André Barata «O Desligamento do Mundo e a Questão do Humano»

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Este livro justifica três agradecimentos. Ao Manuel Rosa, que me publica; à Vera Tavares, que me lê; aos meus contemporâneos que não desistem de um mundo ligado. E apesar de uma ressonância profunda, por isso mesmo, convém advertir que este livro foi todo escrito antes da pandemia da Covid-19.


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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © ANDRÉ BARATA, 2020 REVISÃO: LUÍS GUERRA 1.ª EDIÇÃO, MAIO 2020 ISBN 978-989-9006-35-5 DEPÓSITO LEGAL 470013/20 PUBLITO — ESTÚDIO DE ARTES GRÁFICAS PARQUE INDUSTRIAL DE PINTANCINHOS, 4700-727 BRAGA


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Índice

PRÓLOGO: O artifício da sobrevivência . . . . . . . . . . . . . . . . 11 O processo de desligamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 O mundo, a Terra e a nossa desmaterialização . . . . . . . . . 52 As máquinas e o seu futuro connosco . . . . . . . . . . . . . . . . 79 O provável primeiro desligamento: a desanimalização . . . . 87 Os limites do humano significam os limites das Humanidades 96 A matéria do religar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 A vida temporal comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 Tempo, dominação e violência política. . . . . . . . . . . . . . . 129 O colapso das metáforas ou o fim do humano . . . . . . . . . 151 EPÍLOGO: Frankensteins do tempo e o ciclo de Prometeu . . . . 163

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Que «moinho satânico» foi esse que triturou os homens transformando-os em massa? K ARL P OLANYI *

Nesta situação de radical alienação do mundo, a natureza e a história são de todo inconcebíveis. Esta dupla perda do mundo — a perda da natureza e a perda do artifício humano no seu sentido mais lato, que inclui toda a história — deixou atrás de si uma sociedade de homens que, privados de um mundo comum que os relacionaria e separaria ao mesmo tempo, vivem ora num desesperado e solitário isolamento, ora comprimidos numa massa. H ANNAH A RENDT **

* Karl Polanyi, 1944. A Grande Transformação. Trad. Tanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 51. ** Hannah Arendt, 1961. Entre o Passado e o Futuro. Trad. José Miguel Silva. Lisboa: Relógio D’Água, 2006, p. 103.


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PRÓLOGO

O artifício da sobrevivência

Hoje proliferam os convites a desligarmo-nos. Das redes sociais, do email, das plataformas, para a nossa desintoxicação digital. E também do ritmo acelerado, produtivista, em que fazemos do tempo não uma casa habitável mas uma indústria de alto rendimento. Porém, este convite é feito para que, desligando-nos, possamos restabelecer a energia e a capacidade de voltar a mergulhar na mesma indústria. Elogia-se a capacidade de desligar como uma válvula de escape que pode ser activada, um benéfico apagar as luzes até o dia seguinte, para equilíbrio de vida, matéria de saúde, até medicamentável. Como o descanso necessário para recuperar a força de trabalho, os comprimidos para dormir, o lazer indispensável para que o trabalho não perca todo o sentido. E, claro, conhecidos e disseminados os benefícios da prática, desligar-se-ão mais os que à partida já têm mais descanso e lazer, aqueles com mais oportunidades num mundo social cuja regra de funcionamento é a economia da desigualdade. Se puderes — publicitará o sistema socioeconómico — dá uma volta ao mundo e depois recomeça com mais força de onde paraste. Esta propaganda ao direito a desligar pressupõe a ilusão radical de que andamos excessivamente ligados, quando na realidade nunca andámos tão desligados do mundo e de tudo o que nele não está sob o controlo do sistema de produção global — que é também uma Web global e uma organização socioeconómica que se apresenta como única e inescapável. Quando se evoca o direito a desligar, até pode ser para religar à Prólogo: O artifício da sobrevivência

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Terra, para procurar a experiência, profunda, de pertença ao mundo. Mas será uma ilusão projectarmos o direito a desligar como futuro dos direitos humanos se apenas exprimir o nosso desejo maquínico de podermos fazer um turn off de quando em quando. Precisamente porque não é uma reivindicação humana, mas a nossa conformação a sermos cada vez mais como robôs, dispositivos desligáveis. Não há melhor indício do nosso desligamento do mundo do que o uso desta mesma palavra para exprimir tanto o problema de fundo que nos afecta como a estratégia para nele nos manter. Até podemos ganhar o direito a desconectar-nos de quando em quando e chamar-lhe direito a desligar, mas é também assim que se encobre melhor o desligamento radical que percorre a própria tendência dos tempos para cada vez maior conectividade. Este livro propõe-se pensar sobre esse desligamento de fundo, à procura de identificar aquilo de que nos desligamos, aquilo que conferiu legitimidade e valor aos modos por que nos desligamos e medir o alcance da mudança que está em curso. Qual vai ser o nosso futuro com as máquinas? Humanos reinvindicam o direito a desligar como se reivindicassem um direito a serem máquinas. Mas, quanto tempo teremos de esperar até serem as máquinas a reivindicarem direitos genuinamente humanos para si? Que conexões há entre o desligamento do mundo e a transição da condição humana para uma condição pós-humana? A história do desligamento do mundo é antiga. Tão antiga, pelo menos, quanto o monoteísmo, seguindo pelo protestantismo e depois as suas formas secularizadas. Max Weber e Hannah Arendt notaram-no especialmente bem, com os temas do desencantamento do mundo e da alienação do mundo1. Mas Hannah Arendt, 1958. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Lisboa: Relógio D’Água, 2001. Max Weber, 1905. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão. Lisboa: Editorial Presença, 2001. 1

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a enorme e acelerada transformação da condição humana, a apropriação e recriação das condições sob as quais os humanos existem juntos, levaram esse desligamento antigo a um patamar que o vai tornando a questão crucial do que possa ser o futuro. Este livro foi pensado em torno desta questão. Sabíamos que a experiência social do tempo se modificava — acelerada e artificialmente modificada para se desligar dos acontecimentos, tornando-se dessa forma ferramenta de dominação social e medida universal da desigualdade2. Mas esta modificação não se deu apenas com o tempo. Encontramo-la, como um padrão, em outras vertentes da condição pela qual existimos. Para além do tempo, também com a verdade, com as emoções, com o sentido da sobrevivência e do viver, com o conhecimento, com os animais, com a própria ideia de humanidade e de sujeito de história, nos relacionamos hoje de uma maneira desligada. Este longo e recorrente desligamento confunde-se com a própria história ocidental, tornou-se um elemento distintivo da modernidade, e abeira-se agora, vertiginoso, de um ponto culminante — de súbita e radical transformação da condição humana. Talvez a etapa derradeira do nosso desligamento esteja na nossa desmaterialização. Ou na migração da vida da humanidade para os lugares virtuais e para os lugares de negação da Terra que a ficção científica é pródiga a imaginar. Justifica-se encontrar um termo de comparação. Só num passado muito longínquo, encontramos uma transformação equiparável à que se vai preparando como futuro cada vez mais familiar: a capacidade de transmitir conhecimento sem ser através dos genes. Yuval Noah Harari Cf. André Barata, 2018. E se Parássemos de Sobreviver? Pequeno Livro para Pensar e Agir contra a Ditadura do Tempo. Lisboa: Documenta. 2

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chamou-lhe revolução cognitiva — «o ponto em que a história declara a sua independência da biologia»3. Hoje, avizinhamo-nos de uma transformação tão profunda como essa que nos transformou em animais de cultura. Também serve de medida de comparação termo-nos tornado animais de imaginação, no sentido de sermos capazes de descolar da realidade que vivemos e imaginar outras realidades, comparando-as, estabelecendo preferências e planos de acção para as realizar. Contudo, ambas estão ligadas, porque não pode haver cultura sem imaginação. Um grupo de animais articulando o que viveram a ponto de poder ser imaginado pelos que os acompanham e ouvem, e fazerem-no periodicamente, num arco temporal que a memória consiga cumprir, é a cultura a acontecer. Animais cuja natureza superou o genoma por cultura, o acaso por imaginação e o vínculo da espécie pelo da comunidade4. Por isso, a forma «sujeito de história» que emerge com a cultura não é apenas característica de indivíduos. Necessariamente, é social. E nenhum indivíduo, na medida em que participa de uma comunidade de cultura e história, ignora esse facto. Luc Ferry captou bem a forma como sabemos desse sujeito quando, para saber o significado de uma palavra, perguntamos o que ela quer dizer. Como observa Luc Ferry em O Homem-Deus5, obviamente não são as palavras que querem dizer, Yuval Noah Harari, 2011. Sapiens. Breve História da Humanidade. Trad. Rita Carvalho e Guerra. Lisboa: Elsinore, p. 49. Contudo, talvez fosse preferível falar em «revolução cultural», pois o que nela há de revolucionário não é o surgimento da cognição, mas de uma nova forma, desligada dos genes, de transmissão cognitiva: a cultura. A história do conhecimento é muito anterior à desta revolução e à própria humanidade. 4 O filme de Jean-Jacques Annaud, A Guerra do Fogo (1981), ilustra com expressividade, ainda que de modo bastante ficcionado, esta transição cognitiva da espécie humana para a cultura, inseparável do uso da imaginação em comunidade. Três indivíduos de uma tribo partem em busca de uma fonte de fogo, cuja técnica não dominam ainda. De volta à tribo, contam aos que ficaram — conduzindo-lhes a imaginação — as aventuras e os perigos da viagem. 5 Luc Ferry, 1996. O Homem-Deus. Trad. Maria do Rosário Mendes. Porto: Asa, 1997. 3

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mas um sujeito, como vontade, a quem estamos linguisticamente e, portanto, culturalmente ligados. Esta transformação em animais de cultura e de imaginação, por impressionante que seja, foi, essencialmente, uma modificação na capacidade de formação e transmissão de conhecimento. Por isso, faz sentido o sapiens que nos adjectiva como espécie. O que não faz sentido é pressupor-se que nos adjectiva de forma exclusiva. Outros primatas são culturais. E a natureza guarda muito mais conhecimento do que as nossas bibliotecas. A transformação que vem aí não alterará radicalmente a transmissão de conhecimento, que continuará a ser cultural. Com mais recursos, mas essencialmente baseada na partilha e conservação de informação. A era cultural prosseguirá portanto. O que torna a mudar então radicalmente? A comparação pode ser posta assim: a vantagem evolutiva da cultura sobre o genoma foi termos deixado de depender de uma materialidade biológica em particular para a transmissão de conhecimento; a vantagem que agora vem aí na história evolutiva é a independência crescente do sujeito de conhecimento de uma qualquer materialidade em particular, biológica ou outra. Se o genoma se foi tornando um suporte obsoleto para a transmissão de conhecimento, agora é a materialidade biológica dos animais que trazem o genoma nas suas células que se torna, por sua vez, obsoleta. Por isso, o avanço multimilenar da cultura sobre o genoma é a comparação mais adequada para o avanço da robotização, criação de andróides, invenção de novas materialidades sobre a nossa condição biológica, de seres que nascem, crescem, descobrem-se limites e possibilidades, adoecem e morrem. Em suma, se a primeira grande revolução na cognição, que originou a cultura, a história e deu sentido à ideia de sujeito humano, foi a libertação do conhecimento da especificação de um tipo único de suporte material de conhecimento — o património genético —, a segunda Prólogo: O artifício da sobrevivência

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grande revolução, a acontecer agora e num futuro próximo, é a libertação do conhecimento da especificação de um único tipo sujeito de conhecimento — nós mesmos. Resta saber se os animais que se reconhecem como sujeitos destes nossos corpos não se tornarão obsoletos. Nós mesmos? Prosseguindo o paralelismo, se os animais culturais que somos tomaram tudo o mais em seu redor como recurso ou meio para as suas finalidades, incluindo os da sua própria espécie, fará sentido perguntar se este novo sujeito de cultura, a emergir na sua independência crescente de qualquer materialidade biológica, não nos tornará também meros meios, fazendo-nos talvez ser outra coisa em que deixe de fazer sentido reconhecermo-nos como os mesmos. Dúvida tão mais pertinente quanto, em vez de um melhoramento humano, o que está em curso é já o cancelamento da imaginação e da cultura, que, em grande parte, estipularam a condição humana. Esta possibilidade da migração do sujeito para fora de nós mesmos é perturbadora. É como se a criatura fosse finalmente tomar o lugar do criador, mas também como se nós regressássemos à era pré-cultural em que não éramos sujeitos de história, apenas pacientes da evolução natural. Ou como se a cultura e a história, libertas de nós, nos devolvessem à mera evolução e biologia. Afinal, talvez o humano simultaneamente biológico e cultural não seja mais do que o intervalo evolutivo entre o ponto em que a história começa a declarar a independência da biologia e o ponto em que conclui essa independência, libertando-se dela como um fruto maduro. Se chamarmos revolução a esta independência, então provavelmente a história e a cultura humana não são mais do que o rebuliço revolucionário. Na verdade, com esta chave de interpretação — de que estamos evolutivamente confinados à condição de intervalo — outra perturbadora leitura se evidencia: esta espécie de devolução do humano à mera evolução está já a acontecer há muito, mesmo enquanto permanecemos corpos 16

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de carne e osso, e por mãos humanas. As inquietantes perguntas sobre o futuro têm formulações próximas na história moderna que formou o nosso presente e, por isso, umas e outras podem encontrar hipóteses de resposta que se iluminem reciprocamente. O processo evolutivo tem sido conduzido, desde o aparecimento da história humana, pela libertação da sobrevivência natural. Constituímo-nos animais culturais e sujeitos de história. Mas, a este respeito há uma grande e irónica evidência. Esta espécie animal, que ao desligar-se de constrangimentos materiais é mais poderosa do que as outras, vem levando para dentro de si essa técnica de poder — a lei da sobrevivência — e dela tem feito o princípio da sua organização social. Ciosa em não deixar os constrangimentos da sobrevivência fora do seu pleno controlo, substitui-os por outros inteiramente artificiais, tão artificiais que não devem ter resíduo de materialidade. Mas, logo os tornou realidades inabaláveis, socialmente inescapáveis. E por isso, apesar de todo o crescimento do domínio da condição humana, de todo o domínio dos factores biológicos — a fome e a morte, por exemplo —, nunca vivemos em tempos que deixassem de ser de sobrevivência. Apenas lhe demos um novo meio para a sua manifestação. O domínio humano da sua própria condição foi pretexto para a substituir por uma condição de dominação humana. A história da independência da história face à biologia e à sobrevivência natural foi, na verdade, também sempre uma história de independência da lei da sobrevivência face à biologia. A questão que fica, porém, é saber se a história que nos chega hoje, como força viva de que participamos, ainda consegue ser mais do que lei da sobrevivência abstraída e desligada da natureza. Ou se, pelo contrário, na sua forma mais decantada, a história humana coincidirá em absoluto com a lei de sobrevivência desnaturalizada. Não é esta uma outra maneira de designar o fim da história humana? Prólogo: O artifício da sobrevivência

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Ninguém ter de permanecer sujeitado à sobrevivência natural, eis um direito humano em que nos empenhamos seriamente. Apesar de subsistirem pobreza e crescente desigualdade, evita-se ferir limiares de dignidade, ainda que apenas reconhecidos aos humanos, e que passam por libertar as pessoas do risco da morte violenta, da fome, da miséria extrema. No entanto, continuamos a sobreviver, não por necessidade natural, mas por escolha e necessidade artificial. Sobreviver é hoje um valor, como se o sentido da vida fosse, em primeiro lugar, sobreviver, independentemente do status social. E como se sem este valor cumprido nenhum outro pudesse ser levado a sério. Talvez em épocas históricas passadas sobreviver não tenha sido um valor. Até porque a sobrevivência natural era um facto mais incontornável do que hoje. Talvez não tenha sido um valor para quem preferisse a vida contemplativa, ou mesmo uma vida activa sem relação com tarefas de sobrevivência, como sublinhava Hannah Arendt. Na Idade Moderna, contudo, muito mais do que na Antiguidade e na Idade Média, sobreviver tornou-se esse valor em si mesmo, indiscutível. E agora, na contemporaneidade, continuada por outros meios, em formas sublimadas, de necessidade artificial, a sobrevivência tornou-se lei moral. Tal como o trabalho, que se tornou a actividade social que responde à necessidade da sobrevivência. Precisamos de perceber por que razão andamos a sobreviver. Não perguntar se andamos, sabemos que sim, mas por que razão, por que caminhos histórico-conceptuais viemos parar a esta situação de que não se encontra saída não importa o avanço tecnológico que se alcance. A mudança de que se fala aqui pode ser enunciada de forma simples: cada ganho à sobrevivência natural serviu, acima de tudo, para desligar a sobrevivência da natureza. A ameaça exterior que obrigava a espécie humana a sobreviver internalizou-se através de um simulacro de natureza, ou 18

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lei natural, que criamos e recriamos socialmente. Por exemplo, o tempo social nas nossas sociedades contemporâneas não é parte da natureza mas um artifício humano erigido para ser vivido como uma lei natural. Outro exemplo é a orografia plana da realidade em que tudo o que nos importa assume a forma exclusiva de bem permutável, apenas variando em valores de troca transparentes. São derrubados quaisquer obstáculos, irregularidades, relevos, sombras, cantos, que singularizariam as relações humanas, as suas comunidades, culturas, experiências, palavras, metáforas. Tudo isso deixa de ser possível diante da transparência exigida por uma eficiente universalização da troca. Outros exemplos não faltarão de leis da necessidade artificialmente criadas para que a lógica da sobrevivência persista. Desregulam-se relações laborais e relações comerciais sob a mesma pulsão com que se desmata a Amazónia: não deixar nada a coberto de uma sombra, tudo exposto, à vista, transparente, contabilizável, literal, sem mistério nem sentidos figurados. Não deixar nada fora e solto da sujeição à mesma lei, tudo e todos expostos à lógica da sobrevivência igual, desprotegido. Na verdade, quanto mais assegurada estiver a sobrevivência natural, a da vida e a da morte, e da miséria absoluta, mais se liberta, como um valor sem contra-indicações, esta lógica de sobrevivência e da miséria ontológica em tudo o que resta. Entre as duas, são contempladas todas as possibilidades da sobrevivência e anula-se a de qualquer viver que não seja fundamentalmente sobreviver. Por paradoxal que pareça, acabar com a pobreza extrema no mundo é um objectivo essencial a esta artificialização global da lei da sobrevivência que se justifica moralmente com a igualdade: se uns estão sujeitados à sobrevivência seria injusto outros terem o privilégio de o não estar. Daqui não devia concluir-se que as maneiras por que uns conseguiram viver e já não apenas sobreviver sejam más. O ponto devia estar em universalizá-las ou, ao menos, redistribuí-las. Mas, em vez disso, faz-se da igualdade um cavalo de Troia para a disseminação da lógica sobreviPrólogo: O artifício da sobrevivência

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vencial. É uma estratégia desta disseminação sobrepor o tratamento justo à visão de bem, mesmo quando esta alcança um consenso aproximativo. No essencial, é precisamente esse o argumento da crítica às teorias liberais e libertárias da justiça social: uma concepção de justo dissociada de uma concepção de bem é uma concepção que abstrai artificialmente os indivíduos das suas comunidades e que dessa maneira os desliga com consequências muito reais. A solidão do individualismo por um lado, o esquematismo abstracto da companhia por outro. As próprias concepções de bem, do que significa viver junto com outros, além de simplesmente sobreviver, tornam-se esquemas de pronto a consumir, produtos de mercado que a justiça regulará no grande empreendimento que é a sobrevivência. A história da libertação da sobrevivência natural não pode ser confundida com a história deste desligamento do mundo. Têm propósitos diferentes. O propósito que animou a primeira era vivermos além de sobrevivermos. E não há uma concepção razoável de viver que não implique o ligamento ao mundo, para o fruir e dele participar como sujeitos de história, estar nele e não apenas de passagem. Com o desligamento do mundo acontece o contrário. É também uma libertação da sobrevivência natural, mas para separar, abstrair, desligar da natureza essa forma de existir que é sobreviver. Está na fundação do desligamento do mundo esta armadilha que é confundir a libertação face ao constrangimento da sobrevivência natural com a libertação da forma sobrevivência de quaisquer constrangimentos. A sobrevivência deixou de ser meio para a vida e passou a ser o fim mesmo da vida. Isto não foi possível sem um desligamento da sobrevivência face ao mundo e que faz do mundo apenas um meio da sobrevivência. O trabalho, tão sacralizado, é a actividade social de sobrevivência que transforma o mundo-fim em mundo-meio na mesma proporção em que a sobrevivência se torna a finalidade por excelência da existência humana. 20

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É ainda co-extensiva desta sobrevivência tornada finalidade auto-referencial, a transição da condição humana para uma dissolução da ideia de sentido de vida e para uma dissolução de nós mesmos, indivíduos e comunidades, como sujeitos de história. Cada vez menos sujeitos de deliberação e acção, cada vez mais nódulos de reacção, membranas conscientes hipersensibilizadas, mas apenas isso, a consciência afeiçoada a ser apenas dispositivo de reacção, aos estímulos, às sensações, ao fluxo que, cada vez mais, se constitui como meio imersivo da sua existência. É esse o trabalho da experiência acelerada da passagem do tempo na contemporaneidade, que detectamos de forma quotidiana na obsolescência crescente da actualidade nos social media, obsolescência programada no seu próprio design. E que detectamos também na forma como a própria cultura de massas se acelera, por exemplo no cinema mainstream, blockbuster, ou melhor, em todo o cinema que não resiste, cedendo à tendência para incrementar a média de duração dos planos6. Na música pop tendência análoga está estudada, identificando-se um progressivo encurtamento das longas introduções instrumentais das canções dos anos 807. Aliás, uma vez transformada a experiência normal do tempo social, também a cultura erudita acaba por a reflectir. De acordo com a Deutsche Grammophon e a Decca, houve ao longo do último meio século uma aceleração da execução de repertório de Bach8. 6 Assim o diz Lutz Koepnick, em On Slowness. Towards an Aesthetic of the Contemporary. Nova Iorque: Columbia University Press — «É difícil não pensar no encolhimento dramático da duração média dos planos (ASL) no cinema mainstream nas últimas quatro décadas como um sinal e sintoma de transformações culturais maiores, isto é, como parte de uma reorganização geral da atenção nas sociedades pós-industriais. Antes da década de 1960, as taxas de ASL para filmes comerciais geralmente variavam entre 8 e 11 segundos, enquanto a taxa média hoje diminuiu para 4 e 11 segundos, com filmes de acção como Skyfall (2012, dir. Sam Mendes) e World War Z (2013, dir. Marc Foster) com tempos médios de 3,3 e 2,5 segundos, respectivamente.» (Koepnick, op. cit., p. 153.) 7 Cf. H. Léveillé Gauvin (2018). «Drawing listener attention in popular music: Testing five musical features arising from the theory of attention economy». Musicae Scientiae, 22(3), 291-304. 8 De acordo com a investigação levada a cabo pela Deutsche Grammophon e pela Decca as gravações do Concerto para Dois Violinos de Bach encurtaram cerca de trinta por cento. Uma célebre

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O teórico crítico Mark Fisher detectava nas tendências culturais do presente século uma paulatina desaparição do futuro. O tempo cultural do nosso tempo tornou-se uma slow cancellation of the future, expressão que Fisher retoma de Franco Berardi. Cancelar o futuro significa eliminar o acontecimento do novo numa avalanche de novidades. Com o impulso de novidade transferido para as possibilidades da tecnologia, resta repetir o velho em novas plataformas. É isto que o leva a perguntar «Por que razão a chegada do capitalismo neoliberal, pós-fordista conduziu a uma cultura de retrospecção e pastiche?»9 A era da história e da acção, guiada por uma ideia de futuro, está a ser vencida por um retorno da era da mera evolução e da mera reacção. Por razões diferentes, mas que significativamente concordam com estas, também Francis Fukuyama sublinhava que junto com a sua tese do fim da história vinha outra, do fim do homem e de um certo regresso benigno a uma condição animal10. gravação da interpretação de David Oistrakh and Igor Oistrakh, de1961, durava dezassete minutos, enquanto algumas das mais recentes gravações não ultrapassam os doze minutos. 9 Mark Fisher, 2014. Ghosts of My Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures. Londres: Zero Books. De modo mais desenvolvido, e a partir do exemplo da cultura musical, Fisher comenta ainda: «Sejam quais forem as causas para esta patologia temporal, é claro que nenhuma área da cultura ocidental está imune. Os antigos redutos do futurismo, como a música electrónica, deixaram de oferecer um escape da nostalgia formal. A cultura musical é de muitas maneiras paradigmática do destino da cultura sob o capitalismo pós-fordista. No nível da formal, a música está trancada no pastiche e na repetição. Mas a sua infra-estrutura foi sujeita a massiva e imprevisível mudança: os velhos paradigmas do consumo, retalho e distribuição estão a desintegrar-se, com o downloading a eclipsar o objecto físico, as lojas de discos a encerrarem e o design de capas de discos a desaparecer.» (Fisher, op. cit.) 10 «O fim da história traduzir-se-ia no fim das guerras e revoluções sangrentas. Os homens, de acordo quanto aos objectivos, não teriam grandes razões para lutar. A actividade económica satisfaria as suas necessidades, pelo que já não teriam de arriscar a vida em batalhas. Tornar-se-iam, por outras palavras, animais, como eram antes da batalha sangrenta que deu início à história.» (Francis Fukuyama, 1992. O Fim da História e o Último Homem. Trad. Maria Goes. Lisboa: Gradiva, 1992, p. 300)

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Ainda por outras vias, e com especificidades próprias, também o pensamento de Roberto Esposito sobre a modernidade aponta para este retorno da vida, e do seu sentido, à condição de autoconservação e à inerente lógica de sobrevivência que a regula. Poder-se-ia até dizer que não foi a modernidade a pôr a questão da autoconservação da vida, mas sim esta a nascer, e assim a «inventar», a modernidade, como aparelho histórico-categorial capaz de a resolver.11

É também neste quadro, e a pensar na prevalência crescente do biopolítico ao longo da modernidade, que Esposito e, antes dele, Giorgio Agamben sublinharam a ideia de zoé, pura condição animal, em constraste com a ideia de bios12. Aliás, além dessa distinção, que precisamente inicia a obra Homo Sacer, esta noção que dá o título ao ensaio de Giorgio Agamben exprime a condição de uma vida desprovida de qualquer protecção legal, a ponto de poder ser tirada sem responsabilidade, reduzida à mais elementar condição animal13. É claro que devíamos parar de sobreviver. O que não é possível sem uma libertação política do poder que constrange à sobrevivência. Se ainda desejamos e imaginamos o que é viver, deveria permanecer no horizonte da imaginação e da acção políticas a possibilidade de rejeitar o poder de «fazer morrer e deixar viver», poder soberano clássico sobre a vida 11 Roberto Esposito. 2004. Bios — Biopolítica e Filosofia. Trad. M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 86. 12 «[…] mais do que para o termo bios, entendido no sentido de “vida qualificada” ou de “forma de vida”, a biopolítica a remete sem mais para a dimensão da zoé, ou seja da vida na sua expressão biológica mais simples ou, quando muito, à linha de conjunção ao longo da qual o bios emerge sobre a zoé naturalizando-se também ele?» (op. cit., p. 51.) 13 Giorgio Agamben, 1995. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

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e a morte que todos assujeita à sobrevivência. E também a possibilidade de rejeitar o poder biopolítico que, na verdade, desde a modernidade prolonga e completa o primeiro e que Michel Foucault sintetizou na fórmula inversa: «fazer viver e deixar morrer». Um poder que também mata, em nome da vida, que a escaroça até às suas condições mínimas, e que se reverte numa tanatopolítica. Hoje, homens e mulheres são politicamente deixados morrer no Mediterrâneo. São distribuídos em categorias: refugiados, migrantes económicos, migrantes climáticos. E precisamente são estas distinções jurídico-políticas que determinam o acesso à vida ou que a impossibilitam. São biopolítica letal em acção. Mas, então, realmente a frase síntese devia ser outra — fazer sobreviver e deixar morrer — sem qualquer referência à vida. Para libertar a vida desse poder que é subjugá-la aos poderes soberano, biopolítico, tanatopolítico, tem de ser trazido para o horizonte da imaginação e da acção políticas outro poder, que substitua aqueles: um soberano deixar viver, a tal ponto que disponha da plena soberania sobre o seu morrer. Mas não será possível pensarmo-nos em termos de viver e de morrer sem nos garantirmos as condições que lhes conferem sentido — imaginar, desejar, ser sujeito de sentido e de acção. Os sinais do tempo apontam o pior: é como se a humanidade, com a sua história cultural, não tivesse sido mais do que a gravidez de um sujeito evolutivo e que uma vez dado à luz o nosso destino estivesse cumprido. Porém, talvez esse derradeiro desligamento que terminaria a revolução da independência da história face à biologia humana possa encerrar a possibilidade de uma boa traição. Talvez consigamos fazer com que leve consigo uma ideia da humanidade, das condições que lhe conferem sentido, e ao viver e ao morrer, em contraste com uma condição de sobrevivência, imposta pela natureza ou por meios artificiais. Nem que seja uma palavra com sentido, 24

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cuja partida preparamos, à traição, como crisálidas divididas entre a angústia e a esperança14. Em vez da continuação de um presente humano codificado, no património genético ou cultura, pela desumanidade da sobrevivência, um futuro pós-humano codificado, na programação ou na cultura, pela vontade de uma vida orientada pela questão sobre o seu sentido. Talvez uma traição evolutiva não seja uma traição à evolução. A natureza é a rainha do disfarce. Mas mais importante é que a arte da tragédia está na peripécia, a peripécia da humanidade talvez seja passar uma rasteira à própria evolução.

14 A crisálida foi a imagem a que Karl Polanyi recorreu para exprimir a grande transformação que resultou do surgimento do que chamou ficção mercadoria e que se tornou o formato que conforma a natureza e o humano, a terra e o trabalho, à mesma condição de realidades transacionáveis. Mas ficção sem substância ficcional, apenas forma abstracta desligada da realidade para assim melhor poder atingir a realidade.

Prólogo: O artifício da sobrevivência

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O processo de desligamento

Quem é o sujeito da história futura? A tese do fim da história apareceu nos anos 90, a seguir à queda do Bloco de Leste, muito como proclamação da vitória do regime ocidental de liberalismo económico sobre o socialismo real de Leste. A expressão fim da história implicava sobretudo a semântica do fim de um jogo e foi lida, pelo menos a partir da leitura de Francis Fukuyama, como uma declaração de vitória. Acabavam-se as grandes mudanças históricas. Com outros tabuleiros de poder a aparecer nas décadas seguintes, logo esta tese foi declarada falsa ou precipitada. Diz-se e bem que o 11 de Setembro de 2001 foi o fim da tese do fim da história. Mas dela subsiste um fundo de verdade que não se esbate, pelo contrário é todos os dias mais presente num mundo globalmente confrontado com a condição de que não há alternativas. De cada vez que se reivindica um fim da história, projectando-se um tempo que doravante continua sem o sobressalto de escolhas de sentido — de escolhas que possam ocorrer fora de um enquadramento de sentido único, dado à partida, de progresso —, na verdade o que se evidencia é a capitulação do humano como sujeito da sua história. Porque a história tem continuado, muito crédula do seu sentido de progresso e nesse sentido, ainda muito moderna. Mas o seu sujeito é outro, supra-individual. E a questão a colocar é que sujeito da história é esse que nos vai sobrevindo? 26

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EPÍLOGO

Frankensteins do tempo e o ciclo de Prometeu

Koyaanisqatsi: Life Out of Balance (1982), realizado por Godfrey Reggio, com fotografia de Ron Fricke e música de Philip Glass, é um filme que começa lento. Vemos primeiro gravuras, pictogramas dos índios nativos americanos hopi, a representar figuras humanas, talvez alusivas a espíritos ou divindades, e logo se ouve o tom grave de um coro a entoar Koyaanisqatsi repetidas vezes. Koyaanisqatsi quer dizer «vida maluca, vida em turbilhão, vida fora de equilíbrio, vida a desintegrar-se, estado de vida que pede uma outra maneira de se viver»… Em seguida, um foguetão em câmara-lenta, lento. Depois paisagens secas, próximas da geografia dos hopi — os canyons, o Vale da Morte, tudo isto sempre acompanhado do cântico lúgubre — Koyaanisqatsi. Segue-se uma transição musical e pictórica para formações de nuvens, quedas-d’água, todo um outro mundo líquido a revelar-se mundo vivo, natural, de natureza orgânica ou geológica, a confluir no Lake Powell, no norte do Arizona, não longe da reserva Najavo dos hopi. A água transita musicalmente dos graves ecos para a intensidade das flautas. E subitamente explosões, um carro de exploração mineira, a paisagem ferida pela electrificação, a central de Navajo, as feridas na paisagem a crescerem até à sua transformação total. E logo depois outras explosões, atómicas, uma, duas, nos desertos, presume-se que no Nevada. O fogo das forjas, o fogo das bombas, o fogo dos homens, o fogo prometeico. Em 1982, o medo da destruição total, do apocalipse nuclear, era sério. The Day After foi um filme sensação no ano seguinte. Epílogo: Frankensteins do tempo e ciclo de Prometeu

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Fotograma de Koyaanisqatsi

Da explosão atómica aos corpos — presume-se que uma mãe e um filho — que se banham de Sol, em primeiro plano. Parece um anticlímax, mas o close-up move-se. Mostra primeiro os corpos estivais, depois, como se descobrisse uma parte oculta, a central atómica de Saint Onofre, na costa da Califórnia, não longe de Los Angeles. A ameaça toda ali de súbito e, no entanto, paisagem do quotidiano. Depois a cidade, as superfícies vidradas, a longuíssima aproximação de um enorme Boeing, primeiro silhueta difusa distante, até, em primeiro plano, majestoso, fundir-se com o mundo urbano. Logo a humanidade a comparecer pelo seu poder imenso de destruição, bombas, mísseis, explosões, devastações, a «fat boy», napalm. E subitamente queda-se em silêncio o filme até a câmara-acelerada fazer dançarinhar sombras de nuvens sobre os prédios de Nova Iorque. Depois prédios degradados, lixo nas ruas, gente dispersa, gente não pertencendo ao movimento da cidade. E multiplicam-se os prédios, os subúrbios, as paredes altas, as janelas, os vidros quebrados, nada é agradável, trompetes a anunciar demolições. Os prédios de Pruitt-Igoe, em Saint Louis. As gruas, as pontes implodindo, 164

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as pontes ainda inteiras, e de novo os prédios, outros. Altera-se o quadro. Ao longe, muito, mas não tanto que não seja reconhecível, quieta nas suas alturas, a downtown de uma cidade americana, sob o movimento incessante das nuvens em câmara-acelerada. A cidade está longe. Mais de perto de novo, as multidões, como padrões, à entrada e saída dos cais dos comboios. Em contraste, em câmara-lenta, singularizações a exacerbarem-se como um infinito incomensurável, em retratos de olhares fixos — por exemplo de um piloto de caças de guerra. Retratos que se sucedem mas como se parassem o movimento imparável que ocupa o mundo humano. Chronos pára e dá lugar a Kayros, ou à consciência da ausência de Kayros, o tempo que não é medida e quantidade, mas sentido e qualidade, que não é abstracção, mas acontecimento. De novo o contraste, as câmaras-aceleradas nocturnas captam ritmos que se comparam com fluidos orgânicos, as artérias do tráfego verdadeiras artérias de uma nova biologia. Os automóveis e os peões, guiados pela batuta de semáforos cegos. E as escadas rolantes como cascatas de águas humanas. A produção, o trabalho em série, o consumo, e até o lazer, o mesmo padrão de ritmos. Em câmara-acelerada, a cidade moderna é um organismo vivo cuja corrente sanguínea é uma corrente eléctrica. Só não se desloca. Na sua seiva corremos nós. Os comportamentos humanos anómalos… um homem que parece barbear-se ou fingir que o faz em rua pública, olhares vários perdidos, vagos, uma senhora que se inquieta com um isqueiro que não funciona, o moribundo levado da via pública, tudo, na verdade, a deteriorar-se, fora dos eixos, a desequilibrar-se, Koyaanisqatsi Koyaanisqatsi — o cântico regressa. E o foguetão do início regressa, moroso, até explodir — como se a fuga se gorasse — e de novo as gravuras dos índios hopi. Fecha-se todo o ciclo. Aliás, há uma versão no Youtube que passa todo o filme de trás para a frente. De novo a pergunta, estaremos a fechar um ciclo? Epílogo: Frankensteins do tempo e ciclo de Prometeu

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O ciclo de Prometeu Para exprimir a invenção do tempo mecânico George Woodcock evocou, num pequeno livro com o sugestivo título A Tirania do Relógio, Victor Frankenstein, o criador do monstro cujo controlo perderia mal lhe insuflasse vida, uma vida de rejeição e sofrimento, que se abateria sobre si próprio e sobre os seus na forma de ameaça, terror e morte. Para Woodcock, o aperfeiçoamento da medida do tempo, com ponteiros de horas, depois de minutos e segundos foi, na verdade, o aperfeiçoamento de uma ferramenta de dominação e controlo humano. Mas, verdadeiramente, é pior. O tempo não se tornou um Frankenstein apenas porque a criatura, no caso o tempo mecânico, se rebelou do seu criador. O tempo também se tornou um Frankenstein porque, como o monstro da novela de Mary Shelley, é uma composição de partes muito desiguais, desarmónicas, sem equilíbrio… Como se canta em Koyaanisqatsi. E chamar-lhe Frankenstein é ainda adequado por uma evocação importante que se faz. No título da novela de Mary Shelley, Frankenstein era também evocação de Prometeu, o titã condenado pela ousadia de roubar o fogo aos deuses para o dar aos humanos, dando desse modo à humanidade a sua feição humana, fruto de inteligência e domínio de técnica e tecnologia. Mitologicamente, o que afasta os humanos da bestialidade animal, o que os torna humanos dignos do amor e do ódio dos deuses, é o domínio da técnica, a começar pela do fogo. Mitologicamente, é um mito a ideia de que tenha havido humanidade alguma antes da técnica. Esta evocação de Prometeu é importante porque permite levar mais longe a metáfora frankensteiniana. Não é só o tempo estar desequilibrado, como a vida fora dos eixos, nem o tempo que criámos subjugar-nos cada vez mais. É também o ciclo aberto por Prometeu poder estar a encerrar-se. O ciclo da humanidade, começado pelo domínio do fogo, pode estar a fechar-se na dominação através do tempo. A pena que vamos sofrendo coin166

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