Victor Hugo, Os Génios - excerto

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Aníbal Fernandes António José Vale Basílio Teles Francisco Dias Gomes António José de Lima Leitão A. de S.S. Costa Lobo Domingos Enes João de Deus

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Victor Hugo OS GÉNIOS seguido de EXEMPLOS

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Victor Hugo

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EXEMPLOS traduções de

Aníbal Fernandes António José Vale Basílio Teles Francisco Dias Gomes António José de Lima Leitão A. de S.S. Costa Lobo Domingos Enes João de Deus


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TÍTULO ORIGINAL: LES GÉNIES

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: DESENHO DE GAETANO GANDOLFI (SÉCULO XVIII) 1.ª EDIÇÃO, MAIO 2012 ISBN 978-989-8566-03-4


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SUMÁRIO

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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OS GÉNIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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EXEMPLOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Victor Hugo deitava um olhar romântico ao exílio. Para os exilados escolhia a pose distante do Proscrito, a nobreza do heroísmo solitário a sofrer pela injustiça dos homens. Na ilha de Guernesey, ele próprio exilado para não conhecer as prisões de Napoleão III, a olhar para o oceano em tumulto e a escrever de pé Les Misérables (escrevia sempre de pé, encostado a uma mesa alta), passou ao livro esta frase: No minuto que atravessamos […], no meio de tantos vivos com uma moral que é fruir, ocupados com as coisas curtas e disformes da matéria, quem se exilar parece-nos digno de veneração. Victor Hugo, par de França e desde a revolução de 1848 com vontade de estar numa imagem reconhecida de condutor do povo, participante nos tiroteios dos bulevares parisienses durante o golpe de Estado de Charles-Louis Bonaparte, exilado em Guernesey, era portanto digno de veneração; entre o cárcere e o exílio escolhera o segundo, e saíra da França pela Gare du Nord. Um homem com capote preto e boné de operário, segundo o seu passaporte Jacques-Firmin Lanvin, tipógrafo de profissão, altura 1,70m, idade 48 anos, ia para Bruxelas; um Victor Hugo com documentos falsos, que chamara num panfleto «traidor», «perjuro», «violador da Constituição» ao tirano Bonaparte, que se exilava e destinava a viver (não sabia ele) vinte anos em terra estrangeira. Durante nove meses morou na Grand-Place de Bruxelas; e as suas cartas mostram-no carente dos confortos distantes de Paris: Vivo uma vida de religioso. Tenho uma cama do tamanho de uma mão. Duas cadeiras de palha. Um quarto sem lareira. Com despesa reduzida a três francos e cinco cêntimos por dia, tudo incluído. Perto dele existiam franceses; tinha-os que bastavam para a conversa política dos cafés, Apresentação

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e contava com a presença do seu amigo Alexandre Dumas, também exilado mas para fugir aos credores. Nesse momento dramático e agitado Hugo pôs a poesia de lado; exerceu-se como escritor político: Histoire d’un Crime, relato romanceado da repressão de 1848, e Napoléon le Petit, o livro-panfleto que arrasa Napoleão III, são deste período belga. Começou também a perceber que a influência do governo francês na Bélgica era grande; que talvez tivesse os seus direitos de exilado comprometidos e, como ameaça, o regresso forçado à França e à justiça com medidas drásticas de Bonaparte. Mais segura era a Inglaterra. Mas não escolheu essa Londres com vida cultural intensa e que não lhe pertencia; onde o seu nome, Victor Hugo, nada significava entre leitores entusiasmados com David Copperfield de Charles Dickens. Escolheu Jersey, uma das ilhas pouco distantes da costa normanda: Houvesse exílios belos, e o de Jersey seria encantador. É o selvagem e o ameno casados em pleno mar num leito de verdura com oito léguas quadradas. Estou instalado numa cabana branca à beira-mar. Da janela vejo a França. Essa casa chamava-se Marine Terrace, di-lo-á em futuras primeiras páginas de William Shakespeare, quando transcreve a pergunta que o seu filho François-Victor então lhe fez: — Como vais preencher as horas do teu exílio? — Olhando para o oceano. O mar de Jersey, passeios pelas dunas, pelas falésias, põem-no de regresso à poesia. Saíra da França como autor publicado de Odes et Poésies Diverses, Orientales e Rayons et les Ombres, e escreve agora uma poesia com partitura para grande orquestra, dizemo-lo pelo verbo estrondoso e eloquente, e que terá por título Les Châtiments. Victor Hugo sente-se pela primeira vez num plano criador só concedido aos profetas. Os espíritos que todas as noites descem à sua mesa de pé-de-galo, segredam-lhe com pancadas secas de madeira que ele é «mago» e um «eleito para guiar a humanidade». Hugo e outros espíritas franceses também encalhados naquele exílio, com os ecos que a sua mesa recebe do Além perturbam o re10

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manso de Jersey; conseguem hostilizar a tranquilidade anglicana da pequena ilha, e ainda mais quando um deles enlouquece e lança o pânico entre os seus habitantes. Em Outubro de 1855, um representante do tribunal comunica-lhe a decisão da Coroa que determina uma semana para ele abandonar o local. É um incidente que chega à França por carta e com aparências de xenofobia: Para os Ingleses sou shocking, excentric, improper. Não dou bem o nó da gravata. […] Além do mais sou francês, o que é odioso; republicano, o que é abominável; proscrito, o que é repelente; vencido, o que é infame; e, para tudo coroar, poeta. Guernesey, a segunda ilha do seu exílio, é mais pequena do que Jersey e com um mar zangado à frente dos olhos, o que tão bem conhecemos das suas pinturas. Onze mil versos antigos, deixados em papéis soltos desde os seus tempos da França, são repensados, transformados, transfigurados até ao que lemos agora em Contemplations e em La Légende des Siècles. Os seus leitores franceses são confrontados com uma grande quantidade de poemas com verbo alto, servidos pelos adjectivos habituais à sua desmesura, mais amplificados ainda por aquele afastamento, pela melancolia romântica de um proscrito à Caspar David Friedrich; versos que fazem dele como que um profeta sem igreja e a vaguear à beira do infinito. Jules Renard espanta-se: «Só Victor Hugo fala; o resto dos homens balbucia.» Os dezasseis anos de Guernesey substituem os tumultos urbanos de Paris por uma enevoada paisagem com igreja gótica, ruelas estreitas e degraus, navios que passam quase ao alcance da mão: isto é vivo como o Sena e grande como a Mancha; é um rio e também o oceano; é uma rua do mar. É a tranquilidade necessária ao grande projecto de Les Misérables, o romance social que desde há trinta anos anda a pedir-lhe o seu trabalho mais árduo de escritor. Victor Hugo cria inesquecíveis personagens, desde o garoto da rua ao rei; conta um destino dramático com surpresas e respirações cortadas de lições aprendidas nos folhetins de Eugène Sue mas também nos realismos de Balzac; com as linguagens que o Apresentação

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povo fala mas também as da poesia erudita. As ambições desta enorme obra não ficam por exprimir: fazer o poema da consciência humana; um drama com uma personagem principal que é o infinito; com uma segunda personagem que é o homem; pintar derrocadas interiores, motins da alma. O fim deste esgotante trabalho literário é anunciado com precisão: Esta manhã, 30 de Junho de 1861 às oito horas e meia, com um belo sol a bater-me nas janelas, acabei Les Misérables. Tipografias de Paris e Bruxelas trabalham desde logo e sem descanso para haver um mês depois o grande êxito de vendas. «Não é obra humana», escreveu o entusiasmo de Théophile Gautier, «mas qualquer coisa que um elemento fabricou.» Três anos depois, Victor Hugo começa a congeminar o livro polémico que se chamaria William Shakespeare: porque em 1864 era celebrado o tricentenário do nascimento do dramaturgo inglês; porque o seu filho François-Victor lhe pedia um prefácio às suas traduções desse autor; e porque ele próprio sonhava para esta obra outro papel: o de testamento do século XIX e da corrente estética que ficaria conhecida por Romantismo. Victor Hugo já tinha afirmado que daria o espectáculo do oceano às suas contemplações de Guernesey. Ficar-se-ia também a saber que aos homens do génio, sentidos por metáfora nessa diversidade imensa de águas, podemos chamar homens-oceanos. Shakespeare seria escolhido como último numa cronologia de catorze génios literários; e olhar para as suas almas seria o mesmo que olhar para o oceano. Em 1864, a publicação de William Shakespeare por uma editora de Bruxelas surpreendeu e foi polémica. O título desse livro de quatrocentas páginas prometia Shakespeare mas só passava por ele de raspão; coleccionava dissertações que tinham como tema central o génio, uma delas chamada precisamente «Les Génies» (a que foi isolada e aqui traduzida para português). Desta feita, Victor Hugo surgia a argumentar o génio como grande princípio iluminador. Os homens de pensamento transmitem-no civili12

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zando com ele os homens da força, os construtores do mundo material. Os génios são dotados de uma observação, de uma imaginação e de uma intuição que os ligam à humanidade, à natureza e ao sobrenatural. O génio serve-se da arte, o segundo ramo da natureza. Deus deve ser tomado como o invisível evidente. E para o homem não há limites: se sonharmos o sonho é bom, mas se sonharmos a utopia ainda é melhor. Só o ideal é incorruptível. Hugo instalava os seus génios no promontório do sono (promontorium somnii) e afirmava que as obras-primas têm um nível igual para todas elas, que é o absoluto. Estas ideias desconcertaram pelo seu elitismo e porque se acrescentavam de uma forma difícil de aceitar ao programa socializante, centro da história de todos os «miseráveis» no seu enorme romance. «Tem páginas maravilhosamente esculpidas», concordava Mallarmé, «mas pavorosas coisas!» B. Clément escreveu em «Récit de Soi, Essai de l’Autre» (1998) que William Shakespeare de Victor Hugo é uma indirecta, e por vezes inconsciente, narrativa de si próprio. Anos antes um outro texto, este de P. Albouy («Le Mythe du Moi»), chamou-lhe «um delirante panegírico de Hugo por si próprio». Não devemos, porém, isolar o facto fazendo-o único na literatura; o mesmo pode encontrar-se em Remarques sur les «Pensées» de Pascal de Voltaire, Saint Genet Comédien et Martyr de J.-P. Sartre, o livro sobre Rimbaud de Henry Miller, Gogol de Vladimir Nabokov, ou Mishima ou la Vision du Vide de Marguerite Yourcenar. As reacções negativas, conhecidas na altura da sua publicação, também se incomodavam com uma outra singularidade, hoje destituída de qualquer carácter hostilizador: o desafio à estrutura clássica para exposição de um tema. O próprio autor considerava o seu livro árvore de muitos ramos, sinuosa procura de um fio que pretende unir a teoria do génio e a arte numa única finalidade que é a supravisão de todos os homens. Num texto preparatório, não incluído no seu livro, Hugo detém-se mais explicitamente sobre a função dos génios: Eles resumem o que é o género humano num instante específico; e, possuindo-o dentro de si na Apresentação

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sua totalidade, utilizam-no como força para o seu próprio progresso. Tome-se cada um dos espíritos que indicámos em «Os Génios», e examinemo-los no que eles próprios são. Esses espíritos o que são? Um total da humanidade. No exílio de Guernesey, a vozearia escandalizada obtinha uma respota única: Que estranho sonho, querer retirar-se ao poeta o direito à crítica. Quem, melhor do que o mineiro, conhece as galerias da mina? Depois do sobressalto literário de William Shakespeare, Hugo ainda teve no exílio um grande êxito com o romance Les Travailleurs de la Mer (1866), (o ano em que deixou escrito numa carta à sua família: Tenho a honra de ser um homem odiado) e o êxito relativo de L’Homme qui Rit (1869). Depois, com a proclamação da III República regressou a Paris: para ser deputado e senador, para publicar Quatrevingt-Treize (1874), o seu último romance, com uma história passada durante a guerra da Vendeia. Em 1885, aos oitenta e três anos de idade morreu. Uma congestão pulmonar dava um fim físico ao grande poeta da França, ao seu grande romancista, ao respeitado político que teve direito às pompas e à circunstância de um enterro com honras nacionais. Expuseram-lhe o corpo no Arco do Triunfo, e levaram-no depois para o Panteão dos Inválidos. Seguido por uma grande multidão emocionada, recebeu homenagens de figuras do governo, da política e das artes. Para contrastar, transportaram-no numa carreta fúnebre severa e despojada de dourados, a do enterro dos pobres. No meio da celebridade com brilhos, Victor Hugo ainda era o autor de Les Misérables. À sua posteridade entronizada associou-se um fulgor ressentido e também incómodo. Dez anos depois de ele morrer, o seu papel como político mereceu a Paul Lafargue um texto não-hugólatra que lhe chamou burguês por diversas vezes traidor às causas do povo. Em 1924, o Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton acertou no cravo e na ferradura com uma única frase: «Hugo é surrealista quando não é parvo». No mesmo ano, e talvez a fazer de contra-eco à guerrilha surrealista, Paul 14

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Valéry escreveu em Varieté I: «Este homem percorreu todo o universo do vocabulário, experimentou-se em todos os géneros, desde a ode à sátira, desde o teatro ao romance, à crítica, à eloquência. Nada mais belo, em suma, do que vermo-lo expandir a sua incomparável faculdade de organizar versos e palavras. Nunca, na nossa língua, o poder de tudo dizer em versos exactos foi dominado e exercido em tão alto grau.» É natural que esta grande prestação no verbo clássico, elevada a altar nacional, o apontasse como não-modelo de uma geração que abalava os alicerces do academismo francês. Em 1953, Roland Barthes deu-lhe os papéis antagónicos de causa e quase de efeito numa frase de Le Degré Zero de l’Écriture: «Só Hugo, com o peso do seu estilo, pôde exercer pressão sobre a escrita clássica e levá-la até às vésperas de uma explosão.» Um ano antes tinha havido uma surpreendente homenagem do ex-surrealista excomungado e comunista Louis Aragon, com uma antologia comentada que extraía aos seus milhares de versos um poeta que parecia desconhecido. Logo o seu título era uma pergunta: Avez-vous lu Victor Hugo? Você já «leu» Victor Hugo? * Nota: Os «génios» escolhidos por Hugo só podem ser avaliados na sua posição cimeira pela totalidade da obra e no contexto histórico em que ela surgiu na literatura. Os Exemplos deste livro ambicionam menos: coleccionar os seus catorze estilos, os seus catorze tons, e mostrar como puderam ser sentidos e reflectidos noutra língua, a portuguesa. A.F.

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OS GÉNIOS tradução de Aníbal Fernandes

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Há, de facto, homens-oceanos. Estas ondas, este fluxo e este refluxo, este vaivém terrível, este ruído de todos os sopros, estas negritudes e estas transparências, estas vegetações que pertencem à voragem, esta demagogia das névoas em pleno furacão, estas águias na espuma, estes maravilhosos nasceres de astros repercutidos não sabemos em que misterioso tumulto por milhões de cimos luminosos, cabeças confusas do inumerável, estes grandes raios errantes que parecem estar à espreita, estes soluços enormes, estes monstros vislumbrados, estas noites de trevas cortadas por rugidos, estas fúrias, estes frenesis, estas tormentas, estas rochas, estes naufrágios, estas frotas que chocam umas com as outras, estas trovoadas humanas que se misturam com as trovoadas divinas, este sangue no abismo; e depois estas graças, estas suavidades, estes festejos, estas alegres velas brancas, estes barcos de pesca, estes cantos no fragor, estes portos esplêndidos, este fumegar da terra, estas cidades no horizonte, este azul profundo da água e do céu, este amargor útil, este azedume que saneia o universo, este sal áspero que tudo deixaria apodrecer se não existisse; estas cóleras e estas quietações, este todo em um, este inesperado no imutável, este prodígio vasto da monotonia inesgotavelmente diversa, este nivelamento depois da perturbação, estes infernos e estes paraísos da imensidade para sempre enternecida, este infinito, este insondável, pode tudo isto estar num espírito, e chama-se então génio a esse espírito e tereis Ésquilo, tereis Isaías, tereis Juvenal, tereis Dante, tereis Miguel Ângelo, tereis Shakespeare, e olhar para estas almas é como olhar o Oceano. Os Génios

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OS GÉNIOS I

A grande Arte, se empregarmos esta palavra no seu sentido absoluto, é a região dos Iguais. Antes de chegarmos mais longe fixemos o valor desta expressão, a Arte, que muitas vezes nos surge no bico da pena. Dizemos a Arte como dizemos a Natureza; são dois termos com significação quase ilimitada. Pronunciar uma ou outra destas palavras, Natureza, Arte, é fazer uma evocação, é extrair das profundezas o ideal, é correr um dos dois grandes cortinados da criação divina. Deus manifesta-se no seu primeiro grau através da vida do universo, e no seu segundo grau através do pensamento do homem. A segunda manifestação não é menos sagrada do que a primeira. A primeira chama-se a Natureza, a segunda chama-se a Arte. Daqui esta realidade: o poeta ser sacerdote. Cá em baixo existe um pontífice: é o génio. Sacerdos magnus. A Arte é o ramo segundo da Natureza. A Arte é tão natural como a Natureza. Por Deus — fixemos também o sentido desta palavra — entendemos o infinito vivo. O eu latente do infinito manifesto: aí temos Deus. Deus é o invisível evidente. O mundo denso é Deus. Deus dilatado é o mundo. Nós, que aqui falamos, não acreditamos em nada exterior a Deus. Dito isto, continuemos. Os Génios

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Deus cria a arte pelo homem. Tem um utensílio, o cérebro humano. Este utensílio foi o próprio operário quem o fez; mais nenhum existe. Forbes, no curioso fascículo folheado por Warburton e perdido por Garrick, afirma que Shakespeare se entregava a práticas de magia, que a magia estava instalada na sua família e o pouco de bom que existe nas suas peças lhe era ditado por «um Alleur», um Espírito. Digamo-lo a este propósito, porque não devemos recuar perante nenhum dos problemas que se levantam; querer dar ao cérebro humano auxiliares exteriores foi um esquisito erro de todos os tempos. Antrum adjuvat vatem1. Ao parecer sobre-humana, quis fazer-se intervir na obra o extra-humano. Na Antiguidade a trípode, nos nossos dias a mesa de pé-de-galo. A mesa não passa de um regresso da trípode2. Tomar à letra o demónio que Sócrates imagina, e a sarça de Moisés, e a ninfa de Numa, e o divo de Plotino, e a pomba de Maomé, é enganarmo-nos com uma metáfora. Por outro lado, a mesa que dá voltas ou fala foi alvo de muita troça. Sejamos claros: esta troça não tem razão de ser. Substituir o exame pela zombaria é cómodo mas pouco científico. Quanto àquilo que nos diz respeito, achamos que o dever estrito da ciência é sondar todos os fenómenos; a ciência é ignorante e não tem o direito de rir; um erudito que ri do possível está muito perto de ser um idiota. O inesperado deve ser sempre esperado pela ciência. Ela tem como função detê-lo quando passa, e esmiuçá-lo rejeitando o quimérico, verificando o real. Sobre os factos a ciência só tem um direito de visto. Deve verificar e distinguir. Todo o conhecimento humano não passa de triagem. O falso que complica o verdadeiro de forma nenhuma desculpa O antro ajuda o adivinho. (N. do T.) A trípode era um apoio com três pés, onde as pitonisas se sentavam para pronunciar os seus oráculos; a mesa de pé-de-galo o conhecido instrumento do espiritismo. (N. do T.) 1 2

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a rejeição em bloco. Desde quando o joio é pretexto para se recusar o trigo? Mondemos a erva daninha, o erro, mas façamos a colheita do facto e liguemo-lo aos outros factos. A ciência é o feixe dos factos. Missão da ciência: tudo estudar e tudo sondar. Independentemente do que somos, todos somos os credores do exame; e também somos os seus devedores. É-nos devido, e devemo-lo. Iludir um fenómeno, recusar-lhe a paga da atenção que é seu direito, despedi-lo, pô-lo na rua, voltarmos-lhe as costas a rir, é fazer bancarrota à verdade, é deixar protestar a assinatura da ciência. O fenómeno da trípode antiga e da mesa moderna tem, como qualquer outro, direito à observação. A ciência psíquica ganhará com isso, sem dúvida nenhuma. Acrescentemos o seguinte: abandonar os fenómenos à credulidade é trair a razão humana. Homero afirma que as trípodes de Delfos andavam sozinhas e explica o facto, no Canto XVIII da Ilíada, dizendo que Vulcano lhes forjava rodas invisíveis. A explicação não simplifica muito o fenómeno. Platão conta que as estátuas de Dédalo gesticulavam nas trevas, eram voluntariosas, resistiam ao seu proprietário e tinham de ser era amarradas para não se afastarem dali. Estamos perante estranhos cães acorrentados. Na página 52 da sua Histoire de Théodose, e a propósito da grande conspiração dos feiticeiros do século IV contra o imperador, Fléchier refere-se a uma mesa de pé-de-galo de que falaremos talvez noutro lugar para dizer o que Fléchier não diz e parece ignorar. Esta mesa estava coberta por uma lâmina redonda, feita com diversos metais, ex diversis metallicis materiis fabrefacta, como as placas de cobre e zinco que a biologia actualmente emprega. Como se vê, não é de ontem o fenómeno sempre rejeitado e que reaparece sempre. De resto, independentemente daquilo que a credulidade tenha dito ou pensado, este fenómeno das trípodes e das mesas nenhuma relação tem, e aí queremos nós chegar, com a inspiração directa. A sibila tem uma trípode, o poeta não. O próprio poeta é trípode. É a tríOs Génios

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pode de Deus. Deus não fez este maravilhoso alambique da ideia, o cérebro, para o homem não se servir dele. O génio tem no seu cérebro tudo o que precisa. Todo o pensamento passa por ali. O pensamento sobe e separa-se do cérebro como o fruto da raiz. O pensamento é a resultante do homem. A raiz mergulha na terra; o cérebro mergulha em Deus. Quer dizer, no infinito. Os que imaginam — eles existem, e Forbes é prova disso — que um poema como El Medico de su Honra ou King Lear pode ser ditado por uma trípode ou uma mesa, comete um estranho erro. Estas obras são obras do homem. Nem a Shakespeare, nem a Calderón, Deus precisa de ajudar com um pedaço de madeira. Punhamos, portanto, a trípode de lado. A poesia é a parte do poeta. Mostremos respeito perante o possível de que ninguém conhece o limite, estejamos atentos e com seriedade perante o extra-humano de onde saímos e que espera por nós; mas não diminuamos os grandes trabalhadores terrestres com hipóteses de colaborações misteriosas que nenhuma falta fazem, deixemos ao cérebro o que ao cérebro pertence, e verifiquemos que a obra dos génios é sobre-humano saído do homem.

II A arte suprema é a região dos Iguais. A obra-prima está ajustada à obra-prima. Tal como a água, que aquecida a cem graus deixa de ser capaz de acréscimo calórico e a mais alto não pode subir, o pensamento atinge em certos homens a sua total intensidade. Ésquilo, Job, Fídias, Isaías, São Paulo, Juvenal, Dante, Miguel Ângelo, Rabelais, Cervantes, Sha24

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EXEMPLOS Com traduções de António José Viale Basílio Teles Francisco Dias Gomes António José de Lima Leitão A. de S.S. Costa Lobo Aníbal Fernandes Domingos Enes João de Deus

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Homero a ditar a um escriba, por Rembrandt (1663).

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Platão disse que ele «educou a Grécia». Sai de uma névoa e de uma vida contadas com imaginações diferentes por escritores da Antiguidade grega, e nasce em muitos locais mas com maior probabilidade na ilha de Chio, perto de Esmirna. Foi dito que viajou por todo o mundo então conhecido, e foi acrescentado por uma cegueira que enobreceu o poeta com a exclusiva visão da palavra. Os seus dois enormes poemas, A Ilíada, A Odisseia, em hexâmetros dactílicos, são as mais célebres epopeias da literatura e sobre elas paira a grande e mítica contenda que opôs longamente Gregos e Troianos. Páris, filho do rei Príamo de Tróia, raptou Helena, esposa de Menelau, filho do rei Atreu de Argos e Micenas. A chamada Guerra de Tróia teve como causa central este rapto. Páris (no poema também chamado Alexandre) é pintado como um príncipe divinamente belo e mais vocacionado para o amor do que para a guerra; que desafia os Gregos mas recua quando vê Menelau, o legítimo esposo de Helena. No Canto VI da Ilíada, o seu irmão Heitor vai ter com ele e tenta envergonhá-lo pela sua cobardia que já antes referira, lamentando que não tivesse sido lapidado quando fez aquela grande afronta. Heitor pede a Helena que convença Páris a regressar à guerra; e partem juntos, de facto, para enfrentar os Gregos. Este episódio (que no texto reproduzido começa no verso 237 do Canto VI e se prolonga até ao seu final) foi vertido para português por António José Viale (1806-1889), um latinista e helenista de origem italiana, professor do Curso Superior de Letras de Lisboa, que também passou Os Lusíadas para latim e a versos hexâmetros a história de Portugal (Bosquejo Histórico-Poético). A «sua» Ilíada nunca chegou a ficar 70

Exemplos


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concluída e teve diversas formas, nunca obedientes ao sentido exacto de cada verso, privilegiando a «toada» que o ouvido identifica como a dos poemas narrativos que cantam os actos e as personagens heróicos das epopeias. Nesta, como nas outras cinco traduções destes «Exemplos» feitas no século XIX, a ortografia foi revista e a pontuação por vezes adaptada às convenções familiares ao leitor actual.

À torre neste tempo, às Portas Squeias chegava o nobre Heitor; e em torno dos teucros campeões se apinhoavam as esposas e seus filhos perguntando pelos filhos, por irmãos, e por amigos e consortes caros. Sem lhes responder, tornou somente que suas preces férvidas aos Numes sem tardança eles fizessem: atroz desdita a muitos impendia! Eis Príamo chegado ao nobre alvergue de pórticos sumptuosos bem ornado; cinquenta câmaras nele se viam de brunido mármore, ali dispostas no mesmo plaino, todas, onde logravam os filhos do rei, e cada qual ao lado da esposa legítima, brando sono. À sua frente, no majestoso átrio e também marmóreas, mais doze estâncias o real paço tinha; e desse rei os genros e as esposas repousavam. Ali, por mero acaso, fora Hécuba Homero

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em procura de Laódice, mais bela de quantas filhas dera ao rei longevo. Vê o seu filho, corre, a mão lhe toma e com estas expressões prorrompe, meiga: «Que motivo a vir aqui te impele a peleja deixar, que ferve acesa? Acaso as gregas, execrandas hostes, vencendo enfim a teucra resistência, são perto chegadas aos nossos muros? À cidadela, em transe derradeiro vens erguer, suplicante, as mãos a Jove? Um pouco te detém: nectáreo vinho vou buscar; a Jove e a outros Numes fazendo libações, cumprindo o rito restaurarás as tuas forças tão lassas. Os teus membros fatigados refocila com licor generoso; ora careces de recobrar vigor; a força esgotas em prol dos teus, já sem ela pelejando.» «Mui amada genitriz — Heitor lhe volve — o licor de Lieu não me ofereças; força, esforço, em mim enervaria e nem libar a Júpiter me atrevo de minhas mãos impuro; pois ninguém pode, imundo de suor, de pó e de sangue, grato culto tributar ao rei dos Numes. Juntando nobres dardânias matronas, vai ao de Minerva mui sagrado templo com suaves perfumes endereçar-te, 72

Exemplos


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Léon Bonnat, Job (1870).

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Victor Hugo considera Job como autor de «O Livro de Job», o que hoje é posto em dúvida pelos estudiosos da Bíblia. O poema tem desenvolturas poéticas que parecem de um período posterior e mais brilhante na velha literatura hebraica, o que se estende desde Salomão até à época que antecede em cerca de setecentos anos a era de Cristo. «Em “Job” temos uma das obras-primas da poesia hebraica», afirmou Reuss, podendo acescentar-se que um dos seus casos mais singulares nesta dor gritada por um homem justo e de heróica paciência perante as provações de um Deus que injustamente o castiga. Ernest Renan foi mais longe quando se destinou ao Índex do Vaticano por afirmar que Job era o homem perturbado com a dúvida, a dúvida da existência de Deus. Os textos deste «Exemplo» (3. 3/26; 4. 12/21; 7. 7/21; 6. 24/39), como o dos outros pertencentes aos «génios» que Hugo encontra entre os escritores da Bíblia (Isaías, Ezequiel, João e Paulo), salvo indicação em contrário resultam de uma recriação em português sugerida pela consulta simultânea de quatro Bíblias: a intercofessional, publicada pela Sociedade Bíblica de Portugal (1993), a traduzida por António Pereira de Figueiredo (1842), a que propõe a tradução revista dos Padres Capuchinhos (1976) e a traduzida por António Annes d’Almeida até ao ano da sua morte, em 1691.

Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: um varão foi gerado. Foi dia confundido pelas trevas 88

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e não o tenha Deus do alto em sua conta nem o faça resplender com a sua luz. Seja pela negra escuridão arrebatado e atrás de turvas nuvens escondido, e o sol em eclipse semeie o seu terror. Sobre uma tal noite a sombra desça e em dias do ano não seja contada nem mês haja que aceite recebê-la. Nessa noite, declarada estéril, não se oiça um grito de júbilo. Execrada seja pelos que maldizem o oceano e pelos esconjuradores do Leviatã. Do seu alvorecer se apaguem as estrelas, em vão esperada seja a luz do dia e nem se abram as pálpebras da aurora, pois não me vedou a porta do ventre poupando-me aos olhos a miséria humana. Por que não tive morte no seio materno nem expirei, saído das entranhas? Por que me foi dado o bom abrigo dos regaços, e por que tive os seios que dão leite? Deitado em paz estaria agora no meu descanso, a sono solto e perdido junto de reis e dos grandes deste mundo que levantam mausoléus faustosos, ou dos príncipes que arrecadam ouro e pratas amontoam nos seus palácios; Job

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como aborto oculto eu quereria ver-me, ou como o feto que não chega à luz. Já nem os maus no sepulcro são perversos e lá descansam por fim os exauridos. É o repouso merecido dos cativos a quem não chega a voz do opressor que faz iguais pequenos e grandes e nem ao escravo oferece o jugo do seu senhor. Por que foi ao triste consentida a luz, e vida ao de alma amargurada? Os que anseiam pela morte e a procuram mais do que um tesouro, alegres no seu júbilo saltariam se ao seu sepulcro acaso chegassem. Ao homem que o seu caminho não vê, por que lhe oculta Deus todas as saídas? Eu, em vez de pão tenho suspiros e os gemidos são-me derramados como água. Chegaram-me os receios que eu temia e o que assustava aconteceu. Não tenho paz e não tenho descanso: inquieto vivo numa vida em sobressalto. * Ouvi furtivamente uma palavra; um doce murmúrio penetrou-me com as visões sonhadas da noite. Os homens dormiam o seu profundo sono 90

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ÉSQUILO

Ésquilo, bronze.

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Ésquilo, Shelley, Goethe, Gide, todos celebraram à sua maneira mas sempre como generoso herói o filho dos Titãs, Prometeu. Escultor de uma imagem de barro, modelo dos primeiros humanos, Prometeu mais tarde condoeu-se da sua miséria por eles não conhecerem o fogo essencial ao seu progresso e que era prerrogativa do poder de Zeus. Ofereceu-lhes então o fogo. E Zeus zangou-se com a violência que é sua marca. Como castigo prendeu-o por grilhetas a um rochedo do Cáucaso e condenou-o a ter o seu fígado (a partir daí com capacidade de renovação) devorado diariamente por uma águia. O castigo deste mártir amigo dos homens está no centro de Prometeu Agrilhoado, talvez a mais célebre peça teatral de Ésquilo. Ésquilo é tido por criador da tragédia como género teatral. Sabe-se que nasceu em Elêusis no ano 525 a.C., e morreu na Sicília com setenta e nove anos de idade; que foi processado por divulgar pormenores secretos de rituais sagrados; que combateu contra os Persas; que teve, por motivo até hoje desconhecido, de procurar asilo da Sicília. Em As Rãs, Aristófanes escolhe-o como personagem e fá-lo dizer a Eurípedes: «Vê tu que homens o público teve de mim: valentes com majestosa altura, e não cidadãos que se esquivam, nem passeantes da ágora, nem palhaços como hoje há tantos, nem trapaceiros… O meu génio imagina as numerosas virtudes de Pátroclo, dos Teucros com coração de leão, para incitar a todos que se elevem, ao primeiro toque de trombeta, até à sua verdadeira dimensão.» Em 1914, quando Basílio Teles (1856-1923) traduziu a peça Prometeu Agrilhoado era um desiludido com as traições da política e um arredado do convívio social: tinha sofrido as amarguras do exílio por estar entre os organizadores da revolta de 31 de Janeiro de 1891. Depois, em 96

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1910, a República quis compensá-lo dos seus contratempos emocionais e políticos com o cargo de Ministro da Fazenda, e em 1915 com o de Ministro da Guerra; ambos os convites foram recusados: Basílio Teles era escritor, era tradutor, e assistia com distância defensiva às convulsões do regime.

falas de prometeu e do coro Divino Éter, ventos d’asa rápida, brotos de rios, infindável riso d’ondas do mar! Ó mãe de tudo, Terra, tu Sol, omnividente disco — invoco-vos! Vede o que sofre um deus dos seus iguais; por que tratos, opresso, sou compelido a padecer tempo infinito! O novo amo dos Venturosos me forjou grilhões tão vis. Ah! Ah! Pranteio o mal d’agora e o que há-de vir. Pois d’esta pena a expiação — quando será? Mas que digo! O futuro para mim não tem segredos; trama alguma inédita me pode advir. Preciso de sofrer, conformado, este azar desde que sei a força do destino incontrastável. Mas calar-me ou falar o mesmo importa. Foi por ter — ai de mim! — honrado os homens, que esta sorte fatal me tem seguro. Roubado à sua origem, capto o fogo, Ésquilo

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atulho a cana-frecha, e assim lhes passo grande recurso, o inspirador das artes. Este o crime, que pago com tormentos que me pregam aqui, exposto ao ar. Olá, olá! Que olor estranho e que sussurro pairam? Um divino, um mortal, um semideus vem ser espectador do meu castigo n’esta remota agulha, ou a que vem? Vede em grilhões um deus desventurado, rancor de Zeus, e aborrecido por todas quantas divindades no seu palácio têm ingresso, por ter em demasia amado os homens. Eh! Eh! Que fremer d’aves ouço, cuido, pela segunda vez ao pé de mim? Vibra o ar sob um crebro bater d’asas. Um acercar de mim me faz tremer. * Magoa-me empreender esse relato e dói-me se o calar; tudo me pesa. Quando o ódio entre os deuses explodiu, se originou entr’eles um debate — uns querendo apoiar o trono Crono, p’ra Zeus reinar, os outros resistindo a que Zeus nós, divinos, governasse; o meu voto, apesar do mais discreto não conseguiu mover o dos Titãs — d’Urano e Crono todos procriados. 98

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ISAÍAS

Isaías pintado no tecto da Capela Sistina por Miguel Ângelo (1512).

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Julga-se que nasceu por volta de 760 a.C., e provavelmente não é o único autor de «O Livro de Isaías» (o mais célebre dos textos proféticos da Bíblia, e o que é visto pela Igreja como anunciador da vinda de Cristo), uma vez que os factos ali referidos se estendem por um período histórico de cento e cinquenta anos, superior ao de uma única vida humana. «O Livro de Isaías» está quase todo escrito em verso e dividido em três partes: a primeira com mensagens que se referem aos reinos de Judá e Israel, aos habitantes da Babilónia, aos Filisteus e a outros, também com narrativas do reinado de Ezequias; a segunda, com um tom apaziguador, é «o livro da consolação de Israel»; a terceira mostra o profeta como um enviado do Senhor e com a missão de anunciar aos pobres a boa nova, o programa onde mais tarde Jesus se reconhecerá. Isaías pertenceu a uma família prestigiada do reino de Judá; e estava, conta ele, a meditar no templo quando Iahvet lhe apareceu rodeado de serafins. «Ai de mim!», exclamou. «Sinto-me perdido porque tenho os lábios sujos e vivo no meio de um povo de lábios sujos.» Mas um dos serafins tocou-lhe com um carvão em brasa nos lábios e disse: «Foi-te retirada a iniquidade e tens feita a expiação do teu pecado.» A partir deste momento surgiu o Isaías taumaturgo, o adivinhador do futuro, o exortador contra os escândalos, o incitador ao arrependimento; e tudo com uma linguagem que o correr dos séculos não diminui na sedução. O seu livro é um compêndio do messianismo hebraico; nacionalista, doloroso, e por fim estendido ao mundo inteiro como celebrador de «O Príncipe da Paz». Os textos portugueses desta selecção escolhem, na Primeira Parte todo o capítulo 18; os versículos 1 a 10 do capítulo 21; os versículos de 1 a 22 do capítulo 28; e, na Segunda Parte, os versículos 1 a 17 do capítulo 54. 110

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oráculo contra a etiópia Ai da terra do zumbido de asas, além dos rios da Etiópia, que envia mensageiros pelo mar em barcos de junco sobre as águas. Correi, mensageiros velozes, a um povo esbelto e bronzeado, a um povo sempre temido, a uma poderosa nação distante com sua terra sulcada por canais. Vós, habitantes do mundo e povoadores da terra, quando o estandarte for erguido nas alturas, olhai; quando soar a trombeta, escutai. Porque assim disse o Senhor: da minha morada contemplo sereno, como o ardente calor do sol, como a nuvem de orvalho no tempo da colheita. Porque antes da vindima e passada a floração, já feita a flor em cacho maduro, cortadas serão as gavinhas com a podadeira e arrancados e escolhidos os sarmentos, e abandonados juntos aos abutres do monte e aos selvagens animais da terra. Sobre eles irão veranear abutres, sobre eles invernar os selvagens animais da terra.

Isaías

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Nesse tempo, o esbelto povo de pele bronzeada, o povo poderoso e distante, a temida nação dominadora com a terra sulcada por canais, ao Senhor dos Exércitos fará oferendas, e ao Monte Sião, morada do Senhor dos Exércitos, serão levadas.

destruição da samaria Ai da soberba coroa dos ébrios de Efraim, da flor caduca que sua glória ostenta e domina o vale fértil dos homens embriagados com vinho. Olhai: o que é tão forte e robusto como a saraiva de granizo, como o torvelinho destruidor, como caudalosas e transbordantes trombas de água, a mando do Senhor com suas mãos atira ao solo, e com os pés calca a coroa soberba dos ébrios de Efraim, a flor caduca que sua glória ostenta e o vale ubérrimo domina. Será como um figo temporão: visto por alguém e logo apanhado, e logo comido.

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Exemplos


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EZEQUIEL

A visão de Ezequiel, iluminura da Bible de Sens (século XIV).

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Ezequiel foi sacerdote no templo de Jerusalém. No Velho Testamento vemo-lo como o poeta severo que anunciava, cerca de seiscentos anos antes de Cristo, temíveis desgraças aos perseguidores de Israel. Quando Nabucodonosor conquistou a sua cidade foi deportado com os mais influentes e lúcidos cidadãos do país, e diz-se que nas margens do rio Kebar, na Babilónia, profetizou os destinos do povo escolhido por Iahvet. Teve alucinações; a primeira sob a forma de um carro com rodas que giravam vertiginosamente e surgia rodeado por silhuetas fantásticas; viram-se-lhe gestos singulares e de explicação difícil, o mais célebre queimar um terço do cabelo, cortar outro terço com uma espada, e espalhá-lo ao vento, reduzido a cinzas. Também foi afirmado que morreu no exílio e os seus restos se escondem num lugar desconhecido de Bagdade. Grande parte dos quarenta e oito capítulos do seu livro furta-se à veleidade de lhe vermos um sentido claro. Mas se em Isaías reconhecemos o profeta da misericórdia divina, e em Jeremias o profeta da vingança, é defensável ver-se Ezequiel como um anunciador oscilante, dividido entre essas misericórdias e essas vinganças, e neste registo bipolar o mais «enérgico» poeta do Antigo Testamento; também o primeiro a romper com a tradição israelita da responsabilidade colectiva e a propor outra, individual, de cada homem perante os seus actos. A parábola das duas prostitutas (primeiro exemplo desta escolha) cumpre o método de fixação do texto anteriormente referido e reproduz todo o capítulo 23 do seu Livro. Quanto ao «Lamento pela Cidade de Tiro», é o poema incluído no seu capítulo 27 e traduzido aqui por Francisco Dias Gomes (1745-1795), o escritor, o poeta, o homem de negócios 120

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lembrado sobretudo como um erudito bravio e de contactos difíceis, o que tinha como paisagens preferidas as ruas vazias e a outra, mental, que ele desdobrava no conforto solitário do seu quarto.

Ezequiel — disse-me o Senhor esta palavra — era uma vez duas irmãs, filhas da mesma mãe, e que viveram no Egipto os anos da sua juventude. Perderam a virgindade, prostitutas se fizeram, e pela primeira vez tiveram o afago dos seus seios. A mais velha chamava-se Ola e representa a Samaria; a mais nova Oliba e representa Jerusalém. Uma e outra desposei e tive de ambas filhos. Mas Ola, embora minha mulher continuava a prostituir-se; mostrava-se incansável na sedução de amantes e dos seus vizinhos da Assíria, soldados com farda de púrpura e outros, nobres e oficiais de hierarquia alta, todos formosos e em belos cavalos montados. Foi a prostituta dos oficiais assírios. Leviana e contaminada, os seus ídolos adorou e teve o curso já começado muito antes no Egipto e nos primeiros tempos da sua prostituição, quando tinha perdida há pouco a sua virgindade. Começou cedo a arrastar homens para o leito: os mesmos que lhe tinham feito perder a virgindade, os mesmos que a tinham tratado como prostituta. E na mão desses amantes assírios, que tanto prazer sabiam dar-lhe, eu a deixei. Mas eles abandonaram-na; arrebataram-lhe filhos e filhas, e a golpe de espada mataram-na. Foi de exemplo o castigo que lhe deram, e para as outras mulheres severo aviso. Não obstante, testemunha de tudo isto a sua irmã Oliba sucumbiu também à força dos desejos, e mais prostituta do que Ola ainda foi. Seduziu os soldados e os oficiais assírios, todos formosos jovens que vestiam fardas coloridas e em belos cavalos montados. Contemplei-a, pois, mergulhada na lama; tão mal comportada como a sua Ezequiel

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irmã, e cada vez mais submersa na imoralidade. Quando viu homens caldeus esculpidos nas paredes e pintados de vermelho, com a cintura apertada por cintos e com turbantes de cores vivas na cabeça, sentiu as exigências fortes da sensualidade e mandou à Babilónia emissários para os aliciar. E os babilónios vieram então, para a conhecer; e tanto a usaram depois, que ela sentiu-se farta. Oliba expôs-se então completamente nua; e todos souberam que era uma prostituta. Tanto horror me inspirou como a sua irmã. E mais leviana do que a irmã se fez, voltando aos antigos dias da jovem prostituta que vivia no Egipto. Encheu-se de desejos insaciáveis; ansiou por amantes sensuais, com desmesurados membros e lubricidades de touro. Assim quiseste, Oliba, voltar à imoralidade culposa dos teus dias no Egipto, onde deleitaste homens com os teus seios, e onde te roubaram a virgindade. Mas eu, o Senhor Deus, terei agora de comunicar-te o seguinte: Vejo-te farta de amantes, Oliba, e vou voltá-los contra ti para seres por todos os lados cercada. Convocarei babilónios e caldeus; homens de Pecod, Choa e Coa; e além deles os assírios. Vou reunir aqui estes homens formosos, estes nobres, estes oficiais, estes valorosos guerreiros montados em belos cavalos. Vais ser atacada por um grande exército que dispõe de carros e carroças de abastecimento; e por eles, munidos de escudos e couraças, serás cercada. Ser-lhes-á concedido um poder para te julgarem e, de acordo com as suas leis, punirem. Porque me fizeste encolerizar, deixá-los-ei tratar-te com furor; sejam-te cortados o nariz e as orelhas, e sejam os teus filhos mortos. Sim, filhos e filhas terás levados de tua casa, e vivos verás queimar os teus descendentes. Despojada serás de vestidos, e não mais verás as tuas jóias. Porque vou dar um fim à indecência e à imoralidade que são do teu comportamento desde os teus tempos do Egipto. E outra coisa quero ainda comunicar-te: serás entregue ao povo que odeias e com o qual te fartaste de ter relações íntimas. E, porque 122

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LUCRÉCIO

Lucrécio, desenhado por Rubens.

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O seu longo poema De Natura Rerum foi buscar o título a Empédocles de Agrigento e o tema a Epicuro, passando-o ao «doce mel da poesia» (di-lo no verso 947 da Primeira Parte do seu livro). Lucrécio afirma-nos em poema que o universo é formado por matéria e vazio; a matéria é divisível até à partícula átomo formando, com múltiplas combinações, os seres e os objectos; a alma está estreitamente unida ao corpo e dissipa-se no ar no momento da morte; os sentidos são a única fonte do conhecimento do mundo exterior, podendo acontecer que através da sua mensagem erradamente o interpretemos e sejamos conduzidos à ilusão e ao sonho, mas também ao desejo e ao amor. O seu poema termina, porém, com uma extensa passagem que reflecte sobre fenómenos astronómicos, terrestres e metereológicos, alguns deles paradoxais na sua singular explicação. Trata-se, contudo, de uma superfície científica que cauciona outro essencial intento: reflectir sobre a angústia humana perante o amor, a morte e o infinito. Cícero encontrou-lhe «as luzes do génio». E Ovídio escreveu: «Os versos do sublime Lucrécio só perecerão no dia em que o nosso mundo perecer.» A sua vida está envolta por névoas. Consegue saber-se, escolhendo o mais comprovado dos rasgos biográficos atribuídos por antigos escritores latinos, que nasceu no século I a.C. e viveu em Roma na altura em que a República agonizava. Contemporâneos seus chegam ao ponto de o considerarem demente, e com uma demência que teria sido causa principal do seu suicídio. Os excertos aqui apresentados pertencem ao Canto III deste seu único livro, e foram traduzidos por António José de Lima Leitão (1787-1856), escritor mas também político e médico (cirurgião-mor num dos 130

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quartéis de Napoleão, físico-mor na capitania de Moçambique). Como tradutor ficou essencialmente ligado a Lucrécio, mas no seu tempo também foi elogiado por versões portuguesas de Efigénia de Racine, Arte Poética de Horácio e O Paraíso Perdido de Milton.

Honra da Grécia, que primeiro ousaste soltar tão clara luz em trevas tantas abrindo a estrada aos cómodos da vida, eu te sigo, Epicuro; e, passo a passo, sobre os vestígios teus meu trilho alongo. Não que intente eu rivalizar contigo; que andorinha disputa ao cisne o canto? Ou como pode o trémulo cordeiro do soberbo frisão correr ao lado? Mas como aluno teu me apraz seguir-te. Oh, génio criador, pai da sapiência, tu nos franqueias paternais tesouros. Nos ditos teus, como as abelhas libam no florífero prado o mel cor de ouro, nós colhemos também áureas verdades, áureas e dignas de renome eterno. Mal que a tua razão clamou, sublime, que os Numes o universo não criaram, da alma logo os terrores se sumiram; ao mundo ampliou-se o círculo dos muros, e a criação surgir vejo no espaço. A quieta corte avista-se, dos Numes, aos repelões do vento não se abala, a nuvem tempestuosa não a enluta Lucrécio

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nem pelo frio cortador, concretos, da neve os brancos flocos a profanam. Límpido éter cerúlio a envolve sempre, cheio de luz que resplandece ao largo. A natureza lhes entrega tudo; nunca do ânimo a paz se lhes altera; Jamais observam os tartários antros; nem de ver sob os seus pés a terra os obsta, no grão vácuo dos atornos, às cenas. Nestas meditações todo engolfado, sinto tomar-me de prazer divino por ver que ao teu esforço a natureza descobriu por inteiro os seus arcanos. Mostrei-te já dos átomos a essência e quão diferem entre si nas formas: como em voo veloz move-os no espaço de tendência espontânea o moto eterno, e deles tudo assim criar se pode. Do ânimo e da alma agora a essência cumpre clarear nos versos meus, e pôr em ruínas o hórrido medo do Aqueronte avaro que a vida humana no âmago perturba, tudo da negra cor tinge da morte, nenhum puro prazer deixa gozar-nos. …………………………………………… Das honras a ambição, o anelo avaro, que obrigam tanto os miseráveis homens a transcender as metas da justiça e a fazer crimes ou socorro dar-lhes; 132

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JUVENAL

Juvenal, frontispício da edição inglesa das Sátiras (1711).

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Encontramo-lo em versos de Boileau: «Juvenal, que se educou com os gritos da escola / leva ao excesso uma mordente hipérbole. / Mas as suas obras, cheias de horríveis verdades, / com sublimes belezas resplandecem.» Praticamente ignorado pelos seus contemporâneos, pouco nos chegou de quem realmente foi; pode porém dizer-se que nasceu em Aquino nos anos 50 a 60 a.C. e talvez tenha estudado retórica em Roma; que um qualquer delito o atirou para o exílio e ele se cumpriu numa região do Alto Egipto. A estas «verdades incertas» acrescente-se que só foi publicado no final da sua vida (durante as vigências de Trajano e Adriano) que pouco lido foi até ao final do século IV, mas recuperado com grande êxito popular durante o Renascimento. Ao conjunto dos seus cinco livros chamou Satiræ e preencheu-os com dezasseis dissertações poéticas onde um sarcasmo nunca igualado no seu tempo feriu sem piedade os partidos políticos, os novos-ricos, os cidadãos de Roma que ele só viu corrompidos e venais. Os extractos seleccionados pertencem à sua sexta e mais célebre sátira, a que intitulou «Contra as Mulheres». Estão em versos de António de Sousa da Silva Lobo (1840-1913), o pouco ortodoxo professor da Universidade de Coimbra, também membro da Câmara dos Pares e conselheiro de D. Manuel II, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros em 1892 e traduziu todas as suas sátiras, publicadas no século XIX em dois volumes pela já então Imprensa Nacional.

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contra as mulheres Quem as não viu, cingindo tíria endrómide e do ceráceo unguento emboldriadas, do atleta praticar os exercícios? Contra o poste, na escola gladiatória quem as não viu jogar a lígnea espada?, redobrar golpes, ameaçar co’o escudo e seguir a lição de cabo a cabo? Com este tirocínio, a matrona fico eu que justamente será digna do entoar a tuba — a par das desbragadas que nos festejos tripudiam — de Flora: se aspirações mais altas não resolve aquele peito ardido e se prepara a combate real no anfiteatro, que pudor em mulher de capacete? Qual haverá na que renega o sexo? Pelas forças viris morde-as inveja, mas em varão nenhuma se trocara: menor julgam dos homens o deleite. Se faz tua mulher leilão dos trastes, como hás-de achar bonito ver em praça penacho, cinturão, braçais, da esquerda perna a meia cobertura? Afortunado, que possuis consorte que das grevas se desfaz, porque passa a instruir-se de gladiador ligeiro nas manobras!

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E dizer que estas são as que transpiram, abrasadas por túnica franzina; e que de sensitivas se magoam com o roçar de sedas delicadas! Repara com que grita ela desfecha os golpes do comando; como verga sob peso de tamanho capacete; e que grossas correias d’entrecasca té’às coxas lh’enastram caneleiras. Tais provas dá de masculino alento que, em as armas depondo, causa riso que o vaso, e que ela usa, seja o escáfio. Netas de Lépido e Metelo o Cego, e de Fábio o Voragem! Vós dizei-me: de gladiador-mulher vós conhecestes que os trajos envergasse do marido? Conhecestes mulher de algum asilo que a gemer esgrimisse contra o poste? É leito conjugal praça de rixas, não é lá que se dorme a sono solto. Então é o investir contra o marido como tigre roubada dos cachorros; então é o soltar ais e suspiros, mancebos lh’inventando ou concubinas, para encobrir assim pecados próprios e em lágrimas banhar-se, que estão prontas, a postos sempre e esperando as ordens para desfilar logo que chamadas. 146

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Tรกcito, anรณnimo (1920).

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Nasceu por volta do ano 57 e morreu em 120. Filho de um escravo liberto ligado à ilustre família Cornélia da mais alta sociedade romana, ou filho de um provincialis? Ambas as hipóteses são sugeridas pelo nome: Públio Cornélio Tácito. Os seus mais recentes e tacteantes biógrafos vêem-no porém gaulês provençal, de uma pequena localidade perto de Marselha. De facto, não se lhe encontra no aspecto físico o que é mais característico dos cidadãos romanos da época; e também se diz que o seu estilo literário escapa à tradição dos formados pela disciplina da retórica latina. Casou-se com uma filha de Júlio Agrícola; e, à sombra do prestígio do seu sogro, Vespasiano confiou-lhe a direcção do Tribunal Militar romano, Tito fê-lo questor, Domiciano edil e pretor, Augusto pretor provincial na Gáulia belga. Teve os anos finais da sua carreira pública sentado com a dignidade de um senador calmo e resignado perante os desmandos imperiais, ou como procônsul em territórios asiáticos. Em horas de política não activa, escreveu; e bem conhecidos ficaram a Vida de Agrícola (biografia do seu sogro), A Germânia, e as duas extensas obras Histórias e Anais. Há quem lhe atribua ainda um opúsculo que seria de tempos da juventude e se intitula Diálogo dos Oradores. A sua obra mais célebre, Anais, é formada por dezasseis livros onde a visão bastante solta da verdade histórica contribui para o que é seu indesmentível encanto. Tácito interpreta a história em função de um efeito literário; transtorna-a em função de uma causa: emocionar o leitor. O relato da morte de Agripina (que ocupa os primeiros nove capítulos do Livro XIV, consagrado a Nero) é um desses coloridos e movimentados momentos. O texto apresentado é tradução indirecta, a partir das traduções francesas de Jean-Louis Burnou e Pierre Grimal. 154

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o assassínio de agripina Durante o consulado de Gaio Vipstano (59 d.C.) e de C. Fonteio, Nero não adiou mais tempo o crime que estava desde há muito tentado a cometer; prolongara o seu poderio ao ponto de o consolidar em audácia, e dia a dia mais ardente estava o seu amor por Popeia, que não esperava conseguir casar com ele nem ver Octávia repudiada enquanto Agripina vivesse. Importunava, pois, o príncipe; desfazia-se em exprobações e, por vezes com ar de troça, chamava-lhe «pupilo» porque se submetia a ordens de outros e se via não só privado do Império, mas da liberdade. Por que haveria Nero de adiar o seu casamento? Dir-se-ia que lhe não agradavam a sua beleza nem os triunfos dos seus antepassados. Ou em causa estariam a sua fecundidade e os seus sentimentos? Ou ainda o temor de que ela, fazendo-se sua esposa, resolvesse pôr a nu a forma como os direitos dos Pais eram violados, e suscitasse a cólera do povo contra o orgulho e a avidez da sua mãe? Se Agripina só podia tolerar como nora uma inimiga do seu filho, chamasse a si o cuidado de a devolver a Otão de quem era mulher legítima; afastar-se-ia para uma terra qualquer, onde talvez tivesse notícia dos insultos feitos ao imperador, mas sem os testemunhar nem estar ligada aos perigos que ele enfrentava. Estas e outras palavras idênticas reforçavam-se na eficácia com lágrimas e habilidades de amante, mas ninguém era capaz de lhes dar um fim; porque embora quisessem todos ver quebrado aquele poder de mãe, não se dispunham a crer que os ódios de um filho pudessem chegar ao crime. Relata Clúvio que Agripina ardentemente interessada em conservar o poder, diversas vezes chegou à audácia de se oferecer em pleno dia a um Nero esquentado pelo vinho e pela boa mesa; ele meio embriagado, ela ataviada e pronta para o incesto; e que não pasTácito

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savam despercebidos a convivas mais íntimos os seus beijos lascivos e carícias prenunciadoras de escândalo; e que o próprio Séneca atemorizado com a sua segurança e com os desgastes da reputação de Nero, tinha recorrido a uma mulher contra as seduções de outra mulher, mandando a liberta Acteia ter com ele para o advertir de que o seu incesto era de todos conhecido; que a sua mãe se vangloriava dele e os soldados estavam prestes a deixar de receber ordens de um príncipe sacrílego. Conta Fábio Rústico, porém, que este incestuoso desejo não foi de Agripina mas de Nero; e só por astúcia da escrava liberta não chegou a ser consumado. No entanto, o que Clúvio diz é relatado por outros autores, além de haver uma opinião geral inclinada no mesmo sentido: que foi de Agripina a ideia da enorme monstruosidade; e mais verosímil é a invenção do inacreditável deboche ter partido da mulher que se entregou ainda adolescente a Lépido, com a esperança de conseguir mais poder; que, arrastada por desejo idêntico, desceu até aos caprichos de Palas e, depois de casada com o seu próprio tio, a todas as infâmias foi impelida. Nero, por causa disto começou a evitar encontrar-se com a sua mãe a sós; felicitava-a quando ela se retirava para descansar nos seus jardins ou na casa de campo de Tusculum, ou nas suas terras de Antium. Mas acabou, estivesse ela onde estivesse a residir, por achá-la intolerável e decidir mandá-la matar. Só hesitava num ponto: fazê-lo com veneno, com ferro ou qualquer outro meio violento. Começou por se inclinar para a hipótese do veneno mas, a ser ministrado durante um banquete do príncipe, seria impossível falar-se de um acaso por já ter calhado a Britânico o mesmo fim; por outro lado parecia-lhe difícil subornar servidores de uma mulher habituada ao crime e vigilante contra os atentados; que além do mais tinha o costume de tomar antecipadamente antídotos para preservar o seu corpo. Quanto 156

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João o Evangelista, El Greco (1610-14).

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Dois irmãos, Tiago e João filhos de Zebedeu, o proprietário de uma frota que pescava nos mares da Galileia, desempenharam um relevante papel entre os discípulos de Jesus. Tinham almas em fogo, eram de uma fidelidade e de um entusiasmo que sobressaíam no grupo do Mestre. Mas João, o adolescente meigo que se transformava em «filho de trovão» nos momentos decisivos, teve o privilégio de um afecto paternal, o que lhe permitiu assistir à derradeira ceia com a cabeça reclinada no peito do homem que já pressentia a morte. Pedro, Tiago e João formaram o mais íntimo grupo de Jesus; e diz este João no seu livro que esteve presente em culminâncias da saga evengélica, como a ressurreição da filha de Jairo, a transfiguração ou a agonia no Gólgota. Morreu, ao que parece, com idade avançada (em 101 e em Éfeso, durante o reinado de Trajano) e teria no final da vida escrito esse Evangelho que poucos pontos de contacto ligam aos outros, sinópticos, de Mateus, Marcos e Lucas. No tempo de Victor Hugo dava-se por certo que o «Apocalipse» também era obra deste apóstolo. Hoje há fortes dúvidas a tal respeito. O chamado João de Patmos (porque o «Apocalipse» teria sido escrito na ilha do mar Egeu com este nome), a viver em exílio para se furtar à perseguição do imperador romano contra os cristãos, foi «arrebatado pelo Espírito Santo» (1, 10) e descreveu as suas visões, a sua «revelação», destinando-as às sete igrejas da Ásia Menor que hoje pertence ao território turco. João de Patmos tira o véu ao plano de Deus sobre o futuro do mundo e dos homens, segundo quer a leitura mais corrente deste texto de árdua interpretação, mesmo que se tenham presentes simbolismos pré-existentes em vários livros do Velho Testamento. 164

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Os extractos que seguem são os capítulos 10, 12, 13 e 18, e ainda os versículos 11 a 15 do capítulo 20.

A seguir vi outro anjo poderoso que descia do céu envolto por uma nuvem e com a cabeça rodeada pelo arco-íris. De rosto era como o sol, tinha pernas como colunas de fogo, e aberto na mão trazia um pequeno livro. Pousou o pé direito no mar, o esquerdo na terra, e com voz alta clamou como se um leão rugisse. Depois de ele gritar sete trovões soaram as suas vozes e, quando acabaram de falar e eu me preparava para escrever o que tinham dito, ouvi uma voz do céu: — Guarda o que os sete trovões disseram como um segredo, e não o escrevas. E o anjo que eu tinha visto de pé sobre o mar e sobre a terra ergueu neste momento a mão para o céu e, jurando por aquele que eternamente vive, o que foi criador do céu e de tudo quanto nele existe, do mar e de tudo quanto nele existe, declarou: — O tempo está a chegar ao seu fim. Mas só no dia em que for ouvido o toque da trombeta do sétimo anjo será cumprido o mistério de Deus segundo a boa nova que ele próprio anunciou aos profetas seus servos. E a voz do céu que já antes eu tinha ouvido voltou a falar-me: — Vai e recolhe o pequeno livro aberto na mão do anjo de pé sobre o mar e sobre a terra. Aproximei-me dele, pedi-lhe que me entregasse o livro, e respondeu: — Aqui o tens; come-o e ficarás com as entranhas cheias de uma amargura que na boca irá deixar-te a doçura de um mel. Da mão do anjo tirei o pequeno livro e comi-o; na boca era-me tão doce como o mel, mas depois de comido deixou-me as entranhas cheias de amargura. Foi-me então dito: João

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— Voltará a ser preciso que perante muitos povos, nações, línguas e reinos, profetizes. * Depois surgiu no céu um grande sinal: era uma mulher revestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e, na ânsia de dar à luz, gritava com as dores do parto. Apareceu então no céu outro sinal: um grande dragão vermelho com sete cabeças, dez cornos, e sete diademas nas cabeças. Com a cauda varreu um terço das estrelas e lançou-as sobre a terra. Parado à frente da mulher que estava prestes a dar à luz, preparava-se para lhe devorar o filho logo que nascesse; mas quando ela deu à luz um filho varão que se destinava a governar com ceptro de ferro todas as nações do mundo, de imediato foi-lhe arrebatado para junto de Deus e do seu trono. E a mulher, essa, fugiu para o deserto; para um lugar que Deus lhe tinha reservado e onde seria durante mil e duzentos e sessenta dias alimentada. Travou-se então no céu uma batalha: de Miguel e dos seus anjos contra o dragão, que tinha os seus próprios anjos a pelejar com ele. Mas porque foram vencidos, deixaram para todo o sempre de ter lugar no céu. Com os seus anjos, com essa antiga serpente a quem chamam Diabo ou Satanás e é senhor do todo o mundo, foi o grande dragão esmagado e atirado para cima da terra. E ouvi uma voz a clamar no céu: Está chegada a hora de vitória, de força e reinado do que é nosso Deus, e do poder do que é seu Messias. Porque — com o sangue do cordeiro, com a palavra do seu testemunho 166

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PAULO

A Conversão de São Paulo, Caravaggio (1600?).

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Imaginemo-lo perto dos trinta anos de idade e, ao contrário de Caravaggio, feio, baixo, entroncado, com cabeça pequena e calva, barba espessa, nariz aquilino, sobrancelhas unidas acima dos olhos, tudo para seguirmos a lição da Acta Pauli et Théclæ. Nascido em Tarso e chamado Saulo, este judeu de puro sangue teve como primeira profissão a tecelagem de panos da Cilícia. Mais tarde esteve à frente de um partido fariseu onde se mostrou extremista e exaltado; foi um dos entusiastas pela morte do diácono Estêvão divulgador do lado messiânico de Jesus, e um dos mais inflamados perseguidores da Igreja Cristã. De sinagoga em sinagoga, percorreu furiosamente Jerusalém exortando ao açoitamento e ao encarceramento dos fiéis a Jesus. E, tendo notícia de que em Damasco se formava uma sociedade destes fiéis, pediu cartas ao sumo-sacerdote Teófilo para lhe ser conferido o poder de os trazer amarrados e destinados a posterior condenação em Jerusalém. Atravessou a Itureia; e, afirma-se, ao meio-dia e já na estrada da grande planície de Damasco, foi de repente abalado por uma terrível comoção. Caiu do cavalo. Saulo tinha contemplado Cristo e tinha-o ouvido dizer: «Saulo, Saulo, por que me persegues?» Cego, foi conduzido a Damasco, e durante três dias teve febre; e, nessa febre, outras visões. Já livre da febre, da cegueira e das visões, foi baptizado: o cristianismo tinha ganho o seu mais fervoroso apóstolo. Impor-se com este novo fervor em Jerusalém, aos cristãos com memória viva dos seus anteriores excessos fanáticos e da sua militância anti-cristã, foi difícil. Barnabé, um conceituado chefe de um partido liberal apoiante da liberdade religiosa, ajudou-o junto dos renitentes discípulos de Jesus, e mais tarde chegou a encaminhá-lo para Antioquia. No ano 46 já estava a fazer 176

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uma grande viagem missionária. O Saulo hebreu era agora o Paulo latino e cristão. De viagem em viagem e com crescente prestígio, percorreu o Médio Oriente. Por fim, tão exaltado num tempo de perseguições romanas aos cristãos, foi preso, enviado para Roma e destinado aos tribunais de Nero, embora o Direito Romano não encontrasse motivo para lhe fazer qualquer acusação validada pelos seus artigos. No ano 66 voltou, no entanto, a ser preso; e um motivo que permanece desconhecido bastou para condená-lo à morte por decapitação com uma espada. A grandeza do Paulo epistológrafo só pode ser entendida pelo conjunto dos seus textos e com a singularidade das suas mensagens (muitas ao invés do preconizado nos primeiros tempos do cristianismo), escritas numa prosa sem grandes seduções de som e de estilo, e ditadas num grego onde os especialistas apontam imensos hebraísmos e sirianismos de difícil compreensão para um helenista clássico. A estas singularidades Nietzsche chamou uma «constante deslocação do centro de gravidade», uma «anulação do princípio do cristianismo primitivo», uma «teologia passada a nova teologia». Os extractos que seguem preocuparam-se apenas com a literatura: da «Carta aos Romanos» os versículos 1 a 24 do capítulo 2; da «Primeira Carta aos Coríntios» os capítulos 13 e 7; da «Segunda Carta a Timóteo» os versículos 1 a 9 do capítulo 3.

aos romanos: Não tens desculpa. Sejas tu quem fores, não tens desculpa se quiseres julgar os outros. Julgando-os, a ti próprio te condenas se apareceres como juiz que procede como eles. Sabemos que o juízo de Deus é exercido pela verdade contra os que desta forma actuam. Tu, homem, que fazes tanto como aqueles a quem julgas, cuidarás que foges ao juízo de Deus ignorando as riquezas da sua benignidade, da Paulo

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sua paciência, da sua tolerância, desconhecendo que só a sua bondade leva ao arrependimento? Por teres no coração dureza e impenitência acrescentarás a ira que é tua reserva quando o justo juízo divino se manifestar e a todos se impuser de acordo com o mérito das obras de cada um de nós. Vida eterna ele dará aos persistentes na busca da glória, da honra e da isenção; cólera e indignação mostrará aos contumazes, aos indóceis perante a verdade e aos que se entregarem à injustiça; a tribulações e angústias ele obrigará toda a alma que pratica o mal. Começará pelos Judeus. E só depois chegará aos Gentios. E a glória, a honra e a paz que reserva aos praticantes do bem de igual modo serão oferecidas a Judeus e a Gentios, já que uns de outros não distingue. Os que pecarem com ignorância da lei de Moisés por nada saberem dela, vão todos perecer; e os que pecarem com ela, com ela serão julgados por não nos bastar ouvir a lei para sermos justos perante Deus; para estarmos justificados teremos de observá-la. Os Gentios sem lei mas naturais cumpridores dos preceitos da lei, servirão a si próprios de lei mostrando que nas suas almas existe o que a lei escreveu; testemunho disto darão à sua consciência e aos seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os. Tudo será observado no dia em que Deus julgar os actos secretos dos homens através de Jesus Cristo e de acordo com a Boa Nova que anuncio. Chamas a ti próprio judeu; procuras descansar na lei de Moisés e mostras a tua vanglória por conheceres a Deus. Se assim é — por conheceres o que está na sua vontade, por estares instruído pelo que é sua lei, por saberes escolher o melhor, por te veres como guia de cegos, como luz dos que vivem nas trevas, preceptor dos ignorantes, mestre das crianças, tendo por norma de ciência e verdade a sua lei — como poderás ensinar outros sem dar a ti próprio idêntica lição? Tu, pregador contra os que roubam, és ladrão. Tu, condenador do adultério, também o cometes. Tu, que abominas os ídolos, chamas teu o despojo dos templos. Tu, orgulhoso por seres detentor da 178

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Dante, Gustave DorĂŠ (1860).

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Em Vita Nuova ele próprio fala de uma adolescência já devotada ao grande amor pela Beatrice do seu sonho vivo, a mulher que viria a morrer jovem e com outro homem por marido. Dante dei Alighieri consola-se desta paixão com amores venais: Lisetta, Gentucca e Pietra; com Gemma Donati, que foi sua mulher e lhe deu filhos; corpos ausentes da sua poesia, a não ser como obsessão por esse pecado da carne que assombra todos os cantos da Divina Comédia. Em 1289, quando ele tinha vinte e quatro anos de idade e combateu em Campaldino, onde Florença e a sua liga guelfa esmagaram os Gibelinos toscanos, já era poeta reconhecido como autor de um dolce stil nuovo. Depois, os Guelfos dividiram-se em «brancos» e «negros»; e Dante foi «branco», quer dizer, partidário da liberdade de Florença perante a Cúria Romana. Ora, os «negros» acabaram por vencer os «brancos», e ele foi condenado: a um exílio de dois anos, a não exercer cargos públicos, e a uma multa de quinhentos florins, condenação agravada com nova pena no mês de Março de 1302, agora a de ser queimado vivo. Valeu-lhe estar exilado em Roma, mas nunca mais regressaria à sua Toscânia: era a via dolorosa de alguém que não mais veria a sua pátria amada, do incurável apaixonado por uma mulher morta, do afectado pelas grandes perturbações intelectuais e religiosas que são fantasma em todos os cantos da Divina Comédia. Foi em Ravena, onde Guido Novello reinava como tirano (um tirano amigo das artes e das letras), que Dante encontrou o abrigo cómodo e derradeiro, até à malária que o matou em Setembro de 1321. A sua viagem ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso, cheia de episódios de forte sentido visual, esconde uma alegoria complexa e de interpretação até 186

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hoje controversa mas que é procura evidente de uma felicidade e de uma salvação na inteligência directa do mistério divino. Os dois extractos desta escolha pertencem ao «Inferno», primeiro e mais célebre livro no seu grande poema. Domingos José Enes (1836-1885) teve por grande ambição a carreira militar (e sonhos onde se via como militar-herói), mas a sua sofrível constituição física limitou-o à secretária administrativa que ocupou no Ministério da Justiça. Passaria grande parte dos seus ócios a traduzir para português a Divina Comédia, e deixou concluídas duas versões do «Inferno», a última publicada em 1887, dois anos depois da sua morte, numa edição monumental que teve tiragem em Portugal e no Brasil. Transcreve-se aqui o episódio sobre a passagem do Aqueronte, que Dante atravessa na companhia de Virgílio e ocupa o Terceiro Canto do poema. O outro «exemplo» — as últimas vinte e três estâncias do Quinto Canto com o episódio de Francesca de Rimini — devemo-lo a João de Deus (1830-1896), o poeta que Antero de Quental considerou precursor da «nova estética» apontada contra Castilho, mas também a voz sentimental do Campo de Flores e o conhecido autor da Cartilha Maternal; que um ano antes de morrer foi homenageado num sarau do Teatro Nacional, com a presença do rei, levado depois para sua casa num carro puxado por estudantes, e se mantém com o privilégio póstumo de um túmulo no Panteão dos Jerónimos.

«… Acabamos de entrar neste momento na mansão onde tu verás bem cedo os que perdem o bem do entendimento.» Travando-me da mão, com gesto ledo que os meus temores aplacou um tanto, deu-me entrada na estância do segredo.

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Aí, clamor, suspiros, brados, pranto, ressoavam pelo ar sem luz d’estrela; eu lágrimas verti de susto e espanto. Várias línguas de bárbara loquela, palavras de furor, confusa grita aguda ou rouca, e o som das mãos com ela, tudo nesse ar que a luz jamais visita se cruzava em tumulto, horrendamente, como as areias que o tufão agita. Eu, que sentia obscurecida a fronte co’as nuvens da vertigem, naquela hora disse: — «Ó Mestre, quem é a aflita gente?» — «Deste mísero modo geme e chora (disse ele) a multidão d’almas que avistas e viveram sem glória ou crime outrora. Com a falange angélica, estão mistas dos que ao Senhor não foram dedicados nem rebeldes: só foram egoístas. Os recantos do Céu são-lhes vedados; nem a furna infernal lhes abre o seio, para não terem glória os condenados.» Perguntei-lhe: — «Que triste devaneio os faz erguer lamentação tão forte?» Respondeu: — «De dizê-lo há fácil meio:

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RABELAIS

Rabelais, na gravura designada por «tipo Biblioteca Nacional».

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Dizendo o seu epitáfio que morreu com setenta anos de idade, deve ter nascido em 1483. Depois do latim que aprendeu em Seuilly e Angers, depois de passar pela filosofia escolástica, com perto de quarenta anos foi monge franciscano. Mas, como o convento não o tolerava (e não é arriscado dizer o contrário), associou-se à corte mundana do bispo de Maillezais e acompanhou-a em deslocações bem servidas e bem bebidas. Foi monge de versos, o que não se olhava como raridade na sua época. Houve então um curso de Direito em Poitiers, que alguma coisa dirá sobre a convicção dispensada aos seus afazeres monásticos; houve um curso de Medicina em Montpellier, que poderá fazer-nos crer que não via como melhor destino a prática da advocacia. Se Rabelais não passou de eclesiástico lateral e intermitente; se o seu saber de leis mais sátira literária forneceu do que sessões em tribunal, o seu saber em medicina fê-lo médico autêntico e com exercício confirmado em Lião. Era médico quando publicou Pantagruel em 1532 (desde logo condenado pela Faculdade de Teologia da Sorbonne) e em 1535 Gangântua, a vida do pai de Pantagruel (ambos revistos e modificados em 1541, para serem apaziguados sem êxito os censores da capital). Seguiram-se O Terceiro Livro (1546) e O Quarto Livro (1552) (este proibido pelo Parlamento de Paris). Um tão grande desaforo literário acabou por retirar-lhe os curatos de Meudon e de Saint-Christophe-du-Jambet, metásteses religiosas que lhe davam maior segurança perante os maus proventos da sua medicina errática. Esquecido pela intelectualidade do seu tempo, François Rabelais acabaria por morrer na miséria em 1553. E à sua obra somar-se-ia ainda o 198

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chamado Quinto Livro, póstumo, editado dez anos depois da sua morte mas com um texto que poderá não cumprir exactamente o que ele escreveu. Depois, o seu trabalho literário foi lembrado, ora com admiração, ora com azedumes onde espreitam a inveja e uma mal disfarçada moralidade ofendida. Já ele morto há trinta e tal anos, Pierre Boulenger apoiava-o e compreendia-o: «Nem bobo, nem charlatão da praça pública, mas o homem com alto e penetrante espírito que captou o lado ridículo das coisas humanas.» Pelo contrário, Voltaire explodiu: « É um filósofo bêbado, e só escreveu durante os períodos da sua bebedeira.» Com lucidez, Chateaubriand: «Rabelais criou as letras francesas. Montaigne, La Fontaine, Molière surgem como sua descendência. […] A morte de Rabelais só precedeu em quatro anos o nascimento de Shakespeare: e o bobo tem estatura para se medir com o trágico.» Os dois «exemplos» deste livro são extractos dos capítulos 25 a 45 de Gargântua, reproduzindo o essencial sobre a «guerra dos fogaceiros», e todo o capítulo 22 de Pantagruel.

[a guerra dos fogaceiros] Nesse tempo, que foi a época de vindimas e começo do Outono, os pastores da região ficavam a guardar as vinhas e a impedir os estorninhos de comer as uvas. E os vendedores de fogaças de Lerné na mesma ocasião passaram pela grande encruzilhada, levando à cidade dez ou doze carregamentos de fogaças. De forma cortês, os referidos pastores pediram que ao preço do mercado lhes vendessem a quantidade que o seu dinheiro pagava. Desde já se saiba que, para os atacados de prisão de ventre, é manjar celestial comer fogaças frescas com uvas ao almoço, sobretudo pretas, Rabelais

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dedos-de-dama, moscatéis, mijonas, arintos, porque a dois passos dados julgam que vão peidar-se e afinal cagam-se todos: por isso lhes chamam os julgadores do tempo das vindimas. Mas não só os fogaceiros não quiseram de forma nenhuma vergar-se ao pedido; dirigiram-lhes (o que é pior) grandes insultos, chamando-lhes arraia-miúda, desdentados, piolhos encardidos, patifórios, borra-botas, debochados, sonsos, calaceiros, lambões, pançudos, gabarolas, madraços, parolos, troca-tintas, parasitas, espirra-canivetes, braguilhas murchas, papalvos, engrunhidos, mal-amanhados, bolónios, simplórios, farçolas, pindéricos, parvajolas, medricas, vaqueiros de trampa, pastores de merda, e outros epítetos difamatórios da mesma veia, acrescentando que lhes não cabia comer boas fogaças, e deviam contentar-se com pão pobre e pastelões. Um deles, chamado Frogier e muito honesto homem de sua pessoa, com reputação de bom rapaz, a tais ultrajes com voz branda respondeu: — Desde quando vos nasceram cornos, para vos mostrardes tão feros? Diabo! Por hábito costumais dar-nos, e agora recusais. Não é de bons vizinhos, e assim não procedeis quando vierdes comprar aqui do nosso bom trigo candial, necessário aos vossos bolos e às vossas fogaças. E ainda por cima costumamos dar-vos das nossas uvas. Pela mãe de Deus! Bom será arrepender-vos, porque voltareis um destes dias a precisar de nós. Outrotanto faremos convosco, e disso deveis lembrar-vos! Nessa altura Marquet, grande bastonário da confraria dos fogaceiros, disse-lhe: — É bem verdade que esta manhã estás de crista ao alto; ontem à noite comeste milho de mais. Vem cá, vem cá, que eu dou-te da minha fogaça! Com a maior das simplicidades Frogier aproximou-se e tirou do talabarte numerário, a pensar que Marquet ia desembalar-lhe as fogaças, mas ele de modo tão rude lhe acertou nas pernas com o chi200

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Cervantes, retrato anónimo (século XVI).

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Conhecido por um nome intermédio, e não pelo último, Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em 1547 em Alcalá de Henares e era filho de um cirurgião marrano, a designação pejorativa dos judeus convertidos. Em 1564 estava em Sevilha, em 1566 em Madrid, e começava a somar peripécias não rejeitáveis por nenhum contador de aventuras. Com vinte e dois anos de idade feriu gravemente um tal Antonio de Seguro e, por determinação real, foram-lhe preconizados a amputação da mão direita, um desterro de dez anos e uma avultada multa. Cervantes fugiu a tempo para a Itália e, se salvou a mão direita do machado do algoz, dois anos depois inutilizou a esquerda com uma má ferida na batalha de Lepanto. Quando resolveu regressar a Espanha (que já lhe tinha perdoado o delito), fê-lo acompanhado pelo seu irmão Rodrigo. Mas, perto da Córsega, o navio que os levava foi atacado por piratas berberes. A Miguel e a Rodrigo calhou por destino a Argélia, a que mais tarde surgirá satirizada nas comédias El Trato de Argel e Los Baños de Argel; e, como todos os detidos que se prezam, planearam estratégias de fuga: houve várias e fracassadas. Um resgate acabou por ser negociado, que além de prever na transacção uma elevadíssima soma, só atingiria um dos irmãos. Por imposição de Miguel, é escolhido Rodrigo e posto em liberdade. Mais planos de fuga não tiveram, entretanto, êxito; e só outro resgate, também de alta soma, libertou Miguel e permitiu-lhe regressar a Espanha. Nesta altura surge o grande escritor: com La Galateia, que lhe rende mil e trezentos reais. É também celebrado por peças de teatro de que hoje se conhecem apenas os títulos. Teve amores: Ana Franca que lhe deu uma filha, Catalina de Salazar y Palacios um casamento com dote. Durante 220

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treze anos foi comissário em Sevilha para o aprovisionamento do exército. E se as suas inspirações literárias hostilizavam uma Igreja toda-poderosa e severa, e lhe valeram excomunhões de cabidos eclesiásticos, por outro lado as suas desregras materiais subiram ao calvário de muitas dívidas por liquidar, e mesmo à ruína de um banqueiro. Cervantes voltou ao cárcere, e desta vez com a solidão favorável à passagem para manuscrito da primeira parte do Don Quijote (só publicada quando ele tinha cinquenta e sete anos de idade). As Novelas Ejemplares são de 1613, Viaje del Parnaso de 1614, Ocho Comedias y Ocho Entremeses Nuevos de 1615, Trabajos de Persiles y Sigismunda (com um episódio passado em Portugal) é de 1617 e tem um destino de livro póstumo. Morreu em 23 de Abril de 1616, e está sepultado no convento dos trinitários descalços de Madrid. Os trechos traduzidos para este volume escolhem momentos do que é mais célebre e conhecido entre as aventuras dos seus dois heróis — as alucinações — e pertencem, respectivamente, aos capítulos VIII e XVIII da Primeira Parte de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha.

duas alucinações D. Quixote e os moinhos Nisto avistaram trinta ou quarenta moinhos de vento que naquele campo existem e, mal foram por D. Quixote vistos, ele disse ao seu escudeiro: — A sorte vai-nos guiando as coisas melhor do que poderíamos desejar; porque como vês ali, amigo Sancho Pança, avistam-se trinta ou pouco mais de trinta desmedidos gigantes a quem tenciono dar batalha e a todos tirar a vida, e com os seus despojos vamos começar Cervantes

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a enriquecer; porque esta boa guerra é, e grande serviço a Deus eu tirar tão má semente da face da terra. — Mas que gigantes? — disse Sancho Pança. — Os que ali vês — respondeu-lhe o amo — de braços compridos, e alguns costumam tê-los que vão quase às duas léguas. — Repare vossa mercê — respondeu Sancho — os que além vemos não são gigantes, mas moinhos de vento, e o que eles têm parecido com braços são as velas que, ao serem movidas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho. — Bem se vê — respondeu D. Quixote — que nisto das aventuras não estás versado; são gigantes; e se tens medo sai daí e põe-te a rezar, enquanto eu travo com eles feroz e dificultosa batalha. E dizendo isto esporeou o seu cavalo Rocinante, sem fazer caso dos gritos que o escudeiro Sancho soltava advertindo-o de que eram, sem dúvida nenhuma, moinhos de vento e não gigantes os que ia atacar. Mas tanta certeza ele tinha de serem gigantes, que não ouvia os gritos do escudeiro Sancho e, apesar de tê-los já tão perto, nem conseguia ver o que eram; ia pois dizendo em altos berros: — Não desateis a fugir, cobardes e vis criaturas, pois só um cavaleiro vos ataca. Nisto levantou-se um pouco de vento, as grandes velas começaram a mover-se e D. Quixote disse, quando tal viu: — Mesmo que mais braços do que o gigante Briareu1 façais mover, haveis de pagá-las. E ao dizê-lo encomendou-se do fundo do coração à sua senhora Dulcineia, pedindo que naquele transe lhe valesse; bem coberto pela rodela e com a lança em riste, a todo o galope do Rocinante arremeteu e investiu contra o primeiro moinho que tinha à frente; e, ao dar 1 Um dos Titãs que lutaram contra os deuses; segundo os Gregos, tinha cem braços. (N. do T.)

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Shakespeare, anรณnimo (1610).

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Foi terceiro, nos oito filhos de um fabricante de luvas que também negociava lãs, peles e cavalos. Nascido no ano 1564 e em Stratford-upon-Avon, e sem nunca ter frequentado (como Francis Bacon e Marlowe, dois outros escritores célebres do seu tempo) universidades de Cambridge ou de Oxford. Talvez tenha começado por trabalhar no negócio paterno porque houve quem se lembrasse dele a «matar vitelos com estilo, e a fazer um discurso enquanto a operação durava.» De onde lhe veio, afinal, o inglês magnífico, o talento da metáfora, a erudição? Se isto permanece um mistério maior na sua adolescência, é garantido que foi pai aos dezoito anos de idade e se casou apressadamente com uma mulher oito anos mais velha do que ele, filha de um agricultor abastado da região; que abandonou (talvez em 1587) esta família já acrescentada pelos dois gémeos Hamlet e Judith, e que cinco anos mais tarde era actor de teatro em Londres, na companhia de lorde Strange; que o seu maior trunfo, nesses dias, foi o favor de um conde de Southampton dedicado e, quase de certeza, com mãos largas e cheias de dinheiro. Durante a peste de 1593 perdeu-se-lhe o rasto; e talvez por os teatros de Londres não terem funcionado durante esse período, abrandou o que já era uma reconhecida competência como escritor para teatro e preferiu ser poeta de poemas. Em 96, a reabertura dos teatros voltou porém a mostrá-lo numa veia capaz de seis peças, todas estreadas nesse ano. Mais tarde, quando regressou a Stratford, já era autor de vinte peças teatrais e tinha influência social bastante para conseguir que ao seu pai fosse concedido o título de gentleman; e, na década seguinte, já era proprietário de terrenos e, nesses terrenos, de uma excelente moradia. 234

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Em 1609 houve um turvo ar de escândalo a passar sobre a publicação dos seus Sonetos: cento e vinte e seis que ele dedicava a um enigmático jovem, misteriosamente designado por W.H., os outros dirigidos a uma também enigmática Dama Negra. Quando, em 1613, o célebre Teatro do Globo foi incendiado com a bucha de um canhão da sua peça Henrique VIII, Shakespeare regressou a Stratford talvez abalado pelo acontecimento, mas de certeza com problemas de saúde. Teve mais três anos de vida e, pouco tempo antes de morrer, redigiu um controverso testamento que adoptava critérios inesperados ou mesmo absurdos para distribuir os seus dinheiros e os seus haveres. Também não deixou por mãos alheias a redacção do seu epitáfio, já que ele próprio decidiu o que lhe convinha e temperou com doçura mas também ameaça: «Querido amigo, por amor de Jesus renuncia à tentação de escavar o pó aqui encerrado. Bendito seja quem estas pedras poupar, e maldito quem meus ossos remover.» Desejo cumprido, e que teve a defendê-lo a enorme veneração que pesa, de palavra a palavra, sobre todo o seu teatro: o teatro «onde as fúrias do corpo», disse um dia Albert Camus, «conduzem a dança». Os seis momentos aqui reproduzidos são: de Richard III (1.º acto, 1ª cena), Romeo and Juliet (2.º acto, 3.ª cena), A Midsummer Night’s Dream (2.º acto, 1.º cena), Hamlet (1.º acto, 2.ª cena e 3.º acto, 1.ª cena) e The Tempest (5.º acto, 1.ª cena).

Richard, duque de Gloster: O Inverno do nosso descontentamento já faz, com este sol de York, um Verão de glória; e as nuvens que pesavam sobre a nossa casa foram todas sepultadas no seio fundo do oceano. Shakespeare

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Já estamos com a fronte cingida pelas coroas da vitória; as armas gastas temo-las penduradas como monumentos, temos os marciais alertas mudados por encontros jubilosos, as marchas execráveis por amenos compassos. A guerra de semblante fero alisou as rugas da sua fronte, e em vez de ele montar agora os corcéis de boa raça que assustam almas de inimigos receosos, dá graciosos saltos na alcova de uma dama, sob o lascivo encanto de um alaúde. Mas eu, que não talhado estou para alegres travessuras nem cortejar ao espelho uma apaixonada imagem; eu, de rude molde saído e não feito para o amor em majestade, sem poder empertigar-me ante dissolutas e langorosas ninfas; eu, que sou tudo menos belo em proporções de corpo, negado pela natureza às feições formosas, disforme, inacabado, antes do tempo nascido neste mundo dos que respiram, pouco mais do que meio feito e tão deformado, e fora do comum, que os cães ladram se junto deles me detenho, porque me não cabe, nesta frágil e pastoril estação de paz, como deleite gastar o tempo olhando para mais do que a minha sombra ao sol, e discorrer sobre o que é minha deformidade; porque não sou, na verdade, prestimoso para amante, nestes tempos de fala cortês estarei decidido ao papel de um vilão e a odiar prazeres nestes ociosos dias. Enredos construí, perigosas invenções com embriagadas profecias, libelos e sonhos, para lançar contra o rei o meu irmão Clarence, 236

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ÍNDICE

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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OS GÉNIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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EXEMPLOS . . Homero . . . Job . . . . . . Ésquilo . . . Isaías . . . . . Ezequiel . . . Lucrécio . . . Juvenal. . . . Tácito . . . . João . . . . . . Paulo . . . . . Dante . . . . Rabelais . . . Cervantes . . Shakespeare

Índice

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REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA DEPÓSITO LEGAL: 343398/12 IMPRESSO NA GUIDE — ARTES GRÁFICAS, LDA. RUA HERÓIS DE CHAIMITE, 14 ODIVELAS

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traduções de

Aníbal Fernandes António José Vale Basílio Teles Francisco Dias Gomes António José de Lima Leitão A. de S.S. Costa Lobo Domingos Enes João de Deus

Há homens-oceanos…

Victor Hugo OS GÉNIOS seguido de EXEMPLOS

Victor Hugo OS GÉNIOS seguido de EXEMPLOS

Victor Hugo OS GÉNIOS

seguido de EXEMPLOS


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