Avelino Sá o hóspede da casa do infinito
textos Bernardo Pinto de Almeida Carlos Antunes Eduardo Calheiros Figueiredo João Barrento
O ofício do calígrafo
Carlos Antunes
Par exemple, sur une toile vierge, je peins un point (ou plusiers points). C’est le début. Je pose un rapport entre ce que je peins et ce qui n’est pas peint. Le phénomène de la résonance ouvre l’espace de la peinture en faisant intervenir la penetration reciproque de la stimulation de la touche et de la non touche.
La mise en place de la peinture doit garantir la possibilité de provoquer un grand élan vers la realité et vers les concepts.
Lee Ufan, La mise en place d’une œuvre , 1990-1994
Deserto, silêncio, solidão, montanha, haiku são palavras recorrentemente utilizadas para falar da obra de Avelino Sá porque elas configuram um universo semântico e conceptual em torno do qual o artista tem operado nas últimas quatro décadas. Poderíamos ainda falar de «insondável», «mistério», palavras e conceitos que admira da cultura germânica.
Avelino Sá define o seu universo conceptual, os seus sujeitos/objectos de relação através de uma «comunidade de vagabundos», como gosta de lhes chamar, que partilham entre si características como a humildade ou a generosidade: Friedrich Hölderlin, Robert Walser, Matsuo Bashō, Álvaro Lapa, personagens da sombra, da meia-luz, com os quais partilha afinidades electivas e que voluntariamente se arredaram do espectáculo luminoso da arte e da cultura, «porque a luz intensa às vezes também cega»1.
Para o artista entramos na poesia através de um voo no qual vamos planando no seu éter e nesse voo ela vai-se reificando através de um fluxo de imagens: uma árvore, uma floresta, uma montanha, um rio, um templo, os deuses, no qual o livro está presente através do seu próprio eco, que o artista escuta e dilata, uma
1 Cito livremente fragmentos de Avelino Sá, no documentário Avelino Sá — Na Floresta, realização de Bernardo Pinto de Almeida, imagens de Igor Sterpin e produção da Galeria Fernando Santos, 2022.
ressonância, no sentido em que lhe atribui Lee Ufan, no qual a ressonância na obra de arte apresenta «o espaço de um evento aberto pelo encontro entre si e os outros». A palavra «ressonância», em japonês yohaku, é composta por dois caracteres: yo, «o que resta», e haku, «branco». De uma forma simplificada, poderemos considerar a ressonância como a parte branca do dispositivo de uma página que não corresponde exactamente às suas margens, conceito que o autor rejeita, e que corresponde à parte não pintada que ecoa, capta e interage com o mundo.
Arriscaria afirmar tratar-se de uma dupla ressonância, uma mais literal e etimológica, no sentido de a considerar como um fenómeno acústico — «re-sonare», isto é, um acto-reflexo ou forma-efeito, como o define Hartmut Rosa (2019), no qual a vibração de um corpo estimula o outro a produzir a sua própria frequência — legível na pintura do artista reagindo à poesia daqueles que considera pertencer a essa sua comunidade de vagabundos; e uma outra ressonância, de natureza fenomenológica, no sentido em que lhe atribui Lee Ufan em A Arte da Ressonância, antes referido, na qual «o espaço de ressonância define um espaço vazio na obra e uma superfície que ecoa as vibrações da atmosfera envolvente e a vitalidade que preenche a obra»2.
Interessar-me-ia agora reflectir sobre o lado oficinal do artista, sobre o perseverante exercício do atelier, fazer e desfazer, como um atleta de alta competição que, para lá do seu maior ou menor virtuosismo, necessita do treino constante para obter resultados crescentes. Vem isto a propósito da evidente destreza gráfica do trabalho de Avelino, no qual se pressente uma dedicação obsessiva do artista à prática do seu ofício, obstinado, metódico, repetitivo, como um calígrafo oriental que continuamente apura a capacidade de síntese do texto a cada gesto e assim reclama tempo para o seu tempo, o tempo da lenda que aqui não contarei, na qual Katsushika Hokusai se retira durante anos para desenhar tentilhões a pedido do imperador. Antes de ser arte, o ofício de um artista tem a humildade do operário, a discrição do artesão, daquele que repete o seu trabalho para mecanizar o seu gesto.
Trata-se de um tempo lento, de um tempo sem tempo, nem linear, nem circular, um tempo do artista entregue a si.
Avelino Sá resolve na oficina a dificuldade da tradução pictórica da palavra através da criação de palimpsestos, camadas de ceras que sucessivamente acumula
e raspa, de ocultação e revelação, de mistérios — que conscientemente mantém em suspenso — e que traduzem a evanescência das palavras, fazendo uso de um processo alquímico que o fogo permite, a encáustica, cuja utilização, a preparação dos suportes, o derreter da cera obrigam a uma enorme concentração e à disponibilidade para um processo longo, ritualizado e solitário. A encáustica possibilita-lhe também transpor a sua natural ansiedade, eliminando os tempos de secagem de outras técnicas, permitindo-lhe um ritmo contínuo e intenso de trabalho.
Como num mergulho em apneia, trabalha sempre com música, o que lhe facilita a concentração e a necessidade de estar totalmente absorvido, esquecendo-se de tudo o resto num processo de inebriamento, envolvido pela presença dos odores das ceras e das terebentinas.3 É essa intensidade que se intui, de forma nunca explícita, no resultado do seu trabalho.
Na floresta. Notas sobre habitar a pintura
Bernardo Pinto de AlmeidaCom pleno mérito, mas poeticamente, habita o homem esta Terra. Mas não é mais pura a sombra da noite com as suas estrelas, se assim me fosse dado dizê-lo, do que o homem que se diz ser uma imagem do deus. Há nesta Terra uma medida? Não há.
Friedrich Hölderlin, «Num azul amen o »1
1.
O trabalho de criação de Avelino Sá elabora-se, desde há longos e produtivos anos, a partir de um intenso e profícuo diálogo com a Poesia. Não se trata, ainda assim, e neste aspecto todo o rigor é sempre pouco, de proceder ao que seria um exercício mais no âmbito daquilo a que a teoria da literatura designa como centrando-se numa relação de ekphrasis, ou ecfrástica, nem, muito menos, de restabelecer os termos da famosa máxima horaciana da Ut pictura poesis, longamente comentada ao longo dos séculos.
Bem pelo contrário, na pintura do artista, aquilo de que se trata é justamente de procurar perceber, através das formas, gestos e matéria próprios da pintu ra, de que modo se pode reconstituir um espaço e um tempo que antes se deram a compreender pela poesia. Não se trata, portanto, de traduzir uma expressão na outra, ou de a comentar, como é próprio da ekphrasis, mas, ao contrário, de simplesmente transferir um certo sentimento, colhido numa expressão fechada e com leis próprias como a poesia, para uma outra expressão, igualmente fechada e com as suas próprias e distintas leis como a pintura.
Na arte portuguesa do século XX, raríssimos foram os que ousaram abordar esta relação entre as artes, sem cair na dimensão ecfrástica, ou seja, ousando real-
1
A versão citada é retirada da recente tradução de Todos os Poemas de Hölderlin, por João Barrento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2021, p. 605. Todas as demais citações vêm dessa tradução.
mente capturar em uma o que naturalmente pertencia à outra. Cesariny decerto, mas era poeta ele mesmo, Álvaro Lapa, que se dizia escritor falhado, e Alberto Carneiro, todos se contando porventura entre os que, mais exemplarmente, o souberam fazer, procurando gerar um transporte de uma na outra. Cesariny, passando de uma a outra expressão sem sobressaltos de maior, Carneiro na escultura a partir dos aforismos de Matsuo Bashô, e Lapa formulando na pintura notável galeria de imagens em que se ilustravam as peripécias imaginárias (um pouco como se numa banda desenhada) de personagens conceptuais, de recorte quase heteronímico, como Abdul Varetti ou Milarepa, que ele mesmo construíra no espaço da dúvida que sempre o perseguiu de saber se era escritor ou pintor. Essa transferência, que na verdade se assume como operação de passagem, no sentido benjaminiano do termo, torna-se, assim, operação metamórfica, isto é, transformadora da própria expressão: atravessada pelo incêndio do sentir poético, a pintura de certo modo cede a (ou consente em) abrir-se a dimensões que desconhecia e, dessa sorte, a evidenciar o que de outro modo não poderia chegar a comunicar. Não se trata, pois, de representar dado aspecto do real, se quer do imaginário, mas, mais radicalmente, de abrir o corpo a outra dimensão comunicante própria do dizer poético (Dichtung), sem por isso se socorrer dos artifícios da escrita ou da palavra, que assim se vê transposta para outra me dida da expressão que faz da pintura acto poético ou expressão movida por semelhante energia (energeia) da que move esse mesmo acto, nascidos embora de fontes tão diversas.
O que nos importa, porém, em toda esta questão é saber se, nesse exíguo espaço que transcorre entre poesia e pintura, nesse intervalo por assim dizer, é possível encontrar um lugar para habitar. É a essa interrogação, porém, que nos convida, surpreendentemente, a obra de Avelino Sá, já que a sua questão maior, a mais alta que nessa obra se formula, consiste precisamente em questionar se é possível (e como) habitar a pintura. Habitar a pintura do mesmo modo que se pode chegar a habitar o mundo.
2.
Na década de 30, a ideia de poder existir uma relação de habitação com o Mundo, de natureza eminentemente poética, começava a ganhar peso crescente no pensamento de Heidegger, que, a partir do poema «Num azul ameno», de
Hölderlin, onde encontrou a génese do conceito, formulou a hipótese, a que regressaria mais tarde, do que seria a dimensão do habitar poético que expôs num célebre ensaio 2. Partia, assim, de um entendimento da poesia e do poético que muito devia ao Poeta, percebendo-os como forma de um nomear originário dos deuses e das coisas, instauração de um vir a ser. Já que, assumia, habitar poeticamente o mundo significava pressentir a presença dos deuses, ser tocado pela proximidade essencial das coisas, permitindo essa experiência ao homem o habitar esse entre — espaço que se dirá intervalar — que o situa entre a Terra e o Céu. Essa intuição, colhida nos poemas de Hölderlin, e neste em particular, viria a es tar na raiz dessa noção, doravante decisiva na concepção do filósofo alemão, não só da poesia como igualmente do habitar, ou da passagem habitante do humano no mundo, cuja estranheza ganhava, desse modo, uma medida sensível, susceptível de acolher o acordo humano.
3.
Ora é precisamente a procura de uma relação com o mundo e, mais em geral, com um habitar do mundo, o que se procurou desde cedo na prática artística de Avelino. Foi isso também decerto que o conduziu a procurar na poesia sensações e imagens interiores diferenciadas, e a ir encontrar aí, no espaço singular do poema, o lugar da inspiração. De facto, muitos têm sido os poetas e poemas que o artista tem procurado trazer para o campo da sua pintura, de Walser a Paul Celan, ou, agora, a Hölderlin, por cuja poética já antes passara. Ao grande poeta a quem, afinal, a poesia moderna tanto deve, precisamente por ter sido talvez o primeiro a ter entendido essa abençoada relação com o arcaico e o seu caminho estreito, deixando-se envolver pelo seu chamamento, que chega desde o fundo dos tempos, escutando-o nos gregos que tantas vezes transportou para a língua alemã. Mas tal acontece com a obra de Avelino, porque essa indexação a uma palavra poética, ou melhor, a uma fórmula poética — a um dizer e a um pathos que aparentemente só na poesia poderiam chegar a ter lugar, porque neles se exprime a possibilidade de uma outra mediação com o mundo — é justamente o que anima, depois, a sua própria criação.
2 Cf. «Hölderlin e a essência da poesia» in Heidegger, Martin, Approche de Hölderlin, trad. francesa, Paris, Gallimard, 1962, pp. 66-72.
Porque a obra (como toda e qualquer obra) necessita, sempre, para poder existir, de passar por, ou de encontrar uma qualquer mediação. Seja a forma própria de um estilo (clássico, moderno), de uma escola (o Impressionismo, o Cubismo), seja, ainda, a de uma corrente (abstracção, figuração), seja, de outro modo, a de uma ideologia, a que procura dar uma imagem e uma representação. Sem mediação (isto é, sem um quadro referencial que a sustente e cujo discurso se torne perceptível) nenhuma forma plástica é verdadeiramente possível. Ao procurar a sua mediação fora da própria arte (neste caso na Poesia, na voz de certos poetas que a ergueram aos mais altos cimos), Avelino vai ao encontro dessa tradição, tipicamente moderna, de procurar a arte fora do quadro regular da própria arte, arrancando-a ao seu solo e levando-a para fora de si mesma, para um país distante onde já não se reconheça senão como limite, fronteira. É aí, então, que se produz o encontro com essa outra dimensão em que a pintura pode ir ao encontro da Poesia.
Aquilo de que se trata, nesta obra, é então de encontrar na Poesia, e na sua linguagem mais cifrada, um espaço que lhe sirva como mediador. Um mediador que possa operar de modo a descentrar a arte da representação, ou da significação articulada com um qualquer sentido que lhe seja interno, trazendo-a antes para o que seria da ordem de um exterior de si mesma. A grande questão da arte actual, que se mede constantemente com uma zona em infinita crise (de processos, de representações, de subjectividade, etc.), passa, portanto, por essa necessidade fundamental de convocar o que lhe possa servir de mediador.
4. Numa linhagem de aproximação franciscana à matéria do mundo, aqui li berta de todo o artifício, despido e despojado, portanto, de qualquer grandeza ou sentido de vontade enfática de proclamação, o trabalho do artista apela, antes, a esse sentido de outra experiência que se quer, desde início, observação puramente poética do mundo: pois que, como Hölderlin ensinou, e Heiddeger reiterou, é como poeta que o homem habita esta Terra. É desse modo que o caligráfico que tantas vezes emprega serve, na sua obra e com cada vez mais insistência, o propósito de fazer da imagem das palavras que se vão garatujando sobre a superfície, como se sobre um muro, uma zona de meditativo silêncio. Foi isso o que lhe permitiu, anteriormente, abordar pictoricamente a lógica económica, breve, sintética do Hai-ku japonês, tanto como a possibilidade imediata da comunicação
poética através de imagens concentradas (Dichtung), que podem ganhar vida na pintura do mesmo modo que as formas de escrita caligramática, ou ideogramática, operam em semelhante acepção de abordagem, meramente instrumental.
O dizer poético torna-se, deste modo, enfim sensível, mas agora através das imagens da pintura, numa inesperada metamorfose. Do mesmo modo que, por vezes, sobre um muro (na escrita apagada de um muro que alguém, em algum momento ali deixou) encontramos os vestígios dessa linguagem imanente do mundo que é também a da fala anónima dos homens e dos seus gestos que vem do coração do tempo. Também a grande poesia antiga era obra colectiva, de muitas anotações que muitos deixaram em fragmentos, ou passava de boca em boca, de geração em geração, como de algum modo nos foi restituído pela voz, ao mesmo tempo subtil e poderosa, de Hölderlin. Dela disse, e bem, Barrento, ser uma «poesia feita de restos: os restos colhidos na poesia do século que serviu de modelo3».
5. «O hóspede da casa do infinito» chamou Avelino Sá à sua exposição, encontrando o título em Hölderlin, e bem, porque dessa poética transcreve um novo sentido para o actual. O título reporta, igualmente, uma relação essencial com o acto de criação que é, evidentemente, a condição verdadeira da arte, apesar de quanto a pode limitar. Na sua promessa de infinitude, a arte oferece a cada um ser recebido, brevemente, na sua casa, proporcionando-lhe, por breves mas intensos instantes, o acercar dessa mesma infinitude. Porém, o humano está destinado à passagem e, neste mundo, apenas pode passar, não possuir, não ter, mas tão-só chegar a habitar. Assim, e tal como no poema «Os carvalhos», que refere os jardins «onde pacata a natureza vive», também a arte — esse toque raro com a infinitude que, sendo tempo, está aquém da passagem — irrompe da poderosa raiz. E nela, como escreveu o Poeta, «não me prendesse já à vida em sociedade o coração / que se não liberta do amor, e entre vós preferia morar». Porque tudo é transitório e nada pode chegar a agarrar a velocidade do mundo, o seu incêndio, a palavra poética alberga a humildade do dizer. E é isso (humildade aceita o nosso amor) que Avelino procura no poema, na Poesia, a cintilação própria do humilde, a 3 Op. cit., p. 7.
dimensão secreta e, no entanto, tangível, que permite habitar a proximidade do mundo, a sua vasta presença que, todavia, é em si mesma inapropriável.
E porque tudo é passagem sobre esta Terra, é que o humano deve habitá-la como o Poeta, desprendido de tudo, e no entanto ser cantante, capaz de celebrar os deuses cuja glória assiste: o vento, as águas ou o fogo. No poema «A viagem» (Die Wanderung ), decerto dos mais belos poemas de sempre, escreveu Hölderlin: «Dificilmente / o que habita perto da origem abandona o lugar»: e nesse simples dizer se configura todo o grande tema poético e filosófico do habitar, já que, na descoberta sobre a Terra dessa casa passageira que encontra no Mundo, e que o abriga, é que se centra o essencial da humana passagem neste Mundo, o essencial do que pode ser a sua inteligência, através da sua compreensão e mesmo da sua celebração. Relendo Hölderlin, o artista transporta para o interior da sua pintura o vestígio iluminado graças ao qual entrevê a consciência da sua e nossa razão de estar no mundo, e em imagens o celebra. Acto humano por excelência, esse, celebratório que, desmedido, junta de volta o humano ao Mundo de que parecia exilado, consagrando tal união. Conhecemos esse sentido primordial da unidade em outros artistas ou, melhor, reconhecêmo-lo: em Beuys, por exemplo. Persiste como presença de uma memória do próprio mundo, eco profundo, mas sensível, de extrema vontade de que o mundo se torne, sempre e sempre de novo, lugar habitável, casa do humano, abrigo. Essa nostalgia do lugar, Hölderlin a veio ensinar, antes de se remeter ao exílio na sua Torre de Tübingen.
Usando de processos a bem dizer alquímicos, proporcionados pelo emprego arcaico da encáustica — cera pigmentada que se aplica sobre superfícies de madeira e de secagem rápida —, vai construindo, tecnicamente, a obra, por procedimentos que não deixam de evocar os que, dantes, serviam a fazer tabuinhas de cera — as tabulae romanas cuja origem se perde na memória da Antiguidade, e de uso comum ainda na Idade Média. Placas incessantemente reescritas, fosse com as leis da cidade, ou preceitos de vida, mas cuja preparação pedia lenta e árdua tarefa, nomeadamente o aquecer da cera a altas temperaturas que permite derretê-la e misturá-la consistentemente com pigmentos de cor.
Usando de tais processos, o artista, qual alquimista, aplica artesanal e pacientemente essas matérias, densas e sensuais sobre as quais, depois, risca, escreve, rasura, ou simplesmente recobre de novas camadas que tornam o quadro imagem de enigmático palimpsesto. Este processo liga, desse modo, a sua pintura às imagens arcaicas da escrita, às intuições subtis que a constituem e a inscrevem muito
para além da lógica do sentido, e que convocam igualmente a ordem do que se podia em outros tempos caligrafar sobre essas tábuas, antes que a máquina de Guttenberg se tornasse dominante no mundo, normalizando as formas de escrita.
Pois do mesmo modo que cada língua apenas autoriza certas formas do dizer, também essa caligrafia dava outro peso e outros sentidos às palavras.
Poderia dizer-se então que, através de tais processos, Avelino parece resgatar os vestígios de uma voz que existiu antes (e que passa nas linhas, nas palavras, nos fragmentos dos poemas de Hölderlin), que vemos assim reaparecer como se sob a superfície das águas. Assim, a escrita que parece ir aparecendo nesta pintura não é, portanto, exactamente o mesmo que essa escrita de que usamos hoje correntemente, mas antes a projecção, inesperada, senão quase alucinada, de uma imagem da escrita, volvida agora signo. Ou seja, perdida do seu significado e do seu sentido para nos mostrar a imagem de palavras e de letras, por vezes colhidas em versos, termos rasgados, quais fragmentos de algum poema, e relançados ao real, com uma nova espessura. Escrevendo-os, ou reescrevendo-os — quase os garatujando na superfície da madeira, nessa tarefa infinita do escriba, que depois volta a sobrepor novas camadas e texturas de matéria e de cor, deixando quase apagados os fragmentos, quais memórias colhidas no vento — Avelino acerca-se do caminho da Poesia. Ou seja, dessa comunidade singular que, todavia, habita o mundo quase secretamente desde o início, e que cuida de o conservar ainda ligado a uma outra ordem. Assim ele inventa a sua própria comunidade, de vagabundos e de poetas.
Essa ordem mais alta da Poesia, de haver uma habitação do mundo como poeta, que nos veio lembrar Hölderlin, é, pois, o caminho da sua aventura, que é, ao mesmo tempo, de criação e espiritual. Como o guerreiro zen, Avelino atravessa, solitário, o mundo, sem se fixar na posse das coisas, desejando apenas ver, percepcionar o que o horizonte, a cada momento, tem para lhe revelar. E colher, dessa revelação, a luz substancial de que se fazem as suas enigmáticas pinturas. Saibamos acompanhá-lo nesse caminho e nessa aprendizagem.
A justa medida da mão
João Barrento
O que de nosso / temos, porém, é a justa medida da mão. Hölderlin, no poema «Timidez»
Esta exposição de Avelino Sá, como outras anteriores, vive sob o signo do encontro. Encontro entre um pintor que busca na poesia as suas fontes e, neste caso, um poeta das «órbitas excêntricas», Friedrich Hölderlin, um dia definido pela escritora Maria Gabriela Llansol numa frase que se ajusta bem ao efeito produzido por muitas das encáusticas de grande formato desta exposição: «um ritmo poético fugindo». E perguntamo-nos que razões levaram o pintor a escolher agora este poeta, «clássico» nos aspectos mais exteriores da sua poesia, e já moderno naquilo que antecipa e visiona, e sobretudo na linguagem nova que pratica. Provavelmente uma vontade de ir ao encontro do essencial, daquilo que permanece e nos sustenta, para lá dos circunstancialismos de qualquer momento histórico (tentar «agir no plano do universal», como escreve o Poeta numa carta, aos vinte e três anos). Algo que pode ser fundamental para levar a outras dimensões, a uma maior intensidade, um tempo como o nosso, que vive o instante, a superfície, parecendo não ter memória nem real capacidade de ver (como diz ainda o Poeta: «Para as grandes coisas, este mundo raramente oferece mais do que pequenos exemplos»).
É esse lado mais essencial e mais fundo que também a Obra de Avelino Sá nos tem dado a ver, ao escolher poetas singulares — Paul Celan, Robert Walser, agora também Hölderlin — que o acompanham e que ele integra nos seus trabalhos, inserindo neles a palavra para a fazer conviver com a subtileza do traço e o dinamismo da composição. É também o seu modo de nos convidar a sair da estreiteza do quotidiano e dos limites da representação mimética, para sermos por algum tempo «hóspedes da casa do infinito». Porque aquilo que vemos à nossa volta não nos leva de facto muito longe, e também já o Poeta, apenas com dezas-
sete anos, o sabia e escrevia em mais uma carta: «Aquilo que vejo agrada-me pouco… Sou sensível a muitas coisas por que milhares de outros passam apressados e indiferentes».
Por outro lado, vivemos um tempo que facilmente esquece algo que a Obra de Avelino Sá e os poetas com quem estabelece alianças põem em prática (mas a arte dominante nem sempre o faz): o necessário distanciamento do Eu, a projecção para a amplidão dos mundos (em Hölderlin), para o curso trágico da História (em Paul Celan) ou para o espaço minimal de existências sem ambições (em Robert Walser). Sem prescindir, naturalmente, da inalienável subjectivida de que a criação artística sempre exige, mas que aqui não se confunde com o hedonismo e o egocentrismo hoje reinantes. É o que lemos num célebre discurso de um dos poetas com quem Avelino Sá muito conviveu, «O Meridiano», de Celan: «Quem traz a arte diante dos olhos e no sentido… esquece-se de si. A arte provoca um distanciamento do Eu. A arte exige, numa direcção determinada, uma determinada distância, um determinado caminho». No universo de Avelino Sá enveredamos sempre por caminhos que nos levam para espaços culturais distantes daqueles que nos são mais familiares, mas que são terreno fértil para interrogações e para o necessário autoquestionamento. Propostas poéticas e plásticas que, lembra ainda Celan a propósito da poesia, implicam uma mudança na respiração (de quem cria e de quem vê), a escolha do caminho da montanha, como o Zaratustra de Nietzsche, e não o caminho mais fácil e comum da planície dos dias, ou da imagem mais óbvia.
Nas telas de Avelino Sá tais caminhos são-nos sugeridos pela dinâmica caligráfica do preenchimento do espaço (é preciso, literalmente, «ler» (n)o quadro), das linhas e das formas, muitas vezes precisamente alusivas a montanhas, rios, florestas, nuvens — tudo o que sempre esteve aí, disponível e enigmático, para lá das veredas estreitas do quotidiano. Uma dinâmica que faz vibrar, com a cor, toda a superfície da tela — e talvez também o espaço interior de quem vê, aquela dimensão do «Aberto» que, sugere Rilke, só podemos captar por um olhar de dentro, livre do hábito e do preconceito. Percebemos então como a poesia de Hölderlin habita a tela, pela disseminação das suas palavras e pela presença de linhas e formas ditadas por motivos centrais dessa poesia — ainda e sempre rio e montanha, árvore e casa, o impulso ascensional ou a mesa da Torre; e também, na segunda série, de formato menor (A Torre, tinta-da-china e grafite sobre papel), a máscara, as várias máscaras dos anos da loucura mansa, quando «Hölderlin principiou a
encher a testa com a sua loucura nascente» e «sentiu uma grande ausência; a sua cabeça ia abandoná-lo» (Maria Gabriela Llansol, Hölder, de Hölderlin)1. Poderia dizer-se, corrompendo a célebre fórmula horaciana, que o princípio desta forma particular de co-habitação é agora: cum pictura poesis. Mas, de que modo coexistem aqui pintura e poesia? Nas grandes encáusticas de Avelino Sá, nascidas da cumplicidade com Hölderlin, as palavras disseminadas pelo quadro não são instrumentais nem meramente decorativas, remetem, como ecos, para a fonte de onde provêm, e tornam-se parte integrante de uma composição «orgânica» (na medida em que isso é possível numa obra de arte), ou pelo menos rastos de uma memória própria do poema, de imagens que ficaram da sua leitura, funcionando assim a tela como as tabuinhas de cera do «bloco mágico» da memória para Freud, com as suas várias camadas. A co-habitação é agora a de seres-de-palavras, imagens verbi-visuais, com linhas, formas e cores, que se transformam em focos enigmáticos ao se darem a ler/ver muitas vezes na língua original, o alemão. Criam assim, com esse outro alfabeto minimal feito de linhas, um efeito de estranhamento e atracção que desperta a atenção de quem contempla essa floresta de símbolos como quem se entrega a uma «oração natural da alma» (precisamente a atenção, assim definida por Malebranche). As palavras, nítidas ou evanescentes, são aqui o corpo ou o eco dessa oração profana de uma arte que não aspira a nenhum altar.
Nesta co-habitação da pintura de Avelino Sá com a poesia de Hölderlin haverá laços conceptuais e formais, motivos comuns, uma visão do mundo partilhada e sobretudo uma gramática processual que é tanto dessa poesia (única na sua época) como desta pintura (também ela relativamente isolada na nossa contemporaneidade). O fio condutor dessa gramática, que é todo um programa, parece ser o de uma ideia que Hölderlin terá formulado um dia numa simples frase: «Tudo é ritmo»! O Poeta estaria a pensar, tanto nos grandes ritmos do cosmos e da natureza como nos modos de organização da linguagem no poema, que no seu caso se transformará, nos grandes hinos, odes e elegias, numa partitura com efeitos rítmicos singulares: a cesura, a suspensão, a coexistência
1 Esta segunda série sugere, em todos os quadros, uma cabeça visualmente perturbada e perturbadora, como se a loucura levasse «a mente a estar com o poema, e o corpo ausente» (Llansol). São máscaras como as que enchem o filme Scardanelli, de Harald Bergmann (de 2003), ocultando o rosto de um Hölderlin transfigurado, nos anos da Torre.
do poético e do não-poético, a rima ou a sua ausência… Ritmos não fluidos mas sincopados, como as grandes superfícies das encáusticas de Avelino Sá, sem réstia de mimetismo ou de narrativa, vivendo apenas do ritmo espacial gerado pelos seus signos, numa alternância entre cheio e vazio, denso e leve, imagem e palavra. Num caso como noutro (e como já se disse da poesia de Hölderlin), o ritmo parece ser anterior ao sentido. As formas, confessa Avelino Sá, surgem-lhe sem saber bem como. Também da poesia de Hölderlin se disseram já coisas semelhantes: «A melhor forma de explicar aquele ritmo seria dizer que alguma coisa para lá do poema intervém na poesia» (Walter Benjamin); ou «Todo o texto escrito de Hölderlin é uma nota para qualquer outra coisa» (o cineasta Hans-Jürgen Syberberg).
Este predomínio do ritmo sobre o sentido explica um dos traços mais evidentes da poesia mais conseguida de Hölderlin (e também destas obras de Avelino Sá), que Benjamin designa como «o grau zero da expressividade», pela via da contenção e da depuração. Estamos em ambos os casos perante poéticas que incorporam «o ritmo em sentido superior», obedecendo, dirá Hölderlin, a uma «lei calculável» sem cálculo, feita só de ritmos. E o grau zero da expressividade traduz-se então numa fuga a qualquer forma de emotividade, narração, representação, na «resistência ao excesso e ao pathos» (propósito expresso pelo Poeta numa carta ao editor das suas traduções das tragédias de Sófocles, Friedrich Wilmans). O resultado é agora, nas obras desta exposição, o de uma ritmicidade inesperada da superfície do quadro — um quadrilátero cromático preenchido pelo jogo ritmado de formas e linhas significantes, que a necessária atenção poderá relacionar com o universo poético e também biográfico de Hölderlin. Num processo sempre controlado (o da construção da obra) imiscuiu-se um princípio ordenador que é da ordem do intuitivo. E entramos, no poema ou no quadro, na esfera paradoxal de «um abismo muito alto» (as profundezas da alma e a transcendência de um qualquer «deus por vir»), de um «redemoinho-poema» ou do «poema-poente… fazendo rodar o poliedro do tempo» (as expressões são de M.G. Llansol, em Hölder, de Hölderlin).
E o quadro emerge assim, como o poema, feito enigma fértil: entre a densidade leve e a leveza densa, como o poema de Hölderlin, que adensa a palavra sem a tornar pesada, que é a um tempo obscuro e luminoso. Neste equilíbrio instável da criação reside, porventura, «a justa medida da mão», a do poeta e a do artista.
À Revelia: Mit Unterthänigkeit, Avelino Sá
Eduardo Calheiros FigueiredoSão um enigma as puras origens.1 Friedrich Hölderlin
Quem quer encontrar a obscuridade deve procurá-la no dia, ao olhar o dia, tornar-se, ele mesmo, dia:
Enigma, é esse brotar puro que brota Profundidade que tudo estremece, o dia que vem.2
Maurice BlanchotFoi com o poema «Der Frühling», cujo primeiro verso Es kommt der neue Tag vem justamente anunciar esse «novo dia que vem», que Avelino Sá veio retomar o seu diálogo com Friedrich Hölderlin. Assenta, pois, no vibrante trabalho Scardanelli (2021), onde se inscreve esse poema, o feliz regresso a esta «pura origem» — isto, se pensarmos na descendência, a de Paul Celan e de Robert Walser, que, com fundamento, é atribuída ao poeta. E veemente é o retomar deste rumo, iniciado há sensivelmente trinta anos, de que a obra negra Na Floresta (Im Walde) (1993), também presente nesta exposição, se reporta gesto evocativo. Por contraste, dir-se-ia agora mais solar, a ordem deste reencontro. Na encantatória cor desse primeiro trabalho, de onde terão partido todos os demais, dir-se-ia refulgir,
1 Cf. Friedrich Hölderlin, Todos os Poemas seguido de Esboço de uma Poética (trad. João Barrento), Assírio & Alvim, Maio de 2021, pág. 435. No original, «Ein Räthsel ist Reinentsprungenes», trata-se, eventualmente, do verso de Friedrich Hölderlin a que Maurice Blanchot se reporta na epígrafe que lhe é dedicada, «Enigma, é esse brotar puro que brota».
2
Cf. Maurice Blanchot, La part du feu, Éditions Gallimard, 1949, pág.132, tradução nossa. Sendo de aludir que o último verso transcrito, «Profondeur qui tout ébranle, la venue du jour», na tradução que ora se ensaia «Profundidade que tudo estremece, o dia que vem», não encontra eco na obra de Hölderlin, tratando-se de uma conjugação em verso, ou leitura, proposta por Maurice Blanchot.
se quiséssemos recorrer às palavras do poeta, «a paz perfeita. Vermelho de ouro»3, uma calorosa e diurna suspensão, zénite do entardecer onde se impõe o sol, a sombra: decalques impressivos fazem-se notar na superfície da encáustica, ecoando, como um sopro evanescente, esses versos delicados que o poeta dedica à Primavera: «Vem com os dias calmos o fulgor, / Em flor também a noite, os dias claros, morrendo, / descem do céu, lá de onde vão nascendo.»4
Matéria pobre, esta? Assim será, porventura. Mas se acaso o aparenta, a linguagem de Hölderlin, se aparentam ser pobres as palavras às quais recorre, pobres, os seus monótonos e humilíssimos temas, a verdade é que, como realçou Maurice Blanchot, o seu movimento eleva-a acima de qualquer outra. No seu caso, «o poema não tem outro objecto senão o dele mesmo, a poesia, mais fortemente do que qualquer outra, é aqui verdadeira e real, verdade que lhe dá o direito de dispor do restante, e por princípio, de tudo»5. Por essa razão, colocar Hölderlin em causa não deixará igualmente de implicar os mais insondáveis obstáculos, como também adverte Blanchot, levando-nos a constatar «uma existência poética tão forte que, sendo a sua essência revelada, seria ela mesma capaz de provar a sua própria impossibilidade e prolongar-se no nada e no vazio, sem cessar de se cumprir»6. Poderíamos então dizer, como uma vez terá dito Ghislaine a Christian Bobin, sublinhando o seu carácter «intimidante», que estamos perante uma poesia «demasiado simples e demasiado grande ao mesmo tempo»7. Este último, por sua vez, não deixará de escrever nos anos que sobrevieram à morte daquela: «Leio Hölderlin. Deveria dizer, mais exactamente: bebo-o. Os seus poemas são como a água de uma torrente. Uma escuridão verde e gelada. Um escoamento de escuridão.»8 Não deixa de ser curiosa a vitalidade da imagem que Christian Bobin oferece, o recurso flagrante, sem grande ornamento, que faz a uma cor, cuja frescura, passível de ser sorvida, como diz, fosse bastante para escoar a es curidão. Dir-se-ia que também Avelino Sá conhecerá este gesto frutífero, e de alguma forma que não saberei enunciar, assim o mostra, nestes trabalhos. Se é verdade que por umas vezes incorpora os poemas, transcrevendo-os por inteiro
3
4
5
6
Cf. Friedrich Hölderlin, op. cit., pág. 525.
Cf. Friedrich Hölderlin, op. cit., pág. 565.
Cf. Maurice Blanchot, op. cit., pág. 118.
Cf. Maurice Blanchot, op. cit.
7
8
Cf. Christian Bobin, Auto-retrato com Radiador (trad. Luís Matos), Flâneur, 2022, pág. 156.
Cf. Christian Bobin, op. cit.
na sua pintura, noutras sacia tal sede, qual leitor atento, bastando-se com um verso apenas, ou nem isso: como faz nessa conjugação curiosamente elíptica «Dos jardins venho até vós / e entre vós preferia morar!» de Os Carvalhos (Die Eichbäume) (2021), na qual resgata somente o início e o fim do poema, sem recorrer a qualquer verso por inteiro, ensaiando assim, com mãos inventivas e olhos pacientes, uma descontínua continuidade, sem deixar de concentrar, no vazio convivial da encáustica, aquilo que esvazia da literalidade enunciativa do poema, gizando a branco (embora subterraneamente?), num verde que viceja, geométricas sugestões que, na sua deliberada incompletude, ora lembram incertos elementos vegetais, ora imarcescíveis fontanários, correntes, quedas de água, elementos suspensivos que aqui e ali, embora sem os repetir por completo, se vão renovando ao longo de vários trabalhos, como em A Lágrima que no Bosque se Soltou Era Tua (Die war sie, die Trane, di im Haine) (2022), No Silêncio do Bosque (2022) ou A Viagem (Die Wanderung) (2021), quais esboços essenciais, e portanto, remissivamente puros, resultantes de uma adoração digressiva que o próprio artista procura aceder através da pintura e que é, em si mesma, uma exaltação do bem-estar no mundo: «A fonte rumoreja caindo / De argênteas e sagradas taças, / De mãos puras quando, tocado / Pelos raios quentes / O gelo cristalino e, derrubado / Pela leve carícia da luz, / O pico nevado inunda a terra / Com água puríssima.»9
Aludimos acima ao respirável vazio destas pinturas, ao júbilo que imediatamente fazem influir as suas cores vibrantes, mas será ainda de notar o carácter suspensivo e apaziguador que em muitas delas sobrevém, sublimado pela presença quieta de vários elementos geométricos, com a excepção, dir-se-ia, do vertiginoso E Cada Dia Vou por Outro Caminho (Wohl geh’ ich taglich) (2022), que singularmente nos impõe um outro olhar, convulso, uma miríade de imagens, uma visão que se obstina, um voo que se debruça sobre o ilimitado, onde, como de resto em Scardanelli (2021), se acentuam sombras, trilhos, repetindo-se, não verdadeiramente versos, mas desígnios repartidos à sua própria essência ou fulguração: silêncio, éter, floresta, olhos, belo, mundo, pássaros, terra, flores, montanha, amor, sublime, lua, sol, rio, paz, nuvens, crepúsculo, rio, sereno, noite, movimento, espírito, fulgor, olhos, natureza, bosque, planta, céu, coração, deuses, sopro, estrelas, escuro, templos — e muito mais haveria a dizer sobre este trabalho, guardar, com os olhos reter, sim, Vieles aber ist zu behalten, mas para ainda citar o poeta, tenta-se isto: «sem asas,
9 Cf. Friedrich Hölderlin, op. cit., pág. 430.
não se pode / agarrar o mais próximo»10, resgatando assim os versos de um poema que o artista convoca, embora sem o transcrever, na pintura Der Ister (2021), obra que, aliás, igualmente vem sugerir movimento, mas num sentido que se diria oposto, ou não tivesse o próprio poeta realçado «este parece quase / correr para trás e / eu julgo que deve vir do Oriente»11, onde uma perspectiva encimada se insinua, empreendendo, o artista, vincos e rugosidades à superfície encáustica, como que invocando o incerto movimento das águas do Danúbio cantado por Hölderlin, circunscrevendo a referida impressão quatro ínfimos elementos negros, colocados, um a um, com inquietude, nas respectivas extremidades, ligeiramente desarticulados, cingindo a pintura sem sugerir suspensão, desapiedada, sim, ainda que no encalce do poema: «mas o que aquele grande rio faz / ninguém sabe.»12
Será, portanto, essa a pretensão última destes trabalhos de Avelino Sá? Ensaiar o que não é aparente, desconjuntar a complexidade, qual pintura profusa que é também leitura e reescrita, mostrar como simples aquilo que sabe não ser simples e que é, apesar de tudo, simples? Mostrar a sobrevivência sob esta perspectiva singular, esse magro consolo que é, em si, consolador, como que se questionando (e é, parece-nos, uma questão que Avelino Sá vai retomando ao longo da sua obra) se «renunciar à grandeza, não será, também ela, uma ordem de grandeza?»13 como se questionou Robert Walser relativamente a Hölderlin? Mostrar-se solar, sim, solar, quando tudo se revela negro? Negro, como negros e sufocantes são os inúmeros desenhos da série A Torre (Der Turm) (2021), quais olhares cingidos de um quotidiano onde o longe não se alcança mais, onde a vida se afasta, longínqua, desenhos que, de alguma forma, dialogam com alguns dos trabalhos da presente exposição, designadamente a obra com o mesmo título, A Torre (Der Turm) (2021), impressiva, na opacidade que projecta (pois não é aqui, dir-se-ia, que a infinitude reside), e em Mnemosyne (2022) ou Brot und Wein (2022), trabalhos que aludem, tão-só, a uma mesa e que, de alguma forma, assumem uma continuidade ou relação com os frágeis esboços que também compõem a série de desenhos, como se feitos sobre uma mesa, neles se procurando o mais ínfimo gesto de mão, a simplicidade mais desconcertante.
10
11
12
13
Cf. Hölderlin, Poemas (trad. Paulo Quintela), Relógio D’Água, 1991, pág. 431.
Cf. Hölderlin, op. cit.
Cf. Hölderlin, op. cit.
Cf. Robert Walser, «Vie de poète» (trad. Marion Graf), Points, Éditions Zoé, 2010, pág. 398-399; tradução nossa a partir da versão citada.
Mas o que dizer da utilização da cor? Com invenção e amplitude, ensaia-se a alegria nestes trabalhos, recorre-se ao amarelo, ao verde, ao azul, até ao vermelho, cores vívidas, sim, mas ao mesmo tempo dir-se-ia que há derivações, como de resto também acontece na oposição entre a suspensão e o movimento, isto é, há trabalhos que foram concebidos para justamente os pôr em causa, a esses mais exultantes, como um pensamento que não cessa, ininterrupto colocar de hipóteses. Com relevância, será de referir a obra que, não por acaso, dá nome à exposição, O Hóspede da Casa do Infinito (2022), que, de alguma maneira, se assemelha em oposição (embora não total) relativamente aos trabalhos em que a cor exulta. Se é verdade que o elemento da fonte se inscreve ainda, resoluta, como em vários dos trabalhos já aludidos, na obscuridade, ao contrário daqueles, há um elemento que tremula, um incerto e perecível pavio — como que lembrando, como escreve Maurice Blanchot, que «se a morte foi a tentação de Empédocles, para Hölderlin, para o poeta, a morte é o poema. É no poema que almeja alcançar o momento extremo de oposição, o momento em que é levado a desaparecer e, desaparecendo, a levar mais alto o sentido do que só pode ser realizado nesse desaparecimento.» E se é verdade que nada se elucida, dir-se-ia, ainda assim, que algo se insinua neste enigmático trabalho, aparentemente solitário face aos outros, algo que se relaciona com esse desaparecimento, com a fragilidade, fazendo-nos ver melhor porque são vibrantes todos os demais, porque neles se pratica o escoamento da escuridão a que alude Bobin.
Serão exuberantes os poemas de Hölderlin? Fulgurante, a obra que nos deixou? Certamente que sim, como aliás se deixou claro, mas também aqui haverá uma ambivalência se atentarmos ao ritmo encantatório dos poemas que escreveu entre 1784-1806 e os colocarmos, lado a lado, com os normalmente apontados aos anos da sua loucura, de 1806 em diante: mais frágeis e, porventura, de menor fôlego ou, como apontou Robert Walser, à revelia dos ilustres professores de literatura: poemas finalmente aliviados de solicitação e, por isso e afinal, felizes (ou, pelo menos, não tão infelizes como os ilustrados vaticinavam).14
14
Cf. Carl Seelig, Caminhadas com Robert Walser (trad. Bernardo Ferro), BCF Editores, 2019, pág. 64: Alusão ao que é dito por Robert Walser, embora pensando certamente em si, a propósito da reclusão do Hölderlin nos seus últimos trinta anos de vida: «poder ficar a sonhar num canto discreto, sem exigências constantes, não é certamente um martírio. As pessoas é que fazem disso um martírio!»
Mit Unterthänigkeit, sim, «com humildade», como recentemente traduziu João Barrento, assim foi a modéstia com que Hölderlin se declarava ao assinar esses últimos poemas, subscrevendo-se assim, com o nome de um outro, Scardanelli. Dir-se-ia ser também assim que Avelino Sá se endereça, reverente, à luz desta poesia. Mas, olhando estes seus trabalhos, não deveríamos dizer tratar-se de um trabalho assertivo, isto é, exuberante na reverência que faz? Incansável e incessante, no pensamento que associa o gesto da pintura à leitura? Assertivo, sim, apesar da ambivalência? Assertivo na própria ambivalência? E recordo-me ter sido assim que Jorge Silva Melo se terá exprimido, quando, na presença de Avelino Sá, lhe fui enviando imagens deste trabalho, colocando-o sempre ao corrente, sim, «sumptuoso» — foi o que, expectante e atento como sempre, logo me devolveu. Perante tal clareza de pensamento, questionei-me se a sumptuosidade se quererá sempre como antónimo de singeleza. Isto é, se considerarmos que a singeleza pode ser — e muitas vezes é — sumptuosa, poderá ser, o seu contrário, igualmente admissível?
É sob este enigma, e iminente contradição, que Avelino Sá regressa a Friedrich Hölderlin enquanto objecto de pintura (não esqueçamos que a sua pintura se rege sobretudo e inteligentemente aí, entre o imanente e o aparente, o desvelo e o velamento, a revelação e o segredo), regressando, com laboriosa alegria, a esse indisponível que a sagrada palavra do poeta atende, esse indisponível que a sua Natureza afirma continuamente, dir-se-ia, em suma, que nestes trabalhos se procura um recolhimento, sim, mas exultante, obstina-se uma singeleza, sim, mas laudatória: «uma mozartiana felicidade?». É como se lhe ouvisse a voz, como se lesse o encantamento das suas palavras, olhasse o seu olhar brilhante, sempre em obstinada procura desta última: sim, Jorge, meu amigo, uma dilacerante felicidade.
Aliás, Hölderliniana, como apontou Robert Walser, à revelia.
Lista das obras
9-18
Vistas da exposição O Hóspede da Casa do Infinito na Galeria Fernando Santos, Porto, de 19 de Março a 7 de Maio de 2022
27
Dionysos , 2022 Encáustica sobre madeira 150 × 150 cm
28 Fulgor Crepuscular , 2022 Encáustica sobre madeira 65 × 80 cm
29
Lamentos de Ménon , 2022 Encáustica sobre madeira 65 × 80 cm
31
Céu e Terra (Himmel und Erde) , 2022 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm
33
A Viagem (Die Wanderung) , 2021 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm
34
Dias Calmos (Stille Tage) , 2021 Encáustica sobre madeira 120 × 120 cm
35
O Belo Sol de Verão (Des schönen Sommers Sonne) , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 150 cm
36
O Passeio #1 (Der Spaziergang) , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 150 cm
37
O Passeio #2 (Der Spaziergang) , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 150 cm
38
Der Ister , 2021 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm
39
Tempestade (Sturm) , 2021 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm
40
Pão e Vinho (Brot und Wein) , 2022 Encáustica sobre madeira 65 × 80 cm
41
O Eremita da Grécia (Der Eremit in Griechenland) , 2022 Encáustica sobre madeira 80 × 65 cm
43
Os Carvalhos (Die Eichbäume) , 2021 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm 45
E Cada Dia Vou por Outro Caminho (Wohl geh’ ich täglich) , 2022 Encáustica sobre madeira 200 × 150 cm
47
No Azul Ameno (In lieblicher Bläue) , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 200 cm 49
Alpes (Alpen) , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 200 cm
51
Scardanelli , 2021 Encáustica sobre madeira 150 × 200 cm
52
Na Floresta (Im Walde) , 1993 Encáustica sobre madeira 22 × 29 cm
53
E o Que Ilumina se Abrirá ao Nosso Olhar Aberto (Und dem offenen Blike offen der Leuchtende sein , 2022
Encáustica sobre madeira 80 × 65 cm 59
A Torre #1 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 60
A Torre #2 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 61
A Torre #3 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 62
A Torre #4 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 63
A Torre #5 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
64
A Torre #6 (Der Turm) , 2021
Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
65
A Torre #7 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 66
A Torre #8 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
67
A Torre #9 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
68
A Torre #10 (Der Turm) , 2021
Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
69
A Torre #11 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
70
A Torre #12 (Der Turm) , 2021
Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
71
A Torre #13 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
72
A Torre #14 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
73
A Torre #15 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
74
A Torre #16 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
75
A Torre #17 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
76
A Torre #18 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
77
A Torre #19 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
78
A Torre #20 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
79
A Torre #21 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
80
A Torre #22 (Der Turm) , 2021
Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
81
A Torre #23 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 82
A Torre #24 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
83
A Torre #25 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
84
A Torre #26 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
85
A Torre #27 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
86
A Torre #28 (Der Turm) , 2021
Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
87
A Torre #29 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 88
A Torre #30 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 89
A Torre #31 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 90
A Torre #32 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 91
A Torre #33 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm 92
A Torre #34 (Der Turm) , 2021 Tinta-da-china e grafite sobre papel 32 × 29 cm
© Avelino Sá, 2022 textos © os Autores
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1.ª edição, Dezembro de 2022 ISBN 978-989-568-031-3
Fotografia: Pedro Lobo Revisão: Helena Roldão
Depósito lega l : 508181/22 Pré-impressão, impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro SA