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Edmond Jaloux: «Fiquei estupefacto.»
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TÍTULO ORIGINAL: DAVID GOLDER
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: HONORÉ DAUMIER, OS BEBEDORES DE CERVEJA (PORMENOR), 1858 REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO 2012 2.ª EDIÇÃO, DEZEMBRO 2012 ISBN 978-989-8566-21-8
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Neste continente, e com gente civilizada de um século XX quase a meio, houve campos de concentração. Berlim sonhava uma Europa ariana e de supremacia germânica num espaço geográfico onde viviam nove milhões de judeus, todos a mais. Incómodos uns, pela sua força no mundo do dinheiro, pelo seu prestígio nas ciências e nas artes, e rodeados por outros que escondiam atrás de inocências um espírito de clã visto como perigo social e político pelo poder alemão. Anos antes, no cárcere, Adolf Hitler tinha ditado Mein Kampf a Rudolf Hess e teorizava pela primeira vez o nacional-socialismo como um projecto salvador; passava ao de leve por estas qualidades «invasoras», e detinha-se na raça: O Estado «é certamente a condição preliminar para a formação de uma civilização humana superior», tinha mandado escrever, «embora não seja a sua causa directa, que exclusivamente reside numa Raça preparada para a civilização.» Essa Raça era a ariana, e o seu obstáculo, a sua mácula, ser perturbada pela presença da obreira e industriosa raça judaica. No mais alto do III Reich foi então imaginado o gigantesco extermínio que terminaria em fumo saído de chaminés, em terras que se chamavam Auschwitz, Dachau… estas, talvez, as mais célebres. Lograram-se fugas a tempo, que tiveram Lisboa como melhor porta para o continente americano. Entre os escritores desta decisão de exílio houve quem ficasse a meio (Walter Benjamin a suicidar-se na fronteira franco-espanhola), houve quem não resistisse à má-
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goa do afastamento (Stefan Zweig a suicidar-se no Brasil). Mas também houve aqueles a quem só restou ficar e não escaparam ao gás ou, antes das salas onde os seus corpos nus receberiam a decisiva visita do fluido mortal, à morte por debilidade ou doença. Porque se trata aqui de literatura, e em francês, lembremos que Max Jacob morreu no campo de Drancy com a pneumonia que o poupou a Auschwitz; que Robert Desnos morreu com um tifo em Terezin, na Checoslováquia; que Tristan Bernard foi salvo à última hora por Sacha Guitry, muito bem relacionado na Gestapo de Paris; que outros menos conhecidos — Jean Vaudal, Benjamin Crémieux, François Vernot, esse Benjamin Fondane de Rimbaud le Voyou — morreram com o gás letal preparado para o extermínio semita; e que uma mulher com trinta e nove anos de idade, morta no dia 19 de Agosto de 1942 por uma gripe (segundo o registo do campo de Auschwitz, mas na realidade por uma febre tifóide), era a escritora Irene Nemirowsky. * O francês foi adoptado pela Rússia como língua elegante. Diderot espantou-se com uma alta sociedade que em São Petersburgo falava francês e reservava o russo para se dirigir às classes baixas. Versalhes, os seus salões, as suas roupas, foram copiados de longe; e a sedução da sua língua persistiu depois dos reis guilhotinados, vingou até ao princípio do século XX. Quem diz Rússia, diz Ucrânia, com os seus muitos anos de história a divagar entre a independência, a autonomia e a submissão completa ao czar. Em 1903, quando Irma Irina nasceu em Kiev, a família Nemirowsky (com um nome forte na alta finança do país) falava sobretudo francês. O seu pai Leonid chamava-lhe ma petite, dava-lhe a
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companhia e as lições de uma preceptora francesa, e nas histórias da sua infância a Gata Borralheira apareceu-lhe como Cendrillon, e a Capuchinho Vermelho como Petit Chaperon Rouge. Por isso, quando Leonid teve de esconder-se em Moscovo, com a cabeça a prémio por ter sido amigo do czar Nicolau II fuzilado pelos revolucionários de Outubro, e ocupou o apartamento abandonado de um oficial fugido ao ajuste de contas de Lenine, a vasta biblioteca em francês que Irma Irina lá encontrou foi uma agradável surpresa e o maior prazer do seu forçado isolamento. «A Revolução deu-me férias», viria a dizer. E a lista das suas descobertas literárias nessas estantes, todas ao seu dispor, ofereceu ao ócio de uma jovem de catorze anos de idade, modelada pelo bom comportamento burguês da sua época, um festim que não deixa de nos espantar. Porque se o À rebours de Huysmans, ou o Bel-ami de Maupassant, ou O Retrato de Dorian Gray de Wilde… ainda vá lá, o que dizermos de Aphrodite e Les chansons de Bilitis de Pierre Louÿs, ou de Les hors-nature de Rachilde? Irma Irina, em 1917 e numa rua sossegada de Moscovo, fez-se muito invulgar exemplo de uma precoce liberdade intelectual. Mas não durou muito, este privilegiado acesso a uma literatura não censurada pelos olhos da sua preceptora. Através de bosques e lagos, o banqueiro arruinado Nemirowsky e a sua família conseguiram iludir a vigilância soviética e chegar à Finlândia; e pouco depois, e sem correrem já nenhum risco, a Estocolmo. Leonid sabia, no entanto, que Paris era dos melhores cenários para reiniciar uma carreira no mundo das finanças. Foi diligente e hábil a não desiludir o que desde longe compõe a imagem do ambicioso judeu. Em 9 de Fevereiro de 1918 estava a receber a sua mulher Anna e a sua filha Irma Irina no porto de Ruão.
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No romance David Golder o judeu sabe que deve sempre «recomeçar» e muitas vezes terá, talvez, de fazê-lo. Leonid estava a «recomeçar», e poucos anos mais tarde voltaria a ser um abastado banqueiro; passaria a ser monsieur Léon, a sua mulher Anna passaria a ser madame Fanny, e Irma Irina, claro está, mademoiselle Irene; continuavam a comunicar uns com os outros em francês, como já antes faziam, mas agora no país certo; e adquiriam os costumes e os comportamentos da alta burguesia de Paris. Irene frequentava a Sorbonne num curso de letras, e uma conceituada escola de dança. E divertia-se: «Éramos um bando simpático que dividia o tempo entre a Sorbonne, o dancing, e os folguedos na relva…», lê-se numa carta de 1928. Também confessa o seu «grande frenesi de flirts», referindo-se aos anos agitados do final da adolescência. E foi nesse frenesi que conheceu em Julho de 1926 o judeu Michel Epstein, como o seu pai apaixonado pelo mundo das finanças; e que, três anos antes de surpreender os leitores franceses com David Golder, se casou com ele. Começa então a sua verdadeira vida de escritor. Já tinha publicado com pseudónimo algumas histórias em jornais e revistas, mas estava decidida a aparecer como romancista; e assim foi que o editor Bernard Grasset recebeu um original que só dava como endereço de contacto a posta-restante da estação Paris-Louvre, sem título e proveniente de uma desconhecida Irene Epstein. Hoje sabe-se o que escreveu Henry Muller em Trois pas en arrière: «Puseram na minha mesa um monte de folhas de papel, pedindo-me que passasse os olhos por elas e “lhes tomasse o peso”, uma vez que a secção de manuscritos estava com grande sobrecarga de trabalho; e já eu tinha gasto quatro horas, com a cabeça apoiada na mão e um cigarro na boca a entediar-me e a bocejar, a praguejar contra aquela gente que se julgava com qualquer coisa para dizer, com uma mensagem para transmitir,
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quando olhei para o relógio e decidi que só avaliaria mais um daqueles originais. Epstein, o nome do autor, nada me dizia e a obra não tinha título. Com um supremo esforço tirei as folhas do envólucro e comecei a folheá-las. Estava resolvido a consagar-lhes um quarto de hora, mas deu-se de repente o estalido da revelação. O que eu lia era notável quanto a força e a talento, se escrever um romance é, como eu acho que é, uma criação de vida. Quem tinha imaginado aquelas páginas era um romancista de classe. Esquecido de tudo mergulhei na leitura até às oito horas; repeti passagens, fiquei cada vez mais convencido e redigi um relatório entusiasmado.» No dia seguinte Bernard Grasset também se entusiasmou. Mas só três semanas mais tarde Irene Epstein deu resposta às insistências do editor. «Uma dama tímida», disse ele à imprensa, «como nas histórias das irmãs Brontë». E depois as palavras que então ouviu: «— Peço desculpa de ter aparecido com tanto atraso… Acabo de dar à luz. Sou Irene Nemirowsky, o autor de David Golder.» O romance tinha afinal um título. Grasset olhou mais atentamente para ela: «Tipo judaico acentuado, sem beleza. […] Olhos negros, velados por pálpebras caídas, exprimiam uma espécie de doçura maliciosa e mais nada. O cabelo cortado curto acentuava a exiguidade da cabeça alongada para trás. Os lábios carnudos sorriam com franqueza. As maneiras eram de uma elegância desenvolta, fruto de uma primeira educação impecável.» Alguns dias antes do Natal de 1929, David Golder estava à venda. Uma obra tão forte, assinada por uma jovem de apenas vinte e seis anos de idade, repetia o fenómeno de Le diable au corps de Raymond Radiguet, antecipava-se ao fenómeno de Bonjour tristesse de Françoise Sagan. Muitas coisas se escreveram na imprensa diária. Tinha o pitoresco de Balzac, com um judeu que prolongava
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os seus Nucingen e Gobsek; um naturalismo que lembrava Dickens ou Zola; tinha uma força torrencial; ultrapassava Colette na audácia; tinha virilidade, cinismo, aspereza, crueldade, pessimismo; entrava sem temor na estrumeira das finanças. Edmond Jaloux, esse, concluía a sua análise com: «Fiquei estupefacto.» Irene Nemirowsky, envolta por uma notoriedade que encontrava a sua força na desenvoltura de uma jovem mulher-escritor, era requisitada para recepções, alimentava a curiosidade dos que lêem revistas. Na Chantecler, Charles Pierrey deu largas à sua impertinência de jornalista: «— Diz-se por aí, senhora… — O que se diz? Informe-me… — Para começar, que é muito rica, que paga uma publicidade exploradora dessa lenda hábil da “posta restante” e da comovente aparição depois do parto… — Oh! Meu Deus! Como é divertido!… Rica? É uma maneira de dizer… e pobre não sou, evidentemente. Mas será isso condição indispensável ao talento? Quanto à lenda é autêntica, e que isto não lhe cause desagrado.» David Golder é uma história desprovida de caridade, onde parece inútil querermos encontrar uma personagem que se comporte e tenha sentimentos caucionados por reconhecidos valores morais; um retrato implacável da alta ladroagem milionária, de mulheres submersas num desejo de vida fácil e jóias extorquidas a todas as fragilidades humanas que à sua volta existam. Com este seu primeiro trabalho literário estendido à dimensão de um romance, o requisitório de Irene Nemirowsky sobre a avidez judaica pelo ouro remeteu para a sombra muitos momentos da literatura considerados como cimos do retrato do judeu apaixonado pelo dinheiro. E é curioso saber-se que
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lhe não foi necessário inventar muito mais longe do que o seu íntimo círculo de relações. David Golder é, evidentemente, o seu pai Léon agravado nos tiques de um judeu da alta finança. Mas quando o romance foi publicado Léon estava falido e doente, perto da morte e já «sem idade para recomeçar», dizia ele contrariando o que a história confere à mais indestrutível tenacidade da sua raça. Gloria é a sua mãe Fanny, levada sem piedade até um cúmulo de egoísmo e cupidez (outro retrato seu, ainda mais inclemente, estaria para surgir em 1936 com o romance Jézabel). Joyce é, segundo informação da autora, uma personagem compósita que associa características extraídas às suas amigas mais próximas. Este sabat de judeus, congeminado por uma judia, desagradou à comunidade judaica francesa. E a Nouvelle Revue Juive, sem muita autoridade para atacar um romance tão bem acolhido pelo público e pela crítica, só se lamentou chamando a Irene Nemirowsky «um bisturi.» Mais tarde, quando se avolumou na Europa a campanha anti-semita, houve esta explicação da autora: «É bem certo que eu teria adoçado muito David Golder se já houvesse Hitler, e não lhe teria dado o mesmo sentido. Mas seria um erro, teria mostrado fraqueza indigna de um verdadeiro escritor.» David Golder passou a teatro pelas mãos de Fernand Nozière, passou ao cinema pelas mãos de um ainda jovem Julien Duvivier (em Portugal o filme chamou-se Tragédia de um Homem Rico) e deu a Harry Baur um dos papéis mais lembrados da sua carreira. Mas havia uma grande expectativa sobre a peça literária que Irene faria suceder a David Golder. As impaciências do editor Bernard Grasset tiveram de ser dominadas quase um ano até surgir Le bal, com uma nota da autora onde parece querer informar que se trata de um texto de feitura rápida, o contrário do outro, que teve qua-
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tro anos de gestação: «Escrevi Le bal entre dois capítulos de David Golder ou, mais exactamente, porque acabava de refazer pela terceira vez a narrativa da primeira crise da sua angina de peito na carruagem-cama. A coisa não andava, e eu já não podia ver à minha frente esse romance. Um dia, na ponte Alexandre III reparei numa rapariguinha encostada ao parapeito, a ver a água que corria enquanto a pessoa que a acompanhava, e parecia ser uma governanta inglesa, esperava com visível impaciência alguém que não aparecia. A rapariga tinha um ar infeliz e duro que me emocionou. Ao vê-la imaginei toda a espécie de histórias, e Le bal é uma delas.» Em crueldade, Le bal não fica atrás do romance anterior, esteja embora longe de se repetir na perturbadora grandeza que existe na personagem de Golder, estranhamente conseguida à custa de uma falta de grandeza: a consciência do fracasso que não vence a cegueira do lucro. Nos treze anos de vida que esta escritora teria até morrer em Auschwitz, a sua actividade criadora parece não ter passado por nenhuma pausa. Sem contarmos com os seus contos, hoje reunidos em vários volumes, existem cerca de quinze obras de Irene Nemirowsky, uma meia dúzia póstumas. Entre elas (um gosto pessoal) lembremos Le vin de solitude (1935), Les chiens et les loups (1940) e Suite française que ficou por terminar e desde 2004 passou a ser vista como um dos mais altos momentos da sua carreira literária. * Em 1940, Hitler invadiu a França. E o anti-semitismo ganhou força com uma maré alta vinda de leste. Irene Nemirowsky e Michel Epstein, apesar das diligências e das insistências que fizeram, nunca
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conseguiram obter a nacionalidade francesa; o que era, somado à sua raça judaica, um enorme factor de risco. Assustada, Irene baptizou-se numa igreja católica. Mas a propaganda anti-semita francesa subia de tom e não se distraía desta afluência de judeus aos sacramentos cristãos. Um panfleto intitulado O Reino dos Judeus era claro: «O judeu convertido continua judeu, como o negro baptizado conserva a cor da pele e as suas características raciais. O problema judaico não é um problema religioso, mas uma questão de raça.» Em 1941, Theodor Dannecker e Adolf Eichmann já tinham planificada a deportação dos judeus da França em grupos de mil. Mas, antes de ser posta em prática, houve um cerco progressivo feito por sucessivas e humilhantes decisões. Em 26 de Abril as suas contas bancárias foram congeladas; em 22 de Julho foi feita a espoliação legal dos seus bens; em 13 de Agosto determinado que não poderiam ter em casa aparelhos de rádio; no ano seguinte, a 1 de Julho, que não lhes era permitido o acesso a telefones; e a 8 de Julho todos os livros de autores judeus foram retirados das livrarias. O processo da deportação chegou então a números: 40 000 judeus seriam transferidos para Auschwitz. Irene isolou-se com as suas duas filhas (Denise com doze anos de idade e Elizabeth com seis) em Issy-l’Évêque, uma aldeia sob a inflência de Vichy. Michel permaneceu em Paris, a trabalhar no banco Des Pays du Nord. Foi em 11 de Julho de 1942 que Irene deixou no seu caderno de apontamentos as últimas palavras que lá escreveu: «Pinheiros à minha volta. Estou sentada no meu xaile azul, no meio de um oceano de folhas apodrecidas e encharcadas pela tempestade desta noite; como numa jangada, e em cima das minhas pernas dobradas. No meu saco tenho o segundo volume de Anna Karenine, o Diário de K[atherine] M[ansfield] e uma laranja. Os meus amigos
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zângãos, deliciosos insectos, parecem contentes consigo próprios, e o seu zumbido é profundo e grave. Nas vozes e na natureza gosto dos sons baixos e graves. Este “chirrup, chirrup” agudo dos pequenos pássaros nos ramos, incomoda-me.» E depois esta frase enigmática: «Não tarda que eu procure aqui o Lago perdido.» Dois dias mais tarde, dois polícias bateram à porta da sua casa e mostraram-lhe uma ordem que determinava a sua transferência para o campo de concentração de Pithiviers, justificada como «medida geral contra os judeus apátridas entre os 16 e os 45 anos de idade.» Irene despediu-se das suas duas filhas dizendo-lhes que ia fazer uma viagem durante alguns dias. Michel Epstein foi de imediato para Issy-l’Évêque, e dali moveu muitas influências com a esperança de evitar um desfecho que todos os indícios faziam prever como inevitável. E que inevitável foi, apesar de contactados alguns nomes com aparente peso nas decisões da Gestapo. No dia 17 de Julho de 1942, Irene Nemirowsky estava entre os 928 judeus metidos em vagões para transporte de gado, com palha no chão e um balde com água, num comboio que durante três dias e duas noites atravessou a França, a Alemanha e a Polónia até Auschwitz. Chegadas ao destino, as mulheres foram separadas dos homens, entregaram jóias e alianças de casamento, foram rapadas, tomaram um banho de chuveiro com água fria e vestiram batas às riscas. No dia seguinte tiveram um número tatuado no pulso. Irene Nemirowsky só viveu trinta dias em Auschwitz; não chegou a esqueleto vivo nem à câmara de gás; morreu, atingida pela epidemia de tifo que nesse momento matava piedosamente os residentes do campo. A sorte de Michel Epstein foi idêntica à da sua mulher. No dia 9 de Outubro de 1942 levaram-no para a prisão de Creuset, e depois para o campo de concentração de Drancy, onde morreu gaseado.
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Às suas duas filhas, o chefe da policia de Issy-l’Évêque disse que «tinham quarenta e oito horas para desaparecerem». Com nomes falsos subsistiram graças aos cuidados de uma antiga professora chamada Ravaud. E a tudo isto sobreviveu Fanny Nemirowksy (a Gloria de David Golder) com jóias e objectos valiosos em quantidade suficiente para chegar aos 97 anos de idade e morrer bem assistida numa luxuosa casa de saúde. «Louco… velho louco…», diz Gloria a David num dos últimos capítulos do romance. «Imaginas que vou morrer à fome, sem ti e o teu maldito dinheiro, hein?… Pois olha… Achas que estou assim com um ar tão miserável? Já viste isto?» E estendeu-lhe o punho onde tilintava uma valiosa pulseira recentemente adquirida. A.F.
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— Não — disse Golder. Levantou com um gesto brusco o quebra-luz, para toda a claridade do candeeiro dar em cheio no rosto de Simon Marcus sentado à sua frente, do outro lado da mesa. Durante um momento olhou para os vincos, as rugas que por toda a longa face morena corriam como numa água escura agitada pelo vento, logo que os lábios ou as pálpebras se mexessem. Mas os olhos pesados e adormecidos de oriental permaneciam calmos, entediados, indiferentes. Um rosto fechado como uma parede. Golder baixou com precaução a haste de metal flexível que dava apoio ao candeeiro. — A cem, Golder? Já fizeste bem as contas? É um preço — disse Marcus. Golder voltou a murmurar: — Não. E acrescentou: — Não quero vender. Marcus riu-se. Os seus dentes compridos e brilhantes, revestidos a ouro, cintilavam esquisitamente na sombra. — Em 1920, quando compraste as tuas famosas petrolíferas, eram coisa para valer o quê? — perguntou com a sua voz fanhosa, irónica, que arrastava as palavras. — Comprei a quatrocentos. Se esses bandalhos dos soviéticos tivessem devolvido os terrenos nacionalizados aos indus-
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triais do petróleo, seria um bom negócio. Eu tinha o Lang e o grupo dele atrás de mim. Em 1913 a produção diária de Teisk já era de dez mil toneladas… sem fazer bluff. Depois da conferência de Genebra, as minhas acções começaram por cair de 400 para 102, lembro-me bem… E depois… — Fez com a mão um gesto vago — Mas conservei-as… Nesse tempo havia dinheiro. — Pois havia. Mas agora, em 1926, não te dás conta de que os terrenos petrolíferos na Rússia te valem tanto como merda? Hein! Não tens meios nem desejo de ir explorá-los pessoalmente, imagino eu!… Tudo o que pode fazer-se com eles é ganhar alguns pontos criando movimentos na Bolsa… Cem é um bom preço. Golder esfregou demoradamente as pálpebras inchadas e queimadas pelo fumo que enchia a sala. Com voz mais baixa voltou a dizer: — Não, não quero vender. Só quando a Tübingen Petroleum tiver concluído esse acordo sobre a concessão de Teisk, em que estás a pensar, é que eu vendo. Marcus pronunciou qualquer coisa como um «Ah!, sim» abafado, e por aí ficou. Golder disse com voz lenta: — Com esse negócio que andas a fazer desde o ano passado nas minhas costas, sim, esse mesmo, Marcus… Se o acordo for assinado, passam a oferecer-te um bom preço pelas minhas acções? Calou-se porque tinha o seu coração a bater quase dolorosamente, como lhe sucedia sempre no momento das vitórias. Marcus apagou devagar o charuto no cinzeiro cheio. «Se ele disser arriscamos a meias», pensou de repente Golder, «está tramado.» Inclinou a cabeça para lhe ouvir melhor a voz.
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Houve um silêncio curto, e Marcus a dizer: — Vamos arriscar metade, Golder? Golder cerrou os maxilares. — O quê! Não! Com as pálpebras descidas, Marcus murmurou: — Ah! Não precisas de ficar com mais um inimigo, Golder. Os que tens já chegam. As suas mãos apertavam a madeira da mesa, e mal se mexiam para riscarem ao de leve com as unhas e fazerem aquele ruído áspero e agudo. Iluminados pela luz do candeeiro, os dedos compridos, magros e brancos, carregados com anéis maciços, brilhavam no mogno da mesa Império e tinham um ligeiro tremor. Golder sorriu. — Agora já deixaste de ser muito perigoso, meu rapaz… Durante um momento Marcus ficou calado, a examinar com aplicação as suas unhas pintadas. — David… arriscamos a meias!… Hein?… Somos sócios há vinte e seis anos. Passamos uma esponja e recomeçamos. Se em Dezembro tivesses estado aqui, quando o Tübingen falou comigo… Golder torceu nervosamente o fio do telefone, enrolou-o à volta das mãos. — Em Dezembro — repetiu, fazendo um esgar — sim… estás a ser muito bom… mas acontece… Calou-se. Tão bem como ele, Marcus sabia que em Dezembro tinha andado na América a procurar capitais para a «Golmar», o negócio que há tantos anos os ligava como a esfera de chumbo se liga ao forçado. Mas não disse nada. Marcus continuava: — David, ainda estamos a tempo… É assim melhor, acredita em mim… Falamos os dois com os soviéticos, não queres?
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É um caso difícil. Quanto às comissões, quanto aos lucros, sempre tudo a meias, hein?… É leal, David, espero eu!… Não? De outra forma, meu caro… Esperou um instante por uma resposta, um assentimento, um insulto, mas Golder respirava com dificuldade e permanecia mudo. Marcus murmurou: — Diz lá! No mundo só há a Tübingen… — Tocou no braço inerte de Golder como se quisesse despertá-lo… — Há sociedades mais novas e com… com um carácter mais especulativo — disse a procurar as palavras — que não assinaram o acordo de 1922 sobre os petróleos e se estão nas tintas para antigos direitos adquiridos. Por consequência, para os teus… E essas poderiam… — A Amrum Oil? — perguntou Golder. A ranger os dentes, Marcus disse: — Olha! Também sabes isso? Pois então ouve, meu velho, lamento muito mas os russos vão assinar com a Amrum. E agora, como te recusas a andar com isto, podes ficar com as tuas Teisk até ao Juízo Final, podes ir com as tuas Teisk para a cova… — Os russos não vão assinar com a Amrum. — Já assinaram — gritou Marcus. Golder fez com a mão um movimento. — Sim. Eu sei. Um acordo provisório. Devia ser ratificado por Moscovo dentro de um prazo de quarenta e cinco dias. Ontem. Mas como voltou, mais uma vez, a não acontecer nada, ficaste inquieto, vieste fazer junto de mim mais uma tentativa… — Acabou de dizer isto a falar muito depressa, a tossir. — Vou explicar-te. O Tübingen, não é? Faz dois anos, a Amrum já lhe empalmou campos de petróleo na Pérsia. Por isso acho que desta vez ele gostaria mais de morrer do que ceder. Até agora
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Todas as manhãs Golder descia até ao jardim, e durante uma hora andava ao longo de uma álea resguardada. Caminhava com lentidão na faixa de sombra dos velhos cedros, contava com método os passos; ao quinquagésimo parava e encostava-se a um tronco de árvore; com um esforço doloroso dilatava as apertadas narinas e respirava profundamente, com dificuldade, abrindo por instinto os lábios trémulos ao vento do mar. Depois recomeçava a andar e a contar os passos; distraído, empurrava o cascalho com a ponta da bengala. Vestido com uma velha capa cinzenta, com o pescoço envolto por um cachecol de lã, com um velho chapéu preto já usado, fazia estranhamente lembrar um qualquer desses adelos judeus das aldeias da Ucrânia. Quando andava, por vezes erguia um ombro com um movimento involuntário e cansado, como se tivesse posto às costas um grande fardo de roupa ou ferro-velho. Nesse dia, por volta das três horas saiu pela segunda vez. O tempo estava admirável. Sentou-se num banco à frente do mar. Desfez um pouco as voltas do cachecol, desabotoou a parte superior da capa e respirou com cautela. Mas tinha o coração a bater com um ritmo regular; só o eterno e leve assobio da asma com um fraco, subtil e lamentoso ruído, lhe sublinhava no peito o fluxo e o refluxo do ar. O sol dava em cheio no banco, e o jardim era tranquilamente macerado na luz amarela e transparente como um azeite fino.
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O velho Golder fechou os olhos. Com um suspiro onde bem-estar e tristeza se misturavam, estendeu nos joelhos as mãos sempre geladas, e depois esfregou os polegares doridos. Gostava de calor. Em Paris e em Londres o tempo era detestável, sem dúvida… Nesse dia ele esperava encontrar-se com o director da Golmar, que na véspera tinha anunciado a sua chegada… Era sinal de que ia partir… Sabia Deus por onde teria ainda de andar… Era uma pena partir… Havia ali um tempo admirável. O cascalho rangeu com um ruído de passos. Voltou-se e viu que era Lœwe. Um homenzinho pálido, de rosto cinzento e gasto, tímido e derreado sob o peso de uma enorme pasta inchada com papéis. Durante muito tempo Lœwe fora um simples empregado da Golmar; mas embora ocupasse há cerca de cinco anos o lugar de director, bastava um olhar de Golder para o deixar agitado interiormente por uma tremura, como outrora. Correu curvando os ombros, com um riso nervoso. Golder voltou uma vez mais a lembrar-se das palavras que Marcus com tanta frequência repetia: «Tu, meu menino, julgas-te um grande homem de negócios mas não passas de um especulador; não sabes escolher, encontrar os homens certos. Vais viver toda a vida só, rodeado por vadios ou por cretinos.» — Por que é que veio? — perguntou Golder, cortando de forma abrupta as longas e atrapalhadas frases de Lœwe, que respeitosamente o interrogava sobre a sua saúde. — Infelizmente!… Vou explicar-lhe… Faça o favor de me ouvir com atenção… Mas não se dará o caso de isto o fatigar? Prefere esperar?… As notícias que eu trago… — São más — interrompeu Golder, irritado. — Como é natural. Acabe com os discursos, por amor de Deus. Diga o que tem a dizer e com clareza, se lhe for possível fazê-lo.
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— Sim, senhor —murmurou Lœwe com precipitação. Como a enorme pasta não se mantinha em equilíbrio nos seus joelhos, apertou-a com as duas mãos contra o peito e começou a tirar maços de cartas e papéis, que aos poucos ia pondo no banco. Disse com angústia: — Não encontro a carta… Ah! Sim, aqui está… Dá-me licença? Golder arrancou-a das suas mãos. — Dê cá isso… Leu-a sem dizer nada; mas Lœwe, que não tirava os olhos de cima dele, surpreendeu-lhe o leve e involuntário estremecimento dos lábios. — Como vê!… — disse Lœwe em voz baixa, como se pedisse desculpas. Entregou-lhe outros papéis. — Todos os aborrecimentos nos chegaram ao mesmo tempo, como sempre… Anteontem a Bolsa de Nova Iorque deu o golpe de misericórdia, por assim dizer. Mas isso só fez precipitar as coisas… O senhor já estava à espera, julgo eu!… Com um movimento rápido, Golder levantou a cabeça. — De quê? Sim — sussurrou com um ar ausente. — Onde está o relatório de Nova Iorque? Como Lœwe recomeçava a mexer nos papéis, ele afastou-os impetuosamente, com um murro. — Não podia ter posto tudo isso em ordem? Santo Deus! — Acabo apenas de chegar… e… nem sequer tive tempo de passar pelo hotel… — Espero bem que sim — resmungou Golder. — Viu bem esta carta do Banco Britânico, não é verdade? — insistiu Lœwe, com uma tosse nervosa. — Se dentro de oito dias os seus títulos não tiverem cobertura, vão vendê-los de imediato.
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— É o que se vai ver, homem!… Os patifes… Isto é obra do Weille… mas para ele não vão ser rosas, garanto-lhe… O que lá têm meu a descoberto soma bem uns quatro milhões, não é isso? — Sim — disse Lœwe baixando a cabeça. — Há agora uma muito, muito forte reacção contra a Golmar. Correm na Bolsa os mais pessimistas rumores desde que o pobre senhor Marcus… Senhor Golder, os seus inimigos chegaram mesmo a desnaturar a sua doença da maneira mais falsa, e o mais maldosa possível… Golder encolheu os ombros. — Isso… Isso não o espantava. Nem o efeito do suicídio de Marcus, como é natural… «Antes de morrer deve ter-se consolado com o facto», pensou. — Tudo isto não significa nada— disse ele. — Vou falar com o Weille… O que acima de tudo me inquieta é Nova Iorque… Será absolutamente necessário ir a Nova Iorque. Do Tübingen não há nada? — Há. Um telegrama que chegou na altura em que eu estava a sair. — Pois bem, dê-mo, santo Deus! Leu-o. «Estou Londres vinte e oito corrente.» Teve um leve e repuxado sorriso. Com a ajuda do velho Tübingen, tudo seria fácil de resolver. — Telegrafe imediatamente ao Tübingen, a dizer que na manhã de vinte e nove estarei em Londres. — Pois sim, senhor Golder. Oh! Peço-lhe desculpa… Mas… é verdade o que alguns dizem? — O quê?
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Às cinco horas, os primeiros apitos no porto despertaram-no. Teve dificuldade em baixar-se e em agarrar nos sapatos. Voltou a abrir a torneira seca do lavatório e tocou a campainha, esperando durante muito tempo e em vão por uma resposta. Como ainda havia um pouco de água-de-colónia no fundo do frasco que tinha na mala, deitou-a nas mãos e no rosto, reuniu a bagagem e desceu. Só no andar de baixo conseguiu que lhe servissem um copo de chá. Pagou e saiu. Maquinalmente procurou um carro com o olhar. Mas a cidade parecia deserta. Levantada pelo vento do mar, uma areia grossa enterrava até meio os pilaretes, tapava as ruas onde os passos ficavam profundamente marcados como na neve. Golder fez um sinal a um miúdo que corria descalço e sem ruído no meio da calçada. — Leva-me a mala até ao porto. Não há aqui nenhum carro? Embora parecesse que não o compreendia, a criança deitou as mãos à mala e começou a andar. As casas estavam fechadas, as janelas tinham tábuas pregadas. Bancos e edifícios públicos, mas desocupados e ao abandono. Nas paredes, o desenho da águia imperial gravado na pedra era como uma ferida… Sem querer, Golder apressou o passo. Reconhecia vagamente certos becos velhos e sombrios, casas de madeira a desconjuntarem-se. Mas que silêncio… De repente parou.
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Não estavam longe do porto. No ar havia um cheiro intenso a sal e a lodo. Uma barraca de sapateiro escura e acanhada, com a sua bota de ferro a balançar à frente da janela e a ranger… Na esquina da rua, o hotel onde tinha vivido; uma casa mobilada para marinheiros e raparigas, ainda de pé. O sapateiro era um primo do seu pai ali estabelecido; às vezes Golder ia comer à casa dele. Lembrava-se bem… Fez um esforço para se recordar das feições desse homem mas só encontrava o som de uma voz áspera e lamurienta, isto porque se parecia, sem dúvida, com a de Seifer. — Não saias daqui, rapaz… Julgas que o dinheiro daquelas terras se apanha no chão? Olha, em todo o lado a vida é dura. Foi instintivo, o gesto que Golder fez para dar uma volta ao trinco da porta, mas as suas mãos voltaram a cair. Tinham passado quarenta e oito anos! Encolheu os ombros e afastou-se. «E se eu cá tivesse ficado?» Riu-se sem vontade. Quem sabe? Gloria a tratar da casa, e nas noites de sexta-feira a cozer bolos com gordura de ganso… De forma quase imperceptível murmurou: «A vida…» Mas como era estranho que ao fim de tantos anos os seus passos o encaminhassem para aquele recanto perdido do mundo… O porto. Reconhecia-o como se o tivesse deixado na véspera. O pequeno e meio desmantelado edifício da alfândega. Barcas naufragadas, enterradas na areia negra, grosseira, cheia de carvão e lixo… A água verde, lodosa e densa, e como outrora semeada com cascas de melancia, animais mortos. Subiu para bordo. Era um pequeno vapor grego que antes da guerra fazia a travessia entre Batum e Constantinopla. Devia ter transportado passageiros porque continuava a parecer que tinha possuído um certo conforto. Havia um salão, um piano. Mas depois da Revo-
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lução só carregava mercadorias, e talvez tivesse feito estranhos tráficos. Estava sujo e com um ar miserável. Golder pensou: «Por sorte a travessia não é longa…» No convés estavam homens, schrurum-burum com calotes vermelhas coladas à cabeça, sentados no chão a jogar às cartas. Levantaram a cabeça quando Golder passou. Um deles, com um gesto maquinal agitou o colar de contas cor-de-rosa que tinha enrolado no braço e sorriu. «Compra qualquer coisa, barine…» Golder sacudiu a cabeça e afastou-os suavemente com a ponta da bengala. Durante a sua primeira travessia cheia de memórias que se agarravam a ele com uma tão estranha e tenaz persistência, quantas vezes jogara às cartas com homens semelhantes àqueles, sentado à noite num canto do barco!… Tinha decorrido muito tempo… Agora eles recuavam para o deixar passar. Desceu até ao seu camarote, e suspirou ao olhar através da vigia para a água. O barco tinha começado a andar. Sentou-se no catre; um estrado estreito, coberto por um colchão fino e cheio com uma espécie de palha seca e estaladiça. Se o tempo se mantivesse bom, passaria a noite no convés. Mas o vento soprava com força. O barco era sacudido, dançava. Golder olhou com uma espécie de ódio para o mar. Que cansado se sentia daquele universo eternamente agitado, a mexer-se à volta dele… Do mundo que corria nas janelas das carruagens, dos automóveis, destas ondas com inquietos gritos de animal, dos fumos no céu perturbado do Outono. Fixar até à morte um horizonte inalterável… Murmurou: «Sinto-me cansado.» A mãos ambas comprimiu o coração com o gesto hesitante, instintivo, dos cardíacos. Levantava-o devagar como se quisesse ajudá-lo, auxiliá-lo como a uma criança que pegamos ao colo, como a um animal moribundo, como se quisesse ajudar a máquina gasta, teimosa, que tão fracamente batia na sua velha carne.
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De repente, um balanço mais forte deu-lhe a impressão de que ela fraquejava e depois corria mais depressa, mais depressa… E nesse mesmo instante uma dor fulminante apanhou-lhe o ombro esquerdo. Empalideceu e manteve-se com a cabeça esticada, com uma expressão de pavor, durante muito tempo a aguardar. Parecia-lhe que o ruído da sua respiração enchia o camarote sobrepondo-se ao barulho do vento e das águas. Mas a pouco e pouco abrandou, acalmou-se, apagou-se por completo. Esforçando-se por sorrir, disse em voz alta: — Não foi nada. Já passou. Respirava com dificuldade, e deu um cauteloso suspiro. — Passou… Pôs-se de pé. Cambaleava. Lá fora, céu e mar tinham escurecido sem ele dar por isso. O camarote estava negro como numa noite fechada. No entanto, através da vigia penetrava uma estranha luz verde, um falso dia turvo e pobre que não iluminava. Golder procurou às apalpadelas o seu casaco, vestiu-o e saiu. Estendia à sua frente as duas mãos como um cego. A cada pancada do mar todo o barco estremecia, se empinava e mergulhava como se fosse desaparecer e sepultar-se na água. Foi-lhe difícil subir a pequena escada direita e íngreme que levava ao convés. — Tome cuidado, camarada!… Há vento lá em cima — gritou um marinheiro que descia a correr. Soprou no rosto de Golder uma forte lufada de aguardente. — Isto dança, camarada… — Estou habituado — resmungou Golder com secura. Mas foi-lhe difícil chegar ao convés. Grandes massas de água batiam contra o barco. Debaixo de um toldo encharcado os schurum-burum tinham-se deitado num canto, e uns contra
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, tradução de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
Edmond Jaloux: «Fiquei estupefacto.»
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