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© SISTEMA SOLAR, CRL (2020) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: um retrato do artista quando jovem REVISÃO: Diogo ferreira 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2020 ISBN 978-989-8833-54-9 ————— DEPÓSITO LEGAL 000000/20 este livro foi impresso NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL
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pré-fácio
A Irlanda, satélite da Inglaterra com terreno propício a todas as moralidades vitorianas, não era vista com bons olhos pelo jovem Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde. Não sentia como incómodo que o seu pai, um médico-cirurgião de Dublim, tivesse a fama perturbada pela violação de uma paciente sob os efeitos amolecedores de uma anestesia, nem mesmo pela evidência pública de três irmãs suas ilegítimas (duas ligadas a um acidente mortal comentado na cidade, que as queimou dentro de graciosos vestidos de baile numa festa pública); muito pouco suportável era o esforço para não embaciar o brilho mundano e político da sua querida mãe — poetisa recitada e aplaudida em salões, militante de um partido nacionalista que advogava para a ilha uma imagem de muito saudáveis costumes. Esta querida mãe inibia os rasgos mais provocadores da sua vocação de excêntrico; e a Dublim provinciana não era palco onde pudesse desfraldar a todo o brilho os aforismos e os paradoxos constantemente disparados pelo seu talento verbal. Com vinte anos de idade foi para uma universidade de Oxford, e depois de terminado o curso académico não regressou à terra natal. Londres seduzia-o bastante mais, grande quanto bastava para diluir numa imensidade humana a sua vontade de desvios à moral vigente. E em Londres não lhe custou brilhar. Foi aceite nos lugares de uma intelectualidade mundana onde exercitava com êxito as frases que hoje conhecemos como exemplos maiores do seu espírito;
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fazia bons poemas; escrevia bons contos; escrevia inimitáveis peças de teatro; teve um convite que até lhe garantiu uma viagem aos Estados Unidos da América e a oportunidade de se exibir em palestras dominadas por temas literários; conquistou um prestígio que o levou até à França, para se ver acolhido e rodeado por escritores que escutavam aquela novidade de paradoxos agora expressos num imparável e fluente francês, e para dar ao outro lado da Mancha um curioso espectáculo visual onde não faltavam trajos de dândi e de corte inglês com uma flor discordante, posta em evidência na mão, que podia ser um girassol ou mesmo, em momentos de mais sofisticada elegância, um aberrante e dispendioso cravo verde. Restituído à Inglaterra, casou-se e foi morar para Chelsea, o bairro dos artistas londrinos. Teve, nestes primeiros tempos de esposo, um comportamento sexual que chegou à geração de dois filhos. E manteve-se diligente como escritor de contos, de poemas, de ensaios, chegando a alargar um texto até à dimensão de um romance; escreveu sobretudo comédias que encheram teatros de Londres e pareceram uma lufada irreverente que deixava em pedaços os moldes pesados da cena vitoriana. Mas estes tempos de glória literária e mundana arrastaram-no a audácias pouco toleradas pela mais defendida noção de decência inglesa. Se frequentava sem escândalo público uma casa recatada da Little College Street, onde a bom preço pagava a prestação sexual de jovens londrinos em busca de dinheiro fácil, também fazia exibições de dândi quarentão rodeado de efebos que punham em causa, com esta proximidade, com esta provocação, o bom nome de algumas famílias da capital e um estado de costumes preconizados do alto do seu trono por aquela rainha de vitórias impolutas, mãe de nove filhos e avó de quarenta e dois netos.
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Uma das companhias preferidas de Oscar Wilde era lorde Alfred Douglas (que viria a ser Bosie na linguagem do seu afecto), rapaz de vinte e um anos, estudante no Magdalen College de Oxford com uma qualidade poética que os elogios de Wilde sobrevalorizavam, terceiro filho de um marquês grosseiro e brutamontes, de seu nome Queensberry. Wilde conheceu esse jovem na sua própria casa de Tite Street, apresentado por Lionel Johnson, um amigo que o trazia, encantado com uma recente leitura de Dorian Gray. «Depois de trocadas as habituais cortesias», veio Alfred Douglas a escrever, «Wilde mostrou-se muito amável e falou imenso. Antes de eu me retirar convidou-me para almoçar ou jantar com ele no seu clube — convite que aceitei.» Esta amizade intensificou-se. Wilde e Bosie começaram por fazer duas viagens juntos (uma a Florença, outra a Brighton) e partilharam depois um apartamento comum no Hotel Savoy de Londres; mas, se acreditarmos nas palavras de Bosie, foram precisos seis meses de intensas intimidades e leitos separados por curta vizinhança para ele não resistir às suas propostas sexuais. Em 1895, pouco depois do imenso êxito da peça An Ideal Husband, Wilde e Bosie decidiram ver de perto a beleza morena e compreensiva, nesses tempos fácil de encontrar entre os jovens árabes de Argel. Ora, André Gide também gostava da Argélia, colónia do seu país com um forte exotismo visual e sensorial, próxima na sua distância, bastante em conta para as folgas da sua bolsa. Por acidente, juntaram-se os três na Argélia. Mas já tinha havido outros encontros. Gide vai lembrar-se aqui da sua vistosa presença em Paris, dos seus ditos, dos seus paradoxos, de um teatro de salão onde Oscar Wilde
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fazia incansavelmente a representação da sua própria personagem. Lembrar-se-á do Oscar Wilde na Argélia, do Oscar Wilde numa fria aldeia da França, abrigado sob o pseudónimo Sébastien Melmoth, derrotado e ferido depois de dois anos de cárcere na Inglaterra. E, para além dos textos de Gide, ler-se-á também uma selecção dos mais significativos momentos dos seus processos. A.F.
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in memoriam
Foi há um ano e nesta mesma época, em Biskra1, que eu soube pelos jornais do lamentável fim de Oscar Wilde. O afastamento não me permitiu, lamento!, juntar-me ao magro cortejo que acompanhou os seus restos até ao cemitério de Bagneux; em vão me desolei, por parecer que a minha ausência diminuía ainda mais o tão pequeno número dos amigos que a ele se mantiveram fiéis; — eu quis logo depois escrever pelo menos estas páginas; mas pareceu, durante um tempo bastante longo, que o nome de Oscar Wilde se tornava outra vez propriedade dos jornais… No entanto, acalmou-se agora por completo todo o indiscreto rumor à volta deste nome tão tristemente famoso, a multidão acabou por se cansar depois de o ter louvado, se ter espantado e tê-lo por fim amaldiçoado, e um amigo talvez possa exprimir uma tristeza que perdura, levar a um túmulo mal cuidado, como uma coroa, estas páginas de afecto, admiração e respeitosa piedade. Quando o escandaloso processo apaixonou a opinião inglesa e ameaçou quebrar-lhe a vida, alguns literatos e artistas tentaram fazer, em nome da literatura e da arte, uma espécie de salvamento. Houve a esperança de que louvar o escritor desculparia o homem. Mas, ai de mim! Instalou-se um mal1
Ou seja, em Dezembro de 1901.
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-entendido porque Wilde, será preciso reconhecer, não é um grande escritor. O lamaçal de chumbo que lhe atiraram só conseguiu consumar a sua perda; dir-se-á que as suas obras, longe de o aguentarem se afundaram com ele. Foi inútil algumas mãos estenderem-se. A torrente do mundo fechou-se; tudo terminou. Não podia nessa altura pensar-se em fazer totalmente o contrário e defendê-lo. Em vez de procurarmos esconder o homem atrás da obra, seria preciso começarmos por mostrá-lo admirável, como vou hoje tentar fazer — porque isso levaria a obra a iluminar-se. — Pus todo o meu génio na vida; só pus o meu talento nas obras, dizia Wilde. — Não um grande escritor mas um grande viveur, se consentirmos que a palavra ganhe todo o seu sentido. Wilde, tal como os filósofos da Grécia, não escrevia mas falava e vivia a sua sabedoria como se a escrevesse na água, confiando-a com imprudência à memória fluida dos homens. Aqueles que durante mais tempo o conheceram, contem-no na sua biografia; limite-se um dos que mais avidamente o escutaram a relatar aqui algumas memórias pessoais.
Perante o ser enfraquecido, desfeito, que a prisão nos devolveu, os que só lidaram com Wilde nos últimos tempos da sua vida imaginam mal o prodigioso ser que ele começou por ser. Foi em 91 que o encontrei pela primeira vez. Wilde possuía o que Thackeray chama «o dom principal dos grandes homens»: ter êxito. O seu gesto, o seu olhar triunfavam. O seu êxito era garantido ao ponto de parecer que o precedia, e ele só
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precisaria de avançar. Os seus livros espantavam, encantavam. As suas peças faziam Londres correr para os teatros. Era rico; era grande; era belo; estava enfartado por felicidades e honras. Alguns comparavam-no a um Baco asiático; outros a um qualquer imperador romano; outros ao próprio Apolo — e, de facto, irradiava. Em Paris, mal lá chegou o seu nome correu de boca em boca; trazia agarradas a si umas quantas absurdas anedotas; Wilde ainda só era o que fumava cigarros de ponta dourada e passeava nas ruas com uma flor de girassol na mão. Como era hábil a seduzir os que fabricam a glória mundana, tinha sabido criar perante a sua verdadeira personagem um divertido fantasma com quem espirituosamente brincava. Ouvi falar dele na casa de Mallarmé; pintavam-no como um brilhante conversador e desejei conhecê-lo, embora sem esperança de chegar a encontrá-lo. Um feliz acaso, ou antes, um amigo a quem expressei este desejo, deu-me a oportunidade. Wilde foi convidado para um jantar. Aconteceu num restaurante. Éramos quatro, mas só Wilde falou. Wilde não conversava: contava. Durante quase toda a refeição não parou de contar. Contava suavemente, com lentidão; até a sua voz era maravilhosa. Sabia admiravelmente o francês, mas fingia procurar um pouco as palavras que nos queria fazer ouvir. Quase não tinha sotaque ou agradava-lhe, pelo menos, manter algum que conseguia dar por vezes às palavras um ar novo e estranho. Pronunciava de propósito skepticisme e não scepticisme… As histórias que nessa noite interminavelmente contou eram confusas e não as melhores: Wilde, a desconfiar um pouco de nós, experimentava-nos. Nunca se libertava da
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sua sabedoria, ou mesmo da sua loucura, se não se acreditasse capaz de saborear o seu auditor; oferecia a cada um o manjar de acordo com o seu apetite; os que nada esperavam dele nada tinham, ou só um pouco de leve espuma; e como se ocupava sobretudo em divertir, muitos dos que julgaram conhecê-lo só conheceram dele o homem que divertia.
Terminada a refeição, saímos. Como os meus dois amigos caminharam juntos, Wilde ficou comigo. — Vejo que escuta com os olhos — disse-me de forma muito brusca. — Por isso vou contar-lhe esta história: «Quando o Narciso morreu, as flores dos campos desolaram-se e pediram ao ribeiro gotas de água para chorá-lo. — «Oh! — respondeu-lhes o ribeiro. — Quando todas as minhas gotas se transformarem em lágrimas, ficarei sem tê-las quanto basta para chorar o Narciso; e eu amava-o. — «Oh! — disseram então as flores dos campos. — Como é que podias não amar o Narciso? Era belo. — «Era belo? — disse o ribeiro. — «Quem pode sabê-lo melhor do que tu? Todos os dias ele se debruçava nas tuas margens e via nas tuas águas a sua beleza…» Wilde fez um instante de pausa… «— Se o amei — respondeu o ribeiro — foi porque se debruçava nas minhas águas e eu via nos olhos dele o reflexo dos meus olhos.» Depois, engasgando-se com um estranho ataque de riso, acrescentou:
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— Isto chama-se O Discípulo. Tínhamos chegado à sua porta, e separámo-nos. Convidou-me para um novo encontro. Nesse ano e no ano seguinte vi-o muitas vezes e em todo o lado.
Como já disse, Wilde mostrava à frente dos outros uma máscara de parada, feita para espantar, divertir ou por vezes exasperar. Nunca ouvia, e pouca importância dava a um pensamento que não fosse o seu. Desde que não brilhasse sozinho, apagava-se. Só o encontrávamos se estivéssemos a sós com ele. Mas, estando a sós, começava: — O que fez de ontem para cá? E como a minha vida corria sem sobressaltos, o relato que eu podia fazer não tinha nenhum interesse. Eu voltava a repetir com docilidade os mais pequenos factos, observando, enquanto falava, que Wilde enrugava a sua testa. — O que fez foi mesmo isso? — Foi — respondia eu. — E está a dizer a verdade? — Sim, é mesmo a verdade. — Nesse caso, por que terá de voltar a dizê-la? Bem vê que ela não é nada interessante. Compreenda que há dois mundos: o que é, sem falarmos dele; chamamos-lhe o mundo real porque, para o vermos, não é preciso falar dele. E o outro, que é o mundo da arte; é deste que temos de falar, porque sem isso não existiria. «Houve um dia um homem amado na sua aldeia porque contava histórias. Todas as manhãs saía de lá e à noite voltava;
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todos os trabalhadores da aldeia se juntavam, depois de terem penado todo o dia, para dizer: Vamos! Conta lá. Hoje o que viste? — E ele contava: Vi na floresta um fauno a tocar flauta e punha a dançar uma roda de pequenos silvanos. — Conta mais. O que viste?, diziam os homens. — Quando cheguei perto do mar vi ao pé das ondas três sereias que penteavam com um pente de ouro os seus cabelos verdes — E os homens gostavam dele porque contava histórias. «Uma manhã saiu da aldeia, como sempre — e quando chegou à beira do mar viu três sereias; três sereias ao pé das ondas, a pentearem com um pente de ouro os seus cabelos verdes. E quando continuou o passeio, ao chegar perto do bosque viu um fauno a tocar flauta e a roda de silvanos… Nessa noite voltou para a aldeia, como sempre pediram-lhe: Vamos! Conta lá o que viste!, e ele respondeu: — Não vi nada.» Wilde fez uma pequena pausa, deixando descer em mim o efeito da história, e continuou: — Não gosto dos seus lábios; tem-nos a direito como os de alguém que nunca mentiu. Quero ensinar-lhe a mentir, para os seus lábios ficarem bonitos e retorcidos como os de uma máscara antiga. «Sabe o que faz a obra de arte e o que faz a obra da natureza? Sabe o que faz a sua diferença? Porque se a flor do narciso é tão bela como uma obra de arte… o que as distingue não pode ser a beleza. Sabe o que as distingue?… A obra de arte é sempre única. E a natureza, que nada faz perdurável, repete-se sempre para nada se perder do que faz. Há muitas flores de narciso; é a razão de não viverem mais do que um dia. E todas as vezes que a natureza inventa uma forma nova, não tarda a
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repeti-la. No mar, um monstro marinho sabe que há noutro mar um monstro marinho seu semelhante. Quando Deus cria na história um Nero, um Bórgia ou um Napoleão, põe-lhe outro ao lado; não o conhecemos, mas não faz mal; o importante é um deles ter êxito; sim, Deus inventa o homem, e o homem inventa a obra de arte. «Sim, eu sei… um dia houve na terra um grande mal-estar, como se a natureza tivesse por fim criado qualquer coisa realmente única… e o Cristo nasceu na terra. Sim, bem sei… mas oiça: «Quando José de Arimateia desceu uma noite do monte do Calvário, onde Jesus acabava de morrer, viu em cima de uma pedra branca um jovem sentado e a chorar. José aproximou-se dele e perguntou: — «Compreendo que a tua dor seja grande porque aquele homem, acolá, era de facto um justo. «Mas o jovem respondeu-lhe: — «Oh! Não é por isso que eu choro! Choro porque também fiz milagres! Também devolvi a vista aos cegos, curei paralíticos e ressuscitei mortos. Também sequei a figueira estéril e transformei a água em vinho… E os homens não me crucificaram.» Que Oscar Wilde estava convencido da sua missão representativa, mais do que uma vez o verifiquei.
O Evangelho inquietava e atormentava o pagão Wilde. Não lhe perdoava os milagres. O milagre pagão é a obra de arte: o cristianismo espezinhava-o. Todo o robusto irrealismo artístico exige na vida um realismo convicto.
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As suas mais engenhosas alegorias, as suas mais inquietantes ironias existiam para confrontar as duas morais, quero dizer o naturalismo pagão e o idealismo cristão; e, a este, para perturbá-lo em todo o seu sentido. — Quando Jesus quis voltar a Nazaré — contava Wilde — Nazaré estava tão modificada, que ele já não reconhecia a sua cidade. A Nazaré onde tinha vivido estava cheia de lamentos e lágrimas; e a cidade estava agora cheia de risos e cantos. Ao entrar nela, o Cristo viu escravos carregados com flores a correrem para a escada de uma casa de mármore branco. O Cristo entrou na casa, e ao fundo de uma sala de jaspe viu deitado num leito de púrpura um homem com cabelos soltos entremeados por rosas vermelhas e lábios avermelhados pelo vinho. O Cristo aproximou-se dele, tocou-lhe no ombro e disse: — «Por que levas esta vida? «O homem voltou-se, reconheceu-o e respondeu: — «Eu era leproso e curaste-me. Que razão teria para levar outra vida? «O Cristo saiu da casa e viu na rua uma mulher com o rosto e as roupas pintados, pés calçados com pérolas; ia atrás dela um homem com um trajo de duas cores e olhos carregados de desejos. O Cristo aproximou-se do homem, tocou-lhe no ombro e disse: — «Por que vais atrás desta mulher, e olhas para ela desse modo? «O homem voltou-se, reconheceu-o e respondeu: — «Eu era cego e curaste-me. O que poderia fazer eu da minha vista senão isto? «O Cristo aproximou-se da mulher.
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— «Este caminho que segues — disse ele — é o do pecado; por que razão o segues? «A mulher reconheceu-o, e a rir-se disse-lhe: — «O caminho que sigo é agradável, e perdoaste-me todos os pecados. «Nessa altura o Cristo sentiu o coração cheio de tristeza e quis sair daquela cidade. Mas quando estava a sair, viu à beira dos seus fossos um jovem a chorar. O Cristo aproximou-se dele, e tocando-lhe nos caracóis do cabelo disse: — «Meu amigo, por que choras? «O jovem ergueu o olhar, reconheceu-o e disse: — «Eu estava morto e ressuscitaste-me; o que poderei fazer da minha vida senão isto?»
— «Quer que eu lhe conte um segredo? — começou Wilde num outro dia a dizer. Estávamos na casa do Heredia; ele tinha-me levado até ao meio do salão cheio de gente. — «Um segredo… mas prometa-me que não vai repeti-lo a ninguém… Sabe por que razão o Cristo não gostava da sua mãe? — Isto era-me dito ao ouvido e em voz baixa, como se sentisse vergonha de dizê-lo. Fez uma curta pausa, agarrou-me no braço, recuou, e depois com uma gargalhada disse bruscamente: — «Porque era virgem!…»
Seja-me ainda permitido contar isto, uma das mais estranhas histórias com que podemos embaraçar o espírito; e quem
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puder compreender a contradição que mal parece haver no que Wilde diz, que a compreenda. — … Fez-se depois na Câmara da Justiça de Deus um grande silêncio… A alma do pecador aproximou-se de Deus completamente nua, e Deus abriu o livro da vida do pecador. — «A tua vida foi realmente muito má; fizeste… (seguiu-se uma prodigiosa, maravilhosa enumeração de pecados)1. — E como tudo isto fizeste, vou por certo mandar-te para o Inferno. — «Não podes mandar-me para o Inferno. — «Por que não posso mandar-te para o Inferno? — «Porque toda a minha vida vivi nele. «Fez-se então um grande silêncio na Câmara da Justiça de Deus. « — Pois bem! Se não posso mandar-te para o Inferno, vou mandar-te para o Céu. « — Não podes mandar-me para o Céu. « — Por que não posso mandar-te para o Céu? « — Porque nunca consegui imaginá-lo. «Fez-se na Câmara da Justiça de Deus um grande silêncio2.»
Uma manhã Wilde entregou-me, para eu ler, um artigo onde um crítico muito profundo o felicitava por «saber inventar bonitos contos que lhe vestiam melhor o pensamento.» Mais tarde ele escreveu este conto, que é excelente. (N. do A.) Porque toda a gente sabe qual é «o grande segredo da Igreja» desde que Villiers de l’Isle-Adam o divulgou: Não há Purgatório. (N. do A.) 1 2
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intelectual. Tratei a arte como a realidade suprema; a vida como um ramo da ficção. Despertei a fantasia do meu século, de forma a formarem-se à minha volta mitos e lendas. Muitas mais coisas eu também tinha; mas durante longos períodos deixei-me seduzir por um insensato e sensual lazer 1. Poucos homens ocuparam durante a sua vida uma posição igual à minha e conseguiram fazê-la, tanto como eu, reconhecida. Parece que volta a passar-lhe pelos lábios um resto do gosto deste mel. Outrora eu vivia inteiramente para o prazer, escreve ele; e noutro lado: Eu enchia a minha vida até às bordas com prazer, como se enche um copo de vinho.
Mas, através do excesso de prazer admiro o secreto encaminhamento para um mais significativo destino. À medida que ele se torna menos voluntarioso, faz-se mais representativo. Esta fatalidade conduzia-o como um exemplo; e por vezes ele abandonava-se sem se importar que ela o enganasse: Teria sido mau eu continuar a fazer a mesma vida, diz Wilde, porque isso significaria limitar-me. Tive de avançar. Esta fatalidade latente, se assim posso exprimir-me, faz a beleza, a unidade da sua vida, clarifica-lhe intimamente a obra. Sim, faz-se-nos como que confidencial a obra daquele para quem «esconder o artista» era «o objectivo da arte». É certo, confessa ele, que tudo isto está anunciado e previsto nos meus escritos, e cita-os sucessivamente, um após outro, acabando assim: o poema em prosa do homem que tem de fazer da estátua do Prazer, que dura Estas frases, talvez por serem de um auto-louvor excessivo, foram omitidas nas primeiras edições inglesas do De Profundis. (N. do A.) 1
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apenas um momento, a estátua de bronze da Dor, que vai durar para sempre… Ai de mim! Ai de mim! Pobre Wilde, porque não era isto o que o teu conto dizia; o artista de que falas quebrava, pelo contrário, a estátua da Dor para fazer dela a estátua da Alegria; mas o teu erro voluntário mostra-se mais eloquente do que uma confissão. É este o motivo de eu não poder, quando leio o prefácio que Joseph Renaud junta à sua tradução de Intentions, conter um certo agastamento: «Estes factos, de resto mal formulados, que atiraram de repente para a prisão um escritor glorioso, rico, por todos estimado, nada provam contra a sua obra. Esqueçamo-los… Não lemos Musset, Baudelaire, etc., apesar da sua vida privada? Se alguém revelasse que Flaubert e Balzac cometeram crimes, teríamos de queimar Salammbô e La Cousine Bette?… As obras pertencem-nos, não os autores.» — O quê! Ainda vamos aí? As nossas gentilezas são ditas, sem dúvida, com a melhor das intenções deste mundo; mas não é o próprio Wilde quem conta isto no seu De Profundis?: Há tempos, um dos meus grandes amigos — com uma amizade de dez anos — veio visitar-me e disse que não acreditava numa única palavra dirigida contra mim, e desejava saber-me com a certeza de que ele me considerava completamente inocente e vítima de um feio conluio. Não consegui reter as lágrimas enquanto o ouvia, e disse-lhe que a minha vida, apesar das acusações de completa falsidade feitas por uma revoltante maldade, estava cheia de prazeres perversos, e que ele teria de aceitar o facto e compreendê-lo totalmente, ou eu não poderia continuar a ser seu amigo nem voltar a encontrar-me com ele. E noutro lado: Lamentar as experiências que conhecemos é travar o nosso próprio
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desenvolvimento; negá-las é pôr uma mentira nos lábios da nossa própria vida. E isto não é menos do que renegar a alma. De que serve dizermos que Salammbô não passaria a interessar-nos menos «se Flaubert tivesse cometido crimes»? Como é mais interessante e mais justo compreendermos que Flaubert não teria escrito Salammbô mas outra coisa, ou mesmo nada, «se tivesse cometido crimes»… e Balzac não teria podido escrever a sua Comédia Humana se a tivesse querido viver. — Tudo o que é ganho para a vida é perdido para a Arte, costumava Wilde dizer, e a sua vida, precisamente por isto, é trágica. — Teremos então de dirigir-nos sempre à Arte?, fazia ele perguntar no melhor diálogo das suas Intentions. — Sempre, respondia a segunda personagem, porque a Arte nunca nos fere. Não, apesar do que diz Joseph Renaud, para melhor lermos a sua obra não temos de fingir que ignoramos o drama daquele cuja Arte quis, ainda assim, e sabendo que feria, dirigir-se à vida; e depois de ter tão magistralmente ensinado que a Arte começa onde termina a imitação, que a vida é o dissolvente que destrói a Arte, o inimigo que devasta a morada e, por fim, que a Vida imita a Arte bem mais do que a Arte imita a Vida, ele próprio se propôs como exemplo e fez com a sua própria vida a prova pelo absurdo das suas palavras — muito parecido com o herói de um dos seus mais belos poemas; o homem, hábil a contar, que encantava todas as noites as pessoas da sua aldeia recitando as aventuras maravilhosas que ele fingia ter vivido durante o dia, mas que uma vez, quando a trágica aventura se fez realidade, nada encontrou para dizer.
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Davray antecede a tradução do De Profundis com quatro cartas escritas na prisão, inexistentes na edição inglesa; algumas páginas destas cartas são tão patéticas e de um interesse psicológico tão torturante, que muito me custa resistir a não as copiar aqui. Prefiro, no entanto, citar esta passagem do De Profundis que o editor inglês encontrou boas razões para não publicar, e eu próprio traduzo da edição alemã: Outras infelizes criaturas, que foram atiradas para a prisão e subtraídas à beleza deste mundo, estão até certo ponto defendidas dos seus mais pérfidos laços e das suas mais agudas flechas. Podem encolher-se na sombra da cela e fazer da sua ignomínia qualquer coisa como um inviolável santuário. O mundo ficou satisfeito, o mundo passa adiante; deixa-os sofrer em paz. Mas isto não acontece comigo. Uma após outra, à porta da minha prisão bateram dores a perguntar por mim. As portas da minha prisão foram abertas à dor de par em par, e deixaram-na entrar. Aos meus amigos, só muito poucas vezes foi dada autorização para me fazerem uma visita; e os meus inimigos, pelo contrário, conseguiram ter pleno acesso à minha presença. As duas vezes que fui convocado para comparecer perante o tribunal, e ainda as duas vezes que fui publicamente transferido de uma prisão para outra, estiveram ligadas a condições indizivelmente humilhantes, e fui dado como pasto aos olhares trocistas e às graçolas da multidão. O mensageiro da morte entregou-me a sua folha, e logo depois voltou a afastar-se; totalmente isolado, posto à margem de tudo o que talvez pudesse dar-me algum consolo ou adormecer-me a dor, tive de suportar o insuportável sofrimento da miséria e dos remorsos que a memória da minha mãe evocava
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em mim, e ainda evoca. O tempo só muito pouco cicatrizou esta ferida (e ainda não está curada); e saiba-se que a minha mulher, através do seu advogado, obriga-me a escrever rápidas e amargas cartas de abdicação. A pobreza ameaça-me, e já me censuram por isso. Eu suportá-la-ia; a pior coisa eu poderia ainda conformar-me… mas ficam-me, em nome da lei, com os meus dois filhos. Isto causa-me uma dor infinita, uma preocupação sem nome, um desespero sem limites que nunca hão-de abandonar-me. A lei determina, atreve-se a usurpar o direito de decidir que já não poderei estar ao pé dos meus próprios filhos… Para mim, este pensamento tem qualquer coisa de pavoroso. Ao pé dele, a ignomínia da prisão já nada é. Como invejo estes homens que vão e vêm ao meu lado no pátio da prisão! Os seus filhos estão à sua espera, tenho a certeza, e quando saírem estarão a dar gritos e a envolvê-los com a sua ternura. Os pobres são sensatos, mais caridosos, mais inclinados para a bondade, mais sensíveis do que nós… Gostaria de citar o livro inteiro; no entanto, mais vale dizer ao leitor que o leia — e dar-me por satisfeito se tiver conseguido, mesmo que o faça numa pequena parte, prestar serviço a uma triste e gloriosa memória que já é tempo de deixar de inspirar apenas desprezo, indulgência insolente, ou uma piedade ainda mais insultuosa do que o desprezo.
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Durante três anos e meio Oscar Wilde fez-se passar por Sébastien Melmoth, afastado de todos os convívios, lembrado por alguma imprensa francesa como o que sofria as consequências jurídicas de um abominável vício — a que ela por vezes chamou, com um laivo de xenofobia, «o vício inglês». Foi um Sébastien Melmoth de últimos dias, com problemas de saúde impossíveis de atender pelos reduzidos meios clínicos de uma aldeia do norte da França, que veio para Paris e morreu de meningite num quarto do Hotel d’Alsace na rua Des Beaux-Arts de Saint-Germain-des-Prés. A modéstia pouco limpa deste hotel continua a viver na frase de Wilde ao seu editor: É de uma pobreza que nos corta o coração; tão sujo, de tal forma deprimente e sem esperança! Oscar Wilde, ainda perturbado pela memória dos hotéis de luxo com tão vasto papel nos seus dias de glória, morreu em 1900 com quarenta e seis anos de idade, quase pobre, ex-pagão baptizado e ungido in extremis pela igreja católica num leito francês de aluguer, para seguir com um cortejo (que mal conseguia sê-lo) até ao cemitério de Bagneux. Nove anos depois Robert Ross (crítico literário canadiano e um dos seus amantes mais fiéis) conseguiu reunir os fundos necessários para a trasladação que viria a deixá-lo na companhia de prestigiadas memórias, comemorado num talhão do Père-Lachaise com vinte toneladas de pedra branca caídas sobre os seus
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restos mortais — projecto do americano Job Epstein que também esculpiu, para aquele mundo de coisas mortas (lembrando-se, por certo, do obscuro poema gótico intitulado «The Sphinx»), a orgulhosa esfinge-macho que ali expõe, à tristeza de tantos olhares, a enorme vitalidade do seu órgão genital. Este vigor foi em 1961 punido e deu origem a um fait-divers acolhido pelas colunas da imprensa: duas solteironas inglesas, com ferros extraídos à aparente inocência das suas carteiras, atacaram o inimigo, esfacelaram a protuberância masculina que lhes parecia hostil à decência inglesa e à memória de um dos seus mais célebres escritores. E por isso a esfinge de pedra, com o membro viril restaurado, defende-se agora com um anteparo à prova de bala, protector da zona sensível contra grafitis e humores desapropriados à memória de Wilde e à integridade da obra de Epstein. A prisão e os maus cenários da sua morte servem com êxito os que gostam de interpretar como actuações do perverso Destino as desgraças sofridas pelos mais próximos de um relevante drama central. Porque todos eles o acompanharam com ocorrências mais e menos fatais, afectados por problemas psicológicos e físicos, como poderemos concluir se nos lembrarmos que em 1896 a sua mãe morreu em Dublim, depois de lhe ser recusada uma visita ao filho encarcerado na prisão de Reading; que a sua mulher progressivamente paralisada, depois de cair numa escada, viria a morrer na Itália por não resistir à operação cirúrgica que tentava salvá-la de uma imobilidade total; que Vyvyan, o seu filho mais novo, impedido por um primo de recitar versos do seu pai, aos catorze anos de idade fugiu desesperadamente de casa, caiu num campo coberto de neve e salvou-se com dificuldade de uma hipotermia e de uma infecção auricular (mais tarde, aos trinta e dois anos de
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idade, teve a sua mulher morta com o corpo queimado pelas chamas de um incêndio); que Cyril, o seu filho mais velho, sucumbiu em 1915 a uma bala alemã da Primeira Guerra Mundial. Esta família de mãe e dois filhos perseguida pela má memória de um Wilde vencido em processo jurídico e encarcerado, tinha fugido da curiosidade pública e procurado uma distância tranquila na Suíça. Constance Wilde desejava poupar Cyril e Vyvyan a uma Inglaterra impregnada com o escândalo do seu pai célebre, condenado à prisão e a trabalhos forçados. Em 1954, Vyvyan de tudo isto nos revelou o peso quando publicou a sua autobiografia Son of Oscar Wilde, onde relembra dias da infância turbados pela incómoda memória do seu pai, aquela que o levava a iludir os seus colegas da escola afirmando-se «filho de um explorador morto num naufrágio», e os dias de adulto que nunca lhe permitiram deixar de ter, sobreposta à sua própria identidade, a outra que o marcava como «filho de Oscar Wilde». Wilde nunca foi abandonado por uma grande força literária e humana que marcou presença em tudo quanto escreveu; a que complicou a tarefa crítica dos que não podiam senti-la e julgá-la sem paixão, desassombrada da carga negativa que tinha envolvido as derradeiras cenas do seu drama. Chamavam-lhe «esteta», à falta de melhor argumento, procurando dar à palavra o seu perverso e um tanto frívolo sentido. Por isto Hugo von Hofmannsthal, ao falar do que já era Sébastien Melmoth não reprimiu um sobressalto: «Esteta! Não quer no seu caso dizer nada. Walter Pater foi um esteta, um homem que vivia para o prazer e para recriar a beleza, que se comportava perante a vida com toda a timidez e reserva, com toda a disciplina. Um esteta está por natureza impregnado de disciplina. Mas Oscar Wilde estava impregnado de indisciplina,
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impregnado de trágica indisciplina. O seu esteticismo como que era um garrote. As pedras preciosas que ele pretendia ter o prazer de encontrar como que eram olhos quebrados, endurecidos, porque não tinham conseguido suportar o espectáculo da vida. Wilde sentiu ininterruptamente sobre si a ameaça da vida. O horror trágico nunca deixou de persegui-lo. Desafiou constantemente a vida. Insultou a realidade. E sentiu que a vida se contraía para o atacar com um salto, saída da escuridão.» Voltemos porém a André Gide e à sua complicada relação com o escritor Oscar Wilde. Em 1892, diz-nos o seu Journal que ele ainda tinha o valor de uma sombra escura: Acho que Wilde só me fez mal. Aprendi com ele a não pensar; a ter as mais variadas emoções, mas sem saber ordená-las; eu já não conseguia, sobretudo, seguir as deduções dos outros. A 29 de Junho de 1913 — três anos depois de publicar os seus textos sobre Wilde — sentimo-lo semi-arrependido: Por certo, no meu pequeno livro sobre Wilde mostrei-me pouco justo perante a sua obra e desdenhei-a com leviandade, ou seja, antes de tê-la suficientemente conhecido. Voltando a pensar nela, admiro a boa disposição com que Wilde me escutava quando eu fazia na Argélia o processo das suas peças (com muita impertinência, como hoje me parece). Nenhuma impaciência no tom da resposta, e sem sequer um protesto. Mas em 1927 a distância, o tempo e uma mais demorada reflexão conseguem fazê-lo dizer-nos isto: [Maurois] afirma que os costumes de Wilde são uma dependência do seu esteticismo, e que ele só arrastou até aos costumes o seu amor pelo artificial. Acho, pelo contrário, que
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este esteticismo pedido de empréstimo só era para ele um engenhoso revestimento de ocultação que deixava revelar o pouco que lhe era possível expor à luz do dia; servia para desculpar, alegar como pretexto e até, na aparência, motivar; mas esta motivação era, mesmo ela, um fingimento. Nele quase sempre, e às vezes a contrariar o próprio artista, é o segredo da profundidade da sua carne quem dita, inspira e decide. Iluminadas por este dia e por baixo, podemos dizê-lo, as peças de Wilde deixam surgir, ao lado das palavras de aparato tão cintilantes como jóias falsas, uma grande quantidade de frases estranhamente reveladoras e de um poderoso interesse psicológico. E é com estas, não se duvide, que Wilde escreve toda a sua peça. Procura fazer com que alguns oiçam o que lhe interessa esconder dos outros. Sempre preferi, no meu caso, a franqueza. Mas Wilde tomou o partido de fazer da mentira uma obra de arte. Nada há mais especioso, mais tentador, mais elogioso, do que ver na obra de arte uma mentira e, reciprocamente, considerar a mentira uma obra de arte. É isto que o faz afirmar: «Nunca dizermos eu.» Ele arranjava sempre uma forma de o leitor avisado levantar a máscara, e vislumbrar sob essa máscara o verdadeiro rosto (que Wilde tinha boas razões para ocultar). Esta hipocrisia-artista como que lhe foi imposta pela consciência, que ele tinha muito viva, das conveniências; e, através dela, da protecção pessoal. Aliás, o mesmo acontece com Proust, esse grande mestre na dissimulação. O controverso Wilde, aquele de quem Borges dizia que tinha — «quase sempre» — razão. A.F.
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