André Barata «Primeiras Vontades»

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Ethos e Polis / 1

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PRIMEIRAS VONTADES da liberdade política para tempos árduos

D O C U M E N TA


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Esta edição foi apoiada pelo Instituto de Filosofia Prática Universidade da Beira Interior

© SISTEMA SOLAR, CRL (2012) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © ANDRÉ BARATA REVISÃO: HELENA ROLDÃO 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO 2012 ISBN 978-989-8618-06-1


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Para a Joana, o LuĂ­s, a PatrĂ­cia e o Paulo, Porque amigos de uma vida


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O homem é um animal político porque é um animal literário que foge ao seu destino «natural» por se deixar desencaminhar pelo poder das palavras. Jacques Rancière, A Partilha do Sensível


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ÍNDICE

Prefácio: Como queremos continuar a História?. . . . . . . . . . . . . . . . .

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PARTE I A vontade da liberdade 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Liberdade e Vontade Geral em Jean-Jacques Rousseau. . . . . . . . . . Isaiah Berlin, liberdade e democratismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A liberdade — raison d’être da política, segundo Hannah Arendt . . Sensibilidade e democracia — Com Jacques Rancière . . . . . . . . . . Para reler Sartre: o existencialismo e a acção . . . . . . . . . . . . . . . . . Žižek e a questão da esquerda — Por uma esquerda libertária . . . .

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PARTE II Modernidade retomada: Tolerância, Identidade, Ética Pública 7. Tolerância e ambivalência — a iminência da culpa como fundo vivencial da tolerância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8. A mobilização reemergente do complexo identitário português . . . 9. Ética pública e corrupção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Índice

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Será que esses senhores que até hoje têm vindo a ocupar-se da genealogia da moral já alguma vez imaginaram que, por exemplo, um conceito tão importante no âmbito da moral, como é o de «culpa», deve a sua proveniência a um conceito intimamente ligado à vida material que é o de «dívidas»? Nietzsche, Para a Genealogia da Moral


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Prefácio COMO QUEREMOS CONTINUAR A HISTÓRIA?

I Vivemos tempos árduos. Depois de todos os óbitos anunciados, da literatura e seus autores, de deus até; depois de todos os fins, da arte, da política, mesmo da história, restaria, talvez, antes do pó da terra, a resignação de umas vontades últimas, a capitular sobre o humano que fomos, às vezes até com grandeza. Mas, será mesmo o fim dos tempos o que nos aguarda? Desde que a crise se instalou no opulento Ocidente, em várias escalas da coexistência humana, vive-se sem projecto de comunidade. Administramo-nos e somos administrados pela racionalidade da eficácia, diminuídos à condição de meios a proporcionar o fim da eficiência. Um esquema societário da subtracção hegemoniza-se sob o fundamento duplo de que, na ordem dos factos, o mundo não basta para todos e de que, na ordem dos valores, não devemos dar por garantido nenhum direito adquirido quanto à existência digna no mundo. Esta subtracção é ainda a indicação precisa da ruína da condição de uma pós-modernidade que, ao engendrar o relativismo cultural, pelo menos tinha o mérito de subscrever um entendimento generoso e multiplicador da existência. Mas não, a mudança das condições que a sustentavam foi também a ocasião para um acerto de contas com os modos de vida pós-modernos. Numa rotação excessiva, esses mesmos modos de vida, com o seu ideário relativista, rapidamente passaram a responsáveis pelas dificuldades do Ocidente. Os tempos endureceram e, sem relatividade ou perspectiva, entre aqueles que teriam culpas no cartório estariam os pós-modernos. A História recente emudeceu-os. Além do desaparecimento dos seus proclamadores — Lyotard (1998), Derrida (2004) e Baudrillard (2007) —, a pós-modernidade viu o seu contexto económico, a saber, um capitalismo pós-industrial cada vez mais finanPrefácio

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ceiro, subitamente interrompido por uma crise do subprime. A crítica moral ao comportamento dos agentes económicos, desencadeada com a descoberta do esquema de operações financeiras da Lehman Brothers, de que o alto risco que ofereciam em negócio era insustentável, atingiu em pleno o Zeitgeist da pós-modernidade. A falta de valores entre gestores remunerados a níveis inimagináveis teria a sua explicação de fundo no ambiente relativista que os pós-modernos fizeram propagar pelo Ocidente. Esses intelectuais, franceses ou de gosto cultural francês, teriam urdido uma teoria que rasurava a diferença entre o bem e o mal, e, assim, também uma ideologia que sujeitava à impotência o homem honesto, não raro também cristão, inibido de perseguir o bem e de se opor ao mal. Numa célebre homilia no conclave de 2005 que o conduziria ao papado, Ratzinger denunciava a «ditadura do relativismo». Mais tarde, George W. Bush apropriou-se desta expressão, precisamente por ocasião da viagem apostólica do papa Bento XVI aos Estados Unidos em 2008. O papa visitava o ground zero. Retrospectivamente, não foi difícil reconhecer esta fraqueza auto-imposta da ditadura do relativismo, sabotadora da moral dos homens, na impotência como testemunhámos, incrédulos, a violência do fundamentalismo em 2001. O Mayor Giuliani denunciava o relativismo cultural por detrás dos atentados. Stanley Fish, num pequeno texto, «Don’t blame relativism», ia aparando os golpes, defendendo que relativismo não é mais do que outro nome para pensar a sério, experimentar pôr-se na pele do outro, não para aprovar, mas compreender e assim poder julgar, e sem que se reneguem as convicções próprias, o que, aliás, constituiria, para o autor, um contra-senso que só o reducionismo do fervor anti-relativista explica. Simplesmente, o «outro» que atingia as Torres Gémeas era apenas a primeira aparição do que se veria pela segunda vez exposto, em meia dúzia de anos, no colapso moral do capitalismo financeiro. Agora o inimigo já não vem de fora, não é outro, agora o inimigo somos nós mesmos, ocidentais em crise e em urgência de uma restauração. Na verdade, teríamos sido sempre nós mesmos os incapazes de estar à altura das ameaças, imersos na absoluta relatividade das coisas. E sem verdade, não sobraria réstia de moral. A contrapartida a não estarmos dispostos a morrer por coisa nenhuma era estarmos dispostos a vender a alma por qualquer coisa. De acordo com esta narrativa, o significado es10

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piritual da crise do crédito teria estado em provar como o problema fora, desde o princípio, «nosso». Enquanto teríamos sido pós-modernamente assim, gestores em particular e relativistas em geral, o resto do mundo perfilava-se na nova verdade universal da globalização e na irrelativizável força económica das potências emergentes. A riqueza ocidental ter-se-ia declinado em fraqueza de carácter, sobretudo por ter dispensado ser potência. Pela fraqueza e pela soberba, por ambas se pagaria caro. E assim pensaria mais Bush, superficial e contundente, do que Bento XVI, profundo e subtil. Contudo, desde então, e enquanto se arrasta a crise, sucedem-se as sentenças morais, os ajustes de contas ideológicos e, acima de tudo, duvida-se da nossa viabilidade. Neste clima, o medo governa-nos e educa-nos para a disciplina da sobrevivência. Contudo, esta narrativa continua a não convencer.

II A passagem do século XX ao século XXI foi a passagem de uma premissa de crescimento económico garantido a uma premissa de subsistência económica incerta. Simplesmente, esta não tem sido uma passagem inteiramente transparente. É assumida de forma demasiado abrupta e, no essencial, para introduzir no regime da subtracção mais uma: a do tempo presente. O que fora o desígnio de outrora de uma sustentabilidade futura deu subitamente lugar a uma consciência extremada da insustentabilidade passada. Neste jogo de responsabilidades adiadas no passado e agora assacadas ao passado, com a ameaça futura a tornar-se passada sem que tivesse passado pelo nosso presente, perpetra-se um enorme salto sobre o tempo da contingência e das escolhas que seria esse presente elidido, num exercício bem-sucedido de transferência de responsabilidades. A Gestalt passou a ser outra e os sinais das coisas passaram a ser lidos por um novo princípio: o da subtracção. Forma-se assim o novo Zeitgeist. Mas um sistema de escolhas que não arranque do presente é um sistema de escolhas distorcido. A escassez apresentada como facto consumado sobrePrefácio

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carrega as consciências cidadãs com exigências de culpas apuradas e penalizações à medida. Quem decide politicamente faz escolhas olhando sobretudo à responsabilidade passada, dispensando-se com isso de assumir a abertura do presente e de nele assumir plenamente a responsabilidade das escolhas feitas. A distorção não podia ser mais clara: fazem-se ainda escolhas, mas como se não o fossem, como se fossem inevitabilidades determinadas por estilos de vida passados, esses sim escolhas, na verdade más escolhas, a penalizar. E, previsivelmente, elegem-se bodes expiatórios: governantes passados são diabolizados; mas também a comunidade toda, posta no patíbulo da reprovação por ter «vivido acima das possibilidades». No fundo da questão, o que se instala no regime societário da subtracção é a adversidade à própria vontade de escolher. O exercício da escolha, que os ciclos democráticos pressuporiam, é posto sob a suspeita da leviandade, sobretudo se forem dadas a escolher novas escolhas. Pelo contrário, o que deve ser esperado da democracia é que deva desdemocratizar-se enquanto irrupção da novidade, e procedimentalizar-se enquanto consagração de uma eficiência decisória. Os democratas, que muito escolhem e pouco decidem, são destronados na tecnodemocracia pelos tecnocratas, que muito decidem e pouco escolhem. Naturalmente, a eurocracia é só uma instância da tecnodemocracia. A democracia vê deslocar-se, então, o eixo da sua preocupação dos fins e dos princípios para os meios, como se os fins e os princípios tivessem sido definitivamente escolhidos e nada os pudesse disputar a não ser a título de irracionalidade, ruído ou leviandade. A escolha e a vontade democrática vão deslizando para uma técnica da decisão com o intuito de assim conseguir conter os perigos do ímpeto democratista, da vontade popular, da consequência das suas escolhas. Contudo, mais do que dar forma à inorganicidade da vontade, está em causa, neste movimento das democracias, neutralizá-la, anestesiá-la e fazer-lhe um diagnóstico de loucura. Os democratas e a sua mania do retorno da soberania ao povo constituem-se como o foco da desordem do sistema. A sua loucura, portanto. Decide-se contra o escolher. Se os democratas são os loucos da tecnodemocracia contemporânea, se, por isso, a escolha democrática fica sob suspeita, não surpreende que se naturalizem formas de condicionamento da democracia, que não lhe dão forma 12

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nem feição, mas lhe movem oposição. Exemplo concreto deste condicionamento democrático naturalizado está em que a sequência de uma escolha democrática possa ser os mercados financeiros, na manhã seguinte ao escrutínio eleitoral, castigarem o voto que não os beneficiou, precipitando uma queda dos índices bolsistas, e pressionando o eleitorado a avaliar menos o sentido do voto do que o acto da sua votação. No curso da sua adaptação às condições do capitalismo industrial, a sociedade dotou-se de meios de resistência, sob a forma de direitos, que inibiam a capacidade, entre quem o pudesse fazer, ou seja, o patronato, de pressionar eleitores (por se encontrarem numa relação laboral subordinada) num sentido ou noutro de uma escolha, através da ameaça de lhe dificultar a vida profissional, de lhe diminuir os rendimentos, de os arrastar para a pobreza. Todavia, hoje em dia, os mercados permitem-se este tipo de condicionamento sobre países inteiros, à partida justificados com a desculpa de que se limitam a reagir de acordo com a racionalidade do meio. Ainda que fosse. É consubstancial à democracia o direito de fazer a escolha que venha a verificar-se errada. Em democracia, as escolhas não são técnicas, mas políticas, ou seja, relativas à maneira como queremos viver comunitariamente sob um pressuposto de abertura da História ao seu futuro. Nada se perde em se repetir Shakespeare e dizer que continua a haver «mais coisas no céu e na terra do que as que sonha a tua filosofia». Ou a tua economia, ou a tua moralidade. Foram as dinâmicas do parlamentarismo e, sem dúvida, também as tensões que os sindicatos e movimentos libertadores souberam levar de vencida, que asseguraram a defesa da democracia contra os condicionamentos que o patronato lhe pôde mover na época do capitalismo industrial. A sacralização do direito ao voto e do direito à opinião política, esta por mais anómala que fosse, consolidou-se como resultado de uma longa contenda social de que, hoje, a concertação social e outras mediações institucionalizadas do protesto social apenas mantêm uma memória ritualizada. Mas como será no quadro de um capitalismo financeiro, especialmente quando acirrado pela sua própria crise? Na verdade, do capitalismo predatório de recursos naturais, como terá sido o capitalismo industrial durante o século anterior, e do capitalismo improdutivo que terá sido a «financiarização» que se Prefácio

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instalou nas últimas três décadas na economia mundial, chega-se agora a uma nova fase em que o capitalismo parece fechar-se sobre si mesmo em canibalismo do escasso. Com efeito, a gestão da escassez tem-nos inclinado à ausência de projectos, à abstenção preventiva da vontade e ao entrincheiramento defensivo do interesse. Então, como resultado, a sociedade canibaliza-se na forma de exclusões e desigualdades. Não restam outras oportunidades além da cobiça, cada vez mais liberta de constrangimentos, dos «direitos adquiridos» alheios. Liberaliza-se a empregabilidade das vidas até à incerteza do dia seguinte, o humano relativiza-se face ao absoluto da eficiência, as pessoas perdem o direito à indisponibilidade. O medo antecipa reacções prejudiciais ao interesse próprio, amplificando, com intensidade, o canibalismo social. O interesse fecha-se sobre si mesmo, em modo de reacção exacerbada, mas sem outro ponto de vista além do seu particularismo. Falta-lhe a perspectiva de uma vontade constituída, ponto de vista genuíno; falta-lhe ser janela com vista que dê sentido a uma racionalidade cingida à sua feição instrumental. É justamente a ausência de uma vontade que nos condena a instrumentos uns dos outros com o pretexto da maior eficiência do sistema. Mas, claramente, não há equivalência nenhuma entre este sistema eficiente e uma sociedade justa ou, pelo menos, minimamente decente. Se o interesse mobiliza cada indivíduo, cada família, cada comunidade a partir da sua sobrevivência particular, a vontade, que nos mobilizaria a partir de um projecto, seria sinal de vida com sentido, vida imaginativa. A subtracção da vontade é a subtracção do sentido e da imaginação ao interesse e, com elas, do lugar próprio da sua constituição — a esfera pública. Em contrapartida, subtraídos de vontade, não surpreenderia que a frieza do cálculo dos meios concluísse, racionalmente, que o preferível ao interesse seria deixarmos de existir. Instala-se então uma moralidadezinha da existência, da pouca existência, ou ainda, da existência já em dívida antes de tudo o mais. É uma história antiga, demasiado antiga, de dívidas e culpas, a que já Nietzsche se opunha, quando, na sua Genealogia da Moral (1887), denunciava que, na língua alemã, a raiz do sentimento de culpa (Schuld) residia na ideia bem materialista de dívida (Schulden). Com alguma razão podemos dizer que esta moralidade que retorna repudia o pós-moderno dando, repugnada, um salto imenso para trás, sobre a pró14

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pria modernidade, forçando-nos a um regime de existência pré-moderno, anterior e avesso aos valores da emancipação e da autodeterminação. A heteronomia que, dantes, na ocasião certa, era a vontade de Deus repete-se hoje no simulacro das leis do mercado e da teoria económica. É uma heteronomia sem metafísica. Neste quadro necessitarista e heterónomo, a vontade de eficiência é a única vontade moralmente permissível. Já não nos governamos uns aos outros, mas somos dirigidos por razões que não nos pertencem.

III O que é válido para pessoas é igualmente válido para comunidades inteiras e países. A vítima mais evidente da ausência de projecto e da subtracção do humano é hoje uma União Europeia, enrodilhada num atavismo que pode bem conduzir à sua desagregação. Outrora um projecto europeu, montado sobre a experiência traumática do pós-guerra, mas também, cada vez mais, com o passar das décadas, uma forma de oposição à ameaça do socialismo de Estado num quadro de Guerra Fria que opunha a Comunidade Económica Europeia, e a Nato como seu suporte militar, ao conjunto de países aliados no Pacto de Varsóvia, sob a hegemonia da antiga URSS, parte decisiva do móbil integrador esgotou-se com a reunificação alemã, o desmembramento da URSS e a reconfiguração, nos anos subsequentes, do poder económico no centro da Europa. Uma vez reorganizada em torno de um dos seus centros historicamente marcantes, distribuído ao longo das margens do Reno, a Europa não precisou mais de alimentar o projecto de uma União Europeia, podendo, pelo contrário, retomar velhas dicotomias entre um centro modelar e uma periferia negligente, menor em competência e em direito à dignidade. Os infelizes exemplos actuais de Portugal, Itália, Grécia e Espanha, outrora países da coesão, mas agora desafectadamente rotulados com o acrónimo «PIGS», vêem-se destratados em termos essencialmente idênticos aos termos com que eram representados há 150 anos países periféricos, economias pobres, com carência de investimento estrangeiro, poderes públicos confusos, idolatria estrangeira e automenorização doméstica, com a fome e a guerra a adivinhar-se no que vem a seguir. Eis o quadro que se repete. Prefácio

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Guardemos por uns instantes a subtracção da vontade e a democracia dos meios, e perguntemos, caso existisse, onde encontraríamos a farsa que nos antecipasse a tragédia que a repetição da História nos poderá reservar? Numa novela de Dostoievski, de 1864, intitulada O Crocodilo, relato do incrível incidente de um cidadão inteiramente engolido por um crocodilo. Esse enorme animal, vale a pena contar, exibido num pavilhão de São Petersburgo, era anunciado como único em toda a Rússia; e a sequência inusitada dos factos que se sucederam ao espantoso incidente só reforçou esta sua rara e valiosa condição. O infeliz engolido, Ivan Matveitch (bem a propósito, um funcionário público), escorregando pela imensa goela do bicho dos pés à cabeça, sobreviveu ao trago, aninhando-se sem excessivo desconforto nas entranhas reptilíneas. Naturalmente, contrariar desta maneira tão aberta a natureza das coisas haveria de chamar a atenção de alguma autoridade civil. Configurava-se um daqueles incidentes que a diplomacia avisadamente não descuraria, seja pelos direitos de cada parte, afinal foi o homem que se enfiou bocarra adentro de uma propriedade que não era a sua, com riscos evidentes para a integridade desta, seja pelo lamentável sinal assim dado à atenta percepção dos grandes investidores dessa Europa, pois tudo tinha de acontecer logo com um crocodilo trazido das áfricas por um homem de negócios alemão, que via assim confirmadas as suspeitas de que nestas paisagens periféricas não se pode alimentar esperanças de levar com tranquilidade uma qualquer actividade económica. As circunstâncias pediam que se viesse a proteger oficialmente e com denodado empenho o investimento estrangeiro. Parecerá exagero? O singular nesta sátira de Dostoievski é que não, nada disto é exagero, à parte ser uma sátira. Senão veja-se como a matéria evolui rapidamente para altas considerações de economia política, como por exemplo estas, pela voz de um «capitalista, grande homem de negócios»: E, como não temos aqui capital, temos de atrair o do estrangeiro. Antes de mais, temos de criar infra-estruturas para as empresas estrangeiras, para que estas comprem terras na Rússia, tal como acontece agora no estrangeiro. […] Quando todas as terras estiverem na mão das empresas estrangeiras, elas podem definir a renda que entenderem. E assim o camponês irá trabalhar três vezes mais para ganhar o seu pão, podendo ser expulso quando se quiser. Assim, ele vai sentir essa 16

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pressão, ser submisso e aplicado e vai trabalhar três vezes mais pelos mesmos ordenados. (Dostoievski, 1864/2011: 38-9)

Ei-la: a história repetida ou antecipada, como se queira; ei-los: o investimento estrangeiro em falta, o objectivo a perseguir da produtividade e, claro, o meio mais óbvio para o alcançar — desvalorizar os custos unitários do trabalho, como agora se diz. Eis a História a repetir-se, por histórias e ficções, farsas e tragédias, fazendo de conta ou fazendo contas à vida; eis como até o mais singular e extraordinário incidente repete a nossa condição porvir. Mas Dostoievski não se detém aqui e conduz o debate sobre os destinos do nosso singular funcionário público à pergunta política que antecipa a sensível problemática dos nossos dias de crise. Aqui estamos nós, ansiosos por trazer o capital estrangeiro para o país e, apenas isto em conta: no momento em que o capital de um estrangeiro, que foi atraído para Petersburgo, se duplicou através do Ivan Matveitch, em vez de estarmos a proteger o capitalista estrangeiro propomo-nos a abrir a barriga do seu capital original, o crocodilo. Acha consistente? (Dostoievski. 1864/2011: 40)

Nada se perguntaria se não se concebessem duas respostas possíveis à pergunta. E a resposta para uma política da humanidade pode ser tão inconsistente como é artificioso o sfumato com que o renascentista nos pintava os rostos. Ou não fosse o rigor do raio X, que tanto fascinara o Hans Castorp de A Montanha Mágica, absolutamente incapaz de ser fotografia íntima da sua Madame Chauchat. Uma política da inconsistência é a inevidência íntima de que se faz a humanidade. A verdade é que, porque permaneceremos aqui, sobreviventes ou órfãos, e em número cada vez maior, e porque, apesar de tudo, o pós-humano que, segundo alguns, nos sucederia persiste demasiado humano, a História só tem um caminho, que é continuar sem caminho pré-definido. E, pelo menos enquanto merecer a pena contá-la, há que perguntar como queremos que a História continue. Nesta fase da História, a pergunta formula-se assim: ou a queremos como história de uma auto-subtracção «consistente» do humano ao humano, a Prefácio

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impor-se uma dívida para com a sua existência, autoculpabilizada, ressentida, sobrevivente. Ou então, queremo-la, como quer defender este livro, contra a tendência amarga destes tempos árduos que vivemos, contraposição de uma vontade de autodeterminação, de projecto emancipador, que arranca do tempo presente, assumindo escolhas e a sua responsabilidade, no exercício partilhado da liberdade. Primeiras vontades, nem que fossem as últimas, é o compromisso de uma liberdade política não abdicada, no poder realizador das novas escolhas. Liberdade como vontade e não como mero interesse.

IV Os estudos que compõem a primeira parte deste livro desenham um percurso pela filosofia política de seis pensadores da liberdade — Jean-Jacques Rousseau, Isaiah Berlin, Hannah Arendt, Jacques Rancière, Jean-Paul Sartre e Slavoj Žižek —, autores que, fazendo os seus percursos próprios de pensamento, se confrontam, directa ou indirectamente, a propósito dos sentidos e usos que deram ao conceito político de liberdade. Parte da motivação destes ensaios está na avaliação desta disputa, que mobilizará directamente Hannah Arendt e Berlin na crítica a Rousseau, mas que abrirá também outras perspectivas, com Rancière, Žižek e um Sartre retomado, para a continuação de um certo entendimento rousseauniano da liberdade política. Esta palavra — liberdade — está condenada à plurivocidade e à confrontação. De facto, o conceito abstracto de liberdade revelou-se, quando levado ao terreno da colação política, uma das mais poderosas ideias políticas, tendo sido, nos últimos dois séculos e meio, uma noção historicamente marcante e também muito traumatizada pela História, logo desde a Revolução Francesa, prosseguindo pelo século XIX e por todo o século XX. Emancipação, autodeterminação, autonomia, mas também libertarismo, liberalismo, democratismo, anarquismo, não dão de si razões sem uma referência à ideia de liberdade. É, pois, a partir destes seis autores que os estudos deste livro defenderão uma continuação da noção de liberdade no debate sobre o que possa ser a po18

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lítica no novo século. E também sobre o que terá de ser, a querer prosseguir, uma esquerda em grande medida desvitalizada por décadas de sujeição a um desconstrucionismo intelectual, que a tornou vítima da sua própria linguagem crítica, como vitimadora de qualquer projecto poderoso de uma linguagem política. Nisto, a linguagem politicamente correcta foi só o último incidente de uma história da esquerda assoberbada por uma deriva cientificista que arredou o sujeito humano da política. Tomar partido excede sempre a instância intelectual e convoca a vontade, como desce da unidade abstracta da teoria ao antagonismo concreto da praxis. A retoma da auto-referência subjectivadora da política é, hoje, a condição essencial para uma retoma do impulso de uma esquerda liberta das suas grilhetas.

V Propomos, pois, um itinerário de reintrodução de uma política subjectiva, de acção. Com Jean-Jacques Rousseau em primeiro lugar, enquanto inventor, no seu Do Contrato Social (1762), da noção de um cidadão convicto da sua condição cidadã, ao mesmo tempo súbdito e intérprete de uma Vontade Geral soberana. A liberdade rousseauniana, mais do que uma construção da racionalidade, é uma conversão da vontade de cada cidadão sob o efeito de uma convicção. Esta correlação entre cidadania e conversão indica um salto dado sobre o plano da realidade social, das relações económicas e sociais tais como elas são. A consciência de si tornar-se consciência política, o humano reconhecer-se político depende de uma ficção de si mesmo — o homem imagina-se cidadão, mas imagina-se assim convictamente. Este tipo de convicção numa boa ficção tem hoje de ser reinvestida, contra uma época de formalização da democracia e, ao mesmo tempo, de deformação da política, ou seja, democracia sem os pontos de opacidade militante que terão sido os «democratas» de outrora e que já não existem mais, a não ser nas margens de uma arena política deformada como regime de ordem e administração de papéis sociais, a que as configurações político-partidárias das democracias ocidentais se mostram excessivamente permeáveis. Contra esta naturalização para que correm as democracias Prefácio

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contemporâneas, que faz regressar o cidadão inventado à sua condição original de homem interessado, simplesmente interessado, e que não é diferente da naturalização dos mercados, ou melhor, de um certo entendimento necessitarista, anónimo e quase etéreo dos mercados financeiros, é preciso reencontrar o homem «desencaminhado pelo poder das palavras», «animal político» sim, mas porque é um «animal literário» e não porque seja dispositivo de combate político literal. Isaiah Berlin, autor do ensaio «Dois conceitos de liberdade» (1958), contrapôs à liberdade empolgante de Rousseau, e de todos os seus sucessores intelectuais, uma liberdade negativa, liberdade dos liberais, que pretende conter o poder do interesse comum sobre o interesse particular, e da Vontade Geral sobre os indivíduos. Na verdade, é o risco da tirania das maiorias de que já falavam Stuart Mill e Toqueville, ou ainda, de um poder público ilimitado, que exorbitasse toda a possibilidade de controlo. Também seria, mesmo que de forma mais vaga, a afirmação da liberalidade da democracia de Péricles em oposição ao mobilismo espartano. Não é, todavia, tanto uma oposição conceptual quanto histórica o que Berlin tem em mente no contexto das experiências europeias de totalitarismo que ele bem conhecera nas décadas que precederam o seu ensaio. E essa diferença permite hoje recontextualizar, sem receio de contradições, o pensamento de Berlin no quadro histórico que constitui o nosso presente agora. A formalização da democracia como código de regras, filtro de procedimentos, em vista à obtenção de um resultado eficiente, constitui, pela sua própria transparência, a evidência maior da rarefacção da política. A democracia torna-se politicamente oca, sendo o seu trabalho simulado por uma liberdade apoliticamente positiva, monista e coerciva. O rareamento dos «democratas», a que chamei pontos de opacidade militante, que impediriam a formalização pós-política, ou apolítica, da democracia, reclama por uma enfatização da vida política como momento crucial do humano, tese antropológica que, de forma exímia, Hannah Arendt sustentou na sequência de uma tradição republicana de pensamento sobre o que é a política. Com a autora de Sobre a Revolução (1963), a oposição a Rousseau atinge significativa contundência. Estando para ela em causa romper com o vínculo entre 20

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vontade e liberdade políticas que a história da filosofia, desde cedo, determinara, Rousseau, com a sua hegemónica noção de uma Vontade Geral, acaba por representar, para Hannah Arendt, o ponto culminante de uma tradição de legitimação do poder de violência. No essencial, a liberdade é agir, inaugurar-se pela acção, para lá do plano dos interesses e das necessidades da vida, sejam mais particulares ou mais comuns, acção em vista não da vida, mas do mundo. Com Jacques Rancière, é feito regressar à materialidade das condições de existência um entendimento da política que tem o seu foco numa maneira de agir e não num exercício de poder, e que preserva assim o traço crucial do pensamento de Hannah Arendt, mas restaurando a inscrição da política num movimento de emancipação caracteristicamente rousseauniano. Se houve um ponto de partida para o filósofo de Genebra não foi menos do que a tomada de consciência de que l’homme est né libre, mais partout il est dans les fers! e a necessidade de, então, pensar os termos de uma acção emancipadora. Para Rancière, a democracia como emancipação é acção de inclusão dos excluídos, mas acção dos excluídos, que movidos pela experiência da igualdade, se subjectivam como novos actores. Por isso, a democracia simplesmente formal, com regras e parceiros já dados, encena algo que verdadeiramente já se fechou à política. Também por isso, para Rancière, a democracia não é um espaço de construção de consensos, mas uma prática da dissensão que provém de um nenhures que, por não tomar parte ainda, é assistemático. Tal como para Rousseau a Vontade Geral não se podia fixar numa forma, a democracia, como Rancière a pensa, não pode, sem se perder, fixar-se numa forma. Esta condição inassimilável, que coloca a política sempre aquém da teoria política, tem em Sartre — o filósofo por excelência da liberdade — um paladino que actualmente, já virado o século XX, ganha justo reconhecimento depois de algumas décadas de ajustes de contas, quando não mesmo de esquecimento. A atribulada coexistência entre marxismo e existencialismo não deve obscurecer a questão «de fundo» de Sartre sobre a submersão das consciências individuais à lógica abstracta do marxismo tomado como ciência, por um lado, e às suas instâncias supra-individuais, por outro. O burguesismo tipicamente apontado a Sartre, de tantas maneiras, algumas delas certeiras, como o próprio reconhece em diversas ocasiões, não impede de recuperar as suas perPrefácio

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guntas, tanto mais quanto se propõem a uma renovação do marxismo. Por exemplo, em uma das suas entrevistas à New Left Review: «Não é possível conceber um tipo de organização política em que os homens não sejam contidos e sufocados?» (Sartre, 1969: 230). O movimento dos que não têm parte para tomar parte estende-se à existência histórica de uma humanidade de consciências, que se reclama a responsabilidade pelo seu destino. Levada ao limite, a consciência política é uma resistência das consciências. E da mesma maneira, revela-se uma questão de método resgatar o sentido do singular do efeito destruidor das generalizações, das tipificações, das naturalizações. No cenário de colapso abrupto do Zeitgeist pós-moderno, o risco maior que se vem constituindo com o novo milénio tem sido a possibilidade de um retorno a representações pré-modernas com o fito de impor um retorno material a condições de vida da modernidade capitalista mais predatória. São dois aspectos que se jogam num sistema. A queda em precipício num pré-moderno travestido, a justificar, na ordem das razões, condições materiais de exploração e dominação no trabalho historicamente equivalentes, em precariedade, às fases mais precoces do capitalismo industrial. Os moralismos da vida austera, da censura da escolha leviana, da culpa pelo abuso de existência, da heresia do direito adquirido atestam-no à saciedade nas lideranças políticas. No seu âmago, pulsa a convicção de que existimos sem que ainda nos tivéssemos dado o direito a tanto. Com isto, inverte-se o ideal humano da emancipação, entendido como ideal de conquista de uma existência plena entre homens transformando de facto o que é de direito entre homens. Como finalidade a perseguir na acção política, a emancipação talvez seja o núcleo mais sólido da esquerda historicamente constituída. Mau grado a oposição que Marx celebrou entre emancipação política e emancipação humana, há um comum sentido de emancipação dos homens que se justifica na sua igualdade de princípio, como Rancière bem apontou. Simplesmente, esta igualdade de jure dos homens, dos indivíduos, tem a sua premissa histórica na construção moderna de uma subjectividade soberana, a mesma que é capaz de um juízo estético, como do uso público da palavra. Faculdades iguais, almas igualmente em risco, e necessidades básicas demasiado semelhantes expuseram o humano a um 22

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horizonte de igualdade que não é de essência, nem forçosamente de direito positivo, mas de uma condição legítima. A esta luz, arriscando alguma simplificação generalizadora, podemos dizer que a esquerda é uma invenção moderna, a que o antigo regime se opôs sentando-se à direita do rei. É claro que também o liberalismo político e económico se constituiu sob esta premissa. Mas hoje, sob a vigência do partidarismo dos consensos, que não dividindo sobretudo reparte entre as partes em jogo, esquerda liberal e direita liberal são menos representativas do liberalismo donde provieram — com os seus valores da livre-iniciativa, da menor presença do Estado sobre a vida das pessoas e sempre sobre um fundo de afirmação irredutível do indivíduo humano —, do que da racionalidade dos meios e da ideologia da subtracção existencial que se vai instalando num plano pós-político. O trágico no regresso ao pré-moderno é não estarmos mais a debater a igualdade ou desigualdade entre homens, mas tão-só o direito à existência. Žižek descreve de forma incisiva este transvio do liberalismo ao dizer que a esquerda liberal e a direita liberal estão uma para a outra como uma mão que lava a outra, ambas, portanto, igualmente comprometidas na demissão da acção política. A prosseguir como esquerda política, a esquerda não pode manter-se como esquerda simplesmente liberal, comprometida nas mesmas lógicas consensualistas que evitam enfrentar escolhas de fins e contornam o carácter antagonístico dos interesses que dividem uma sociedade colocando-se no registo pós-político da administração eficiente dos meios. Simplesmente, sem enfrentar o antagonismo, tomando partido, não há universalidade ao alcance do humano.

VI Aos primeiros seis estudos sobre liberdade e vontade sucede uma segunda parte composta por mais três estudos, já não centrados no pensamento de um autor, mas, antes, em problemáticas associadas a noções críticas no debate político contemporâneo: tolerância, identidade e ética pública. A tolerância é hoje uma noção crítica, tendo merecido mesmo um «elogio da intolerância» do filósofo esloveno Žižek. Algo de intolerável se tem constituído Prefácio

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em torno da representação política da tolerância na última década. Faz sentido uma tolerância de convicção hoje em dia? Através do esclarecimento da ambivalência radical que constitui as relações de tolerância, procuramos distinguir diferentes aspectos da tolerância que se articulam de forma ambivalente: tolerância racional/abstracta e tolerância vivida/fenomenológica; tolerância sub e sobredeterminada; tolerância activa e passiva, entre outras. No plano da reflexão política teórica, esta estrutura ambivalente é especialmente sensível à distorção, o que exige uma atenta consideração no sentido de se evitar descrições parciais da tolerância que caucionem um seu uso hipócrita. Talvez assim se possa dar resposta à provocação preocupada de Žižek. Em seguida, procuramos ainda ligar a tolerância, na sua radicação vivencial, à culpabilidade comunitariamente partilhada, dando sequência ao pensamento de Freud sobre o assunto e à discussão que dele faz Marcuse. Em vista desta articulação, é também defendido que um tal fundo comum consiste, essencialmente, em modos subjectivos de vivência da temporalidade. Uma secção final salienta a especificidade identitária do fenómeno social da discriminação no quadro mais amplo dos fenómenos de intolerância. A questão da identidade é retomada num estudo em que se procura demonstrar a reemergência recente de um complexo identitário português, que tinha sido resolvido, e bem, pelo trabalho analítico de um Eduardo Lourenço, entre outros. O seu reaparecimento, sobretudo a partir de meados da primeira década do novo milénio, tem ganho amplitude com alusões que chegam já aos discursos oficiais dos representantes políticos do país, bem como com toda uma produção cultural de renovado interesse na estranha identidade, ou mentalidade, que os Portugueses se representam. É nosso ponto que, com esta reemergência de um presumível complexo identitário nacional, a compreensão do país arrisca obnubilar-se no jogo das representações auto-evidentes que, de uma forma ou de outra, têm sido alimentadas, com previsível sucesso de audiências, em livros de pensadores e intelectuais nacionais relevantes como José Gil, Miguel Real e Vítor Bento. A terceira questão crítica prende-se com a vontade cada vez mais persistente de uma ética pública para as democracias ocidentais, sobretudo em face do problema da sua corruptibilidade. Admitindo-se a premissa de que está em causa, na globalidade das práticas que relevam da corrupção, uma desestrutura24

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ção do espaço público e justificando-se a afirmação de que a ética pública tem, pelo contrário, uma função essencialmente estruturante do espaço público, preservando a confiança interpessoal e o empenho no bem público como valor a perseguir, então resulta, como argumentável, a tese de que a ética pública é, do ponto de vista dos efeitos que produz, uma tendência contrária à corrupção, constituindo assim o instrumento por excelência para enfrentar o fenómeno da corrupção. Movido por esta tese, o estudo desenvolve-se em vista de uma formulação possível do que seja a ética pública. Dialogando com conceitos propostos por Max Weber e Adela Cortina, sugere-se uma abordagem à ética pública como ética da lei pública, abordagem que reputaremos deontológica porque inspirada em Immanuel Kant, e com a qual se procurará esboçar um quadro de funcionamento governativo-administrativo para os Estados de direito democráticos contemporâneos, cuja vida pública se pauta por formas cada vez mais complexas e difíceis de regular explicitamente em forma de lei. É assim, depois de todos os filtros pós-modernos, e sobre os seus despojos, que vimos reclamar escolhas, não só decisões, para o futuro da História: escolha de uma política de vontades, de uma esquerda da confrontação no antagonismo e que toma partido. E também, as escolhas por uma continuação da ideia de tolerância, pelo prosseguimento de uma narrativa moderna, por apressada que tenha sido, para Portugal, e pela defesa de um conceito de espaço público, todas elas escolhas que são continuidades de uma modernidade a retomar. De Rousseau a Kant, mas também de Rancière e Žižek. Porque a primeira condição para não nos condenarmos é não nos condenarmos à sobrevivência, há que reencontrar os caminhos de uma vida que nos projecte fins a perseguir, há que reencontrar o sentido moderno de uma autonomia do humano, que para si mesmo escolhe uma lei, um destino, um sentido, e não se submete à heteronomia da subtracção da existência, dada, como ídolo da precariedade, ao consumo de um capitalismo canibal. Escolher é hoje escolher não sermos sobreviventes e resgatar o direito a uma História humana. Em tempos em que abundam as declarações de últimas vontades, nestes tempos árduos que vivemos, há que escolher como se os tempos fossem imaginativos e nos movessem vontades de outros tempos. Estas são as primeiras vontades para uma vida humana digna. Prefácio

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Parte I

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I LIBERDADE E VONTADE GERAL EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU 1

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça porém senão a si mesmo, e permaneça tão livre quanto dantes. Tal é o problema fundamental a que o contrato social dá solução. Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social

Logo nas primeiras linhas do seu Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político (1762)2, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) esclarece o desígnio, ambicioso, a que se propõe com esta obra. Diz-nos o autor: «Quero investigar se na ordem civil pode existir alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens tais como são, e as leis tais como podem ser.» (CS, I, 1) Tratar-se-ia, pois, de investigar da possibilidade de uma regra de administração, mas, note bene, sob o escrutínio de um duplo critério a satisfazer — por um lado, um critério de legitimidade, questão em torno do bem fundado que possa estar um governo civil e, antes disso, uma comunidade civil, uma civitas. Por outro lado, um critério de segurança, mesmo de confiança que os homens possam depositar nessa regra de administração. Este segundo critério assume, desde cedo, importância crucial no pensamento de Rousseau, imbricando-se no primeiro de tal forma que só por esforço analítico se distinguirão — encontrar uma regra de administração que confira segurança é em grande medida, para Rousseau, encontrar uma regra legítima. Neste sentido, não é tanto uma legitimidade o que Rousseau procura, como se para justificar um Este estudo foi anteriormente publicado em Romão, R.B. & Bento, A (org.), 2006. Guerra, Filosofia e Política. Covilhã: UBI. 2 Doravante CS. 1

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dado estado de coisas civil, um dado regime instalado; bem ao contrário, procura encontrar um pacto social, um regime civil que se adeqúe a uma legitimidade fundadora, referencial último, a saber, a salvaguarda da pessoa humana individual, da sua liberdade e dos seus bens, face à força comum do poder soberano. Dois momentos atestam esta inversão de forma clara. Em primeiro lugar, a contundência com que o genebrino denuncia explicitamente a contradição entre o que diz ser a natural condição livre do ser humano, por um lado, e a sua existência actual efectiva, por outro. «O homem nasceu livre, e por toda a parte ele está a ferros» (CS, I, 1) — estas são as palavras de Rousseau que, como nenhumas outras provavelmente, mais repercutirem na história política europeia desde a Revolução Francesa até às revoluções socialistas. Tais palavras representam, na perspectiva de Rousseau, um estado de coisas que nenhum pacto, desejando-se legítimo, pode tolerar; donde, ser esta a causa occasionalis do esforço rousseauniano para uma formulação inédita de pacto social, mais sinal de transformação do que de simples legitimação. Só com o sucesso de tal formulação, empresa a que Rousseau se lança em Do Contrato Social, seria possível transformar o estado de coisas que lhe é coetâneo e assegurar um governo justo que estabeleça o facto pelo direito e não, como aponta Rousseau aos seus predecessores mais influentes no pensamento político, Hugo Grócio e Thomas Hobbes designadamente, o direito pelo facto. (CS, I, 2) O segundo momento em que se atesta a inversão proposta por Rousseau é-nos dado quando de forma muito expressa, demasiado para que possa ser ignorada, se obriga a si mesmo a pesquisar uma formulação de pacto social que se conforme a uma moldura legítima do ponto de vista do direito natural, uma moldura que expõe com as seguintes palavras: Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um unindo-se a todos não obedeça portanto senão a si próprio e permaneça tão livre quanto dantes. (CS, I , 6, itálico nosso)

Desta moldura, a que qualquer formulação de pacto social se deveria ajustar, seguem-se duas consequências de relevo. Por um lado, estabelece teórica 30

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mas claramente a possibilidade de um conflito entre os particulares e o poder comum, mais em concreto, o risco de a força comum vir a subjugar a pessoa de cada cidadão, além dos seus bens próprios, e, por outro, que nessa possibilidade de conflito reside justamente o problema crucial, questio crucis, a que o pacto social deve dar resposta sob pena de ser um pacto vão à luz da lei natural. Ora, nestes termos, se a formulação que Rousseau propõe nos faz adivinhar a possibilidade de um conflito entre o individual e o colectivo, há que dizer, porém, que, longe de ser pretendido por Rousseau, como sucessivas recepções eivadas de criticismo a nosso ver precipitado lhe censuraram, tal conflito é precisamente objecto da denúncia rousseauniana e a sua possibilidade justamente o problema que se propõe ultrapassar. Rousseau nem sequer pecou por omissão: o que está em causa em CS é o sacrifício da liberdade individual ao poder soberano, regra do seu tempo, sacrifício do particular à força comum; rejeição, pois, do totalitarismo do soberano sobre a vida dos particulares; pelo que achar em Rousseau o percursor da forma democrática do totalitarismo, como, entre muitos outros, Heine3 e Arendt ou os nossos António Sérgio e Cabral de Moncada4 fizeram, cada um à sua maneira, parece-nos matéria a escrutinar cuidadosamente. Fazê-lo é um dos objectivos a que nos propomos, designadamente pela tematização da distinção muito célebre, mas nem por isso muito bem compreendida, entre Vontade Geral e vontade de todos.5 3 Do severo criticismo de Heinrich Heine face a Rousseau, e também face a Kant, Isaiah Berlin faz

a seguinte descrição: «Há mais de um século o poeta alemão Heine alertava os franceses para que não subestimassem o poder das ideias: os conceitos filosóficos acalentados na tranquilidade do gabinete de um professor podem destruir uma civilização. Referia-se à Crítica da Razão Pura de Kant […] E descrevia as palavras de Rousseau como a arma manchada de sangue que, nas mãos de Robespierre, aniquilara o anterior regime.» (Berlin, 1958: 244) 4 A respeito da democracia de Rousseau, afirma Cabral de Moncada — «Individualista ainda no seu ponto de partida e nos seus pressupostos racionais, sem dúvida, ela é totalitária e antiliberal no seu ponto de chegada. Partindo da liberdade do homem e dos seus direitos naturais originários, o dogma da “soberania do povo” e o mito da “Vontade Geral” acabam por tomar na construção do sistema a dianteira sobre os outros elementos e por anular nela todos os vestígios do seu liberalismo.» (Cabral de Moncada, 1953: 243-244) 5 Esta indicação, contrariamente ao que se poderia começar por pensar, aponta para um objectivo rousseauniano muito mais ligado ao problema da acção governativa, ou, se se quiser, do exercício do poder, do que ao problema da constituição do poder. Poder-se-á dizer que este segundo problema se su-

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Esta mesma questão é um manifesto sintoma da actualidade do pensamento de Rousseau, pois se há hoje teste à maturidade das democracias ocidentais passará com certeza pela capacidade de salvaguardar minorias do efeito de maiorias, imprimir condicionamentos que atendam ao protesto da verdade, por mais difícil que seja determinar o estatuto desta em política, face ao acto sagrado da democracia — o voto. Fenómenos como o eleitoralismo, o populismo, a convergência imediata e desordenada de vontades, a demagogia, em suma, o que classificaríamos genericamente sob a categoria de «tirania das maiorias» são hoje efeitos contra os quais as democracias devem procurar soluções. Expor esta actualidade de Rousseau, até pela sua feição contraditória, é outro dos nossos objectivos. Por fim, como terceiro e último objectivo, procuraremos articular, em debate com Hannah Arendt, uma condição bélica no cidadão como garantia última contra a precariedade da Vontade Geral rousseauniana, mas também, indo bem além de Arendt, da própria ideia de democracia. Que formulação apresenta, pois, Rousseau, para um pacto social que respeite a moldura que o direito natural impõe, ou seja, um pacto capaz de realizar uma alternativa quer ao cenário de destruição do homem no «estado natural», quer à submissão sem limites, sem salvaguarda da liberdade, do cidadão? Eis a conhecida fórmula do contrato: Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção da Vontade Geral; e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo. (CS, I, 6)

A análise deste contrato revela três momentos consecutivos: o da alienação da pessoa de cada um e das suas posses; o da formação da Vontade Geral, pessoa abstracta que assume a soberania; e o da recuperação a título legal de tudo aquilo que cada um havia alienado, sejam as suas posses, seja a sua pessoa, bordina ao primeiro, o que, a bem dizer, é plausível não só em Rousseau como em Hobbes: diferentes entendimentos do que deve ser o exercício do poder (ou seja, como se exerce e quem o exerce, e por fim os limites que o condicionam) estruturam diferentes modelos de constituição e legitimação do poder. Enquanto ao absolutismo, de cariz liberal, hobbesiano se faz corresponder determinada constituição, à democracia directa de Rousseau faz-se corresponder outro tipo de constituição e legitimação do poder.

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dando a posse de cada um lugar à propriedade legal, isto é, ao reconhecimento pelos outros e pela comunidade civil em geral das suas posses. Por que razões, à luz do pensamento de Rousseau, podem estes três momentos determinar uma associação em que a pessoa e os bens de cada associado sejam protegidos da força comum? Simplesmente porque, apesar da instituição de uma autoridade soberana, todos os súbditos permanecem tão livres quanto dantes; a liberdade natural converte-se — eis o momento engenhoso do argumento de Rousseau — numa liberdade civil, sem nada perder; pelo contrário, ganhando o reconhecimento dos outros que participam da mesma comunidade. Não se sacrifica, pois, a liberdade do cidadão na submissão do súbdito ao soberano. Mas bastará de facto esta forma de associação, este pacto social, para que fique salvaguardada a liberdade dos cidadãos, os direitos que os assistem quanto à posse de bens, e tudo o mais de que dispunham naturalmente, face aos perigos de sobreposição de uma força comum? E, mais latamente, aos perigos de dissolução do nó social, da perda de uma posição de paz em troca de uma de guerra? Note-se que, para Rousseau, há um vínculo profundo entre estas duas questões — a sobreposição da força comum sobre os particulares representa, por si só, em termos que esclareceremos adiante, uma destituição da legitimidade do pacto social, pelo que, nessas circunstâncias, e face a ele, não será menos ilegítima a posição de guerra civil. A nossa proposta de resposta a estas questões é tríplice: 1. A fórmula do pacto mostra-se claramente insuficiente. Vê-lo-emos a respeito da noção de interesse comum e da possibilidade de conflito entre este e o interesse particular. Donde, haver necessidade de formular condicionamentos ao pacto. 2. Os condicionamentos propostos por Rousseau mostrar-se-ão, porém, contrários, por vezes contraditórios, com o desígnio que almejavam cumprir. Veremos que assim é com os condicionamentos da indivisibilidade e da inalienabilidade da Vontade Geral. A consequência mais óbvia que daqui se segue é uma inadmissível supressão, pelo menos a partir de um ponto de vista politicamente liberal, do pluralismo. 3. Pese embora o que ficou dito, os mesmos condicionamentos, se lidos reflectidamente, expõem a nosso ver uma precariedade essencial aos reA Vontade da Liberdade

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gimes democráticos que, no limite, só encontra amparo na capacidade dos cidadãos em sustentar, no seu peito, uma ficção comum — a Vontade Geral. Vê-lo-emos, muito em particular, a partir da preocupação rousseauniana com o conflito entre Vontade Geral e vontade de todos e com o estatuto do cidadão.

O Interesse Comum Posto este trajecto, começaremos por explicitar a distinção entre interesses particulares e interesse comum. Tal como Rousseau no-lo apresenta, o interesse comum é em substância da mesma natureza que o interesse particular, no sentido em que resulta tão-só da abstracção do que permanece comum nos múltiplos interesses particulares provenientes da multidão de vontades individuais envolvidas no acto do pacto. Assim, o interesse comum identifica-se com aqueles interesses que, além de particulares, sucede serem comuns a todos as vontades contratantes. Por isso, de um ponto de vista lógico, é manifesto que o interesse comum não é mais do que o conjunto de interesses que resultam da intersecção de todos os conjuntos de interesses particulares de todos os indivíduos de uma comunidade. Obviamente, se o conjunto-intersecção fosse nulo não seria possível abstrair um interesse comum nem firmar uma Vontade Geral que o perseguisse. Sobre esta explicitação, Rousseau não se poderia ter exprimido de modo mais claro: […] se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que a tornou possível. É o que há de comum entre esses diferentes interesses que forma o laço social, e se não existe nenhum ponto no qual todos os interesses se acordem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente sobre esse interesse comum que a sociedade deve ser governada. (CS, II, 1; itálico nosso)

Poder-se-ia concluir que, deste modo, o facto de, numa ou mais vontades, interesse comum e interesse particular entrarem em conflito só se explicaria 34

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nos termos de um equívoco. Ou sucederia o interesse que passa por comum não ser realmente interesse comum a todas as vontades individuais, ou sucederia o interesse particular, proclamado em certa ocasião por dada vontade, conflituar com outros interesses dessa mesma vontade, interesses igualmente particulares quanto à sua origem, e simplesmente comuns no sentido em que são partilhados pelas outras vontades. Na verdade, porém, esta conclusão não se sustém, pois os interesses particulares estão em constante transformação e, consequentemente, o interesse comum originalmente contratado pode deixar de exprimir um interesse efectivamente comum a todas as vontades. Não deveria, porém, o interesse comum, de acordo com a definição, transformar-se também ele de acordo com os novos interesses particulares? Em parte sim, se a expressão «interesse comum» continuar a significar o interesse que sucede ser comum às vontades que se submeteram ao pacto. Contudo, a resposta também é parcialmente negativa e por uma razão, a nosso ver, importante: embora nada impeça no contrato social que os pactuantes sejam volúveis e inconstantes quanto aos seus interesses particulares, não é o caso que sobre aquilo que pactuaram — o interesse comum — não seja razoável a exigência de um compromisso de perseverança. Se contratar envolve, de algum modo, um acto de promessa acerca do objecto de contrato, no caso a estabilidade do conteúdo do interesse comum, então, ter-se-á que o interesse comum originalmente apurado pode, de facto, esvanecer-se no jogo de mudança das vontades particulares, ainda que permaneça, de jure, exigível face ao compromisso assumido pelo contrato. Quer isto dizer que é no próprio interesse comum, mais do que num antagonismo com interesses particulares, que emerge a possibilidade de conflito. Face a esta possibilidade de conflito, Rousseau procura fixar um conteúdo do interesse comum insusceptível à volubilidade, mesmo se generalizada, dos interesses particulares. Isto significa, porém, que a definição estritamente formal de interesse comum se revela insuficiente — um interesse formalmente comum pode não ser um interesse realmente comum, que diga genuinamente respeito à Vontade Geral. Necessário é ainda que nele esteja unicamente em causa o que é verdadeiramente da ordem do bem comum. Por aqui, percebe-se o alcance dos conceitos de interesse comum e Vontade Geral em Rousseau. Não A Vontade da Liberdade

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são apenas noções formais, elegíveis, mas dispõem de uma materialidade ou ontologia próprias. É claramente neste sentido que Rousseau profere afirmações como as de que a Vontade Geral, princípio da soberania, não se engana. Com isto, evidentemente não está a querer dizer que as maiorias, mesmo se unânimes, nunca se enganam e que as minorias, inversamente, estão sempre enganadas, pelo simples facto de as primeiras serem maiorias e as segundas minorias. Bem pelo contrário, Rousseau está a querer salvaguardar o bom senso quanto ao bem comum dos inevitáveis enganos que o senso comum tende maioritariamente a alimentar. Já por outro lado, a Vontade Geral não poder enganar-se apenas significa que ela é da ordem da realidade, e assim por princípio verdadeira, e não da ordem do discurso, esse sim ou verdadeiro ou falso. Como qualquer outra realidade, a Vontade Geral poderá ser ilusória, aparente, enganadora, mas não falsa ou enganada.6 É notório que, por aqui, novos problemas resultam dentro do pensamento de Rousseau, mas exactamente por permitir que minorias iluminadas possam supor, no seu alto critério, que são melhores intérpretes da Vontade Geral que a massa maioritária. Quem conheça a realidade da Vontade Geral, quem saiba dos seus meandros melhor do que os outros, ou lhes faça crer que assim é — imagine-se uma elite revolucionária —, verá reconhecido, na medida em que seja reconhecido aquele saber, o direito à coerção a bem do interesse comum. A este propósito é frequentes vezes lembrada a afirmação de Rousseau de que quem desobedecer à Vontade Geral será constrangido por todo o corpo social e que tal não tem outro significado senão o de o forçar a ser livre (CS, I, 8). Além desta, outras dificuldades rapidamente conduzem Rousseau a um terreno escorregadio. Desde logo porque a formulação do pacto não envolve um outro em carne e osso, um segundo outorgante que se dê a ver em pessoa, 6 Equívocos na interpretação destes pontos são muito comuns e arriscam incorrer em formulações que só podem ser tomadas como caricaturas do pensamento de Rousseau. Encontramos um exemplo na História das Ideias Políticas de Freitas do Amaral onde, confundindo-se Vontade Geral e vontade da maioria, acaba-se atribuindo a esta o que respeita apenas àquela — «A maioria nem sempre tem razão, dizia Locke, por isso é necessário limitá-la; a maioria tem sempre razão, diz Rousseau, por isso não é preciso limitá-la. As minorias é que estão enganadas, quem está em minoria nunca tem razão: por isso a soberania é infalível, a Vontade Geral traduz o interesse colectivo, exprime sempre o bem comum.» (Amaral, 1998: 50)

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mas tão-só uma abstracção, além do mais, ficcionada, provavelmente por cada um à sua maneira, como se fosse uma vontade. Assim, quem exige ao cidadão que persevere no interesse comum a que se obrigou não é ninguém, nem um outro cidadão, nem uma assembleia de cidadãos, mas algo cuja realidade senciente está, porém, em toda a parte. E, no entanto, de facto, quem exigirá e obrigará serão outros cidadãos, com os quais o desobediente nenhum contrato houvera celebrado. Todos e qualquer um, em pé de igualdade, estão em condições de denunciar um segundo e um terceiro, fazerem-se, digamos assim, ministros da verdade a respeito do interesse particular de cada vontade, juízes da verdade e da falsidade do interesse comum a todas as vontades. Esta ambivalência sobre quem pode exigir obediência torna-se tanto mais perniciosa quanto, como vimos, o interesse comum de facto pode ele mesmo se transformar. E se Rousseau não nos dá critérios pelos quais possamos julgar da legitimidade do conteúdo do interesse comum originalmente contratado, menos nos dá a respeito do interesse comum transformado, das mediações formais que regulam a sua transformação. No limite, cruzando a indefinição em que Rousseau deixa as condições de obrigação dos cidadãos e a indefinição quanto aos procedimentos de legitimação do próprio interesse comum e sua transformação não é difícil ser-se conduzido a tal ponto que quem não acompanhe a transformação corre o risco de se tornar um desobediente, mesmo que cumpra com todo o zelo o interesse que havia contratado. E quem desobedece às leis, quem as viola, cessa de ser membro do Estado. A sua existência e a do Estado tornam-se incompatíveis. Entre ambos, a relação será a mesma que a de inimigos em guerra (CS, II, 5). Em suma, nenhum interesse particular e nenhuma vontade particular estão a salvo. Significará isto que Rousseau lançou as bases para o Terror e para a democracia totalitária? Seguindo exclusivamente a formulação do pacto, julgamos que sim. Mas, de forma alguma, o mesmo significa que os tenha legitimado. Pelo menos duas boas razões sustentam esta conclusão. Primeiramente, a motivação e a moldura do pacto afirmam, por princípio, que se trata de proteger os particulares da força comum, não de os submeter a ela; em segundo lugar, a possibilidade de desvio totalitário da vontade de todos face à Vontade Geral é representada pelo próprio Rousseau como um perigo que o preocupa e a que procura dar resposta. A Vontade da Liberdade

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Não obstante, e quanto à primeira razão, já verificámos como Rousseau, afinal, vem tolerar a sua contraditória em virtude da insuficiente formulação do pacto. Com efeito, ao deixar indeterminado o conteúdo do interesse comum, bem como os termos em que nele encontra fundamento o direito à coerção, Rousseau possibilitou — e tornou mesmo natural — que a questão do poder, supostamente ligada à promoção do interesse comum, se convertesse numa questão de poder sobre o interesse comum. Assumida esta conversão, já pouco importará o interesse comum, mas simplesmente o interesse, obviamente particular, de quem o domina. Este é, aliás, um traço característico de certo colectivismo que fez a sua história, sobretudo no séc. XX, um pouco por todo o mundo, despromovendo o direito à vontade individual sempre que contrariasse a vontade colectiva, tal qual era representada e imposta por uma minoria. Talvez pela consciência destas dificuldades relativamente ao interesse comum, Rousseau tenha sentido a necessidade de avançar com uma segunda razão, a saber, a distinção algo volátil, mas absolutamente decisiva, entre Vontade Geral e vontade de todos. Com efeito, é na discussão desta distinção que se joga não só a valia, em particular, do projecto rousseauniano de direito político, mas também a condição, por assim dizer, intrinsecamente precária dos regimes que reconhecemos como democracias. Não obstante, e uma vez mais, se por aqui se aclara o esforço de Rousseau em evitar o perigo totalitário, veremos, porém, que é nesse mesmo esforço que ainda se encontrará evidentes concessões ao totalitarismo.

Vontade Geral e vontade de todos A distinção entre estas duas vontades é-nos dada sob a seguinte formulação: Há muitas vezes uma diferença entre a vontade de todos e a Vontade Geral; esta só tem em vista o interesse comum, a outra tem em vista o interesse privado e é apenas uma soma de vontades particulares: mas retirem destas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem entre si, e restará como soma de diferenças a Vontade Geral. (CS, II, 3) 38

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Fazendo uso dos conceitos de «intersecção» e de «reunião», poderíamos ser tentados a distinguir a Vontade Geral da vontade de todos, tomando a primeira como constituída a partir do conjunto-intersecção dos interesses individuais, como vimos, e a segunda como constituída a partir do conjunto-reunião dos mesmos interesses. No entanto, uma tal caracterização conduzir-nos-ia à consideração do conteúdo da Vontade Geral como sendo parte do conteúdo da vontade de todos, o que não segue nem a letra nem o espírito do texto rousseauniano. É explícito nas palavras do genebrino que os conteúdos das duas vontades, a geral e a de todos, podem divergir; aliás, o risco de divergirem é mesmo objecto da sua preocupação teórico-política, pois é também o risco de fazer cessar o próprio pacto social. Perguntar-se-á, então, de que outro modo se pode caracterizar a vontade de todos em contraste com a Vontade Geral? A este propósito, uma nuance impõe-se. Rousseau não afirma que a vontade de todos consista na soma dos interesses particulares, mas, diversamente, na soma das vontades particulares. Faz realmente diferença esta diferença? Absolutamente, pois vontades particulares não exprimem necessariamente interesses particulares, nem, do mesmo modo, interesses comuns; exprimem tão-só interesses, podendo, contingentemente, dar-se o caso de nelas se discernir o que é particular do que é comum no interesse eleito. Por outras palavras, a vontade de todos originariamente diz respeito à totalidade das vontades individuais e só derivadamente ao interesse que elas elegem. Nestes termos, a vontade de todos (bem como a da maioria) não está vinculada ao interesse comum, podendo, por isso, não o atender, sacrificando assim a Vontade Geral; no limite, o próprio pacto. É esse o caso que Rousseau nos descreve: Quando o nó social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares começam a fazer-se sentir e as pequenas sociedades a influir na grande, o interesse comum altera-se e encontra opositores, a unanimidade já não reina entre as vozes, a Vontade Geral já não é a vontade de todos, elevam-se contradições, debates e a melhor opinião já não passa sem disputas. (CS, IV, 2; itálico nosso)

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Invertendo o ângulo de abordagem, a Vontade Geral, por não poder deixar de se actualizar através da expressão das vontades individuais, depende sempre da vontade de todos (ou, ao menos, da maioria), esperando nesta a capacidade de preservar a atenção no interesse comum. Mas é justamente aqui que há uma circunstância de risco inelidível — a possibilidade permanente de os indivíduos elegerem outro interesse que não o comum, seja por se iludirem (e são muitas as estratégias de ilusão em política), seja por esquecerem a sua condição de cidadãos, suspendendo o estado civil, como que regressando ao estado de natureza. Desta forma, a contingência de uma dissensão entre a vontade de todos (ou da maioria) e a Vontade Geral não é mais do que a contingência de tudo aquilo que, pese embora a adesão maciça que possa obter no circunstancialismo da ocasião, ponha em causa o interesse comum e o próprio fundamento do contrato social. Neste sentido, a vontade de todos, quando desavinda da Vontade Geral, pode ser entendida como o nome rousseauniano para fenómenos como o populismo e a demagogia, exemplificáveis nas democracias propagandísticas, com o seu particular volutear revolucionário, mas também, a seu modo é certo, nas nossas hodiernas democracias ocidentais cada vez mais massificadas e «mediocretizadas». Se a tirania das maiorias pôde conduzir aos totalitarismos de feição aparentemente democrática, hoje já extintos, não será por isso que deixam de constituir uma ameaça, aliás crescente, às democracias que integramos. Com este conceito de vontade de todos, Rousseau deu conta da perpétua condição precária de uma Vontade Geral assente na soberania popular. A condição da legitimidade da Vontade Geral está na assunção do perigo insuperável da sua reversibilidade. Com este conceito de vontade de todos Rousseau terá identificado, arriscamos a generalização, a precariedade inerente ao regime democrático.

O Condicionamento do Pacto Face a esta constante precariedade — enquadrada no facto de a Vontade Geral só ser elegível através de vontades particulares —, Rousseau procurou estabelecer um duplo condicionamento que salvaguardasse a perenidade do contrato social e a estabilidade da Vontade Geral. Trata-se de uma ilegitima40

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ção do direito à representação política, por um lado, e de uma ilegitimação do direito à associação política, por outro. Ambas são ilegítimas, no juízo de Rousseau, porque anulam o próprio pacto social. Se este constitui uma Vontade Geral enquanto pessoa subjectiva, ainda que abstracta, então tal vontade não se pode alienar — tal qual as vontades particulares, que, mesmo querendo, não podem renunciar à sua liberdade, a Vontade Geral não pode renunciar a si mesma. Donde, a ilegitimação de uma vontade que se fizesse representar por outra. Por outro lado, não pode dividir-se, pois só por absurdo se poderia ser conduzido a conceber uma pessoa que não fosse uma pessoa, subjectividade constituída qua unidade individual. Donde, a ilegitimação de uma vontade que se fragmentasse em vontades intermédias, resultado de associações políticas.7 Note-se que, a admitir este condicionamento pela natureza subjectiva da Vontade Geral, ele não pode ser considerado um mero suplemento ad hoc ao pacto. É condição de implementação do pacto. É claro que esta essencialização, por assim dizer, do condicionamento faz parte do engenho de Rousseau em conferir-lhe tanta legitimidade quanto a que se conferir ao pacto propriamente dito. Mas não é menos óbvio que a argumentação de Rousseau neste ponto depende estreitamente de uma caracterização bastante discutível da natureza da Vontade Geral. Numa palavra, que a Vontade Geral enquanto expressão do interesse comum das vontades particulares se diga uma vontade em sentido literal e não apenas metafórico é ponto que só muito arduamente, para não dizer nunca, seria sustentável. Aliás, Rousseau tenta, designadamente no que respeita ao direito de associação política, uma outra argumentação bem menos insustentável, ainda que, como veremos, nem por isso legítima. Desta feita, tratar-se-á de um argumento de cariz sociológico. A partir da ideia de que o interesse comum será tanto mais fielmente expresso quanto maior for a fragmentação dos interesses 7 Alain Renaut sintetiza este condicionamento em virtude do carácter subjectivo da Vontade Geral nos seguintes termos: «A soberania, que não é mais do que “o exercício da Vontade Geral”, fica a distinguir-se por duas características — indispensáveis à constituição do povo como subjectividade: ela “nunca pode alienar-se” (CS, II, 1) e também não pode, pelas mesmas razões, dividir-se (CS, II, 2).» (Renaut, 2000: 139)

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particulares, Rousseau pronuncia-se pela inadmissibilidade de associações de cidadãos, cujas vontades constituiriam um meio-termo entre a vontade particular de cada um e a Vontade Geral da comunidade civil. Toda a associação dentro da comunidade significaria, a seu ver, um acto de divisão ou, pelo menos, um acto de enfraquecimento do nó social. Isto porque, se houvesse algo que instituísse um interesse comum ao nível de uma associação intermédia, tal interesse intermédio entraria em competição, se não mesmo em conflito, com o interesse realmente comum a todos. A alegada ilegitimidade do direito de associação política resulta, pois, do facto, presumido por Rousseau, de que tal poria em causa o próprio pacto social. Para demonstrar este resultado, Rousseau retoma a noção, mesmo que metafórica, de uma Vontade Geral. Vimos atrás que a vontade de todos era a que se elege por unanimidade, ao passo que a Vontade Geral, por princípio, se definia pelo interesse comum, isto é, pela abstracção do que é comum na multiplicidade de interesses particulares dos cidadãos. Vimos também que nada nos garante que a Vontade Geral seja eleita, como nada nos garante que o interesse eleito seja, de facto, o interesse comum. Como já dizia Francis Bacon noutro contexto, embora não tão longínquo do presente quanto poderá parecer, «mesmo que todos os homens ensandecessem continuaria a ser perfeitamente possível o acordo entre eles» (Novum Organum, afor. 27). Portanto, para evitar os perigos de uma vontade de todos perdida e para privilegiar as condições de elegibilidade da Vontade Geral, Rousseau expõe-nos o seu argumento: Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não têm nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a Vontade Geral, e a deliberação seria sempre boa. (CS, II, 3)

Note-se, desde já, que se Rousseau pensa, nesta comentadíssima passagem, a Vontade Geral como resultado de um «grande número de pequenas diferenças» e também, noutra passagem do mesmo capítulo, como resultado da «soma de diferenças», tal não significa que esteja a contradizer a definição de princípio, ou sequer a enunciar uma sua formulação alternativa. Apenas de42

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termina aquelas que julga serem as condições preferíveis para uma eleição da Vontade Geral, entendida tal qual a sua definição de princípio entende. Não está em causa o que ela seja, nem sequer como ela resulta, mas, muito incisivamente, como resulta melhor. Novamente, uma pequena diferença faz uma grande diferença — uma coisa é determinar os modos como da multidão de interesses particulares, da dinâmica societária que entre estes se surpreende, resulta um interesse comum; outra, bem diferente, é um trabalho de «engenharia» sobre os interesses particulares que os conforme a uma tal disposição que deles resulte como que por necessidade o interesse comum. Ora, esta via propugnada por Rousseau só pode ser tomada como inaceitável, pois com ela o condicionamento desloca-se para o plano dos interesses particulares sobre os quais, porém, a esfera do poder político não deveria poder exercer qualquer condicionamento. A haver condicionamento legítimo teria de se situar numa posição in pactum, nunca numa posição ante pactum. Com efeito, aqueles interesses particulares que se aglutinam em torno de associações são temporalmente anteriores ao pacto. Supor o contrário conduzir-nos-ia a uma concepção absurda do estado da natureza, segundo a qual nenhum tipo de articulação entre interesses particulares seria possível, desde os mais elementares, como a sobrevivência individual e da espécie, até todos os que resultam da organização societária de modos de vida, modos de produção, etc. Mas esses mesmos interesses são também logicamente anteriores à formação do interesse comum; são a base, tanto quanto os interesses particulares individuais, para a formação do interesse comum. Limitá-los é limitar irremediavelmente uma justa representação da Vontade Geral. Mais do que isso é destituir aquilo que, hoje, continuamos a chamar Sociedade Civil. De facto, se Rousseau visa garantir a elegibilidade da Vontade Geral logo no espaço dos interesses particulares, para aí impor inibições formais à iniciativa, designadamente à iniciativa de associação, não tolerando que haja outros interesses particulares que não os desarticulados interesses de cada cidadão por si, então é a sociedade civil, e as suas possibilidades plurais de convivência, o preço a pagar pelo resgate da estabilidade da Vontade Geral e de perenidade do contrato social. Ora, a simples pressuposição de que a comunidade, na sua vida económica, não envolvesse associações constituídas em torno de interesses particulares é, como A Vontade da Liberdade

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vimos, totalmente infundada. Naturalmente, Rousseau sabe-o; o que não soube, digamos assim, foi prevenir-se de forçar a realidade a estar de acordo com as melhores condições para que o pacto vingasse de forma perene. Em termos talvez excessivamente crus, Rousseau, não adaptando o pacto à realidade, acabou condicionando a realidade ao pacto.8 O resultado é evidente: Rousseau só evita o sacrifício da Vontade Geral a uma vontade de todos totalitária, coarctando ao indivíduo, aquele mesmo a quem prometia garantir a sua plena liberdade caso pactuasse, todas as liberdades de associação a outro ou outros com vista à promoção dos seus interesses, sejam negócios, seja o que for o que os mova. Na representação rousseauniana da civitas não haveria sociedades privadas, nem semipúblicas; só haveria cidadãos e, depois, o Povo soberano. De qualquer modo, se as soluções de Rousseau para o problema da precariedade da Vontade Geral não são aceitáveis, tal não significa que o problema não seja ele mesmo digno de atenção; menos pertinente, ainda, seria uma interpretação que supusesse que Rousseau visse nessa precariedade alguma espécie de bem público, como sugere Hannah Arendt no seu On Revolution — «Rousseau insistia em que “seria absurdo para a vontade restringi-la no futuro”, antecipando deste modo a forçosa instabilidade […] dos governos revolucionários.» (Arendt, 1963: 93) Aliás, a respeito do criticismo de Hannah Arendt, estamos em crer que se trata de uma das mais envesgadas interpretações do pensamento político de Rousseau a que se pode ler nas suas seguintes palavras em On Revolution:

8 Note-se que o próprio Rousseau ressalva, pese embora de uma forma inarticulada, um domínio que corresponde à Sociedade Civil. É que a Vontade Geral está duplamente limitada, interna e externamente — internamente, no sentido em que só pode legislar isonomicamente, i.e, legislando sempre num plano universal; externamente, no sentido em que só pode ter por objecto o interesse comum, excluindo-se necessariamente do domínio dos interesses particulares. Tal domínio vale bem como esboço de sociedade civil, mas não mais do que isso — uma sociedade civil que não se pode articular não chega a ser realmente uma sociedade civil. Este carácter inarticulado do homem em estado de natureza prende-se obviamente com a antropologia desenvolvida por Rousseau nos seus dois Discursos de 1750 e 1755. Neles Rousseau defendia que a corrupção da bondade natural humana resultava da sua sociabilização; dito de outro modo, no estado natural, com a sua bondade, o homem seria um ser solitário. «Resta-me considerar e conciliar as diferentes ocasiões que puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espécie, produzir um ser mau tornando-o sociável.» (Rousseau, J.-J., 1755: 162)

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É certo que nenhum estadista tem seguido Rousseau até esta conclusão lógica… Não encontramos em parte alguma a hipótese de que o inimigo comum reside no coração de todos. Contudo, é diferente o que se passa com os revolucionários e a tradição de revolução. Não foi apenas na Revolução Francesa, mas em todas as revoluções, que o seu exemplo inspirou, que o interesse comum apareceu sob a forma do inimigo comum e a teoria do terror, de Robespierre a Lenine e a Estaline, pressupõe que o interesse da totalidade deve de modo automático, e decerto permanente, ser hostil ao interesse particular do cidadão. (Arendt, 1963: 96)

A objecção é imediata e tripla: nem Rousseau propugnou alguma vez pelo interesse da totalidade, que o tenha proporcionado sim, mas que o tenha proposto não (se há preocupação, em Do Contrato Social, em discernir a vontade de todos da Vontade Geral é, como vimos, justamente para de algum modo condicionar aquela); nem em momento algum será possível encontrar em Rousseau alguma acepção do interesse comum pela qual este fosse o inimigo; nem sequer em circunstância alguma Rousseau pensou o contrato social como configurando uma hostilidade, pelo menos automática e/ou permanente, do interesse da totalidade, sequer do interesse comum, face aos interesses particulares dos cidadãos. Tais afirmações de Arendt, do ponto de vista de Rousseau, ilegitimariam o próprio pacto. Que o Terror se tenha inspirado na intransigente afirmação rousseauniana do carácter popular da soberania, que o Terror se firmasse sobre o medo, a denúncia e a ameaça da guerra que a fórmula do pacto social possibilitam, tal não elide o facto de que Rousseau procurou, com maior ou menor eficácia, ilegitimá-lo. Se o risco da guerra foi fonte de unidade nacional no Terror, se o mesmo risco de guerra é, como veremos adiante, segundo Arendt, fonte de conservação do nó social em Rousseau, há, no entanto, uma diferença maximamente relevante — a guerra para o Terror visava exaltar a vontade de todos; a guerra para Rousseau visava condicionar e conter a mesma vontade de todos. Não antes de encerrar este ponto, permitimo-nos ainda discordar de uma outra interpretação, muito celebrada, de Alexis Philonenko, de acordo com a qual a soma de um «grande número de pequenas diferenças» de que resulta a A Vontade da Liberdade

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Vontade Geral corresponderia a uma aplicação do cálculo infinitesimal.9 É certo que Philonenko expõe fortes indícios de que Rousseau estaria familiarizado com este tipo de cálculo, mas tal, a confirmar-se, só serviria, a nosso ver, para vacilar sobre se Rousseau o tivera efectivamente em conta aquando da exposição do que chamámos condições preferíveis para a eleição da Vontade Geral. É que esse cálculo faz-se sobre um contínuo, ao passo que a eleição da Vontade Geral se faz necessariamente sobre unidades discretas, a saber, as vontades individuais. Aliás, tratando-se de apresentar um modelo de cálculo para a eleição da Vontade Geral tal qual Rousseau a pensa, mais facilmente, e de forma bastante mais adequada, encontrá-lo-íamos no cálculo vectorial.10 Com efeito, de acordo com este é possível somar vectores num plano de coordenadas, descrevendo-se cada vector por um dado valor numérico, uma dada direcção e um dado sentido. Assumindo que o valor (módulo) seja o número de vontades, a direcção seja o interesse sobre o qual esse número de vontades toma posição, e o sentido, por fim, seja a posição de aprovação ou desaprovação assumida por esse número de vontades a respeito desse interesse, então pode-se traduzir perfeitamente um conjunto de afirmações de Rousseau: 9 «A matemática em que se vai apoiar Rousseau é o cálculo infinitesimal.» (Philonenko, 1984: 30) Mais em pormenor, explicita Philonenko: «A constituição matemática da Vontade Geral é mais complexa. Rousseau atribui-lhe, de imediato, a tarefa de exprimir a totalidade do corpo político e social e caracteriza-a como soma de diferenças. E ele precisa: “uma soma de pequenas diferenças”. Ele propõe judiciosamente os princípios que presidem a essa elaboração. O primeiro é estritamente matemático. Falar dos mais e dos menos “que se entre-destroem” é uma alusão directa ao método do erro de desvio que na operação infinitesimal ganha o seu sentido na definição de dx e dy como quantidade auxiliar.» (Philonenko, 1984: 31) 10 Não se pretende com isto defender que Rousseau visasse expressamente uma matematização da formação da Vontade Geral através da álgebra de vectores. Esta só se desenvolveu, pelo menos de forma sistemática, a partir do séc. XIX, muito posteriormente, pois, ao CS e mesmo à morte de Rousseau. Bem diversamente, pretende-se apenas chamar a atenção para o facto de haver aspectos do cálculo vectorial — como a lei do paralelogramo para a adição de vectores — que eram bem dominados no tempo de Rousseau. Aliás, a lei do paralelogramo encontrava-se, já desde 1687, enunciada nos Principia Mathematica de Isaac Newton (cf. Corolário I dos Principia Mathematica), se não mesmo desde a Antiguidade. Ora, nestes termos é razoável presumir que houvesse da parte de Rousseau uma consideração intuitiva dos interesses particulares das vontades como se de entidades vectoriais se tratasse, ainda que não conceptualmente tematizadas qua vectores. Julgamos que corrobora esta interpretação o facto de a Vontade Geral, contrariamente à vontade de todos, não ser uma grandeza escalar. Com efeito, para Rousseau não é tanto o número de vontades o que está em causa na formação da Vontade Geral, mas o interesse comum que as une.

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• Em primeiro lugar, muitos vectores ligeiramente diferentes, exprimindo diferenças de interesses, diferenças de opinião, terão por vector-soma um único vector que, anulando as diferenças, exprimirá, no entanto, um só interesse comum a todas as vontades somadas. • Em segundo lugar, associações intermédias conduzem a somas intermédias de que resultam vectores-soma com grandes valores — i.e., que somam já muitas vontades —, correndo-se o risco de não se levar a cabo a última soma, opondo-se o interesse particular ligado a uma associação ao de outra, arriscando-se o conflito entre cada um desses interesses particulares e o interesse comum, ou seja, arriscando-se o próprio interesse comum e a possibilidade de um conflito aberto entre interesses particulares.

Actualidade em Rousseau Exposto o nosso criticismo face ao que denominámos por trabalho de «engenharia» de Rousseau, convém sublinhar que não é tanto a ideia de uma «engenharia» o que nos motiva a objecção como o facto de tal trabalho se fazer sobre aquilo que precede o pacto, quer de um ponto de vista lógico, quer de um ponto de vista temporal. A ilegitimidade rousseauniana consiste em ter feito o pacto transcender-se pelas condições que passam por ser sua base de implementação. Ao contrário das concepções de soberania tradicionais, seja em ordem da natural autoridade dos pais sobre os filhos, seja em ordem de uma autoridade divina, ambas assegurando a transcendência do soberano face aos súbditos, Rousseau inverte a relação de transcendência — é o estado natural, representado como estado inarticulado de interesses particulares, que transcende o estado civil e a relação súbdito/soberano. Daí ao totalitarismo é, com efeito, apenas um pequeno passo que fica por dar. É claro, pelo que vimos até agora, que Rousseau, na sua preocupação pela salvaguarda do contrato social, põe-se em posição de contradição com dois pilares das democracias ocidentais contemporâneas: o sistema representativo, por um lado, e o regime de partidos políticos, por outro. Mas é justamente sobre um dos problemas hodiernamente mais prementes do ponto de vista político que A Vontade da Liberdade

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Rousseau se mostra actual. Ao fim e ao cabo, o fenómeno de uma vontade de todos divorciada da Vontade Geral corresponde bem, já o observámos, a fenómenos, com a sua periculosidade, como o eleitoralismo, o demagogismo, o populismo. Ou seja: interesses eleitos por vontades que não procedem ao devido escrutínio do que nelas é interesse particular ou interesse comum, mesmo à simples consideração do que seja um interesse comum. Por outro lado, o fenómeno das associações intermédias corresponde bem a problemas de possível défice democrático como o rotativismo político, a antagonização entre representação política e participação política, o corporativismo, a partidocracia, enfim, o risco de uma crise das instituições políticas, e da sua representatividade política. Não significa isto que a democracia directa propugnada por Rousseau seja preferível à democracia representativa — aliás, nem Rousseau considerou em momento algum que a França, ou outra grande nação, pudesse ser regida por uma democracia directa; estaria a pensar, sobretudo, como afirma explicitamente, em cidades-Estado, a sua Genebra por exemplo. Significa antes que a salvaguarda da soberania popular é condição da legitimidade do pacto. Por outras palavras: um regime político que não seja genuinamene democrático não é um regime legítimo à luz do direito natural. Do mesmo modo, interditar-se que se desuna o interesse comum em grandes interesses particulares em competição não é preferível ao regime de partidos políticos. Só que não é inteiramente líquido que os nossos regimes partidários admitam ou devam, pelo menos, admitir o tipo de associações a que Rousseau se refere como não sendo admissível. Os partidos visam, ou deveriam visar, o interesse comum; as associações a que Rousseau se refere não. Neste sentido, julgamos não errar ao afirmar que mais do que o regime de partidos políticos das nossas democracias, os quais só não seriam admissíveis se perdessem de vista o interesse comum, serão regimes como a plutocracia, bem como a ditadura do proletariado, ou seja, regimes que privilegiam interesses sectoriais como o de uma classe económica particular, o alvo mais preciso da rejeição rousseauniana. A este respeito, o perigoso equívoco de Rousseau terá estado em ter tomado todas as associações, a um tempo, como políticas e privadas, quando não teria sido ilegítimo censurar às associações políticas o privilégio de interesses particulares e menos ainda censurar às associações particulares algum tipo de privilégio político. 48

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Na verdade, todo o esforço rousseauniano residiu em ilegitimar o que quer que pudesse contrariar o princípio, digamos assim, de uma formação não condicionada da Vontade Geral. Infelizmente, Rousseau pretendeu assegurar o respeito por este princípio condicionando ilegitimamente a vida natural das vontades particulares, numa palavra, condicionando a própria natureza societária do homem. Genericamente, o nosso ponto consiste, pois, em distinguir claramente o problema da elegibilidade da Vontade Geral, o que requer algum trabalho de condicionamento formal do próprio pacto, do problema em torno dos condicionamentos concretos que Rousseau propõe para beneficiar a elegibilidade da Vontade Geral. Destes, a crítica está feita há muito; limitámo-nos a condensá-la. Mas não resgatar o problema da elegibilidade da Vontade Geral, fazendo abstracção dos condicionamentos propostos por Rousseau, seria, a nosso ver, perder de vista a clara premonição do genebrino da tensão em que assenta qualquer democracia digna desse nome, a saber, a tensão entre a necessidade, à luz do espírito do pacto, de eleger a Vontade Geral e o facto de essa eleição só se fazer contingentemente em função da Vontade realmente eleita. Noutros termos, propomos que esta tensão seja pensada como uma triangulação que esquematizamos do seguinte modo:

Vontade Geral

Problemas da convergência

Vontade eleita

Problemas da legitimação popular

Problemas da correspondência

Soberania popular A Vontade da Liberdade

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Por um lado, a correspondência entre a soberania popular e a Vontade Geral só é apurada mediante a eleição de uma vontade que, porém, pode não coincidir com a Vontade Geral. Por outro lado, a maior ou menor convergência entre a Vontade Geral e a vontade de todos é função de um maior ou menor condicionamento da eleição da vontade. No entanto, se este condicionamento promove, por um lado, a elegibilidade da Vontade Geral, já por outro, atenua a expressão directa e autêntica da soberania popular. Esta é a tensão, pois, entre dois resultados, um desejável e outro não, que decorrem de uma mesma necessidade de mediação quanto à elegibilidade da Vontade Geral — uma maior soberania popular — como sufrágio universal, directo e incondicionado portanto — acarreta um maior risco de não se eleger a Vontade Geral; uma maior garantia de se eleger a Vontade Geral implica um menor alcance da soberania popular. René Schérer resume a tensão nos termos de um jogo do possível e do impossível, por um lado «o povo como condição da possibilidade de um estado livre e racional», por outro, a impossibilidade de uma expressão perfeita da democracia.11

A cidadania Contra a condição precária e reversível das democracias, risco perpétuo de dissolução do nó social e de conflito real entre interesses, prefigurando a possibilidade da guerra civil, Rousseau apresenta um derradeiro amparo — tratar-se-á de deslocar o conflito entre interesse particular e interesse comum para o seio da própria subjectividade do cidadão. O inimigo externo que fortalece o nó social, a guerra que torna o espaço adentro fronteiras espaço de solidariedade, esse, sugere Hannah Arendt, transfigura-se, com Rousseau, em inimigo interno. A guerra converte-se numa cena da interioridade de cada cidadão. Essa é a derradeira forma de mediação para salvaguardar a convergência entre 11 «Ao situar no povo a própria condição de possibilidade de um estado racional e livre, ele revela a existência no coração da democracia, desde que se queira exprimi-la no seu conceito e sua perfeição, de uma impossibilidade. É tomada por um jogo do possível e do impossível que se pode também traduzir como abrindo e ocupando em torno dela um espaço utópico específico próprio para despertar e deixar desdobrar a reflexão.» (Cf. Schérer, René, 1997)

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a Vontade Geral e a vontade eleita, ou seja, para salvaguardar a máxima elegibilidade daquela. Dito de uma forma sintética — a guerra interior substitui a guerra externa na prevenção da guerra civil. Nos termos de Hannah Arendt: O seu problema [o de Rousseau] foi saber onde descobrir um inimigo comum sem ser no terreno dos negócios estrangeiros, e a sua solução foi a de que tal inimigo existia no peito de cada cidadão, ou seja, na vontade e interesse particulares. (Arendt, 1963: 94)

Dirá ainda: Na elaboração de Rousseau, a nação não precisa de esperar por um inimigo para ameaçar as suas fronteiras e se erguer «como um homem só» dando origem à union sacrée; a unidade da nação é garantida enquanto cada cidadão transportar dentro de si o inimigo público. (Arendt, 1963: 95)

A precariedade da Vontade Geral face à possibilidade inultrapassável de desagregação encontra, pois, uma derradeira forma de resgate transferindo-se para a subjectividade dos cidadãos. Agora são estes, ou seja, cada cidadão na sua vida reflexiva, quem carrega o fardo da condição precária. Sabendo o cidadão discernir o interesse comum, sabendo conservá-lo numa vontade perene, eis o critério último para uma salvaguarda da perenidade do próprio nó social e da estabilidade da Vontade Geral. Este critério último, derradeiro — o próprio homem vestindo a pele de cidadão —, prende-se com uma notável concepção do que é, ou, mais precisamente, deva ser, o que hoje denominamos exercício da cidanania. Perguntar-se-á, porém, se não será excessiva a confiança que Rousseau deposita nos homens enquanto cidadãos, i.e, enquanto sujeitos de vontade e sujeitos de razão capazes de discernir um interesse comum na amálgama dos seus interesses particulares. Naturalmente, poder-se-á suspeitar do optimismo antropológico de Rousseau. Exemplos ficcionais colocam o problema — o romance The Lord of Flies de William Golding coloca-o no plano da consideração do homem no estado de natureza, e Dogville, filme de Lars von Trier, A Vontade da Liberdade

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coloca-o mesmo no quadro de um estado civil. Mas é possível matizar o problema, distinguindo o optimismo antropológico de uma ingénua concepção benigna do homem. Mesmo não subscrevendo essa benignidade, dificilmente se poderia conciliar a ideia de uma soberania popular que eleja a Vontade Geral e perfilhe o interesse comum — eixo crucial da ideia de democracia — sem crer que o último critério, o homem cidadão, no limite, tomará a decisão certa. E o facto é que já levamos uma longa história de democracias modernas — a que Rousseau não assistiu — que, sem terem elidido a sua condição precária, ainda assim, têm sabido escolher, com os devidos percalços, o interesse comum. Como é que Rousseau justifica o seu optimismo? A resposta reside no facto de a celebração do pacto social, desse contrato de associação entre homens, envolver uma transformação radical em cada associado — adoptando a identidade de cidadão, o indivíduo engrandece-se e enobrece-se a si mesmo, ou, como se pode ler em Do Contrato Social: Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma transformação notável, substituindo na sua conduta a justiça ao instinto, e dando às suas acções a moralidade que dantes lhes faltava. (CS, I, 8)

Esta transformação moral é justamente um dos elementos da caracterização da cidadania. Como se explica essa transformação? Por o cidadão que exerce a sua cidadania ter em mente o interesse comum, por se distinguir do não cidadão justamente realizando uma pessoa abstracta de que participa. Naturalmente, trata-se de realizar uma ficção. Mas essa ficção, uma vez posta, é uma realidade cuja seriedade só depende de cada cidadão que a ficciona, mas também nela crê. Do mesmo modo que um sonho pode importar mais na vida de um homem que muita da realidade em que está imerso, a Vontade Geral pode importar na formação da vontade particular de cada um. Disso só depende a decisão de cada homem em ser, ou não, cidadão ou, ao menos, crer sê-lo. Mas será que, para isto, é realmente preciso importar a figura de um cidadão em permanente estado de guerra consigo mesmo, como sugere Hannah Arendt? Será, como nos diz a autora de On Revolution, que «para tomar parte no corpo político da nação, cada cidadão deve erguer-se e manter-se em rebelião 52

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IX ÉTICA PÚBLICA E CORRUPÇÃO 58

Começa aqui a intriga vilipendiosa das autoridades. O governador civil chama parcialmente cada administrador do concelho e tem com ele estes nobres dizeres: — Pelo seu círculo o governo propõe fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer? — Farei as diligências… — Nada de palavras equívocas: ou a eleição certa para o governo ou a demissão para si. De resto peça, intrigue, difame, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo. O que nós queremos é que o governo vença. O administrador tem família, ou vive daquele escasso rendimento, ou quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, que o seduz — cede a S. Ex.ª o governador civil: — Pois bem, diz, respondo por tudo; mas tenho exigências. — Venham elas. — É necessário que seja demitido o reitor do liceu, que é todo oposição. — Cá assento. — Que seja transferido o escrivão da fazenda. Coitado, que transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila… Mas enfim… — Está claro, para a frente!… (Queiroz & Ortigão, 2004: 59)

A idiossincracia do fenómeno da corrupção Reconhece-se nas nossas sociedades moralmente liberais uma dupla afirmação de pluralismo, seja a respeito dos múltiplos sistemas de valores morais que organizam e regulam diversamente os modos de vida de cidadãos, seja a 58 Este capítulo resultou de uma colaboração com colegas da UNESP e da UFMG, tendo sido publicado no Brasil.

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respeito dos variados modelos teóricos de ética que comparecem no espaço da discussão argumentada. Para responder a este pluralismo, mas também por ele informada, a construção, sempre de alguma maneira simbólica, de um espaço público encontra a sua contraparte normativa, isto é, a justificação para juízos de apreciação e de depreciação sobre a acção humana nesse espaço, numa ética específica, a que podemos chamar ética pública. Estando nela em causa o bem público, ou mesmo uma pluralidade de representações sobre o que seja o bem público, esta forma de ética aplicada revela proficiência quando, sem contribuir ela mesma para multiplicar a pluralidade de pontos de vista sobre maneiras de estar na comunidade, contribui para a possibilidade efectiva do pluralismo. Não significa isto que seja forçosamente em vista do pluralismo que se justifique uma ética pública. A natureza a um tempo simbólica e normativa do espaço público constitui-se segundo esta forma para o contexto histórico das nossas sociedades liberais hodiernas, nada implicando, porém, para outros contextos históricos, para outras formações do espaço público, reconhecíveis ou não na que nos concerne. Importa aqui notar que, abstraindo das suas instituições concretamente produzidas, do espaço público nada mais subsiste senão a sua representação comunitariamente partilhada. Isto que se diz do espaço público e de uma sua ética, dir-se-á, com igual impacto, para os modos e tendências desestruturantes do espaço público e, por essa razão, para os comportamentos que uma ética para o espaço público deprecia, entre os quais se enquadram claramente as variadas formas de uso abusivo dos meios e instrumentos públicos em proveito próprio. É apenas sobre o pano de fundo de uma formação histórica eticamente valorizada que se contrastam as suas deformações oportunísticas. A não ser em referência às primeiras, dificilmente se poderão julgar adequadamente as segundas. Em todo o caso, alcançando estas deformações uma expressão suficientemente lesiva, a consideração das acções e comportamentos eticamente censuráveis é deslocada para o plano das imposições legais, respectivas correspondências punitivas em vista das infracções e categorizações criminais relevantes, a saber, no quadro legal vigente na maioria dos Estados de direito contemporâneos, o abuso de poder, o peculato, o tráfico de influências, a concussão, a participação económica em negócio e, finalmente, a corrupção, com os seus diferentes registos: seja a corrupção burocrá178

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tica junto a agentes e representantes do poder público, seja a corrupção legislativa junto a representantes políticos com capacidade legislativa, seja a corrupção política, em que a iniciativa corruptora parte de membros da classe política em direcção à sociedade, desde logo, mas não exclusivamente, através de corrupção eleitoral, tão bem ilustrada por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão no Portugal de finais de séc. XIX de As Farpas, sejam também, de acordo com os sectores de actividade atingidos, a corrupção policial e a corrupção no desporto. Estas formas de criminalidade, mesmo não sendo todas juridicamente enquadradas nas variantes do crime de corrupção, gravitam sempre em torno do fenómeno da corrupção, na medida em que há nelas um traço geral de aproveitamento oportunístico de uma ordem de coisas comunitariamente valorizada, do bem público portanto, de que resulta uma desnaturação corruptora que o prejudica. Aliás, é menos o proveito privado abusivamente obtido do bem público do que as consequências degenerativas lesivas que sobre este surtem efeito o que incrementa fortemente a gravidade pública da corrupção. Neste tipo de criminalidade, o crime excede essencialmente a intencionalidade do criminoso. Justamente pelo referido efeito de degenerescência, ou percepção da mesma, a criminalidade desta natureza, mais do que outras formas de criminalidade pública, é apercebida como corruptora do próprio regime. Recapitulando, sob o enquadramento aqui proposto, há que enfatizar três aspectos distintivos tratando-se de enfrentar o fenómeno da corrupção, seja o crime da corrupção seja a criminalidade diversa que participa, no entanto, da mesma natureza corruptora: 1. A atenção ao fenómeno da corrupção só secundariamente deve estar dirigida para os proveitos privados por ela proporcionados, devendo estar dominantemente dirigida à detenção dos seus efeitos desestruturantes no espaço público. Por outras palavras, importará sobretudo robustecer, com resistência acrescida, as instituições públicas face à ameaça corruptora. E também as consciências dos cidadãos a respeito dos efeitos nefastos da corrupção. 2. Mais do que noutras formas de criminalidade, a ética pública é especialmente relevante no enfrentamento da corrupção, uma vez que esta, Modernidade Retomada: Tolerância, Identidade, Espaço Público

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genericamente considerada, atinge, ainda que indirectamente, as próprias bases do regime. Por outras palavras, importará reconhecer que subjacente à corrupção há, além da dimensão judicial própria ao seu tratamento criminal, também uma dimensão ético-política relativa à própria subsistência do espaço comunitário. 3. A compreensão limitadora do fenómeno da corrupção como simplesmente relevando da ordem da criminalidade conjuga-se com os entendimentos da corrupção que a separam da sua percepção. O seu efeito corruptor, afinal o essencial da corrupção, depende da sua percepção pública, da qual se seguem custos públicos dificilmente mensuráveis, mas ainda assim claramente perceptíveis nos termos de uma perda de qualidade do regime, em particular, a perda de confiança nas suas instituições públicas, a sobrestima de preferências privadas ou evitamentos ao contato com o aparelho de Estado, a resistência a compromissos com poderes públicos e, na base de tudo isto, a capacidade básica de confiarmos uns nos outros.59 Pelos elementos expostos, é aceitável afirmar que a corrupção é um fenómeno idiossincrático que, tendo a sua origem explícita no plano da criminalidade ou, ao menos, da censurabilidade pública, releva mais, porém, da ordem da qualidade das instituições públicas, da cultura política das comunidades, no fundo, da existência prática quotidiana do regime político, não fora ela um tema central para boa parte da história do pensamento político, aliás não raras vezes como ingrediente para a explicação das dinâmicas de mudança de regime, logo desde Aristóteles e Platão, mas também com Maquiavel e ainda Rousseau. A idiossincrasia da corrupção reside, pois, neste seu relevo enquanto fenómeno e conceito da teoria política. Admitindo-se, por um lado, a premissa de que está em causa na globalidade das práticas que relevam da corrupção uma desestruturação do espaço público e 59 Esta é uma boa razão para não perder de vista os esforços do «Índice de Percepções de Corrupção» da Transparency International de mensurar a corrupção com base em indicadores que medem a sua percepção, seja a partir de cidadãos e instituições nacionais, seja a partir de observadores externos, isto não obstante a considerável falibilidade dos resultados e o criticismo que, com frequência, lhes é apontado. (Cf. por exemplo Abramo, 2005)

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justificando-se, por outro lado, a afirmação de que a ética pública tem uma função essencialmente estruturante do espaço público, preservando a confiança interpessoal e o empenho no bem público como valor a perseguir, justamente aquilo que a corrupção degrada, então resulta, como argumentável, a tese de que a ética pública é, do ponto de vista dos efeitos que produz, o oposto da corrupção, constituindo assim o instrumento por excelência para enfrentar o fenómeno da corrupção. Animado por esta tese, o presente capítulo desenvolve-se em vista de uma formulação possível do que seja a ética pública. Dialogando com conceitos propostos por Max Weber e Adela Cortina, sugere-se uma abordagem à ética pública como ética da lei pública, abordagem que reputaremos deontológica porque inspirada em Kant, e com a qual se procurará esboçar um quadro de funcionamento governativo-administrativo para os Estados de direito democráticos contemporâneos, cuja vida pública se pauta por formas cada vez mais complexas e difíceis de regular explicitamente em forma de lei. Apesar da sustentabilidade da correlação entre uma cultura de ética pública e o combate à corrupção, há que ter em conta a problematicidade nem sempre transparente das relações e remissões entre ética e política, particularmente salientes numa contemporaneidade a contas com a aparente falência da linguagem das ideologias e reconduzida a formas menos formalizadas e mais próximas da experiência mundana de valores éticos dos cidadãos da comunidade. Com estas notas finais visa-se acautelar uma excessiva confiança no regresso do discurso dos valores como alegado reforço de uma ética na política, ou mesmo de uma ética pública, a pretexto do enfrentamento da corrupção. Com efeito, a ambivalência suscitada pela oscilação entre política e ética proporciona, como consequência de uma possível sobredeterminação moral da política, uma subdeterminação política da ética pública, o que, paradoxalmente, em nada contribuiria para um enfrentamento bem-sucedido das práticas corruptoras.

A ética pública como uma ética aplicada No âmbito da investigação ética, é habitual distinguir-se os campos de estudo da metaética e da ética normativa, sucedendo que a primeira se preocupa Modernidade Retomada: Tolerância, Identidade, Espaço Público

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com questões teóricas sobre a natureza da ética, interrogando-se, por exemplo, sobre as diferenças entre juízos de valor e juízos de facto, bem como sobre a objectividade ou relatividade que se possa esperar daqueles, originando posicionamentos tão diversos como os do objectivismo moral, do relativismo moral cultural e o do subjectivismo moral. Por seu turno, a disciplina da ética normativa dedica-se a tentativas de particularizar um ou mais princípios pelos quais se possa determinar genericamente a diferença entre acções correctas e erradas. Tal como com a metaética, a ética normativa comporta variados posicionamentos, aliás associados a uma longa história de debate, que hoje pode, no essencial, ser resumido à opção entre três perspectivas distintas — o deontologismo, o consequencialismo e a ética das virtudes. De acordo com a primeira destas perspectivas, as acções são correctas ou incorrectas por si mesmas e não em função de uma finalidade externa às mesmas. Por exemplo, a acção de mentir, segundo Immanuel Kant, o mais preeminente defensor da ética do dever, constitui uma acção moralmente incorrecta independentemente dos benefícios ou malefícios que por meio dela se viesse a obter. De modo aparentemente contrário, o consequencialismo determina a correcção das acções justamente avaliando as consequências que dela se seguem em vista de uma finalidade (telos) a promover. Por outras palavras, segundo este posicionamento, os fins justificam os meios, de tal forma que, por exemplo, possa ser moralmente permissível mentir se a avaliação das consequências da acção de mentir o justificar à luz de uma finalidade a promover. Com efeito, não faria sentido alguém não mentir se mentindo evitasse um mal maior. Mau grado esta previsível objecção, que mereceu uma célebre troca de argumentos entre Benjamin Constant e Kant60, é certo que as éticas deontológicas chamam a atenção para algo a que as éticas teleológicas não se mostravam, à partida, sensíveis: independentemente das consequências (e da consideração que lhes possamos dever), acções como mentir ou faltar ao prometido são, consideradas abstractamente, acções com um valor moral bem distinto do de acções como honrar a palavra, ser verídico, etc. Por seu turno, a ética das virtudes desloca a atenção para um terceiro aspecto, excluído da consideração 60

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Cf. Constant & Kant, 2003.

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ética seja pelo deontologismo seja pelo consequencialismo, a saber, o agente propriamente dito, que, agindo, pode agir, ou não, virtuosamente. Para esta ética, a pergunta importante é «Que traço de carácter (que virtude) torna uma pessoa boa?» e não, como sucede com as teorias deontológica e consequencialista, a pergunta «Qual é a coisa certa a fazer?» (Teorias deônticas e teorias aretaicas distinguem-se precisamente por responderem, respectivamente, a uma ou a outra destas questões). Ainda que esta variedade de posicionamentos suscite questões em torno de uma eventual compatibilidade, ou não, entre os respectivos pressupostos, tal dificuldade não tem, porém, constituído obstáculo significativo aos esforços no sentido de uma operacionalização genuinamente prática da Ética a respeito de problemas e dilemas éticos muito concretos, aliás por vezes fortemente mobilizadores da sociedade. Desde a década de 70 do séc. XX, tornou-se comum a designação de Ética aplicada, ou então, de Ética prática, para esses esforços de «dar uso» a princípios propostos pelas teorias éticas.61 Ora, é no panorama das múltiplas éticas aplicadas que se tem articulado o campo de uma ética pública. Todavia, o que por aqui se clarificava volta a tornar-se menos claro quando prestamos atenção às designações que habitualmente correm na bibliografia para a ética aplicada que nos ocupa — ora falamos de ética pública, ora de ética para o sector público, ora de ética para o serviço público, ora de ética para a administração pública. Previsivelmente, cada uma destas designações recobre significativamente as restantes, acentuando um ou outro aspecto, até como resultado do ponto de partida donde se perspectiva o assunto, por exemplo, se a partir da noção de serviço público ou se a partir da demarcação do sector público, aspectos que, como é sabido, estão longe de valerem como moeda de troca um do outro. Nem todo o serviço público é prestado pelo sector público, como, por exemplo, o comprometimento cada vez 61 «A expressão “ética aplicada” e o seu sinónimo «ética prática» entraram em uso nos anos 1970 quando filósofos e outros académicos começaram a abordar problemas morais prementes na sociedade e na ética profissional (em especial na ética médica e na ética dos negócios). Exemplos proeminentes, então e agora, são o aborto, a eutanásia, a protecção de sujeitos humanos e animais na pesquisa científica, racismo, sexismo, acção afirmativa, risco admissível no local de trabalho, desobediência civil, guerra injusta, e a privacidade de informação.» (Beauchamp, 2005: 1)

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mais significativo nas sociedades liberais contemporâneas do sector empresarial com a causa pública através de formas de responsabilidade social das empresas; e nem sequer é necessário que todo o serviço prestado pelo ou no sector público seja serviço público. Esta necessidade de proceder a precisões de grão fino a propósito da ética pública, seja assim designada ou não, nada tem que ver com outra necessidade, bastante mais básica, a saber, a de não permitir a sua confusão com certos conjuntos de valores específicos a certos grupos políticos — digamos uma ética socialista ou uma ética democrato-cristã, por exemplo — sequer com conjuntos de valores específicos (ou supostamente específicos no entender de alguns) a certo tipo de regime político — digamos uma ética da república, a qual, aliás, também não deve ser confundida com a defesa, no quadro do republicanismo, de uma ética pública.

Max Weber, responsabilidade e convicção Mais do que três posicionamentos concorrenciais, deontologismo, consequencialismo e ética das virtudes apresentam as três perspectivas fundamentais por que se pode observar um fenómeno constitutivamente tridimensional, a saber, o complexo agente-acção-fins. Sobretudo se situados num contexto de acção quotidiana, em que há que descer do plano da teorização e dos seus critérios de discussão para o plano das tomadas de decisão e de efectivas apreciações morais das circunstâncias, é razoavelmente óbvio que os nossos juízos serão sensíveis não só à natureza da acção, mas igualmente às suas consequências e a quem a pratica. Na verdade, longe de proceder por exclusões, a sensitividade que pode influir nos nossos juízos morais tende a ser maximamente inclusiva. Max Weber de algum modo exprimiu esta preocupação, para o plano da acção política, ao contrapor uma «ética da responsabilidade» (Verantwortungsethik) à que denominou por Gesinnungsethik, expressão de difícil tradução, correntemente traduzida por «ética dos fins últimos», ou ainda, «ética da convicção» (cf. Swedberg & Agevall, 2005: 90-91). Não porque estas últimas sejam literalmente substituíveis por uma ética da responsabilidade como se umas e outras tivessem de se 184

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equivaler funcionalmente num mesmo quadro societário normativo; antes porque o lugar das convicções, pela natureza própria destas, é mais propício a âmbitos privados, como o de escolhas de consciência, relativas a valores e preferências pessoais, ao passo que a responsabilidade ética diz respeito sobretudo à acção contingente no espaço público, acção política pois, onde importam de forma particularmente saliente as consequências das nossas escolhas.62 Por outras palavras, a convicção «deve» ceder tanto mais lugar à responsabilidade quanto o âmbito do juízo ético se desloca da esfera dos valores e preferências pessoais para o espaço público. De outro modo, o preço a pagar pela recusa de ceder nas convicções é a desresponsabilização pelas consequências da acção, apenas justificados pela convicção da bondade intrínseca da acção e, eventualmente, ainda pela «fé» de que, feitas todas as contas, em virtude de alguma harmonia antecipadamente assegurada, no fim o resultado será positivo, tal como no preceito cristão (presume-se que formulado por Lutero) de que o cristão faz o que está bem e põe o resultado nas mãos de Deus.63 Uma ilustração exemplar recente de emprego da dicotomia de Weber, em termos em tudo semelhantes aos expostos, encontra-se na tomada de posição do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, ao promulgar a lei que estende o direito legal de casamento a casais do mesmo género, decidindo-se assim através de uma evocação explícita da ética da responsabilidade, mesmo que dessa maneira se posicione frontalmente contra as suas próprias convicções pessoais.64 Esta capacidade de conter as próprias convicções, sacrificando-as 62 «De acordo com Weber, a acção pode ser orientada em direcção a uma ética da responsabilidade ou em direcção a uma ética dos fins últimos […]. No segundo tipo de ética o que conta são as boas intenções, ao passo que no primeiro os actores têm sempre de tomar em conta que efeitos as suas acções terão quando decidem sobre que acção tomar.» (Swedberg & Agevall, 2005: 90) 63 «Uma ética dos fins últimos é comum na Cristandade, e segundo uma bem conhecida fórmula que Weber por vezes cita (e que provavelmente deveria ser atribuída a Lutero), “o Cristão faz o que está certo e põe o resultado nas mãos de Deus” […]. Outro exemplo seria o do sindicalista que argumenta a favor da greve independentemente dos seus resultados […]. De acordo com Weber, que alinha ele próprio com a ética da responsabilidade, aderentes de uma ética dos fins últimos não assumem responsabilidade pelos resultados das suas acções.» (Swedberg & Agevall, 2005: 90) 64 Na sua declaração de 17 de Maio de 2010 sobre o diploma da Assembleia da República que veio legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República portuguesa, concluiu uma longa sucessão de lamentos pela aprovação do diploma com a sua promulgação:

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para salvaguarda do melhor interesse público, pode ser entendida como valorização de uma atitude prudencial na acção no espaço público65, mas nos termos de Max Weber, e num tempo de convicções exaltadas, será sobretudo expressão das qualidades do homem político que, animado por convicções, as sabe, ainda assim, pesar e conter face à ética da responsabilidade.66

Adela Cortina e a ética civil Adela Cortina tem desenvolvido, especialmente desde as duas últimas décadas, um enquadramento teórico, para o que designa por ética civil, diferente do proporcionado pela distinção weberiana entre convicção e responsabilidade. Socorrendo-se do conceito fenomenológico de mundo da vida (Lebenswelt), à semelhança do que também Habermas fizera na sua Teoria da Acção Comunicativa (1981), conceito que, depois de formulado por Husserl na sua Krisis (1936), como horizonte intersubjectivo de co-pertença passiva a um mesmo mundo, vai assumindo o sentido de pano de fundo de valores, atitudes e crenças comunitariamente partilhados de uma forma auto-evidente e, portanto, inquestionada. Para Cortina, há uma Lebenswelt própria das sociedades pluralistas, ou seja, um conjunto de valores e princípios partilhados, não como resultado de uma construção teórica filosoficamente edificada, antes como formações da realidade social dinâmica e concretamente articulada. Essa partilha a partir do pluralismo dispõe de um alcance limitado, é sobretudo condição que garante a diversidade plural de valores e concepções de vida boa. Daí que Cortina proponha a distinção, hoje já célebre, entre éticas dos máximos e

«Há momentos na vida de um País em que a ética da responsabilidade tem de ser colocada acima das convicções pessoais de cada um. Assim, decidi promulgar hoje a lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.» (Cf. URL = http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=41152) 65 «Em última análise, para Weber o actor político motivado por uma ética da convicção ignora as lições prudenciais da sociologia da luta do poder […].» (Breiner, 1996: 171) 66 «A ética da responsabilidade e a ética da convicção não são, a este respeito, opostos absolutos, mas complementos, que constituirão em conjunto o homem autêntico, o homem que pode ter “vocação política”.» (Weber, 2005: 114)

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ética dos mínimos, as primeiras como uma pluralidade de sistemas de valores que se constituem com concepções de felicidade distintas, a segunda como uma ética dirigida à co-possibilidade num mesmo espaço comunitário da pluralidade de versões de éticas da felicidade. Cortina emprega a expressão ética civil em detrimento da expressão ética pública, não porque de algum modo conteste a ideia de que aquela seja uma ética pública, mas porque não reconhece outra ética além da ética pública. Do seu ponto de vista não há éticas «privadas», uma vez que todas as éticas visam, de uma maneira ou de outra, a publicidade e o enfrentamento da opinião pública e, portanto, da esfera pública. Apesar da justeza do argumento de Cortina, desde logo se concordarmos com a ideia de que toda a relação ética pressupõe uma outra pessoa com quem se estabelece um ambiente normativo, não deixam porém de permanecer pertinentes as distinções entre ética pública e ética privada à luz de dois ou três critérios que não beliscam, no sentido de Cortina, a vocação pública de qualquer ética. Com efeito, um primeiro critério muito elementar limita-se a aferir o alcance ou o potencial impacto das escolhas que cada pessoa faz sobre as outras pessoas. Neste sentido, uma ética é tanto mais privada quanto menor, ou mesmo nulo, for esse alcance; e tanto mais pública será quanto maior for o alcance ou o possível impacto das escolhas que fazemos sobre as outras pessoas. Por exemplo, faz diferença do ponto de vista dos nossos juízos éticos saber se uma pessoa que se alcooliza regularmente, sofre, em virtude desse comportamento crónico, de graves riscos para a sua saúde, sem, no entanto, perturbar ninguém, ou se, não sofrendo de doença nenhuma, não se inibe de conduzir na via pública em estado de embriaguez. Um segundo critério atenta menos ao alcance intersubjectivo do que ao âmbito próprio das acções em apreço por uma ou outra das éticas privada ou pública. Por outras palavras, co-extensivamente à distinção entre espaço público e vida privada, faz sentido diferenciar uma ética do espaço público de eventuais éticas relacionadas com a vida privada de cada um, isto na medida em que para cada um desses âmbitos estão sempre em causa acções e juízos sobre as mesmas. Portanto, sob este segundo critério, a ética pública não é mais do que a ética no espaço público, em contraste com as éticas privadas, ou seja, as éticas relativas à vida privada das pessoas. Este segundo critério é particularModernidade Retomada: Tolerância, Identidade, Espaço Público

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mente importante nas sociedades liberais, onde são enfatizados os limites da interferência do Estado e dos poderes públicos nas escolhas das vidas privadas das pessoas e nas suas concepções particulares de vida boa. Assim, no quadro das sociedades liberais, as escolhas éticas tendem a ser inteiramente livres enquanto permanecerem no âmbito da ética privada; apenas se justificando o seu condicionamento por restrições de algum tipo quando se reportam ao espaço público. É, aliás, esta importante diferença que explica a tensão por que passam as tendências para deslocar do âmbito da ética pública para o da ética particular escolhas como as relativas à aparência pública dos nossos corpos físicos — desde a clássica revolução de costumes associada ao uso da mini-saia até aos mais recentes piercings —, tratando-se de as liberalizar, ou tendências em sentido inverso, no sentido de se tornarem objecto de uma ética pública, e não de ética simplesmente particular, escolhas como as relativas à liberdade de fumar em espaço público e que visam a sua crescente coibição. A inflexão de cada uma destas duas tendências na sua contraparte de sentido inverso consiste num dos mais relevantes motivos de confrontação política nas sociedades liberais contemporâneas. Um caso paradigmático de tal confrontação encontra-se no actual debate, na sociedade francesa, sobre a proibição do uso do véu integral: enquanto os defensores da proibição argumentam estar em causa a defesa do espaço público contra tentativas de o desestruturar, os oponentes à proibição reclamam contra a violência do Estado sobre o espaço privado de cidadãs francesas. Naturalmente, Adela Cortina não é insensível a esta diferença entre dois registos ou níveis de ética; simplesmente, vai constituí-la a partir de novos conceitos e com vista à sua proposta de fundamentação de uma ética civil. A novidade que introduz, designadamente através da distinção entre éticas dos máximos e ética mínima não deixa de obter uma descrição satisfatória dos aspectos que acabamos de reportar ao par ética privada versus ética pública. De acordo com a filósofa espanhola, nas sociedades plurais convivem perspectivas diversas sobre o que seja uma vida boa, cada uma delas constituída como sistema de valores completo regulado por uma ideia de felicidade. Estas proposições éticas máximas devem, contudo, respeitar um património comum a todas, um subsolo ético mínimo, que satisfaça as condições de possibilidade de uma convivência plural. Ao contrário das éticas máximas, éticas que convi188

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dam, sem compelir, a perseguir uma ou outra concepção de felicidade, este mínimo ético comum deve ter valor de constrangimento socialmente exigível, cujo não cumprimento justifica um juízo moral negativo, ainda que não nos moldes sancionatórios do Direito, para os quais a sanção é externa. Nos termos felizes de Cortina, o Direito impõe, a ética civil exige e as éticas máximas convidam.67 Esta ética mínima propõe-se responder à pergunta sobre o tipo de ética mais adequado à lei nas sociedades liberais moralmente pluralistas, ou seja, aparece como uma ética da e para a justiça68, e não tanto ou explicitamente como uma ética política para o regime democrático.69 Sem estes mínimos civilmente partilhados, o pluralismo de valores reclamado pelas sociedades liberais seria mais propriamente designado pelo conceito weberiano, e relembrado por Adela Cortina, de um politeísmo axiológico70, forma de a sociedade viver os seus valores morais que se caracteriza por um reconhecimento de que as escolhas morais de cada pessoa são inultrapassavelmente subjectivas, delas não podendo ser dado nenhum fundamento objectivo, pelo que, além da tolerância recíproca entre diferentes possibilidades de escolha, nenhuma outra atitude racional resta. Face a este politeísmo tolerante, cuja «tolerância» porém apenas residiria na assunção do relativismo, Cortina contrapõe o pluralismo moral como convívio da pluralidade de valo-

67 «Portanto, a diferença entre ética cívica de mínimos e éticas de máximos não consiste em que a primeira esteja implementada na esfera pública e as segundas na privada, ou em que a ética cívica exija razões públicas e as éticas de máximos exijam razões não públicas, mas na forma como obrigam: o cumprimento da ética cívica pode exigir-se moralmente à sociedade (ainda que não impor-se mediante sanção externa, coisa que o direito pode fazer), ao passo que as éticas de máximos devem convidar a seguir o seu modelo de vida boa, mas não podem exigir o seu cumprimento, nem menos ainda impô-lo mediante sanção externa.» (Cortina, 2000: 784) 68 «O âmbito da ética cívica é o da justiça, que é um âmbito de exigência, não apenas de convite (ética de máximos), mas também não é um âmbito de imposição ou coacção externa (direito).» (Cortina, 2000: 784) 69 «A ética cívica guarda uma grande semelhança como o que Rawls chama uma concepção moral da justiça. Não obstante, diferencia-se dela pelo menos nos seguintes aspectos: Em primeiro lugar, a meta da ética cívica não é política, no sentido liberal da expressão. Não pretende assegurar a estabilidade de uma constituição democrática, mas possibilitar que os cidadãos reforcem aqueles valores que já os unem e que são expressão de uma razão que os foi reconhecendo e criando historicamente. Em segundo lugar, a ética cívica não nasce com o afã de resolver conflitos judiciais […].» (Cortina, 2000: 785) 70 Cf. Cortina, 2001: 101.

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res proporcionado pela partilha de mínimos éticos.71 A contrapartida, aliás bastante ambivalente, da afirmação de uma ética civil como condição estruturante da possibilidade de pluralismo de valores é a possibilidade de uma desestruturação ética da sociedade pelo regresso de tendências axiologicamente politeístas. Boa parte do debate, cada vez mais conflitante, do multiculturalismo nas sociedades europeias com importantes comunidades muçulmanas consiste em desfazer a ambivalência entre pluralismo e politeísmo morais.

A ética pública como ética da lei pública Onde a ética da responsabilidade weberiana e a ética civil de Cortina se aproximam é num mesmo sentido de contenção, pelo qual fica, aliás, claramente assinalado o lado perigoso da exaltação do discurso dos valores. Os mínimos partilhados de que fala Cortina — condicionando a obrigação moral aos mínimos — e a matização das convicções face à responsabilidade pelos efeitos que estas possam trazer à sociedade, balizam e limitam o terreno sensível em que se cruzam no espaço público, a acção política e o discurso moral. Há também uma importante convergência entre os dois autores na sensibilidade que ambos revelam à existência de um pluralismo de teorias éticas (a não confundir com o pluralismo moral) que não obstam à razoabilidade dos juízos éticos.72 Mas entre Max Weber e Adela Cortina há também diferenças muito significativas. Se a preocupação de Weber se centra nas atitudes assumidas pelos agentes, designadamente os agentes políticos, no seu relacionamento com os 71 «O pluralismo moral, ao contrário do politeísmo, exige pelo menos um mínimo de coincidência, não alcançado através de acordos ou negociações, mas resultando de dentro, razão por que é incompatível com o relativismo, uma vez que o relativismo significa que o que é certo ou bom depende de culturas ou grupos, ao passo que o pluralismo reconhece minima comuns, válidos para todos. Os valores de que este mínimo comum é feito formam a ética cívica, que é a pedra de toque para a construção de diversas éticas profissionais, e também a ética de instituições e organizações.» (Cortina, 2001: 102) 72 «Eudemonistas, utilitaristas, kantianos e pragmáticos continuam a debater sobre as fundações da ética e sobre possíveis aplicações de tais fundações, de que decorre que haja também uma pluralidade de teorias éticas, com adjectivos descritivos da vida filosófica. A pluralidade de teorias éticas segue o pluralismo moral da vida de todos os dias.» (Cortina, 2001: 99-100)

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valores, para Cortina está menos em causa determinar sob que atitudes ou modos nos relacionamos com os valores, ou seja, se o fazemos segundo uma atitude de convicção ou uma atitude de responsabilidade, mas, antes, saber quais os valores realmente partilhados por dada comunidade, na convivência de um mesmo mundo da vida. Defenderemos uma terceira perspectiva, mais substancial do que a assunção weberiana da responsabilidade prudencial para o plano da acção no espaço público, especialmente da acção política, mas, por outro lado, também menos substancial do que a partilha comunitária, sugerida por Cortina, dos valores próprios à vivência de uma sociedade pluralista. Podemos assumir, com Cortina, que a ética civil é o resultado compósito do mínimo denominador comum entre as diferentes éticas convivendo no mesmo espaço social, por um lado, e «a cultura política própria de Estados de direito», por outro73. Dadas estas indicações, ficam, todavia, por explicitar quais são os traços distintivos da ética civil. Com efeito, a referência aos mínimos partilhados não é muito informativa, até por não ser claro se essa partilha deva ser condição de possibilidade de uma ética civil ou, bem diversamente, resultado bem-sucedido de uma ética civil. De uma maneira ou de outra, ficam sempre por conhecer que valores estão em causa nessa partilha comunitária. Com certeza serão valores próprios à «cultura política própria de Estados de direito», mas, ainda assim, importa determinar exactamente quais os valores aqui implicados, sob pena de se assumirem compromissos maiores do que aqueles que realmente resultam com necessidade de uma ética pública. Por exemplo, é discutível que uma ética pública cujos valores correspondam aos mínimos para assegurar a cultura política própria de Estados de direito tenha de englobar valores como o cosmopolitismo, ou mesmo certas versões do pluralismo. Prosseguindo a estratégia «de mínimos» de Adela Cortina, mas procurando concretizá-la em valores explícitos, propomos uma interpretação da cultura política dos Estados de direito de acordo com a qual está nela fundamentalmente 73 «A ética civil é uma “ética de mínimos” partilhados pelas éticas de máximos e pela cultura política própria dos Estados de direito.» (Cortina, 2000: 783)

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em causa, à maneira de Weber, uma dada cultura política de relacionamento com a lei pública. E, de facto, a evidente disjunção, já mencionada atrás, entre ética pública e ética da república não deve ocultar a forte correlação entre ética pública e o que podemos designar por uma ética da lei, ou mesmo, de forma não inapropriada no caso de regimes republicanos, o que se poderia designar por uma ética da lei da república. Parte sensível do que está em jogo neste entendimento da ética pública prende-se, pois, com juízos, de fundo ético, sobre as maneiras que escolhemos de nos relacionar com a lei pública em geral, juízos que, visando de alguma forma regular essas formas de relacionamento, reflectem um quadro normativo que é válido tanto para âmbitos em que está efectivamente em causa cumprir leis como para âmbitos de acção no espaço público em que, não se dispondo de uma regulação explícita em forma de lei, persiste o dever de respeito ao espírito da lei pública. Aliás, o próprio quadro normativo de uma ética pública enquanto ética da lei pública não pode ele mesmo ser deduzido do trabalho legislativo, pois, se assim sucedesse, incorrer-se-ia numa regressão ao infinito. Apesar da manifesta inspiração weberiana no deslocamento da atenção ética dos valores para as atitudes face aos valores, podemos filiar esta forma de conceitualizar a ética pública na bem conhecida ideia kantiana de determinação da acção pelo respeito à lei, ideia crucial para a distinção que Kant propôs entre legalidade e moralidade. Com efeito, sob esta distinção, as acções podem ser determinadas pelo dever (ou seja, pelo respeito pela forma universal da lei) ou estar simplesmente em conformidade com o dever (e, portanto, com a lei), mas realmente determinadas, na intenção, por outros motivadores.

Ética pública e Estado Independentemente desta ou daquela proposta de enunciação de um conceito de ética pública, há que dar notícia de uma importante inflexão no tipo de atenção que a ética pública presta à lei, inflexão, sobretudo desde os anos 1990, marcante para o que vai sendo hoje a teoria e, talvez mais decisivo, as práticas de ética pública. Em concreto, vai valendo cada vez menos como 192

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motivação exclusiva para uma ética pública a preocupação com assuntos mais da ordem do ordenamento jurídico, como os crimes de corrupção, tráfico de influências, nepotismo, emprego de informação privilegiada para benefício próprio, abuso de poder. Tais factores apelam a que a ética pública se preste a um papel sucedâneo ao da lei, e, portanto, demonstravelmente transitório em função do aperfeiçoamento do ordenamento jurídico. Ainda que tenhamos diversos exemplos de comissões de ética moldadas enfaticamente sobre este modelo judicialista da ética pública, são hoje em dia também outros os motivadores da ética pública, conferindo-lhe um desenho autónomo face à função legisladora do Estado, antes assumindo uma função na vida do Estado que cumpre dimensões deste que, por princípio, escapam à eficácia legislativa.74 A crescente complexidade do governo e da administração da coisa pública, especificamente nos regimes democráticos assentes no princípio do Estado de direito, tende a assumir para a ética pública uma função, perdoe-se o esquematismo, análoga à de um lubrificante que diminui o atrito no funcionamento do dispositivo legal. Este recentramento da ética pública na especificidade de uma função tem ainda a importância de nos permitir superar o estigma de uma ética pública pensada como imperativo moral ou chamada de atenção sobre o desacerto na conduta pública. Por conseguinte, está menos em causa uma concepção da ética pública supletiva e correctora do que uma sua concepção estruturante e reguladora da prática governativa e do serviço público nas suas diferentes dimensões e respectivos efeitos no quotidiano dos cidadãos no tecido social. Esta concepção mais ampla de ética no serviço público compagina-se bem com uma cultura política que promova a ideia de uma ética pública em termos deontológicos, em que o traço distintivo da ética pública, mau grado outros 74 «Em anos recentes, houve nas democracias liberais uma considerável discussão pública destas matérias. A discussão tornou-se cada vez mais sofisticada e cada vez mais consciente de que temas de ética no serviço público não dizem apenas respeito a tópicos como o carácter impróprio do comportamento partidário por oficiais designados, ou ganho pessoal a partir de conhecimento oficial […]. A discussão contemporânea presente aprecia que a ética no serviço público abarca muitos temas que foram suscitados em virtude da crescente complexidade da governação moderna […].» (Chapman, 1993: 2)

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enquadramentos, naturalmente inferíveis de outros pontos de partida possíveis, consista numa regulação normativa (mas sem expressão legal), dos modos de relacionamento com a lei pública em geral. Por outro lado, não reduzir o sentido da ética pública à prevenção da corrupção política nas suas múltiplas manifestações, longe de alhear o fenómeno da corrupção do cerne da preocupação ética, confere-lhe uma base de compreensão mais fundamental a partir da própria organização societária e do design estatal com crescente complexidade governativo-administrativa. Efectivamente, enquanto aspecto normativo do espaço público, a ética pública é promotora de confiança interpessoal nos relacionamentos públicos da sociedade, sejam estes políticos, administrativos ou económicos. Neste sentido, a ética pública vale como um «sistema imunológico» do espaço de interacção comunitário. Uma hipótese de correlação entre ética pública e Estado resulta de simples análise conceitual: quanto maior for o aparelho de Estado de um país e maior for o seu poder de intervenção, através de políticas públicas, sobre a vida económica e da sociedade civil em geral, mais evidente se torna a necessidade de uma ética pública. A justificação para esta correlação é estabelecida em termos analíticos: quanto maiores os poderes em jogo maiores deverão ser os procedimentos, proporcionados por uma ética pública, de controlo e regulação do seu exercício. Porém, e paradoxalmente, pelo menos no contexto europeu, esta evidência não se afigura reflectida em efectivas concretizações bem-sucedidas da prática de uma ética pública, seja no plano das leis reguladoras dos poderes políticos, seja no plano do controlo dos procedimentos dos poderes funcionais ou das práticas dos poderes fácticos. E não se reflecte de forma estruturalmente evidente precisamente em boa parte dos países europeus que são, ou foram no passado recente, fortemente estatizados, sejam os da orla mediterrânica, sejam os do antigo Bloco de Leste, todos com um desempenho relativamente medíocre no controlo da corrupção. Onde uma cultura política de ética pública se manifesta fortemente implantada é na esfera anglófona, Estados Unidos e Canadá, tal como Austrália e Nova Zelândia, além do próprio Reino Unido, os quais têm por apanágio dizerem-se países onde o papel do Estado tem sido genericamente mais limitado, 194

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pelo menos em termos comparativos e face a correntes mais afirmativas da presença do Estado no quotidiano dos indivíduos, das famílias e das organizações. Este paradoxo não é, todavia, difícil de ser compreendido a partir do reconhecimento de uma segunda evidência, de sinal contrário à primeira: o mesmo Estado cujo poder inflacionado requer maior transparência e regulação independente beneficia, em virtude desse mesmo poder, de uma cultura paternalista implantada, pela qual vem a posicionar-se, de facto, como legitimidade inescrutável face a uma sociedade civil menorizada. O resultado da interacção entre as duas tendências não é anularem-se como no caso de uma soma; pelo contrário, funcionam como duas forças que colocam sob forte tensão as instituições políticas e os seus agentes, suscitando tendências de distanciamento e de desconfiança face às instituições públicas.

Ética pública e o tema da corrupção Há um forte consenso de que uma cultura política de ética pública oferece um ambiente menos propício à propagação da corrupção, nas suas múltiplas manifestações, no quadro do relacionamento com representantes ou agentes de instituições públicas.75 A ideia de um ambiente agreste à corrupção visa menos estabelecer procedimentos de controlo, fiscalização e punição da corrupção, mas, a montante de quaisquer práticas da corrupção, torná-las logo à partida, ou seja culturalmente, menos convidativas. Na verdade, desenham-se aqui duas grandes estratégias de combate à corrupção, com diferentes protagonistas — numa, fortemente protagonizada pelo Estado, através dos seus organismos competentes, o combate à corrupção tende a configurar-se nos termos de políticas que onerem a prática da corrupção a ponto de neutralizar o benefício económico que se pudesse esperar desta, políticas de reforço da transparência e accountability dos canais públicos, sim75 «A corrupção pode ser contida dentro de limites aceitáveis através da vontade política, ethos democrático, contrapoder fragmentado, normas administrativas legais-racionais, inculcação de honestidade e integridade pessoais, e efectivo reforço da ética pública — pese embora a sua completa eliminação permaneça para lá da capacidade humana.» (Caiden, 1988: 6)

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plificação burocrática dos actos administrativos, controlo recíproco das instituições públicas, medidas consubstanciadas em legislação adequada, sobretudo para os âmbitos de relacionamento social mais susceptíveis à corrupção (fiscalidade, licenciamentos públicos, concursos públicos, etc.)76; noutra, protagonizada sobretudo pela sociedade civil, o combate à corrupção configura-se nos termos de uma forte cultura de dissuasão das práticas lesivas do interesse comum, o que passa por uma aposta, a que o Estado pode ainda corresponder através das suas políticas para a formação cívica, desenvolvimento da consciência cidadã, com valorização da causa pública e da virtude cívica.77 É sabido que a recusa ética de uma naturalidade da corrupção tem nos países protestantes um fundamento histórico de natureza moral e religiosa que faz da cultura política de ética pública um traço quase identitário, eventualmente com prejuízo de outros que tem cabido aos investigadores da cultura escrutinar. Mas a mesma recusa ética de naturalização da corrupção pode fundamentar-se ainda na tradição republicana, no sentido que Hannah Arendt resumiu esplendidamente nas seguintes palavras: «Na política o que está em jogo, não é a vida, mas o mundo» (Arendt, 2006: 168), exprimindo uma desvinculação da acção, enquanto aparição do cidadão no espaço livre da polis para atender ao cuidado pelo mundo, face à ordem dos interesses mobilizados pela vida, seja enquanto simples sobrevivência e segurança de cada pessoa, seja enquanto vida económica de pessoas, famílias, grupos. Assumindo um tal alheamento face ao económico como condição da própria possibilidade do político — aliás, para Arendt, mesmo a ideia de uma «economia política» constituiria uma contradição nos termos —, então torna-se claro o quanto o tema da corrupção diz respeito ao cerne do fenómeno do político. É sobre as formas éticas de apaziguamento da contradição entre economia e política, virtudes 76 Para uma boa síntese dos contributos possíveis das instituições políticas para o combate à corrupção cf. Avritzer et al., 2008: 366-367. 77 Embora só a médio prazo se traduza em resultados palpáveis, as estratégias assentes na formação cívica tendem a conseguir resultados fortemente consolidados, com transformações efectivas ao nível das consciências e dos comportamentos dos agentes no espaço público. Por exemplo, são hoje notórios os progressos obtidos, especialmente junto às gerações mais jovens, após as campanhas de formação cívica ligadas à prevenção rodoviária, designadamente ao uso do cinto de segurança, ou ainda as campanhas relacionadas com a importância da reciclagem do lixo e não poluição do ambiente.

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que salvaguardam esta mau grado o contacto com aquela, que a corrupção vai agir expondo a contradição à erosão, com sacrifício do espaço público.78 Sob esta fundamentação arendtiana, só deixando escapar o essencial se pode levar a cabo uma redução económica do fenómeno da corrupção. Por exemplo, as análises do fenómeno da corrupção em termos de avaliações custo/benefício tendem a salientar ganhos de agilização nas relações com a administração pública. Este tipo de abordagem pode até, ainda que com alguma falibilidade, atender a ganhos sociais, por vezes até humanitários, valorizando-os a par dos ganhos estritamente económicos.79 Sendo flagrantes os obstáculos, mesmo de ordem ética, ao estabelecimento de uma medida quantificável para os termos a contabilizar nas avaliações custo/benefício, a objecção central não estará, porém, tanto aí quanto na oposição de princípio, e portanto não da ordem do mensurável, entre corrupção e política, objecção válida mesmo fora do quadro de uma fundamentação que relevasse do plano da moralidade. A admissão da corrupção, independentemente de ganhos que pudesse proporcionar e assim justificá-la, implica a rejeição da Lebenswelt80 que subjaz às duplicidades privado/público e interesse/causa, rejeição do compromisso vivencial que suporta o espaço público, pelo menos a partir das suas representações de cariz republicano.81 78 Leonardo Avritzer explicita claramente no pensamento de Hannah Arendt a ideia de uma corrupção do próprio espaço público — «Para Hannah Arendt, a corrupção do público dá-se pela substituição da acção pela fabricação. A fabricação, ao adentrar o espaço da política, corrompe uma das principais características do espaço público, qual seja, a condição humana da pluralidade.» (Avritzer et al., 2008: 136) 79 As perdas envolvidas num acto de corrupção, mesmo as de ordem simbólica, podem ser comparativamente tão baixas face ao ganho humanitário proporcionado a uma população extremamente carenciada que se torne justificável, até moralmente (pelo menos sob perspectivas assentes no princípio da utilidade), praticá-lo. 80 Conceito cunhado por Edmund Husserl, fundador do pensamento fenomenológico e, como vimos atrás, retomado por Adela Cortina. Pela expressão Lebenswelt, que traduzida literalmente quer dizer «mundo da vida», Husserl refere-se a tudo o que, no ambiente em que estão inseridos, é experienciável, de forma auto-evidente, pelos membros de uma mesma comunidade. 81 O pensamento político moderno, desde Montesquieu, e prosseguido pelos contratualistas modernos, tendeu a deslocar a base de consideração teórica da virtude cívica para os interesses, do que resulta um enquadramento da corrupção sobre um paradigma de eficiência económica, claramente antagónico, portanto, do paradigma assente na preservação do espaço público. Para estudo desenvolvido sobre o tópico cf. Filgueiras, 2008: 67-81.

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Em síntese, a ideia de uma ética pública, concebida seja como ética da lei pública seja como ética para o espaço público, concretiza-se em realidade interpessoal efectiva através da duplicidade entre uma estratégia de revisão de procedimentos e práticas formalizáveis, por um lado, e uma estratégia formadora das vivências que emanam da Lebenswelt que estrutura a cultura política da comunidade, por outro.

Ética e política A ênfase posta na ética pública como capacidade regeneradora do espaço público, em contraste com o efeito degenerativo que as práticas de corrupção causam ao mesmo espaço, suscita questionamentos sobre a natureza das relações que se estabelecem entre ética e política. Max Weber punha-se este tipo de questões de maneira francamente problematizadora: Qual é, então, a verdadeira relação entre ética e política? Nada têm que ver uma com a outra, como por vezes se afirma? Ou é certo, pelo contrário, que a «mesma» ética vale para a acção política e para qualquer outra actividade? Pensou-se, por vezes, que estas duas afirmações são mutuamente exclusivas; ou uma ou outra é correcta. Mas será, porventura, verdade que existe alguma ética que possa impor normas de conteúdo idêntico às relações eróticas, comerciais, familiares e profissionais, às relações com a esposa, com a mulher da hortaliça, com o filho, com o concorrente, com o amigo ou o acusado? Deveria, de facto, ser indiferente para as exigências éticas feitas à política que esta recorra a um meio muito específico, o poder, por detrás do qual se encontra a violência.» (Weber, 2005: 104)

O testemunho mais evidente da vinculação ética do poder político reside no facto de que nenhum regime político, por mais autocrático que seja, se dispensa da tarefa da sua legitimidade, não há tirano que não tenha a preocupação de articular uma resposta à pergunta «Porque governas tu e não outro qualquer?» Mesmo a mais gritante arbitrariedade pressupõe algum tipo de justificação e essa, tratando-se de acções e escolhas humanas, é sempre interpretável como uma justificação ética. 198

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Uma segunda dimensão que atesta, desde cedo, a vinculação entre política e ética está na possibilidade de conflito entre as leis da cidade e os valores morais mais profundos. Antígona e Creonte terão sido os protagonistas precoces de um inconformismo moral perante o poder, e que lhe exige a conformação da legalidade à legitimidade. De uma forma ou de outra, sejam as leis dos deuses gregos, sejam os mandamentos bíblicos, seja uma lei natural iluminista, seja o regime de direitos que decorre da Carta Internacional dos Direitos do Homem actualmente em vigor, a possibilidade do político aparece balizada por mínimos morais, cujo desrespeito autoriza a rebelião. De um ponto de vista histórico, o envolvimento crescente das populações, incontornável a partir da generalização dos meios de comunicação, primeiro com o advento da letra impressa, a rádio e a televisão mais tarde, formando uma opinião pública capaz de influenciar e de reagir à orientação dos acontecimentos da vida política das sociedades, traduziu-se por um regresso ou retorno mais ou menos difuso nos sécs. XVIII e XIX, mas incontornável no séc. XX, da ética, dos valores morais, das ideias de decadência e de crise ao cerne da discussão política.82 Mais recentemente, o retrocesso das ideologias propulsionado pelo fim dos grandes blocos, primeiro o comunista, «de Leste», depois, de maneira mais difusa, também o arranjo dicotómico Ocidente versus Oriente, recompôs a intervenção na esfera política nos termos de um aparente retorno da ética. De certo modo, as fórmulas ideologicamente apuradas de disputa política viram-se caducadas, até por redundância do discurso ideológico e da propaganda, e, assim, tendencialmente substituídas por fórmulas menos codificadas, mas que, por essa mesma razão, se articulavam e se exprimiam de maneira mais genuína e mais próxima da linguagem comum.83 82 O caso Dreyfus terá sido talvez o primeiro grande affaire movido pela opinião pública através da comunicação moderna e justamente em função de uma indignação que não poderia ser contida na estrita esfera da racionalidade política. A indignação de ordem moral, relacionada aqui com a perseguição antisemita, desenvolveu-se combativamente através da intervenção de intelectuais nos jornais. 83 Uma formulação clara desta viragem para a linguagem ética em detrimento da linguagem ideológica é dada por Sarsfield Cabral: «Ultrapassado o grande confronto ideológico das últimas décadas, que de alguma forma cristalizou e rigidificou posições, o debate ético-político torna-se hoje mais fragmentado, mais imprevisível, mais vivo, em suma. Já não é possível deduzir respostas directamente de sistemas

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Mas esta mesma tendência para a desideologização da vida política pode não ser tão efectiva quanto aparenta, pois há também sinais que justificam a ideia de uma ideologização da ética, aliás em dois sentidos distintos: ou por simples absorção pelo discurso ideológico pré-existente de marcas de discurso ético, num esforço de adaptação ao «gosto» moralizante, por vezes a partir de quadrantes políticos populares; ou por uma mimetização da função ideológica por protagonistas oriundos de âmbitos morais não políticos, se não mesmo avessos à política, mas que comparecem na arena política, a partir da sociedade civil, motivados por imperativos morais ou de consciência. De uma forma ou de outra, é alimentada a impressão, pelo menos em certas circunstâncias, de que só há verdadeiro debate político quando este se debruça sobre questões éticas, com o risco de banalização da discussão de ordem moral — até mesmo debates políticos aparentemente distantes da esfera de considerações morais tendem a ser apresentados como se a sua solução estivesse, de algum modo, ligada àquela esfera. Esta saliência da ética como aspecto cada vez mais substancial do discurso político é reconhecível nos usos da expressão ética política, que pode declinar-se, ou como ética da política ou, diversamente, como política da ética. No primeiro caso, pode estar em causa a percepção da exigibilidade de regras para a actividade política além das que decorrem da sua regulamentação legal, o que pode caber, pelo menos parcialmente, no entendimento que temos perfilhado de ética pública. Eventualmente, poderia inscrever-se neste tipo de preocupações o esforço para comprometer a classe política num «código de conduta», bem como a sua conformação a um grau cada vez mais exigente de conduta da parte dos oficiais públicos. Há, contudo, na circunscrição da ética pública a uma ética da política ou mesmo dos políticos uma possibilidade de estigma que não deixa de ser problemática no que respeita à actividade política e à classe política. Com efeito, a desacreditação da classe política tende a conduzir a um empobrecimento da qualidade dos seus protagonistas e, consequentemente, a uma degradação das práticas cívicas a troco de moralismos e integrismos facilmente corruptíveis. elaborados — agora é necessário “inventá-las”. E não se chega lá sem reforço do debate ético público.» (Alves, 1998: 287)

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No caso de uma política da ética, os perigos mais evidentes prendem-se com a possibilidade de instrumentalização do discurso ético, tornando a ética conteúdo de mensagem e de combate políticos, como quando, por exemplo, se entra na cena política por alegada convicção ética. Em qualquer uma destas acepções de ética política, e também no quadro mais vasto de uma ética pública, há riscos que decorrem da tensão entre política e ética e das possibilidades de ambivalência que entre elas facilmente se proporcionam. Foi, aliás, a esta ambivalência dos «políticos da convicção» que Max Weber se mostrou particularmente sensível quando propôs a distinção entre as éticas da responsabilidade e da convicção para caracterizar o ofício da política como uma vocação. Há uma só coisa a dizer: quando nestes termos de excitação, segundo julgais, não «estéril» — mas a excitação não é essencialmente ou sempre uma paixão genuína — de repente irrompem em massa os políticos da convicção, com o mote — «O mundo é estúpido e abjecto, não eu; a responsabilidade pelas consequências não me cabe a mim, mas aos outros para quem trabalho e cuja estupidez ou abjecção extirparei» — digo às claras que, primeiro, perscruto a medida da solidez interior que está por detrás desta ética da convicção; e tenho a impressão de que em nove de cada dez casos deparo com odres cheios de ar e vento, que não sentem realmente o que assumem. (Weber, 2005: 113-114)

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