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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes Alarcón em estado de graça.
Pedro Antonio de Alarcón O CAPITÃO VENENO
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Pedro Antonio de Alarcón
O CAPITÃO VENENO
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: EL CAPITÁN VENENO
© SISTEMA SOLAR, CRL, 2016 RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: VELÁZQUEZ, RETRATO DE HOMEM JOVEM, 1628 (PORMENOR) 1.ª EDIÇÃO, FEVEREIRO DE 2016 ISBN 978-989-8833-03-7 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE
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Pouco antes de morrer — referimo-nos a 1890, a Madrid, e a cinquenta e sete anos de idade — Alarcón arrastava-se pelo grande incómodo de uma hemiplegia. Tinha o lado esquerdo do corpo paralisado mas as funções cerebrais intactas, o que lhe permitiu mergulhar numa quase ininterrompida sessão lida e ouvida dos seus livros preferidos. Tinha sido um grande leitor. Percorrera palavras de um incontável número de obras e continuava agora a fazê-lo com um prazer amargo, por lhe parecer derradeiro, revisitando velhos amigos, os que mais tinham pesado na sua trajectória intelectual. Mas a última escolha deste tempo de despedidas foi um romance seu de 1875: El Escándalo, o mais célebre, o que persiste pela primorosa construção formal, pela história de hipocrisias burguesas vergastadas com uma elegância de estilo sem falhas. O seu romantismo tardio, anacrónico para os que então argumentavam a inevitabilidade do naturalismo, irritara por mostrar a velha escola ressurgida numa grande qualidade literária; e insolente, assim, ao propor-se a par de muitos talentos menores que se queriam como estandartes dos novos ventos literários soprados da França. Nesse Fevereiro de 1890, pouco antes de lhe acontecer o derrame cerebral anunciador da morte, a metade direita de Alarcón agitou-se para transmitir a emoção que a sua própria obra lhe causava. E disse a frase vaidosa que os seus biógrafos registam: «A um tal romance só falta a minha morte.»
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Alarcón morreu e manteve-se vivo; é reconhecido como valor literário perdurável, sobretudo com os romances El Escándalo e El Niño de la bola (1880), com os seus contos fantásticos (Jorge Luis Borges escolheu «El amigo de la muerte» e «La mujer alta» para a sua Biblioteca de Babel), e com duas obras singulares, qualquer delas decisão de demonstrar a incrédulos e a militantes do novo sopro que velhas e tradicionais formas literárias não estavam esgotadas e podiam ressurgir com inesperado vigor. Em 1874 publicou para este desafio El sombrero de tres picos, e em 1881 El Capitán Veneno; o primeiro a mostrar que a lição da novela pícara, com dilatada tradição em séculos anteriores, podia renascer revitalizada pela deformação grotesca do absolutismo representado ali por um corregedor, um alguazil e um alcaide; o segundo a provar que uma amável história de comédia de salão podia ser subtilmente subvertida no propósito de mostrá-la alheia ao considerado sua tradicional fórmula maior, o remate enunciador de uma proveitosa moralidade. O êxito comercial destes dois «anacronismos» acabou, no entanto, por descontentar Alarcón. Os ataques e as animosidades críticas virados contra El Escándalo, El Niño de la bola e, a bem dizer, o resto da sua obra, pareciam-lhe essenciais a um atestado de qualidade e boa saúde literárias; veio a confessá-lo em Historia de mis libros: «Posso assinalar também com pedra branca, na galeria das minhas obras literárias da segunda época, este bem-aventurado quanto diminuto livro [O Capitão Veneno]. Só parabéns e felicitações a sua publicação me valeu, apesar da sistemática guerra que me fazem os doutores de casca amarga.
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«Escrevi-o em oito dias no local, na data e nas circunstâncias que refere a dedicatória ao Sr. don Manuel Tamayo y Baus; publiquei-o em pedaços quinzenais na Revista Hispano-Americana, e depois fizeram-se três edições em livro. «Com esta obra aconteceu-me o mesmo que acontece com El sombrero de tres picos: como não suscitou contradições, parece-me que lhe falta qualquer coisa e quero-lhe menos do que às suas combatidas irmãs. No meu entendimento dá-se o caso de ser preciso, nos actuais calamitosos tempos, termos furiosos adversários como sinal de estar cumprida a nossa obrigação. Ser do agrado de todos, quando os demolidores da sociedade são tão abundantes, põe à mostra uma criminosa apatia do aplaudido… Por conseguinte, benditas sejam as animosidades que El Escándalo e El Niño de la bola me valeram, pois até as feridas são invejáveis troféus quando se recebem lutando cara a cara no campo que consideramos da honra!» A leitura de O Capitão Veneno não engana quanto ao carácter híbrido da sua estrutura. Poderíamos chamar-lhe «novela teatral», tão evidente é a predominância do diálogo digno de um palco, desfiado entre cinco personagens, a sua concentração num único espaço, a sua divisão em quatro partes, correspondendo cada uma delas a um acto, o conhecimento do que se passa no exterior observado a partir do «espaço cénico» e comentado apenas pelo que se apreende através das persianas que dão para a rua. As suas personagens movem-se num cenário fechado, defendidas do mundo exterior; e a realidade política que motiva a história deixa de ser referida e sentida, mal estejam criadas as condições necessárias para ela evoluir e projectar-se, percorrendo círculos que
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giram sobre si próprios até ao desfecho onde não se encontra nenhuma das moralidades previsíveis nas comédias que servem de matriz à intriga. Nem mesmo ao amor é consentido o papel de uma nobre força transformadora do ser humano; porque a feroz misoginia do Capitão Veneno é com ele anulada por más vias, as que o deixam humilhado como herói viril e o sujeitam à água fria do «arre mula!» final. * Pedro Antonio de Alarcón nasceu a cerca de sessenta quilómetros de Granada, em Guadix, a que lhe faz homenagem de estátua pública e o exibe sentado com altivez num plinto, três metros mais alto do que o olhar do cidadão. Granada, pelo contrário, deseja-o íntimo, tocável pelo público e sentado na extremidade de um banco, ao dispor de quem passa na avenida de la Constitución. É vulgar encontrar-se ali um transeunte solitário que despreza a largura do assento e prefere a vizinhança imediata do escritor; que talvez lhe peça conselhos e o ponha a par dos problemas da sua vida, indiferente à falta de resposta daquele olhar de bronze que passa tangente ao livro aberto, apoiado na perna. (Ouvi de um granadino que não é raro encontrar-se sobre aquelas páginas uma flor abandonada; e que uma vez viu lá um poema anónimo, preso com fita-cola ao metal da escultura.) Mas esta homenagem de Granada não celebra um escritor que lá tenha vivido toda a sua vida. Estudou, de facto, numa escola da cidade as leis da sua formação académica; e é verdade que foi ali o revolucionário comandante de um assalto ao depósito de
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armas, logo a seguir distribuídas pelo povo; que também esteve à frente da ocupação do Ayuntamiento, e invadiu a Capitania General numa revolta de amadores, quando ali chegaram ecos da Vicalvarada de 1854, para obrigar Isabel II a substituir por outro o governo do conde de San Luis; que ali dirigiu no curto tempo de três anos o semanário de literatura El Eco de Occidente; ou que em 1871 foi deputado representante da região de Granada no parlamento. Mas é inegável que desde cedo se quis distante daquelas andaluzias, e sentiu Madrid como único lugar para o êxito de qualquer ambicioso escritor. «Sem vivermos em Madrid não podemos chegar a grande homem!», é uma frase da sua inquebrantável vontade de fama, nos tempos em que Guadix e Granada lhe surgiam como fatalidades modestas para uma grande ambição.
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Em Historia de mis libros fica a saber-se como avaliava aquela terra natal que lhe dava o lugar de quarto filho num total de dez, vasta prole dificilmente alimentada e educada por um senhor Alarcón conservador e de reduzidas posses para tanta descendência: «Na cidade de Guadix, que tem catedral, alcáçova árabe, rio, hortas, várzea, olivais, vinhas, serras, batalhão provincial (hoje de depósito), duas lápides romanas e um alto-relevo fenício, desde a idade dos dez anos até à dos dezanove escrevi os meus primeiros versos, artigos e novelas… Quem me ensinou? — Ninguém. — Não sou discípulo de nenhum Rol, grande ou pequeno. — Sirva isto de desculpa às minhas obras, uma vez que não comecei a literatar por selecção ou capricho, mas cedendo a uma força interior tão espontânea e avassaladora como as da vida orgânica, e porque me foi desde logo forçoso encarar a coisa como ofício e entregar à imprensa os meus pobres borrões, sob pena de ficar enterrado em Guadix e a cantar missas, quando a minha vocação era o matrimónio, ou ver-me obrigado, numa qualquer oficina ou mercearia, a desmentir a minha qualidade de neto de fidalgo.» Na sua terra natal, o jovem Alarcón seria obrigado a cantar missas porque lhe impunham o Seminário Conciliar de San Torquato de Guadix e as consequências profissionais a ele previsivelmente ligadas. Mas decidiu, com vinte anos de idade, fugir da casa paterna e instalar-se em Madrid. Transportava consigo pouco dinheiro e muitas esperanças; e na mala uma grande porção de versos. Vencer literariamente na capital era porém mais difícil do que a sua ingenuidade provinciana tinha imaginado. Regressou tempos depois a Guadix como soldado cabisbaixo, recebido embora
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com a boa vontade de pais saudosos e atormentados pelos desvarios do filho pródigo. Chegou a haver no seu comportamento uma promessa de tranquilidade; mas, terminadas as limitações impostas ao militar, ressurgiu o revolucionário Alarcón, o que se empenhou na já referida refrega de Granada. De regresso a Madrid mostrou-se hábil, insinuante e até capaz de ser aceite na redacção de El Látigo, o jornal antimonárquico onde a sua escrita venenosa lhe impôs um duelo. Ele próprio se recordou no mau dia amanhecido com esta prova que o humilhou: «Aos vinte e um anos, cavaleiro andante da revolução e soldado do escândalo, lutei cara a cara com o poder mais forte da minha pátria para me encontrar numa manhã de Fevereiro sozinho num campo deserto e à mercê dos meus inimigos, com uma mão sem préstimo, que não sabia defender-me a vida, ficando a devê-la à nobre dignidade do opositor enquanto os meus cúmplices do jornal lavavam as mãos ou faziam o que é completamente contrário a lavá-las. [Este duelo aconteceu no dia 11 de Fevereiro de 1855, e Alarcón teve como compadecido opositor o poeta venezuelano Heriberto García de Quevedo, redactor do periódico católico El león español, disposto a considerar como pessoais as ofensas à monarquia.] Mas se o meu desengano e a minha lástima foram horríveis, de igual modo foi o escândalo; e fique a saber-se que, já célebre na província e na cidade quando me despontava o buço, fui consagrado demagogo pelas mil trombetas da fama no mesmo dia em que tinha deixado de sê-lo. Bem certo é que qualquer coisa de muito grave sucedeu nesse dia ao meu coração e à minha inteligência, levando-me a deixar nove anos passarem para publicar de novo uma ideia política!… Toda a minha juventude!»
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As consequências psicológicas deste duelo mostraram um novo — e para muitos incompreensível, e para muitos imperdoável — Alarcón. Durante nove anos Alarcón negou-se às tentações que lhe eram constantemente sopradas pela sua vocação política. Mas pôde impor-se como crítico de teatro, marcar presença como polémico escritor de ficções, como articulista lido em muitos periódicos, e espantar como mundano dos salões «aristocráticos» e conservadores de Madrid, do gran mundo onde a sua cultura e os seus rasgos oratórios tinham noites de glória e sem confrontos com temíveis rivais. Onde estava o antigo revolucionário? Onde estavam as prosas, as ficções com a agressividade política e social que seriam de esperar naquele homem de tanto fel antimonárquico, de tanta insubmissão aos valores instituídos pelo poder? Como admitir, escreveu Navarro González, que «o furibundo revolucionário que em El látigo fustigava o trono e o exército, onde afirmava que as colónias de África deviam ser abandonadas porque inúteis e caras, tenha em 22 de Novembro assentado praça como soldado voluntário no batalhão de Ciudad-Rodrigo, decidido a ser, não apenas testemunha, mas actor da Guerra de África?» De pouco valeu ao cidadão Alarcón o ficcionista de excepcionais qualidades literárias. As suas histórias, que hoje se lêem sob a evidência de um romantismo consensual e uma observação da sociedade por vezes muito irónica, embora não revolucionária, que continuam vivas entre os editores do seu país e a ser repetidas por um sem-número de edições, quis à força crítica de muitos dos seus contemporâneos parecer matéria digna de um combate sem tréguas. Leopoldo Alas Clarín, o progressista autor de La regenta, subiu neste programa ao primeiro plano zurzindo-o com uma sem-
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-piedade sistemática, acusando-o de «débil cultura, vulgaridade de estilo e afeição pelo inverosímil», obrigado no entanto a confessar que lhe encontrava o inexistente em quase todos os que então escreviam novelas: «a arte de saber inventar histórias merecedoras de atenção, de fazer as suas paixões falarem com linguagem própria e encontrar aquilo que são as misteriosas perspectivas do interesse.» O gosto que em Historia de mis libros Alarcón sentia pelos ataques à sua literatura, parece contraditório com a renúncia marcada em 1882 pelo derradeiro La prodiga. «Eu queria paz […] e como resultado de tudo isto resolvi nunca mais escrever novelas», chegou a confessar. Mas num texto recolhido em Últimos escritos é introduzido um matiz a esta decisão drástica: «Não é que o público me pareça definitivamente pervertido. Em primeiro lugar, nunca deixei de ter sólidas razões para uma opinião contrária a isto. Em segundo lugar, vejo com clareza que está a passar um ciclone. A avenida de lodo, daquele lodo que oportunamente submergiu o meu coitado herói de La prodiga, de algum tempo a esta parte a baixar mais e mais. Se não escrevo é por falta de tempo; mas poderei voltar a escrever depois de Deus Nosso Senhor (mas que tontice!, vão exclamar não poucos sábios quando lerem esta invocação) fazer o obséquio de me conceder escolhas e meios para os meus filhos não terem de ser literatos no dia em que eu lhes faltar.» Já houve quem considerasse (como Pérez Gutiérrez em El problema religioso en la generación de 1868) estas justificações simplistas e atribuíveis, com muito mais razão, a um triplo e bastante rasteiro fracasso: amoroso, com o objecto de uma paixão sua a casar-se com outro, ainda por cima bem parecido e folgado na vida; político, com o duelo e a humilhação de uma bem propagada
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misericórdia do adversário; artístico por ter grandes ilusões, dignas de um pianista de concerto (deve entender-se isto, claro está, como metáfora) e ver-se reduzido à verticalidade fanhosa de um piano de café. Estas e outras justificações não parecem de indesmentível evidência perante o seu abandono da literatura. Só é certo que Alarcón, depois dos fortes ataques críticos inspirados pela publicação de La Prodiga, teve nove últimos anos de vida percorridos em solidão literária; e que o silêncio deste retiro acalmou os seus opositores. Chegou-lhe depois a hemiplegia, o momento em que decidiu recordar com El Escándalo o que melhor tinha feito como romancista, e a frase que os seus biógrafos sentem como auto-satisfação cumprida: «a um tal romance só falta a minha morte». E não teve o romance que esperar muito, porque Alarcón morreu em 19 de Julho de 1891. A.F.
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AO SENHOR DON MANUEL TAMAYO Y BAUS
Secretário perpétuo da Real Academia Espanhola MEU MUITO QUERIDO MANUEL:
Faz algumas semanas entretivemos os nossos lazeres caniculares nesta sossegada vila de Valdemoro, de onde vamos regressar à vizinha Madrid, e por isso te envio a história de O CAPITÃO VENENO tal como vivia inédita no arquivo da minha imaginação; e hás-de recordar que me incitaste com vivas instâncias, muito seduzido pelo tema, a escrevê-la com a certeza (foram as tuas bondosas palavras) de que me daria matéria para uma interessante obra. A obra já está escrita e até impressa; e aqui me tens a enviá-la. Darei graças se as tuas expectativas não forem defraudadas; e, pelo sim, pelo não, dedico-a estrategicamente a ti, pondo-a ao abrigo do teu glorioso nome, já que tão boa te pareceu, não na forma literária mas no fundo, a história do meu CAPITÃO VENENO. Adeus, generoso irmão. Sabes quanto te quer e admira o teu afectuosíssimo irmão mais novo PEDRO. VALDEMORO, 20 de Setembro de 1881.
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parte primeira FERIDAS NO CORPO
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i. um pouco de história política
Na tarde de 26 de Março de 1848 houve tiros e facadas em Madrid, entre um punhado de civis que expiravam lançando o grito até ali desconhecido «Viva a República» e o exército da monarquia espanhola (conduzido ou criado por Ataulfo, reconstituído por Don Pelayo e reformado por Trastamara), que tinha nessa ocasião como chefe visível, em nome de Dona Isabel II e Don Ramón Maria Narváez, o presidente do Conselho de Ministros e ministro da Guerra… Mas isto basta, quanto a história e a política, e passemos a falar de coisas menos conhecidas e mais amenas, com origem ou conjuntura ligada àqueles lamentáveis acontecimentos.
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ii. a nossa heroína
No andar térreo esquerdo de uma humilde mas preciosa e limpa casa da rua de Preciados, rua muito estreita e retorcida naquela época, e teatro da refrega naquela ocasião, viviam sozinhas, ou seja, sem companhia de nenhum homem, três boas e piedosas mulheres com muitas diferenças entre si quanto ao ser físico e ao estado social; e depois disto dir-se-á que era uma vez uma senhora idosa, viúva, natural de Guipúzcoa, com ar sério e distinto, uma sua filha jovem, solteira, natural de Madrid e bastante bonita apesar de diferente, no género, da sua mãe (dando por isso a entender que saíra toda ao pai), e uma criada impossível de filiar ou descrever, sem idade, figura e até certo ponto sexo determináveis; baptizada, se tal coisa puder dizer-se, em Mondoñedo, e a quem já fizemos excessivo favor (como também fez aquele senhor padre) reconhecendo-a da espécie humana… A mencionada jovem parecia o símbolo ou a representação viva e com saias do senso comum, tanto era o equilíbrio entre a sua formosura e o seu ar natural, entre as suas elegância e simplicidade, entre as suas graça e modéstia. Era muito fácil passar despercebida na via pública, sem alvoroçar os galanteadores profissionais, mas impossível que alguém deixasse de admirá-la e ficar cativado com os seus múltiplos encantos
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quando lhe prestasse atenção. Não era, não (ou, melhor dizendo, não queria ser) uma dessas beldades vistosas que se fazem notar, fulminantes, que atraem todos os olhares mal se mostram num salão, teatro ou passeio público, e comprometem ou anulam o desditoso que as acompanha, seja ele noivo, seja ele marido, seja ele pai, seja o preste João das Índias em pessoa… Era um conjunto sábio e harmonioso de perfeições físicas e morais com uma prodigiosa regularidade que não entusiasmava de imediato, como não entusiasmam a paz e a ordem, ou como acontece aos monumentos bem proporcionados onde nada nos choca nem maravilha até chegarmos à conclusão de que é tudo de igual forma fácil e natural, e por causa disto tudo belo. Dir-se-ia que aquela deusa honrada da classe média estudara a forma de vestir, pentear, olhar, mover, preservar com perícia, enfim, os tesouros da sua esplêndida juventude, de forma e maneira a não julgarmos que se vangloriava, ou era presunçosa ou provocante, apenas muito diferente das divindades por casar que fazem alarde dos seus feitiços e vão por essas ruas de Deus dizendo a toda a gente: esta casa… vende-se ou aluga-se. Mas não nos demoremos com floreados nem desenhos, pois muito temos para referir e de pouquíssimo tempo dispomos.
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