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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes ilustrações de
Pedro Proença
E não os fazendo a mulher isso que importa faça-os o homem pela via torta
Guillaume Apollinaire AS MAMAS DE TIRÉSIAS
Guillaume Apollinaire AS MAMAS DE TIRÉSIAS
Guillaume Apollinaire AS MAMAS DE TIRÉSIAS
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Guillaume Apollinaire
AS MAMAS DE TIRÉSIAS drama surrealista em dois actos e um prólogo
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes ilustrações de
Pedro proença
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TÍTULO DO ORIGINAL: LES MAMELLES DE TIRÉSIAS, DRAME SURRÉALISTE EN DEUX ACTES ET UN PROLOGUE
© SISTEMA SOLAR, CRL (2012) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES ilustrações © PEDRO PROENÇA 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2012 ISBN 978-989-8566-20-1
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O golpe do teu dedo no tambor solta todos os sons e começa uma nova harmonia. Rimbaud, «À une raison»
O espectador actual dificilmente cede, por razões de rejeição estética, à indignação violenta e colectiva. Reprova em silêncio, encena a sua indiferença, vive desde há muito tempo confrontado com inovações, provocações, evoluções, rupturas que todos os dias lhe desacalmam valores estabelecidos. Esta inquieta velocidade na arte, e toda a cultura que a tem como factor previsível, fazem hoje difíceis de compreender os momentos de agitação que a história regista como tentativas para derrubar o explorado e o esgotado, o que já só era tom e género em autores consagrados como uma instituição. Ocorre-nos uma frase de Théophile Gautier que estava, por razões de gosto e geração, bem colocado nestas batalhas que questionavam com agitação física as inovadoras criações do espírito; pode ser lida na sua Histoire du Romantisme: «Os ódios literários [e acrescentemos-lhes sem receio todos os artísticos] ainda são mais ferozes do que os ódios políticos porque põem a vibrar as fibras mais melindrosas do amor próprio, e o triunfo do adversário proclama-nos imbecis.» Porque se trata aqui do teatro e da França, relembre-se o que hoje se conhece por «batalha de Hernani». Em 27 de Fevereiro de 1830 Victor Hugo, louco de lirismo e de ardor torrencial, atreveu-se ao mais exacerbado dos romantismos com a peça Hernani ou l’Honneur Castillan. A intelectualidade bem instalada tinha como padrões indestronáveis da dramaturgia dessa época Casimir Delavigne e Scribe, e sentia a nova escola do Romantismo como ameaça ao seu Clacissismo. Logo no início da representação ergueu-se um surdo ruído de tempestade na sala, e toda a sessão se agitou com ditos, gestos e ameaças que dificultaram a audição dos actores. Victor Hugo saiu po7
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rém vencedor ao ter uma maioria rendida, uma imprensa prestigiada a considerá-lo grande voz da nova dramaturgia francesa. Um século mais tarde houve no teatro francês duas estreias, separadas apenas por trinta e sete dias, que também são memória de singular agitação e agressividade entre os seus espectadores: Parade, com texto de Jean Cocteau, música de Erik Satie, cenários de Pablo Picasso, e As Mamas de Tirésias. Em qualquer delas — com menor e maior proximidade do centro — Guillaume Apollinaire. * O seu avô polaco, camareiro de Pio IX, ofereceu-lhe um De Kostrowitzky para sobrenome; e a sua mãe — jovem rebelde com mau comportamento em colégios, pouco sensível a quase todas as virtudes que a religião do Vaticano proclama — só pôde registá-lo como filho de pai incógnito. Mas Wilhelm Alexander Apollinarius de Kostrowitzky era, como o seu irmão Albert (dois anos mais novo do que ele), filho de um italiano fogoso, galante, e com o nome respeitável de Francesco Luigi d’Aspromont; o que abandonou a sua conquista polaca quando outras fez, mais sedutoras, menos exigentes. Angelica Kostrowitzka decidiu então afastar-se do Vaticano e aproximar-se das roletas de Monte Carlo; frequentou alcovas de milionários de casino e foi sombra muito conhecida em mesas de jogo que lhe davam melhores e piores dias ditados pela sorte dos seus protectores. Afastou desta agitação nocturna os seus dois filhos; internou-os em colégios de Cannes e Nice pagos a partir de Roma por alguns d’Aspromont de bom coração. E anos mais tarde, com a sua reputação bastante gasta em Monte Carlo, apareceu em Paris. Chamava-se Olga Karpoff. Albert, o mais jovem dos dois irmãos, fez junto de Olga Karpoff um papel complacente; nas palavras desta mãe reconhecida era «o normal», «o sensato» e, claro está, por isto o preferido; o contrário dava-se com Wilhelm, tantas vezes entre amor e fúria perante os excessos da mãe mundana; o que se fez poeta boémio incapaz de uma vida de homem vulgar, mal alimentado por trabalhos como jornalista, como escritor «negro» de outros com falta de talento que lhes iluminasse a prosa. Olga Karpoff, sedutora competente, não tardou a reter junto de si um rico judeu alsaciano e a ser mantida com elegâncias que nunca conhecera nos 8
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seus tempos do Mónaco. Mas o filho boémio viveu longe deste luxo. Habitou em Montmartre mansardas de tecto baixo, teve amores ruinosos e bolsos onde rareavam moedas. Em 1907, um ano que ele viveu com grandes dificuldades financeiras, foi incitado a escrever dois romances anónimos, um não mais do que erótico e o outro, Les Onze Mille Verges, decididamente pornográfico. Só no ano seguinte fez a sua estreia como poeta: com L’Enchanteur Pourrisant já assinado por Guillaume Apollinaire. Pouco depois publicou La Chanson du Mal-Aimé, e em 1910 os contos de L’Hérésiarque et Cie, que escaparam por bastante pouco à consagração do Prémio Goncourt. Os seus melhores poemas estão em Alcools, o livro de 1913; na grande parte feridos por uma angústia que lhe não era conhecida e o marcou desde os seus cinco dias de prisão na Santé. Considerado cúmplice do belga Géry Piéret, seu amigo íntimo, mitómano amoral de fascinante convívio mas larápio de obras de arte com audácia para subtrair ao Louvre estatuetas antigas, e num momento de maior glória La Gioconda de Leonardo da Vinci, não soube perante o juiz desfazer as aparências que o incriminavam. «Grande é o meu tédio entre estas paredes nuas e pintadas com cores claras / Uma mosca no papel com passadas curtas», escreve num dos seus seis poemas da prisão. Foi libertado por testemunho escrito de Piéret, que jurava pela sua inocência, e por uma petição de intelectuais; mas este belga e estes dias de cárcere marcaram com a sua sombra, directa ou indirectamente, várias obras futuras (duas vezes a pressentimos em As Mamas de Tirésias). A poesia de Alcools chocou ouvidos treinados pelo lirismo do século XIX e foi zurzida sem piedade; tomada como prosa banal seccionada em versos por Paul Léautaud e Georges Duhamel. Mas Cendrars, Cocteau, Reverdy, Aragon, Soupault, estes souberam vê-la como importante desnormalização dos géneros, da sintaxe, como uma janela aberta que abalava suavidades simbolistas. Por muitos considerado vítima de um equívoco ou mesmo um caso de fraude, por muito poucos venerado como iniciador de uma nova forma de estar no discurso poético, Apollinaire conquistava bem mais os incrédulos quando dizia ele próprio os seus versos e os acrescentava com uma inesperada sedução. Louise Faure-Favier deteve-se nestes momentos em Souvenirs sur Apollinaire: «Dizia os seus versos de uma forma admirável, muito simples, com uma voz sem ornatos mas que lançava a todos os versos, a cada 9
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palavra, um sortilégio. Por causa disto todo o sentimento surgia cheio de profundidade, de emoção, de lirismo. E era uma harmonia nova que começava por nos surpreender e depois se fixava na nossa memória. Reparei, quando ele dizia os seus poemas, na expressão apaixonada do olhar, na melancolia.» Pouco depois, a atmosfera patriótica que a Primeira Grande Guerra Mundial activou convenceu-o de que convinha ao seu Kostrowitzky, de hostil sonoridade estrangeira, a redenção de um grande gesto patriótico e francês. Alistou-se como voluntário e foi recrutado para o 38º Regimento de Artilharia. Mostrou-se um poeta-soldado com disciplina e eficácia: em 1915 brigadeiro a servir na frente de batalha, num curto espaço de tempo segundo-sargento, e sem esperar muito alferes num regimento de infantaria. Não deixava, porém, de ser entre bombas um poeta; olhava-as como «um fogo de artifício de aço» e era capaz de escrever: «Como são belos estes foguetes que iluminam a noite / Sobem ao que é seu verdadeiro cimo e inclinam-se para observar / São damas com olhares que dançam para olhos braços e corações». No dia 14 de Março de 1916 este poeta foi sentar-se entre as árvores de um bosque de Berry-au-Bac e dispôs-se a ler o que diziam, no último número do Mercure de France, os intelectuais de Paris; teve por má sorte o crânio visitado por um estilhaço de granada alemã. Guillaume Apollinaire, já francês de nacionalidade, foi trepanado e voltou a Montmartre e a ser escritor. A inclassificável narrativa de Poète Assassiné é desta convalescença que fez dele herói idolatrado e voz reconhecida de uma nova geração. Depois, em 1917, escreveu o texto do programa do espectáculo Parade. * Parade foi a resposta teatral de Jean Cocteau a um incitamento de Sergei Diaghilev, director dos Ballets Russos: «Etonne-moi» (Espanta-me). «Será a maior batalha desta guerra», desejava Cocteau numa carta de exaltado entusiasmo. Eram vinte e cinco minutos sustentados pelo seu texto, pela música de Satie e pelos cenários de Picasso, mas com bastidores difíceis que pressentimos numa outra carta, esta a Valentine Gross: «Penetrando em brumas de aperitivos tenho de levar o caro Satie a compreender que qualquer coisa eu represento em Parade, e ele não se encontra lá sozinho com Picasso. Vejo Parade 10
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como uma espécie de renovação do teatro, e não como simples “pretexto” para música. Fico sentido quando ele, com berros e pancadas de pés no chão, diz a Picasso: “Eu sou-o, a si! É você quem me governa!” Isto sem parecer que ouve da sua boca coisas que eu já lhe disse e voltei a dizer. Escutará a minha voz? Talvez tudo isto não passe de um problema de acústica. Ou talvez eu exagere como os que estão doentes. Mas o cisne não tardará a fazer Satie compreender bastantes enigmas e a acalmá-lo no desmesurado ódio que a bicha lhe inspira. Chut! — Esteja ansiosa porque a obra avança, e é o principal. Picasso inventa maravilhas, e Satie tem a menina americana quase pronta.» Se o desejo de Cocteau era ver público considerar Parade como «obra que esconde poesias sob o grosso manto do guinhol», na sua noite de estreia só teve como resposta uma tumultuosa indignação. Os cenários cubistas, a música de ingénua sabedoria que conhecemos em Satie, encantaram um reduzido número de espectadores. Entre o público ouviram-se vozes que mandavam aqueles artistas para a frente de batalha, em vez de se divertirem em Paris; uma agitação passada assim ao tom-Cocteau: «Queriam matar-nos. Damas atiraram-se a nós com alfinetes de chapéu. Fomos salvos por Apollinaire porque trazia ligaduras na cabeça. Vestia farda e era respeitado; pôs-se à nossa frente como uma muralha.» E também ele na Vanity Fair: «Ouvi gritos de uma carga feita a baionetas na Flandres, mas nada era se a compararmos com o que nessa noite se passou no Teatro do Châtelet.» Trinta e sete dias mais tarde estreou-se As Mamas de Tirésias de Apollinaire, oportunidade que o seu autor nunca quis ver associada ao escândalo de Parade. Além do mais era um texto de 1903, dizia, apenas com um Prólogo e um desfecho de 1916, saiba-se embora que um sem-número de alterações foram propostas durante os ensaios e algumas referências (por exemplo a Picasso, por exemplo aos Ballets Russos) não podiam ser de catorze anos antes. No Prefácio do autor ler-se-á que se trata de um «drama», só assim chamado para se diferençar das «comédias» anódinas e, à falta de melhor, designadas por «peças». Ler-se-á também que é «surrealista», palavra que Apollinaire inventou e à qual reservou um sentido diferente daquele que o grupo de André Breton, aproveitando-a, viria a dar-lhe. Para ele, surrealista era a forma que alcança a verdade essencial das coisas, só exprimível com a ultrapassagem do naturalismo e da ilusão de óptica com que ele envolve o real. 11
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No entanto, estes pressupostos são mal ajustáveis a grande parte da clownerie que estará sempre presente numa versão cénica do seu texto. Os valores teatrais de As Mamas de Tirésias terão de garantir uma eficácia que defenda o seu texto loufoque, o termo popular que nos ocorre (e sem equivalente em português) para designar a loucura em desvario. As personagens de Apollinaire dizem «coisas sem pés nem cabeça», lamentou-se Paul Léautaud no seu Journal, o que não deixa de ser estranho ao propósito do autor, que é abordar o tema sério do «repovoamento». Já no princípio do século XX se dizia que os Franceses faziam poucos filhos, o que era problema grave para o país. As mulheres, seduzidas pela sua emancipação e pela oportunidade de ocuparem cargos tradicionalmente masculinos, repudiavam os entraves levantados pela maternidade e pelos afazeres domésticos. Na peça de Apollinaire, com acção num Zanzibar ambíguo e que duas personagens, Presto e Lacouf, nos fazem crer que também pode tratar-se de Paris, com uma selva que também pode ser urbana, uma mulher desfaz-se da feminilidade para visitar o mais apetecível da condição masculina; um homem reage a este grito de liberdade visitando também o mundo feminino para mostrar ao mundo que pode ter filhos e fazê-los sem ajuda física de uma mulher. Nunca é dada ao espectador explicação sobre a viabilidade prática destes dois propósitos, e pede-se apenas que seja cúmplice na sucessão de non-senses que alimentam uma veia loufoque e os tiques de um teatro de circo. Na cena final a mulher e o homem regressam arrependidos aos valores tradicionais do sexo, os que permitem ao país um normal «repovoamento». E não é Tirésias, o adivinho cego que encontramos na Odisseia de Homero, quem serve esta inspiração de Apollinaire; precisamos de recorrer a Metamorfoses de Ovídio onde esse mesmo Tirésias, nascido homem, durante alguns anos se transforma em mulher para comparar, com experiência pessoal, a qualidade do prazer sexual dos dois sexos. No entanto, o Tirésias de Apolinnaire faz a sua mudança de sexo num sentido inverso ao do Tirésias de Ovídio e parece não ter a curiosidade sexual como objectivo, só a conquista de privilégios públicos e privados que, naquela época, eram apenas do homem e dificilmente concedidos a uma mulher. Apollinaire tinha sonhado para o seu espectáculo um palco e actores famosos, música de Erik Satie ou de George Auric, cenários de Picasso, mas 12
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nada disto conseguiu. Sujeitou-se ao Teatro Renée Maubel em Montmartre, que era modesto e entalado entre casas vulgares da rua De l’Orient, a actores desconhecidos (com excepção de Louise Marion no papel de Teresa), à música de Albert-Birot tocada em piano por Niny Guyard, a cenários de Serge Ferat. O programa tinha, no entanto, características invulgares: capa de Picasso, e no interior uma gravura em madeira de Matisse, poemas de Max Jacob, Reverdy, Pierre-Albert Birot e Jean Cocteau. Ao tumulto de Parade foi dada uma réplica com a estreia de As Mamas de Tirésias. Mais divertimento teatral do que reconhecível obra dramática (se lhe fossem aplicadas as regras que vigoravam no género), teve direito a apupos e a gestos agressivos, não só do público anónimo que enchia a sala, mas de um grupo de Cubistas que julgaram a sua escola insultada. Jacques Vaché, espectador apoiante de Apollinaire, foi impedido por André Breton de dar dois tiros de pistola para o ar. Léo Poldès veio a queixar-se deste modo em La Grimace: «Poeta visionário e ingénuo, Guillaume Apollinaire incomodou a crítica, o Todo-Paris das estreias, os pintalgadores da Butte e os bêbados de Montparnasse, para assistirem à mais extravagante, à mais insensata das elucubrações do Cubismo; isto enquanto O Mercador de Veneza saía do cartaz no Teatro Antoine por falta de espectadores. Melhor ainda: no momento em que falta papel à imprensa de opinião, quando os jornais independentes se vêem sob a ameaça de desaparecerem, quando o pensamento livre é perseguido, vê-se numa revista chamada Sic, impressa luxuosamente com caracteres novos e elegantes, fantoches deliquescentes do cubismo integral, palhaços da pena como Albert-Birot e Jean Cocteau, saquearem miseravelmente o papel atribuído aos escritores com orgulho de combaterem por uma ideia.» Foi precisamente nesta revista Sic que o jovem Louis Aragon (futuro surrealista e, depois disso, comunista bravio) olhou para a peça de Apollinaire como representante da geração nova e já a preparar-se para a crista da onda do pós-guerra: «As Mamas não têm lugar à parte na obra de Apollinaire. Reencontramos ali o lirismo da Chanson du Mal-Aimé e a fantasia do Poète Assassiné. O poeta é subtil a fingir que toma a sua flauta-de-pã por uma gaita popular. Até a rima é risível, reduzida a uma intenção cénica. Trata-se do teatro, do teatro desta época. Divertir-nos é o único propósito do dramaturgo, 13
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um criador de ilusões que não quer ver-nos desesperados: a vida basta para nos aborrecer, o pessimismo deixa de ser deste tempo. Mas não separa o teatro da vida. O tema é de hoje: não se trata, afinal, de uma peça escrita para nós? Põe em evidência a lição da guerra e moraliza de uma forma idêntica à que utiliza para rimar: divertindo-nos. As Mamas liberta-nos, enfim, do teatro de bulevar… Se o cinema já nos tinha dado Charlie Chaplin (e não será As Mamas o que ele costuma interpretar?) Apollinaire deu-nos Tirésias. «Para nosso júbilo pessoal, os pedantes de colégio não se impediram de falar obscuramente do claro génio francês. Estejam à vontade, senhores: não é sem razão que o autor invoca Mestre Pathelin e que eu aproximarei de Bourgeois Gentilhomme a cena do Acto Segundo entre O Marido e O Jornalista. «Os cenários de Serge Ferat evocavam, sem tornar precisos, Zanzibar e Paris no quadro fantástico de casas que procuram o infinito. Uma moralidade musical acrescentou alguma tristeza aos revólveres muito divertidos, ao acordeão, à gaita de foles e à louça partida. Max Jacob e Paul Morisse deram força aos coros, como se eles fossem anjos perdidos no meio dos homens. E a sala, em peso, emprestou à peça a música dos seus sentimentos. «Não estava lá ninguém que soubesse dar a esta manifestação o seu verdadeiro sentido, e pintores houve (alguns, ingratos, desataram mesmo a rir-se) que julgaram seu dever protestar. Nem Matisse, nem Derain, nem Picasso, nem Braque, nem Léger lá estiveram. As Mamas foi comparado a Ubu Roi e a Parade. Mas não tiveram razão: eles é que deviam ser comparados às Mamas de Tirésias. «Vou recordar-me sempre desta tarde de 24 de Junho de 1917 como uma jovialidade única que me permite o presságio de um futuro para um teatro liberto da preocupação de filosofar.» * O herói trepanado agitou a intelectualidade parisiense com As Mamas de Tirésias. Apesar de a sua peça se anunciar «surrealista», foi associada ao movimento cubista, considerado por quase todos uma incompreensível vanguarda. Um grupo de cubistas de segunda linha (onde o nome Juan Gris destoava) pôs a circular um protesto: «Nós, pintores e escultores cubistas, protestamos contra a 14
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desagradável ligação que se pretende estabelecer entre as nossas obras e certas fantasias literárias e teatrais que não está nos nossos propósitos julgar.» Apollinaire respondeu a Gris: «Aviso-te de que a nossa amizade termina. […] Não admito que em nome de um qualquer princípio se exclua de um cantão, seja ele das artes ou das letras, esta ou aquela estética. […] Vindo de ti, levo o caso muito a sério. Nunca abandonei os meus amigos nos momentos críticos; se eles me abandonam no momento em que me sentem atacado, deixam de ser meus amigos. Por isto te digo adeus.» E Jean Cocteau em La Difficulté d’Être: «A sessão punitiva de As Mamas de Tirésias deixou nele uma mágoa. Durante muito tempo esteve preso por um fio de papagaio voador.» Vários dias na Bretanha, as provas tipográficas de Calligrammes, os versos de Vitam Impendere Amori, distraíram-no do incidente de Tirésias. Não tardou, porém, que esta acalmia fosse interrompida pelo seu regresso ao hospital Villa Molière, o cenário onde o tinham trepanado, desta vez para o tratarem de uma congestão pulmonar. Depois, em plena convalescença casou-se. Ela era ruiva e formosa, chamava-se Jacqueline Kolb, e no espaço curto de cento e noventa e um dias teve-o como marido. A Guillaume Apollinaire foi dado tempo para escrever o libreto da ópera-bufa Casanova, com música de Henry Defosse, para terminar o drama La Couleur du Temps, mas não para enfrentar com melhores condições físicas a tristemente célebre «gripe espanhola» que em todo o mundo matou cinquenta milhões de pessoas. Jean Cocteau, ainda emocionado, relembrou-o na revista Sic: «Apollinaire tinha sempre uma gota de tinta a tremer perigosamente na ponta da caneta. A gota caía e estrelava o poema. Quando me tornei seu amigo ele já era gordo e um tanto atreito a doenças, mas vi-o depois jovem: no leito de morte. Picasso agarrava num candeeiro e dizia-me, a iluminar um rosto admirável, de perfil, magro e muito jovem: “Repara, está como no primeiro dia em que nos encontrámos.” Apollinaire, o seu andar, o seu cachimbo, os seus risos atrás da mão, o seu mindinho erguido, deixámo-los no Père-Lachaise num dia de grande festa nacional. O Apollinaire que atormentava e enfeitiçava as musas ficará connosco, sem a morte poder atingi-lo.» As Mamas de Tirésias sobe de vez em quando a um palco; o seu texto, datado e regionalizado, resiste pelo que não se espera nele: a ausência de 15
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uma intriga, uma meditada desarticulação dramática, o absurdo do texto e das situações cénicas, momentos de uma rima voluntariamente ingénua e de tom popular. Em 1944 seduziu Francis Poulenc, e a ópera saída desta sedução permitiu-lhe, a partir de uma grande liberdade, outra grande liberdade na sua criação. Como Apollinaire, em 1917, teve a reacção de um desconforto no público; mas valeram-lhe saudações da crítica e até mesmo a glória de ser comparado, nas suas qualidades melódicas, ao Maurice Ravel de L’Heure Espagnole. Há, no entanto, outro referenciável encontro póstumo, e desta vez no cinema; o que entusiasmou Denis Bordat e Bernard Veck no seu Apollinaire de 1983: «Jogando o jogo de Apollinaire, Jean-Christophe Averty iria introduzir no seu espectáculo todos os achados, todas as buscas que conseguiu fazer no cinema e na televisão. Os efeitos especiais eram de Max Debrenne, a animação mecânica de Jean-Claude Cassel, o grafismo de Roger Daurillier, os cenários de Gilbert Drolot, a música de Claude Bolling e Daniel Humain. J.-C. Averty soube no seu espectáculo misturar o rigor de um ritmo rápido, a alternância das cenas burlescas intimamente encastradas no propósito sério do poeta. As imagens da guerra que nos ofereceu, as estrelas apagadas e reacendidas, serviram de uma forma admirável a poesia de Apollinaire, tal como a riqueza das cores. O sub-título da revista Sic tinha sido “som-ideias-cores-forma”, as quatro direcções que encontramos no espectáculo de Averty. Lendo estas linhas de Apollinaire — “Não obstante, da vida que interpreta o teatro já só tem aquilo que a roda tem de uma perna. E na minha opinião é legítimo, por consequência, que sejam levadas ao teatro novas e surpreendentes estéticas capazes de acentuar o carácter cénico das personagens e aumentar a pompa da encenação, sem ser no entanto modificado o patético ou o cómico de situações que a si próprias devem bastar-se.” — este género de realização parece ser, de facto, o que ele esperaria; liberta dos constrangimentos do teatro à italiana e que estão, como o seu Prólogo nos diz, ultrapassados.» A.F.
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Sem reclamar indulgência faço notar que isto é uma obra de juventude, porque só o Prólogo e a última cena do Acto Segundo são de 1916 numa obra feita em 1903, quer dizer, catorze anos antes de ser representada. Chamei-lhe drama, o que significa acção destinada a estabelecer aquilo que a separa destas comédias de costumes, comédias dramáticas, comédias ligeiras, que fornecem desde há mais de meio século obras ao palco, muitas excelentes mas de segunda ordem, e às quais se chama simplesmente peças. Para caracterizar o meu drama servi-me de um neologismo que terá perdão, porque tal coisa raramente me acontece, forjando o adjectivo surrealista que nada significa de parecido com simbólico, como supôs Victor Basch no seu folhetim dramático, mas define bastante bem uma tendência da arte que já não sendo nova, como tudo o que existe debaixo do sol, pelo menos nunca serviu para formular um credo, uma afirmação artística e literária. O idealismo rasteiro dos dramaturgos que sucederam a Victor Hugo procurou verosimilhança numa cor local de convenção, semelhante ao naturalismo com ilusão de óptica das peças de costumes que têm uma origem possível de encontrar, muito antes de Scribe, na comédia lacrimosa de Nivelle de la Chaussée. E para eu tentar fazer, não direi uma renovação do teatro mas pelo menos um esforço pessoal, pensei que me seria necessário regressar à natureza autêntica sem a imitar, porém, à maneira dos fotógrafos. Quando o homem quis fazer uma imitação do andar criou a roda, que não se parece com uma perna. Sem ter consciência disso, fez assim surrealismo. É impossível, contudo, eu decidir se este drama é ou não sério. Tem como objectivo interessar e divertir. O que é objectivo de toda a peça tea19
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tral. Tem de igual modo como objectivo dar relevo a um problema vital para os que compreendem a língua em que foi escrito: o problema do repovoamento. Com este tema, que nunca foi tratado, eu teria podido fazer uma peça no tom sarcástico-melodramático que os fazedores de «peças de tese» puseram na moda. Preferi um tom menos sombrio por não pensar que o teatro deva causar, a quem quer que seja, desespero. Também teria podido escrever um drama de ideias e ir ao encontro do gosto do público actual, a quem é grato ter a ilusão de que está a pensar. Gostei mais de dar livre curso a esta fantasia que é a minha forma de interpretar a natureza, fantasia que em mim se manifesta com maior ou menor melancolia, sátira e lirismo, dependendo dos dias, mas sempre e na medida do que me for possível com um bom senso em que há por vezes novidade bastante para poder chocar e indignar, mas que será visível aos de boa fé. Na minha opinião é um tema tão comovente, que à palavra drama nos permite dar o seu sentido mais trágico; mas estará nas mãos dos Franceses fazer com que esta obra, desde que voltem a fazer filhos, possa a partir de então chamar-se farsa. Nada conseguiria dar-me uma alegria mais patriótica. Não haja dúvidas: a reputação de que o autor da Farsa do Mestre Pierre Pathelin disfrutaria, se acaso lhe soubéssemos o nome, tira-me o sono. Foi dito que utilizei meios usados no teatro de revista: não vejo bem em que momento aconteceu. É porém uma censura sem nada que possa criar-me incómodo, porque a arte popular é um excelente fundo, e honra eu teria de ali me ter inspirado se todas as minhas cenas se não encadeassem naturalmente, de acordo com a fábula que imaginei, e a situação principal — um homem que faz filhos — não fosse nova no teatro e nas letras, em geral, embora não deva por isto chocar mais do que certas impossíveis invenções dos romancistas com um êxito baseado no maravilhoso a que se chama científico. Quanto ao resto nenhum símbolo existe na minha peça, que é muito clara, embora haja liberdade para se verem lá todos os símbolos que quisermos e, como nos oráculos sibilinos, para lhe destrinçarmos mil sentidos. 20
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Victor Bash, que não compreendeu ou não quis compreender que se trata do repovoamento, insiste em que a minha obra é simbólica; tem esse direito. Mas acrescenta «que a condição principal de um drama simbólico é ter imediatamente discernível a relação entre o símbolo, que é sempre um sinal, e a coisa significada». Nem sempre, de facto, e há obras notáveis com um simbolismo justamente adaptável a numerosas interpretações que às vezes se contrariam. Acima de tudo, o meu drama surrealista foi escrito para os Franceses, como Aristófanes compôs para os Atenienses as suas comédias. Assinalei-lhes o grave perigo, por todos reconhecido, de uma nação que deseja ser próspera e poderosa não fazer filhos, e indiquei como remédio que bastar-lhe-ia fazê-los. Deffoux, escritor espiritual embora com um ar de maltusiano retardado, fez não sei já que aproximação absurda entre a borracha de que são feitos os balões e as bolas com o papel de representarem mamas (talvez seja aqui que Basch vê um símbolo) e certas vestimentas que o neo-maltusianismo recomenda. Para ser franco nada têm a ver com a questão, por não haver país onde se usem menos do que na França; ao contrário de Berlim, por exemplo, onde todos os dias nos caem na cabeça quando passeamos nas ruas, de tal forma grande é o uso que os Alemães, raça ainda prolífica, deles fazem. Outras causas a que se atribui o despovoamento, sem ser a gravidez limitada através de meios higiénicos, por exemplo o alcoolismo, existem em todo o lado e em proporções mais vastas do que na França. Num livro recente sobre o álcool não fazia Yves Guyot notar que a França está em primeiro lugar nas estatísticas sobre o alcoolismo, e que a Itália, país notoriamente sóbrio, é posta em segundo lugar? Isto pemite medir a fé com que podemos ler as estatísticas! São mentirosas, e bem loucos os que nelas se fiam. E não é por outro lado notável que as províncias francesas onde mais filhos se fazem sejam justamente as que vêm em primeiro lugar nas estatísticas do alcoolismo? Mais grave é o erro, mais profundo é o vício, por a verdade ser esta: na França não se fazem mais filhos porque não se faz nela amor que para tanto chegue. O problema resume-se a isto. 21
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Contudo, não vou alargar-me mais sobre o tema. Seria necessário todo um livro e modificar os costumes. Compete aos governantes actuar, facilitar os casamentos, acima de tudo encorajar o amor fecundo; e outros pontos importantes, como o do trabalho infantil, serão assim facilmente resolvidos para o bem e para a honra do país. Para voltar à arte teatral, no Prólogo desta obra serão encontrados os traços essenciais do dramaturgo que eu proponho. Acrescento que a arte deste drama será, na minha opinião, moderna, simples, rápida, com os encurtamentos ou os acrescentos que se impõem se quisermos atingir o espectador. O tema será bastante lato, para a obra dramática de que ele é fundo poder influenciar os espíritos e os costumes no sentido do dever e da honra. O trágico suplantará o cómico ou o contrário, conforme os casos. Mas não penso que seja de ora em diante possível suportar-se sem impaciência uma obra teatral onde estes elementos se não contraponham; a energia que existe na actual humanidade e nas jovens letras contempotâneas é de tal ordem, que a maior desgraça surge desde logo como tendo a sua razão de ser e podendo, não só ser olhada sob o ângulo de uma afável ironia que nos faz rir, mas ainda sob o ângulo de um verdadeiro optimismo desde logo consolador e capaz de permitir que a esperança aumente. Não obstante, da vida que interpreta o teatro já só tem aquilo que a roda tem de uma perna. E na minha opinião é legítimo, por consequência, que sejam levadas ao teatro novas e surpreendentes estéticas capazes de acentuar o carácter cénico das personagens e aumentar a pompa da encenação, sem ser no entanto modificado o patético ou o cómico de situações que a si próprias devem bastar-se. Para concluir acrescento que não tenho de forma alguma pretensão de fundar uma escola quando solto das veleidades literárias contemporâneas uma certa tendência que é minha; e quero acima de tudo protestar contra esse teatro com ilusão de óptica que constitui a maior parte da arte teatral de hoje. Esta ilusão de óptica convém ao cinema, sem dúvida, mas vejo-a como o que existe de mais contrário à arte dramática. Na minha opinião o único verso que convém ao teatro é, acrescentarei eu, um verso ágil baseado no ritmo, no tema, no sopro que o anima, 22
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PRÓLOGO
À frente da cortina, o Director da Companhia vestido com uma casaca e a empunhar uma bengala de trincheira1, sai do buraco do ponto.
Cena Única O director da companhia Aqui estou de novo ao pé de vós Reencontrei a minha ardente companhia E encontrei também um palco Mas redescobri com mágoa A arte teatral sem grandeza sem virtude Que fazia antes da guerra passar as noites longas Arte caluniadora e deletéria Que deixava à mostra o pecado e não o redemptor Depois chegou o tempo o tempo dos homens Andei na guerra como todos os homens Foi o meu tempo na artilharia A comandar na frente do norte a minha bateria E no céu de uma noite o olhar das estrelas Palpitava como o olhar dos recém-nascidos Da trincheira adversa saíram mil foguetes Que acordaram de repente os canhões inimigos
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Maneira irónica de se designarem as espingardas, na época da Primeira Guerra Mundial (N. do T.)
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De tudo me lembro como se fosse ontem Eu ouvia tiros que saíam mas que não chegavam Quando apareceu a cavalo o trombeteiro Vinha do observatório de artilharia dizer-nos Que o segundo-sargento apontava armas Ao fulgor dos canhões inimigos A alidade do triângulo de mira mostrava-nos Como era muito vasto o alcance das peças Porque nenhum rebentamento se ouvia Os meus artilheiros atentos nos seus postos Anunciaram que as estrelas se apagavam uma a uma E depois ouvimos toda a tropa soltar grandes gritos eles apagam as estrelas a tiros de canhão As estrelas morriam nesse belo céu de Outono Como a memória se apaga no cérebro Dos pobres velhos que tentam recordar-se Estávamos a morrer ali com a morte das estrelas E na frente tenebrosa de lívidos clarões Não sabíamos com tanto desespero o que dizer até as constelações eles já assassinaram Mas do pavilhão de um megafone chegou uma voz forte Vinha de um qualquer posto de comando E a voz do capitão desconhecido que nos salva sempre Gritou vai sendo tempo de reacender as estrelas A grande frente francesa fez-se toda um grito
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às bocas de fogo sem restrições Os serventes apressaram-se Os artilheiros apontaram Os atiradores atiraram E os astros sublimes voltaram a acender-se Uns atrás dos outros Com as nossas granadas a inflamarem o seu ardor eterno A artilharia inimiga calava-se fascinada Com o cintilar de todas as estrelas É mesmo é mesmo esta a história de todas as estrelas E desde essa noite também eu acendo Uns após outros Os astros interiores que foram apagados E aqui estou de novo ao pé de vós Tem paciência minha companhia Público espera sem impaciência O objectivo da peça que vos trago é reformar os costumes Trata-se dos filhos na família É um tema doméstico Por isto tratado num tom familiar Sem actores a falar num tom sinistro Eles só querem pedir-vos bom senso E desejam sobretudo divertir-vos Para ficardes bem dispostos e serem proveitosos Os ensinamentos que a peça contém Fique todo o chão estrelado com o olhar de recém-nascidos Ainda mais numerosos do que a cintilação das estrelas
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Escutai Franceses a lição da guerra E fazei filhos porque não muitos costumais fazer Tentarei introduzir no teatro um novo espírito Uma alegria uma volúpia uma virtude Que ocupem o lugar do pessimismo mais que centenário E que já durou de mais sendo uma coisa que aborrece tanto A peça foi feita para um palco antigo Porque ninguém nos construiria um teatro novo Um teatro com dois palcos circular Um ao centro o outro como que a formar anel Em redor dos espectadores e que permitiria A grande expansão da nossa arte moderna Que tantas vezes casa como acontece na vida Sons gestos cores gritos ruídos Música dança acrobacia poesia pintura Coros gestos e os cenários múltiplos Sem nenhum elo aparente Encontrareis aqui movimentos Que acrescentam o drama principal e o enfeitam Mudanças de tom desde o patético ao burlesco E não só o racional emprego dos inverosímeis Mas actores individuais ou colectivos Não necessariamente extraídos da humanidade Mas a todo o universo Porque ao teatro não convém uma arte com ilusões de óptica É justo que o dramaturgo utilize Todas as miragens que tem ao seu dispor Como a Morgana no Monte Gibel E é justo que ele faça falar as multidões os objectos sem vida Se para aí lhe der 32
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Comem presunto de York E ficam assim mais formosas O Marido Pois as damas de Paris São entre todas mais belas E gosta o gato da rata Como nós gostamos delas A Cartomante Ou seja das ratadelas TODOS (Em coro) Cantai logo de manhã e à noite cantai também Podeis de igual modo coçar-vos se tiverdes comichão Gostai mais do cor-de-rosa gostai mais do vermelhão Porque existe mais deleite quando há variação Basta nós estarmos atentos Basta prestar atenção A Cartomante Castos cidadãos de Zanzibar Deixastes de fazer filhos Mas ficai sabendo que a fortuna e a glória As florestas de ananases as manadas de elefantes Em tempos que já aí vêm Pertencerão por direito Aos que fizeram infantes (Todas as crianças do palco e da sala começam a gritar. A Cartomante vai lendo cartas que caem no palco. Depois as crianças calam-se) O senhor que é tão fecundo (Ao Marido) O Marido e O Polícia Fecundo fecundo 79
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A Cartomante (Ao Marido) Ficará dez vezes milionário (O Marido cai e senta-se no chão) Quanto ao senhor porque não faz nenhum filho (Ao Polícia) Morrerá numa horrível miséria O Polícia A senhora insulta-me Em nome de Zanzibar Dou-lhe ordem de prisão A Cartomante Põe as mãos numa mulher não tem vergonha (Arranha-o e mata-o por estrangulamento. O Marido oferece-lhe um cachimbo) O Marido Fume a minha cachimbeira Que eu faço-lhe um solo de flauta Mas fique a saber a Padeira Mudava às vezes de pauta A Cartomante E então ficava exausta O Marido Assassina Vou entregá-la sem mais demora ao comissário
Teresa (Desfazendo-se dos atavios de cartomante) Querido marido tu não estás a reconhecer-me
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O Marido Tu és a Teresa ou então és o Tirésias (O Polícia ressuscita) Teresa Foi garantida ao Tirésias uma posição brilhante À frente do Exército no Parlamento na Assembleia Municipal Mas podes ficar sossegado Porque um transporte ambulante Vai trazer-nos o piano o violino aquilo que nos garante o sustento E ainda três influentes senhoras de quem sou agora amante O Polícia Fico agradecido por se lembrar de mim O Marido Meu general meu deputado Desculpa ó Teresa por eu me ter enganado Mas estás chata como um percevejo esmagado Teresa Não faz mal colhe o morango Com a tua flor de bananeira Vamos caçar o elefante à moda zanzibaresa Vem daí comigo para reinares No coração da tua Teresa O Marido Teresa Teresa Trono ou caixão vai tudo dar ao mesmo Se não nos amarmos já vou sucumbir Antes de o pano cair 82
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O Marido Querida Teresa não podes continuar Tão chata como um percevejo esmagado (Tira de dentro de casa um conjunto de balões e uma cesta com bolas) Aqui tens tu um excelente sortido Teresa Se tu e eu soubemos sem ele passar Vamos assim continuar O Marido Tens razão não vamos complicar nada Vamos já dar a trancada Teresa (Solta os balões e atira as bolas aos espectadores) Levantai voo pássaros da minha fraqueza Correi a dar alimento a todos os filhos do repovoamento TODOS (Em coro) (O povo de Zanzibar dança e sacode guizos) Cantai logo de manhã e à noite cantai também Podeis de igual modo coçar-vos se tiverdes comichão Gostai mais do cor-de-rosa gostai mais do vermelhão Porque existe mais deleite quando há variação Basta nós estarmos atentos Basta prestar atenção PANO
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ÍNDICE
Apresentação, Aníbal Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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AS MAMAS DE TIRÉSIAS Prefácio, de Guillaume Apollinaire . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
19
As mamas de Tirésias Drama surrealista em dois actos e um prólogo. . . . . . . . . . . . . Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acto Primeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acto Segundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA DEPÓSITO LEGAL: 351740/12 IMPRESSO NA GUIDE — ARTES GRÁFICAS, LDA. RUA HERÓIS DE CHAIMITE, 14 2675-374 ODIVELAS
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Aníbal Fernandes ilustrações de
Pedro Proença
E não os fazendo a mulher isso que importa faça-os o homem pela via torta
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Guillaume Apollinaire AS MAMAS DE TIRÉSIAS
Guillaume Apollinaire AS MAMAS DE TIRÉSIAS