaram-me: — Acha que os nossos doentes são animais exóticos? — diz-me um deles. Tinha-me tomado por um domador. E para isso ele bastava. 21
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Convenci-me então de que seria mais cómodo apresentar-me como louco do que apresentar-me como jornalista. «Vou à enfermaria especial das prisões da Polícia», digo de mim para mim, «e não tenho dúvidas de que me internam lá!» Dirigi-me ao cais do Relógio. Não era um local acolhedor. Pareceu-me a coxia de um cargueiro decrépito e fora de serviço. Ao longe já surgia o enjoo. Embora limpo, cheirava a fundo de velho porão. Mas tinha nessa limpeza o seu defeito. E acreditar-se-ia que uma vez varrido se resolveria o caso. Celas com vigia davam para o corredor. As três primeiras estavam ocupadas, a quarta parecia vaga. Eu tinha uma hipótese! Catástrofe! O médico era meu conhecido: o Clérambault! Outrora, em tempos heróicos tínhamos trocado pensamentos quase definitivos no cais de Salónica1. — Bom-dia! O que é que manda? Está doente? Era sinistro. — Não estou agora a sentir-me tão doente — digo eu. Gaétan Gatian Clérambault, médico que se notabilizou pelos seus estudos sobre erotomania. Ele próprio sujeito a perturbações psicológicas, veio a suicidar-se. (N. do T.) 1
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— Este ambiente não lhe agrada? Temos aqui gente muito respeitável: professores, artistas, homens da alta sociedade. É vulgar termos clientes com belos apartamentos na cidade! Nesta cela está um que até recebeu a Legião de Honra. Ontem, entre as cinco e as sete, andou às cambalhotas na via pública. Está a ver o género? — Que companheiros poderia hoje proporcionar-me? Não havia nenhum de se lhe tirar o chapéu; alcoólicos alucinados; um desgraçado clássico que queria ser recebido pelo núncio para lhe transmitir uma mensagem urgente de Cristo; e ainda um autêntico pai de família (oito filhos); este ofendido, com razão, porque não tinha direito a um prémio Cognacq; já fora aos armazéns do referido senhor Cognacq reivindicar para o seu filho mais novo e de muito baixa idade uma pequena capa; pelo menos isso — já que tanto frio fazia, acrescentara ele. — É um louco? — Por que não? O médico levou-me a uma cela almofadada. —Acha que esta lhe serve? —Não cheira bem. — Tem prestado bons serviços! — Vou reflectir… 23
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— Adeus! — disse Clérambault entregando-me o chapéu. — Veja se o prendem noutro lado. Onde? Que se chamem asilos departamentais, asilos privados que funcionam como asilos públicos, asilos autónomos, a França tem para os seus loucos edifícios oficiais que chegam a oitenta. Além disto tem a honra de possuir um estabelecimento nacional baptizado com o nome de Saint-Maurice mas preferencialmente conhecido por Charenton; além disto a riqueza de possuir treze hospícios especiais que são o que há de melhor; além disto toda uma gama de «casas de saúde» que dão uma ajuda. Há casas de saúde mistas, quer dizer, onde o pavilhão da direita obedece à lei de 38 e onde o pavilhão da esquerda não obedece a coisíssima nenhuma. Sentis vontade de saber se esta lei é de 1600, 1700 ou 1838? Não é uma coisa importante. Em matéria de leis, não as temos a menos de um século de distância! Há casas de saúde livres, as villas de hidroterapia. Há os sanatórios onde «não é admitido o internamento de alienados». Os prospectos assim o afirmam, e a coisa não é completamente falsa. De facto, caindo uma pessoa com a misteriosa doença, se não possuir nada de seu é louca. Dispõe de honestos haveres? Está doente. E, se tiver com que pagar um sanatório, não passa de um nevrótico ansioso. 24
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«Vou ao Sainte-Anne», digo a mim próprio. «Ouvi falar de um certo serviço aberto que vai resolver-me o problema.» Chego ao Sainte-Anne. «Pavilhão de Profilaxia Mental, doutor Toulouse1». Já cá estou. Seja como for, esta coisa do serviço aberto é uma bela invenção. Antigamente os pobres «zoinas» não tinham escolha: arrastavam sem esperança a «zoinice» na via pública, ou eram enclausurados num asilo. Hoje é de sonho! Mal se reconhece que têm macaquinhos no sótão, vêm para aqui. Aquecimento central. Enfermeiras viçosas e bem alimentadas. Não há um segundo de tédio. Na verdade, por que foi necessário esperar o aparecimento do doutor Toulouse para este serviço existir? Até agora havia o direito de sofrermos do fígado, do baço e dos outros órgãos suplementares ou essenciais. Mas era proibido sofrermos do encéfalo, a não ser que antes passássemos pelo comissário da Polícia. Para sermos loucos precisávamos de atestados! Hoje basta empurrar uma porta. E dir-nos-á alguém com brandura: 1 Edouard Toulouse, médico e jornalista, nessa altura director do
asilo de Sainte-Anne. Recolheu Antonin Artaud quando ele chegou, em 1920, a Paris. (N. do T.)
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— De que se queixa, meu filho? Quer que eu o trate? É um espanto! E que escandaloso deve o governo achar! Sento-me. A pé, antes do dia nascer, só aqui cheguei em quinto lugar. Há sempre quem seja mais louco do que nós! O primeiro era um senhor que olhava atentamente para a sola do seu sapato esquerdo. Continuava, um quarto de hora mais tarde, a olhar para ela. No entanto, uma sola banal! A segunda e a terceira cadeiras estavam ocupadas por um par. Um deles acompanhava o outro: qual? O quarto era uma senhora que chorava sem ruído e sem lenço. As lágrimas percorriam-lhe as faces e caíam abandonadas no vestido preto. Entrou outro casal. Ocupou lugares depois de mim. A jovem tirou o chapéu e pô-lo nos joelhos, depois voltou a pô-lo na cabeça, depois voltou a pô-lo nos joelhos, e assim sucessivamente. O marido deitou a mão ao chapéu, e com um gesto de pessoa ajuizada imobilizou-o debaixo do braço. A clientela afluía. Em Paris circulam cem mil doentes desta «doença». Não seria um, mas vinte, o número de serviços abertos necessários. A jovem voltou a agarrar no chapéu. E recomeçou a mesma manobra, ora colocando-o na cabeça, ora nos joelhos. Por sorte o chapéu caiu. O marido foi 26
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P_Albert Londres_Loucos 11,8x16,6:Ficção 11,8x16,6
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xxii FIM
Nessa manhã, eu vagueava na companhia de um médico estagiário pelas instalações de um asilo. — Os loucos — dizia-me ele — não são o que se julga. O público vê-os de forma errada… Nem sempre são forças à solta. Olhe para os que estão reunidos naquela sala. Eram uma dezena. Falavam ligeiramente mais alto do que é habitual, coisa que acontece aos de maior juízo. — Pode lá entrar — disse-me o médico. Entro. Caras espantadas voltam-se para o lado onde estou. No meio do grupo reconheço o médico-chefe. O estagiário agarra-me pelo braço. — O que é que se passa? — Erro meu! — diz a morder o lábio. — Não são loucos, são alienistas. É uma reunião da Liga de Higiene Mental! A diferença era mínima!
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ÍNDICE
Foi antes deste céu… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i. ii. iii. iv. v. vi. vii. viii. ix. x. xi. xii. xiii. xiv. xv. xvi. xvii. xviii. xix. xx. xxi. xxii.
Daqueles que não me ligaram nenhuma . . O louco ao domicílio . . . . . . . . . . . . . . . Uma secção de agitados . . . . . . . . . . . . . Com estas senhoras . . . . . . . . . . . . . . . . A refeição das fúrias . . . . . . . . . . . . . . . . Uma noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os perseguidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estes senhores do Doutor Dide . . . . . . . . O armário dos cérebros. . . . . . . . . . . . . . Fizeram troça de Pinel . . . . . . . . . . . . . . Dia de visita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quatro senhoras elegantes. . . . . . . . . . . . Mademoiselle Suzanne . . . . . . . . . . . . . . A feira da loucura . . . . . . . . . . . . . . . . . . O fornecedor dos Grandes Armazéns. . . . Os que mataram. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Madame Gaston vai à cidade . . . . . . . . . Os irmãos da droga . . . . . . . . . . . . . . . . Isoard está curado . . . . . . . . . . . . . . . . . Oh psiquiatria! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com o senhor psiquiatra . . . . . . . . . . . . Fim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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livros publicados
Os gĂŠnios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern, Henry James
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
O dedo apontado… Um humor negro.
Albert Londres COM OS LOUCOS
Albert Londres COM OS LOUCOS
Albert Londres COM OS LOUCOS