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Casa de inCesto
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ilustração de ian Hugo para Casa de Incesto
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tÍtULo do oRiGinaL: house of InCest
© sisteMa soLaR, CRL (2022) RUa Passos ManUeL, 67B, 1150-258 LisBoa © anaÏs nin state tradução © anÍBaL FeRnandes 1.ª ediÇÃo, aBRiL 2022 isBn 978-989-8833-73-0 na CaPa: CoLaGeM CoM ZodÍaCo e UMa aJUda de Man RaY ReVisÃo: dioGo FeRReiRa dePÓsito LeGaL 497463/22 este LiVRo Foi iMPResso na ULZaMa
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o seu nome. naquele registo de neuilly-sur-seine e numa página de fevereiro de 1903 consta que o seu pai, um pianista cubano, e a sua mãe vagamente cantora com uma complicada ascendência de dinamarqueses, cubanos e franceses, lhe deram um nome de linha inteira; e vemo-nos incitados a percorrer num esforço de nove palavras, não menos, as que lhe chamam Angela Anaïs Juana Antolina Rosa edelmira nin y Culmell. tudo o que veio a parecer-lhe — mesmo num tempo de alargados nomes que eram aviso de bons nascimentos — excessivo; e que aos vinte e nove anos de idade, quando teve de designar-se como escritora, fê-la chegar na sua folgada sucessão de títulos à simplificação que a resumia num Anaïs nin agradável na música e que também soaria, num mais atento mundo de leitores, como ana is (é) nin, «a Ana é nIn», ou seja, marcada pelo I «eu» entalado entre idênticos e inter-negativos opostos — entendam-se aqui o sexo, os desejos e a vida. A sua primeira infância — distribuída por diferentes países da europa e ao sabor do que determinavam os concertos do seu pai (o pai toca piano, dirá no seu diário. a mãe canta. a criança sossega. a música transforma a batalha humana em beleza.) — terminou sem grandes preâmbulos quando ela tinha onze anos de idade; porque àquela senhora Culmell, de medianas posses, o pianista preferiu outra muito rica; separação de vidas que levou
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Anaïs, com a sua mãe e dois irmãos mais novos do que ela, para os estados unidos da América; e que também lhe trocou o francês dos anos europeus pela língua inglesa preferida e única quando resolveu exprimir-se sob a forma escrita. Anaïs nin nunca teve um rosto que atraísse pela sua beleza; mas via em criança o seu pai com a obsessão de a deixar reproduzida em fotografias e dizer como um estribilho: «um encanto… um encanto», palavras já nesses dias bem-vindas e até necessárias à sua vocação de sedutora. Anaïs precisava de elogios à beleza de rosto que em si não existia; e a sua ausência surgia-lhe com a dimensão de uma desgraça. em nova Iorque foi modelo de estúdio para expor o seu corpo, que tinha bem formado e com as linhas de uma saudável juventude, à atenção profissional de pintores; mas a consciência cada vez mais incómoda de possuir um rosto sem todas as perfeições pedidas pela sedução visual, fê-la chegar à decisão de se entregar a uma operação cirúrgica e corrigir aos trinta anos de idade a curvatura do nariz; de conseguir seis anos depois que um estomatologista lhe anulasse a distância inútil entre os dois principais incisivos; de se entregar com quarenta anos de idade às mãos sábias de elizabeth Arden; e, com mais avançada idade, de submeter-se a vários liftings. no sexto volume do seu diário encontramos para toda esta actividade correctora duas parciais justificações: não perdoamos a uma mulher que envelheça […] a mulher que envelhece é um cetim amarrotado. em 1923, o seu casamento com hugo Guiler, funcionário do City Bank, devolveu-a à europa, mais precisamente a Louveciennes, um dos arredores de Paris. frequentou escritores; os que eram franceses e os americanos que viam nesses dias a cidade-luz como essencial à sua afirmação literária.
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Mas não era ainda uma escritora publicada; só em 1932 surgiria a discreta edição de um Unprofessional study que tomava como tema o então «maldito» D.h. Lawrence. Anaïs nin iniciava assim a sua presença pública na literatura; pública: — porque escrevia desde muito nova e em privado o que viria a ser a mais célebre e festejada das suas obras; porque acumulava as folhas e folhas de papel que viriam a fazê-la autora dos muitos volumes de um fascinante diário. Desde muito nova Anaïs vertia-se em palavras que chegariam a encher quinze mil páginas dactilografadas, revelava-se num meio século de reflexões por onde fez correr a sua vida e a de todos os que a rodeavam: Vivo em termos de uma fraseologia imediata, escreveu, com o desejo intenso de capturar, reter; como uma febre. […] sou atormentada pelo conflito ético do Diário. Como é que evitarei não ferir as pessoas? Como é que poderei revelar, mas de forma tão subtil que não seja possível a partir dela deduzir-se nenhum facto, nenhuma declaração explícita? […] todos os escritores dissimularam mais do que revelaram. Anaïs nin, essa, estava disposta a ultrapassá-los com uma confissão monumental que teria, depois de entregue ao mundo, um lugar ao lado das revelações de santo agostinho, Petrónio, abelardo e Rousseau. naquele Paris cheio de artistas havia muitas solicitações emocionais e sexuais para uma sedutora sensual como Anaïs nin, e também pouco disposta a sentir-se limitada às dolorosas alegrias de um leito normalizado — o do seu marido hugo Guiler: Reparo numa coisa terrível — que o sexo do Hugo é grande de mais para mim, e isto faz com que o meu prazer nunca seja total. de permeio há sempre uma dor. será este o motivo da minha secreta insatisfação?
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numa vida muito preenchida por encontros com intelectuais, henry Miller surgiu com a sua grande força mental, com o seu físico de macho atento; e se começou por limitar-se ao papel de empolgante atracção colhida à mesa dos restaurantes— Gosto de vê-lo comer. Gosto de comer com ele — veio a seguir a inevitável ligação mais íntima mas também manchada — hélas — pela ausência desta redutora confissão: oculto ao Henry que raramente atinjo com ele o verdadeiro orgasmo. Ao lado de Miller havia no entanto June, a mulher que ele (nas páginas de tropic of Capricorn) encontra pela primeira vez num dancing da Broadway e descreve com «estatura alta, real presença, corpo cheio, segurança de si própria, a fender o fumo, o jazz e o clarão das lâmpadas». esta June faz-se para Anaïs objecto de uma invencível tentação sáfica: descobri o prazer de dirigir a minha vida como um homem, fazendo a corte à June. naquele Paris anterior à segunda Guerra Mundial, uma mão cheia de mulheres serviam-lhe neste campo de incitamento e exemplo: nathalie Barney, Djuna Barnes, sylvia Beach, Romaine Brooks, Gertrude stein… Mas houve em Anaïs, para lá da obsessiva procura de um prazer físico, mais esta irremediável negação: não há vida no amor entre mulheres. o nosso amor significaria a morte, o amplexo entre dois fantasmas. e ainda isto, escrito em Ladders to fire mas também explícito em Casa de incesto: não é o desejo de possuir a outra, mas de ser a outra… os seus corpos tinham-se chocado como se encontrassem a sua própria imagem num espelho. tinham sentido o frio de uma parede de gelo, a que nunca era levantada num abraço masculino. e é do seu diário esta decepcionada conclu-
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são: sinto uma calorosa amizade por mulheres, mas nunca um desejo sexual… nunca amei sexualmente uma mulher. tantas perturbações psicológicas não a impedem de oscilar entre Miller e June, com Miller caído numas lágrimas que associamos mal ao dogmático autor de sexus e à franqueza das palavras desta carta: «A June desde logo me disse que estavas apaixonada por mim ou que estava eu apaixonado por ti. e depois, quando te encontrou, que se tinha apaixonado por ti; o que me deixou infeliz, não por causa dela mas de ti. e no dia em que chorei na tua casa, sentia-me desgostoso e com um vivo desejo de ter-te nos meus braços.» entalada entre duas forças, Anaïs por sua vez escreveu: tenho o meu amor por June sempre presente. ontem não consegui suportar a visão da sua fotografia na chaminé. ela possui-nos a ambos. e ainda este desespero: Quero drogar-me. Quero conhecer pessoas perversas. Conhecê-las intimamente. Quero morder na vida e ser por ela despedaçada. o Henry não me dá nada disto. despertei nele o amor. Mas que o amor vá para o diabo! nesta vida preenchida por uma sexualidade decepcionada mas activa, houve entretanto o insuperável contratempo da gravidez. Grávida de henry Miller? tudo leva a crer que sim. Gravidez indesejada, como nos deixa muito claro o texto autobiográfico «Birth»: não passo de um sofrimento sem memórias… estou tão esgotada, que não posso mover-me em direcção à luz — ou voltar os olhos para o relógio. o meu corpo é fogo e contusões, a minha carne é dor. a criança não é uma criança, é um demónio que me estrangula. e em setembro de 1934, com nove meses cumpridos sobre estas revoltas, terá a ajuda da natureza que apenas lhe oferece uma menina morta. eu fazia
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força com cólera, com desespero, com frenesi, com a sensação de que ia morrer ao fazer essa força, como se exalasse o último suspiro. […] Mostrem-ma. o médico levanta-a. É violácea e pequena como um homem em miniatura. Mas é uma menina. tem os olhos fechados e longas pestanas. Dois meses depois dá-se a ruptura sexual entre Miller e Anaïs, com o seu pretexto mais visível na inesperada viagem de Anaïs a nova Iorque (sem avisar Miller) para se encontrar com o psicanalista e escritor otto Rank, que a fascinava desde que tinha lido o seu ensaio a arte e o artista. «Podes continuar a fazer de mim um capacho da tua arte», diz-lhe então Miller numa carta; «é uma coisa que deve dar-te algum prazer, Anaïs nin (sendo, como és, uma grande artista).» Quanto a hugo, marido desta esposa volátil, cai de repente e tardiamente em si como pode depreender-se de uma carta sua a henry Miller: «É preciso tempo para um grande pacóvio do meu género compreender a verdadeira razão do seu erro, esse erro muito especial que te branqueia a ti por completo. […] sem saber porquê sinto-me ferido, como realmente estou, e não sei por que razão só agora desconfio, como realmente desconfio. Porque todas as mulheres mentem, mesmo as melhores.» René Allendy deixou estas palavras no registo da sua primeira sessão com hugo Guiler, o infeliz marido que nesses dias resolveu pedir ajuda à sua psicanálise: «A Anaïs como que está morta nos meus braços. sobressalta-se em contacto com a minha pele. foge das minhas carícias. ou então provoca-as para se descartar delas mais depressa. Dorme fora de casa. e encontro mensagens debaixo do travesseiro: “Vou entrar tarde. Gosto de ti como de mais nada no mundo.” estas duas frases espantam-me. e quando acordo o seu lugar está vazio.
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«A sua frieza perturba-me. «sabe que a Anaïs mantém um diário falso para exorcizar os seus fantasmas? fala de Miller. Descreve as noites que passaram juntos. Descobri-o no quarto dela. exigi uma explicação: “Meu querido, não passa tudo de uma invenção. sou uma escritora! tenho uma imaginação monstruosa. sou pura, pura! Ver-me-ias assim tão calma se tivesses dado com o meu verdadeiro diário? ficaria desesperada. Vê como sorrio para ti. faço-o como uma criança.” «Mas não foi uma criança quem me arrastou até um lupanar da rua Blondel. A dona parecia conhecê-la bem. A Anaïs pediu-lhe duas mulheres. fez questão de escolhê-las. uma era parecida com ela. A outra… tinha a voz rouca da June. uma quis fazer de homem. A Anaïs mandou-as parar. Ambas deviam ser mulheres. houve um crescendo de gemidos. A Anaïs apertava os lábios. e às tantas empurrou-me em direcção a elas. «A Anaïs falou-lhe do nosso pacto? Já estávamos casados desde há dois ou três anos. e exigiu a sua liberdade. “só uma vez por semana.” nada contra. e nesse dia não havia perguntas. uma vez por semana, para me ser possível conservá-la durante toda a vida. De acordo com o que ela diz, a coisa aguentava-se. Mas viver isto multiplicado por cinquenta e duas semanas e por dez anos, é mais do que um homem consegue suportar.» em 1936, Anaïs e hugo decidem romper a sua vida conjugal. e não só por um novo cargo no City Bank o obrigar a largos períodos fora de Paris; ela também não suporta a casa de Louveciennes. Parece-me que já não tenho aqui lugar; ou dá-se então o caso de eu estar contaminada por uma actividade febril, por intensidade, por excitação. […] tenho agora um
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novo eu que se sente aqui estranho, um novo eu que é aventureiro e nómada. Aos trinta e três anos de idade, Anaïs ainda não era autora publicada de nenhum dos seus romances; o seu nome nas letras podia apenas reivindicar a autoria de um ensaio sobre Lawrence e de um poema em prosa, Casa de incesto, que parecia dever tudo aos franceses do surrealismo. Diz-nos o seu diário: umas trinta páginas de prosa poética, escrita de uma forma totalmente imaginativa, uma explosão lírica. henry Miller teve uma má surpresa. ficou desconcertado. «será mais do que um tecido de brocado, do que muito bonita linguagem? […] somos mergulhados no estranho sem aviso prévio. Precisamos de ler isto cem vezes.» Henry escreveu sobre June de uma forma muito realista e directa, tenta Anaïs explicar-nos e explicar-se. Mas senti que não me era possível penetrar nela assim. escrevi portanto à maneira surrealista. Falei dos seus sonhos, do mito de June, dos seus fantasmas. Mitos que não são seguramente indecifráveis e misteriosos. Decepcionada com as reservas de Miller, Anaïs mandou o seu livro e uma carta a Antonin Artaud, onde procurava expressar tudo o que lhe devia, ansiosa por ter a sua aprovação: Você, que empregou a linguagem dos nervos e a percepção dos nervos, que sabe o que é distendermo-nos e sentirmos que não é um corpo, carne, sangue e músculos que se distendem mas uma rede suspensa num espaço que fervilha de alucinações, talvez encontre aqui resposta às constelações que deram nascimento às suas palavras, à fragmentação das suas sensações, um paralelismo, um entrelaçado, um acompanhamento, um eco, uma velocidade igual na vertigem, uma ressonância. Uma ressonância do seu grande fervor pensante,
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da sua fadiga do princípio do mundo. o essencial é não sentirmos que as nossas palavras caem no vazio. nenhuma das suas palavras escritas em L’Art et la Mort caiu no vazio. talvez possa ver nestas páginas o mundo que preparei para o receber, uma ausência de paredes, uma luz absorvente, reflexos de cristal, nervos drogados, olhares visionários, febres de sonho. apesar de escrito antes de o conhecer, este livro está aqui para coincidir com a sua visão do mundo. Artaud confirmou até certo ponto as expectativas da autora: «uma coisa me espanta; parecer-me, no manuscrito que me enviou, que tem a noção de estados subtis, quase secretos, com um enriquecimento que eu só senti em mim pelo preço de sofrimentos nervosos incríveis e por mim não procurados. tenho uma extrema curiosidade em saber ao que se deve em si esta espécie de ciência que atinge através dos órgãos os fundamentos do espírito.» stuart Gilbert, o erudito inglês, o «imbatível» tradutor da prosa de Cocteau para a sua língua, foi entre todos o mais expressivo e o que mais alegria deu a Anaïs nin: «É evidente que o autor de Casa de incesto teria, numa época mais recuada, terminado a sua carreira na fogueira — na boa companhia, seria inútil dizê-lo, de Joana d’Arc. Porque há qualquer coisa de inquietante na sua clarividência. É como se ela tivesse bebido uma poção ou descoberto um sortilégio que lhe desse acesso a esse mundo subterrâneo que à entrada tem escrito este aviso: “Vós, que aqui entrais, abandonai toda a consciência!» É preciso coragem para alguém se lançar nesta busca, e além de coragem, perspicácia e um delicado sentido de equilíbrio e o abandono de si. todas estas qualidades, e com elas uma habilidade pouco comum a manejar as palavras e os ritmos, são evidentes na obra de Anaïs nin.»
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Com um corpo esbelto e livre mas de sexualidade insatisfeita, a autora de Casa de incesto vai experimentando tudo o que podem oferecer-lhe as seduções de Paris. Ainda não é autora publicada de nenhum dos seus romances, não encontra um conhecimento muito alargado de Casa de incesto (nessa altura só existente em inglês e numa edição pouco vista nas livrarias da cidade) mas vence com o espectáculo de uma cultura e de um desenvolto comportamento feminino que chegam para deixar fascinados muitos intelectuais da cidade. (sinto-me tão estranhamente liberta, que não encontro em mim nenhum limite, nem muros, nem temores). Qualquer tentativa de elaborar uma lista das «paixões» masculinas que enfeitaram neste período a sua vida, estaria de antemão toldada por suspeitas de duvidosa integralidade. Citemos apenas os seus dois casos mais significativos: o de Gonçalo More, peruviano casado com uma bailarina (e que era o técnico de luzes preferido de Antonin Artaud), e o de Conrad Moricand, o astrólogo suíço muito próximo de Max Jacob, Cocteau, Cendrars, Picasso e Paul Morand, o responsável por Anaïs nin ter considerado «a sua casa de incesto» uma excedente décima terceira casa do Zodíaco. Mas… decorridos três anos sobre estas ruidosas e destemperadas alegrias, o agitado Paris de artistas começou a não saber disfarçar que se preocupava com os indícios de um pré-anúncio de guerra. A tensão política internacional, a evidente vocação expansionista da Alemanha nazi, na rádio os vociferados discursos de hitler, chegavam para um susto e para restituir aqueles deslocados americanos à segurança do seu país natal. Anaïs resistia; e até podia regozijar-se por ter recebido nesta derrocada, vindos
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da América, exemplares de Winter of artifice, o seu primeiro romance. Mas há para tudo um limite; a 1 de setembro a Polónia tinha sido invadida, e as tropas do terceiro Reich faziam estragos e atrocidades que bastavam para atemorizar os mais corajosos de Paris. em Dezembro, e de novo acompanhada por hugo, Anaïs está em Lisboa. (não consigo sorrir ao sol. não posso sorrir aos edifícios brancos, às mulheres vestidas de preto, às flores silvestres e aos cantos nos cafés. trago comigo o luto da França.) Com vantagens de uma habilidosa neutralidade política, a capital portuguesa tinha-se feito lugar ideal para a obtenção de passaportes necessários ao refúgio na América. Muitos procuravam-na com este desesperado fim, conferindo-lhe a desvairada balbúrdia que sugeriu a Man Ray esta imagem: «Lisboa é uma casa de doidos, cheia de refugiados de toda a europa!» Anaïs e hugo vão para nova Iorque num hidravião com paragem na Ilha de santa Maria dos Açores. (a lenda conta que é uma parte da atlântida não desaparecida. Rochas de coral negro, areia negra de erupções vulcânicas. Casas com tons de pastel penduradas nos rochedos. Chuva doce, fina e parda. as casas apoiam-se umas nas outras, frágeis e mal seguras como as casas de Utrillo. as mulheres passam vestidas com uma longa capa preta, o rosto dissimulado num grande capuz sustentado por uma armadura como os chapéus das freiras inchados pelo vento.) em nova Iorque, Anaïs descobre uma nova June: a escritora Djuna Barnes. e também reencontra neste novo cenário muitos dos que tinha conhecido em Paris, embora os rostos não revelem nenhum interesse, nenhuma sensibilidade. um pouco perdida, encontra o fotógrafo Albert stieglitz e pede-lhe: Faça-me gostar de nova iorque!
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Mas não foi ele quem fez o milagre: foi Rupert Pole, educado no alto mundo, o seu jovem do oeste com vinte e um anos de idade, o que mais tarde seria designado por my phantom lover porque apaixonado efémero, porque muito mais interessado numa intimidade vivida junto de truman Capote e Gore Vidal. Agora menos agitada, sem a teia de relações e interesses que construíam a forte sedução do «seu» Paris, Anaïs vive um intenso período de escritora-romancista. Começa mal com o seu livro mais erótico, um delta of Venus espalhado por esforçados ensinamentos do Kama-sutra e que merece de Djuna Barnes um implacável golpe de navalha: «horrível estilo, medíocre pornografia»; só será publicado em 1977, o ano da sua morte, com esta explicação da autora: durante muito tempo acreditei que estava com a minha verdadeira feminilidade comprometida nestes textos. e deixei-os de lado. Mas ao voltar a lê-los muitos anos mais tarde apercebi-me de que a minha voz não foi ali completamente sufocada. em muitas passagens e de forma intuitiva utilizei a linguagem de uma mulher que descreve as suas relações sexuais tal como o seu sexo as vive. (overwriting — disse truman Capote, desagradado.) surgiram entretanto outros romances seus, reconhecidos por aqueles leitores que encontravam neles uma luz ofuscante a iluminar as raízes do corpo, uma verdade nunca anteriormente encontrada com a mesma franqueza na literatura feminina. em 1944, o exigente crítico edmond Wilson saudou assim Under a Glass Bell, um livro de contos: «Criatura secreta, meio mulher, meio espírito infantil, a todo o momento susceptível de se volatilizar e transformar num ser superior que sente as coisas que não podemos sentir.» Mas Anaïs nin era um rochedo solitário
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no mar da literatura americana: três formidáveis barreiras se erguem entre mim e os escritores americanos. Uma é o álcool, que só aprecio com moderação; não tenho também esses modos bruscos e directos de rapaz frustrado, próprios da mulher masculina e que lhes inspiram confiança; a terceira, suponho eu, é não ter saído de uma cepa americana. hugo Guiler, o seu semi-abandonado marido agora com o nome artístico Ian hugo, sente-se interessado em realizar uma curta metragem cinematográfica baseada em Casa de incesto, o livro de Anaïs nin que ele prefere. Chama-lhe sinos da atlântida e Anaïs escolhe Acapulco como local de filmagens. Acapulco é mágico e quente, e ela não se esquece de que encontrou lá Rubert Pole, o seu ex-amante-fantasma. Mas como duvida do talento cinematográfico de hugo, pensa que terá de intervir pessoalmente para o filme se transformar em qualquer coisa de excepcional e nunca vista. uma barca arruinada e encalhada na praia é o cenário ideal. hugo filma e Anaïs recita frases de Casa de incesto. os seus nove minutos são na maior parte abstractos, uma permanente sugestão de água inquieta, uma Anaïs que se dilui e balança numa rede suspensa entre espumas, que recita, que se alterna com sonoridades electrónicas. há nestes minutos uma inegável beleza visual e a surpresa da voz frágil de Anaïs a recitar-se; mas é difícil compreender esta frase de Abel Gance: «o primeiro poema cinematográfico de lograda realização.» o grande êxito da escritora vai acontecer-lhe a partir de 1981 com os volumes do diário. edições atrás de edições arrastaram leitores pelas imensas páginas da sua confissão. Vinham expurgadas de tudo o que pudesse comprometer pessoas ainda vivas ou passar por demasiado íntimo sobre o ponto de vista sexual, e
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ter-se-ia de esperar pela morte de todas elas para estar disponível ao público o que hoje pode ler-se com os títulos Henry and June, incest, Fire, near de Moon, Mirages e trapeze. em 1963, já com uma firme celebridade literária, participou na cruzada pró-LsD: o Lsd é um atalho que nos leva até ao inconsciente… é a mais agradável sensação que até hoje conheci, é como um orgasmo… mas essas paisagens já a minha escrita me tinha feito visitar. As feministas, que gostariam de tê-la entre as suas hostes, essas não conseguem mais do que um tom irado: são prova de uma desumanidade de revolucionárias, pessoas capazes de guilhotinar quem lhes aparecer com as unhas limpas. Anaïs nin morreu, cancerosa, em 14 de Janeiro de 1977. e muitos anos antes tinha escrito: o oceano vai deixar-me as cinzas à beira de todos os mares do mundo. A.f
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tudo quanto sei está contido neste livro redigido sem testemunhas, um edifício fora de toda a medida, uma cidade suspensa do céu. na manhã em que resolvi começar a escrever este livro, tossi. Qualquer coisa me saía da garganta e estava a sufocar-me. Quebrei o filamento que a prendia e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: acabo de cuspir o meu coração. Há um instrumento chamado quena, feito de ossos humanos. tem origem no culto de um índio pela sua amante. Quando ela morreu, ele fez dos seus ossos uma flauta. a quena tem um som mais penetrante, mais obsidiante do que a vulgar flauta. e quem escreve isto conhece a forma como ela soa. eu pensava nesta flauta quando cuspi o meu coração. só espero que o meu amor não morra.
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o duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc dietrich Inferno, august strindberg um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, nathanael West freya das sete ilhas, Joseph Conrad o nascimento da arte, Georges Bataille os ombros da marquesa, Émile Zola o livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J.-H. Rosny aîné hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, alfred Jarry o capitão Veneno, Pedro antonio alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert desnos A maçã de Cézanne… e eu, d.H. Lawrence o fogo-fátuo, drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg histórias aquáticas – o parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad o homem que falou (un de Baumugnes), Jean Giono o dicionário do diabo, ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco o caso Kurílov, irène némirowsky nova safo – tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura A costa de falesá, Robert Louis stevenson Gaspar da noite – fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal o rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, alberto Pimentel os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de o discípulo, Henry James o Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz o farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, isadora duncan Rakhil, isabelle eberhardt fuga sem fim, Joseph Roth
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o castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans tufão, Joseph Conrad heliogábalo ou o anarquista coroado, antonin artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, antonin artaud eu, Antonin Artaud A morte difícil, René Crevel A lenda do santo bebedor seguido de o Leviatã, Joseph Roth o Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne orunoko ou o escravo real (uma história verídica), aphra Behn As Portas do Paraíso, Jerzy andrzejewski tirano Banderas (novela de terra Quente), Ramón del Valle-inclán Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A lenda num café), Gérard de nerval Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos o estranho animal do Vaccarès, Joseph d’arbaud Riso vermelho – fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid andreiev A morte da terra, J.-H. Rosny aîné nossa senhora dos Ratos, Rachilde o colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes entre a espada e a parede, tristan Bernard A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van dongen os meus oscar Wilde, andré Gide As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard shaw Meu irmão feminino – «noites florentinas», Marina tsvietaieva Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz o filho de duas mães, edith Wharton A armadilha, emmanuel Bove um jardim na margem do orontes, Maurice Barrès erotika Biblion, Conde de Mirabeau A minha amiga nane, Paul-Jean toulet Paludes, andré Gide o bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins sol, d.H. Lawrence Cagliostro, Vicente Huidobro As magias do Ceilão, Francis de Croisset Má sorte que ela fosse puta, John Ford Chita – uma memória da Ilha do fim, Lafcadio Hearn A mulher 100 cabeças, Max ernst A dificuldade de ser, Jean Cocteau o duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin fondane), Victor segalen
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