George Bernard Shaw «As Aventuras de Uma Negrinha à Procura de Deus»

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TÍTULO DO ORIGINAL: The Adventures of the Black Girl in her Search FOR God

© SISTEMA SOLAR, CRL (2020) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2020 ISBN 978-989-8833-55-6 Ilustrações de John Farleigh REVISÃO: DIOGO FERReira DEPÓSITO LEGAL 000000/20 este livro foi impresso NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL

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Irlandês nascido em Dublim no ano 1856, e terceiro filho antecedido por duas irmãs. Num futuro livro (Sixteen Self Sketches) será grande o seu esforço para se mostrar explicado pelas contingências da infância. O meu pai era pobre e não tinha êxito nos negócios, diz ele, para acrescentar: Nada fazia que interessasse à minha mãe; e não conseguiu desembaraçar-se da sua miserável e vergonhosa embriaguez (mais tarde acabou por fazê-lo) antes de ela operar uma mudança nas suas relações. Se não tivéssemos acrescentado à nossa mansidão e à nossa doçura naturais a imaginação, o ideal, o encanto da música, o encanto dos esplendorosos pores-do-sol e o espectáculo do mar, nem se imagina que cínica grosseria teríamos adquirido. Com este pai estonteado pelo vinho e uma mãe soprano caseiro que ao correr do dia gorjeava, indiferente à educação dos filhos e desatenta à sua necessidade de um esteio materno, George Bernard Shaw construiu-se solitário, tímido e egoísta: Embora eu não fosse vítima de maus tratos, por ter pais incapazes de cometer um qualquer acto desumano, eles esqueciam-se de mim; isto determinou que eu construísse uma horrível auto-suficiência, ou antes, a ânsia de um jejum perante festins imaginários; o meu muito retardado desenvolvimento fez de mim um animal traidor a tudo quando fossem puros afectos. (Esta vocação para relações frias teve mais tarde duas excepções:

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a de uma esbranquiçada ligação sentimental com a actriz Ellen Terry e a de um casamento — numa idade que já ia deslizando pelos quarenta — com a aguerrida feminista Charlotte Frances Payne-Townshend.) George Bernard Shaw teve uma adolescência arrastada com bastante esforço pelos provincianismos de Dublim e sentia-se vítima da quase indigência que o vinho paterno não remediava, que os gorjeios maternos só musicavam; indigência que foi, num dia de maior sorte, salva por um protector abastado que a todos acolheu na sua casa. Era músico e chamava-se George J. Vandeleur, voluptuoso apreciador de Mrs Shaw e sobretudo dos seus trinados. Tempos depois, Vandeleur resolveu ir estrategicamente para Londres; e Mrs Shaw, sempre a trinar e a acalentar o projecto de uma escola de música na capital inglesa, teve com este anseio o pretexto de o acompanhar, levando consigo as suas filhas. Mr Shaw e o seu único filho continuaram na Irlanda. Mas George deixou, com a maioridade dos vinte anos, de suportar o que até ali sentira como um sentimental apelo da terra onde tinha nascido. Dublim passou de repente a mostrar-se com o seu freio, o obstáculo que lhe negava a realização de aspirações mal ajudadas pelo que tinha sido uma invencível reacção contra a escolaridade oficial, mas que sobreviviam pelas certezas de um talento na escrita e de uma sólida cultura autodidacta. Em Londres estavam os jornais, os editores, os teatros que já suscitavam entusiasmos anunciadores do futuro dramaturgo; em Londres estava a Cultura. — A Irlanda sentimento, a Inglaterra acção — dizia ao querer explicar esse abandono do pai e da terra natal, ao mostrar o seu inabalável empenho em abrir uma porta, a porta por onde seria mostrado ao mundo o escritor George Bernard Shaw.

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Esta mudança começou por recuperar como som de fundo os trinados maternos; mas agora acompanhados pela insistente lenga-lenga dos solfejos, dos vocalizos que na sua chateza cromática nada teriam a ver, por certo, com os vocalizos da melodiosa inspiração de Rachmaninov. Não lhe foi fácil esta queda na cidade grande e hostil. Mas ele acabou, de acaso em acaso, por conhecer o reputado crítico de teatro William Archer que o ajudou a ter voz como jornalista. Bernard Shaw foi ajudado por esta tutela e fez-se crítico literário, musical e teatral. E Archer também o contagiou com a admiração por Ibsen que iria acompanhá-lo até ao fim da vida e influenciá-lo na feitura da suas futuras obras como dramaturgo. Entre 1884 e 1888, a par do trabalho de crítico sentiu-se romancista, um romancista meio ensaístico. E este impulso mostrou-o com cinco romances sem nenhum êxito, que os editores recusavam e acabavam por ser publicados em edições laterais sem chancela, pagos hoje a bom preço por coleccionadores. Este Shaw desanimado romancista e sem vocação para a luta (nunca lutei; subi sempre por fermentação), foi de novo incitado por Archer: — Por que não tentas a dramaturgia? Qualquer coisa faz em ti o anúncio de um autor de comédias! George Bernard Shaw passou a ser um autor de comédias; muitas (que chegaram a cinquenta e sete e a trazer para uma modernidade teatral, ainda rara naquele teatro inglês, lições bem aprendidas das comédias gregas e de Molière); onde talvez não houvesse a marca de um grande criador de personagens, mas com virtudes cénicas celebradas por um público que gostou de apreciar-lhe os diálogos onde reconhecia as naturalidades da trivial conversa, o humor, a ironia e os sarcasmos, os paradoxos, a engenhosidade com que criticava as instituições nacionais, o tom nessa

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época ouvido como de uma singular diferença, a voz metodicamente levantada contra a hipocrisia das moralidades vitorianas. A sua persistente defesa da «mulher nova», em pé de igualdade com os homens, ofereceu-lhe a admiração das feministas. Por isso, quando adoeceu em 1898, depois de um acidente que lhe partiu o fémur e magoou sem piedade o pé esquerdo (o meu pé inchou até ao tamanho de um sino de igreja), teve zelosos cuidados da feminista Charlotte Frances Payne-Townshend e logo a seguir um casamento que ela lhe propôs e se aguentou durante quarenta e cinco anos, por ele resumido na sua essencial vantagem com as palavras de uma carta a Janet Achurch: em vez de ir para a cama às dez, saímos e passeamos durante algum tempo entre as árvores. As peças teatrais de George Bernard Shaw tiveram grande êxito junto de um público encantado com a onda de subtilezas e elegâncias (à gentleman) que esgrimiam contra os já decadentes pilares vitorianos. («Nunca li uma réplica de Shaw sem sentir que ela melhorava o estado do meu humor», disse T.E. Lawrence — o da Arábia.) Bernard Shaw transportava-se através de prestígios dramatúrgicos sentidos pelo público como produto de um talento que era o de uma verdadeira glória nacional — hoje esmorecida por ter combatido e satirizado realidades que entretanto se afastaram do mundo e do interesse dos actuais espectadores. Mas ainda podemos, numa grande lista de títulos, lembrar os seus Cæsar and Cleopatra (1906) e Androcles and the Lion (1912), o seu Pygmalion do mesmo ano (que deu em 1956 origem à comédia musical My Fair Lady com música de Frederick Loewe) ou ainda uma Mrs Warren’s Profession, que é de 1893 — e mereceu até 1902 uma renitente proibição da censura inglesa.

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Em 1925, George Bernard Shaw ganhou o Prémio Nobel da Literatura, o que ainda mais relevo conferiu à sua obra reformista, corajosamente defensora da revolução soviética numa Inglaterra democrática e com forte solidez monárquica, incansável argumentadora dos malefícios da ordem capitalista. A sua sátira, que já tinha escolhido por duas vezes a perversão das religiões cristãs — em 1897 com a peça The Devil’s Disciple, em 1909 com a peça The Shewing-up of Blanco Posnet — em 1932 acrescentou-se na mesma onda com um regresso à novela — chamemos-lhe assim — As Aventuras de uma Negrinha à Procura de Deus (com o texto revisto em 1946), uma forma literária híbrida e, ao que parece, constantemente arrependida de ser uma prosa ficcionada e não ter um palco onde pudesse mostrar a sua despida jovem negra à procura de um Deus na selva da União Sul Africana; comandada neste inquérito por uma inspiração que muito deve ao Candide de Voltaire (e até sucede — nesta filiação que não quer de forma alguma esconder-se — que o principal protagonista conclui nos dois textos que para ele melhor será limitar-se a «cultivar o seu jardim».) O Prémio Nobel da Literatura, o grande prestígio britânico, dava agora pretexto a uma ampliada indignação dos religiosamente feridos perante este tom agnóstico que espalhava o seu zumbido sobre as versões de Deus coleccionadas nas páginas da Bíblia e do Corão, sobre o ateísmo de intelectuais que as consideravam ultrapassadas por inquestionáveis certezas da Ciência. E a incomodidade desta negrinha ainda era maior por se atrever a um casamento inter-racial num cenário que indiscutivelmente sugere o da União Sul Africana (feroz no seu apartheid) — provocação aos olhares democráticos e só teoricamente anti-racistas dos Ingleses.

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Nesta peregrinação, a negrinha encontrará o Iahvé vingativo de Noé, o Iahvé mais amável e argumentador de Job; duas versões de um Jesus que surge como jovem amável mas sem força carismática, e também como um mágico que serve de modelo à sua própria versão crucificada, esculpida por um pobre fazedor de imagens; encontrará um Maomé preocupado com as pregas da sua veste e sem saber como responder à menorização corânica da mulher; encontrará o profeta Miqueias, disposto a irar-se com qualquer referência feita à existência do Iahvé que pede sacrifícios feitos no seu altar; encontrará um São Pedro que aguenta o irrisório peso de uma Igreja só de papel… Mas esta sucessão de encontros — divinos, quase divinos ou até profanos — nunca proporcionará à negrinha o ansiado contacto com o Deus sublime que lhe tinha sido dado a imaginar pela missionária responsável pela sua conversão. Perante as solicitações de uma vida que entretanto se fazia terrenamente preenchida, a negrinha acabaria por distanciar-se do palco onde parecia divertido quebrar ídolos, esmagando-os a pancadas de moca. Esta novela voltaireana, escrita com oitenta e dois anos de idade, é o último e já desgarrado grande êxito de George Bernard Shaw, nessa época mais preocupado em organizar os definitivos dezasseis volumes da sua obra escrita, em surgir fotograficamente nos jornais sob os traços de uma velhice por todos admirada na sua lucidez, e a todos comunicada que era um milagre vegetariano. Mas em 1950, já ancião com noventa e quatro anos de idade, não aguentou as consequências laterais de uma desastrosa queda, e morreu.

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* A primeira editora em Portugal deste texto foi a «Livros do Brasil», que o escolheu para número 47 da sua colecção Miniatura. A «Livros do Brasil» surgiu em Portugal no fim dos anos quarenta do século XX com a intenção, sugerida pelo seu nome, de publicar textos brasileiros revistos gramaticalmente para o português europeu. A sobressair num panorama editorial que era pobre e pouco atento aos grandes destaques da literatura desses dias, foi uma bem acolhida rajada de ar novo e revelador de muitos autores que se tinham mantido distantes de uma oportunidade de leitura na língua nacional. Ficaram subitamente à disposição da literatura em português Somerset Maugham, Sinclair Lewis, Steinbeck, Aldous Huxley, Thomas Mann e muitos outros, acompanhados nesta divulgação por brasileiros, em maior dose Erico Verissimo e Lins do Rego. Mas… Ali, naquela rua Luz Soriano do Bairro Alto, e sem os leitores darem por isso, tudo era editado sob a vigilância de um implacável lápis softizador. Poderá argumentar-se que era preferível conhecer versões pontualmente suavizadas de autores com liberdades incompatíveis com a «decência» preconizada pela censura de Salazar, do que não os conhecer; que era preferível esta editora ter autorização de Verissimo e Lins do Rego para pôr reticências onde os seus originais brasileiros se mostravam por extenso, do que não haver nenhuma edição portuguesa da sua obra. Mas assim, com esta manhosa prática e durante muitos anos, enquanto outros editores portugueses não transigiam no que respeitava à força verbal dos originais (na sua linguagem ou na sua política) e eram mensalmente feridos por desastrosas «retiragens» do mercado, feitas ao sabor de sopros

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que chegavam à Pide alertando-a para a perigosa rebeldia de uns quantos que não reconheciam a saudável diferença que era ser português no meio de outros países de liberdades literárias devassas e politicamente perversoras, a «Livros do Brasil» teve uma vida serena, apenas com dois desaires: O Jubiabá de Jorge Amado, que as prudências da editora não tinham achado incompatível com as regras da decência portuguesa, e o livro de Aquilino Ribeiro sobre os reis portugueses, que se ficou por D. José I e o seu Grande Marquês, uma vez que lhe foi dada a sentença de não ser reeditado nem prolongado, como estava previsto e prometido pelo seu autor. Houve depois aquele três de Agosto de 68, o dia em que uma subversiva cadeira, que nem se dava por ela entre o mobiliário do forte de Santo António da Barra, ousou para si um importante papel político merecedor de escultura e monumento — ainda por fazer. E ao Salazar que tinha caído no chão de pedra, a dois passos de um Tejo-quase-mar, sucedeu a versão um pouco mais branda de um Marcello I. Esse Verão de Agosto surgiu a alguns optimistas com laivos de Primavera porque a Censura foi aconselhada a mostrar-se, com cautela e no que era possível, um pouco mais macia; com alguma abertura no noticiário dos jornais, desde que não se tocasse pelo lado certo na guerra do ultramar; houve filmes onde a tesoura poupava algumas audácias e até deixava seios femininos à mostra — a época que um crítico cinematográfico chamou «da escalada da mama»; houve salas de cinema com filmes russos; houve nas telas portuguesas um cinema francês que até se mostrava com generosidades sensuais do tipo Barbarella; e a literatura… respirou um pouco melhor. Vem tudo isto a propósito de George Bernard Shaw e da sua negrinha. Porque a editora «Livros do Brasil» sentiu que o lápis

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da softização não teria desta vez uma eficácia garantida; que a novela continha brisas capaz de agitar no mau sentido os guardas do cerejal e do olival; perplexa, decidiu: — E se fizéssemos uma nota prévia do género engana-tolos? — Mas nem todos são tolos! — São, se nos exceptuarmos a nós, os lúcidos directores desta editora. Pronto! Foi então redaccionada uma bondosa advertência: «Advertência ao Leitor «Antes que o leitor se disponha a acompanhar esta turbulenta negrinha — toda ela curiosidade e ânsia de conhecimento, querendo por força e à sua custa encontrar Deus, o caminho que conduz a Deus e à Sua ambicionada e pacificadora certeza — antes que o leitor prossiga através da floresta de enganos e interrogações por onde a negrinha se embrenhou, cumpre ao editor português desta obra de Shaw fazer notar que o texto bíblico nela consignado é o da vulgata adoptada pela Igreja Anglicana. «Sobre o texto em questão já de há muito a Igreja Católica se pronunciou e é evidente que as objecções e reservas postas pelo Autor não se referem ao texto pela nossa Igreja aprovado. «Não nos custa a crer que Bernard Shaw, achando supérflua esta nossa advertência, a não poupasse a uma das suas severas e irreverentes gargalhadas… Em todo o caso ela aí fica para uso, governo e tranquilidade do leitor português. O Editor.»

George Bernard Shaw talvez se risse, desde que alguma coisa lhe chegasse desta edição numa língua tão distante do seu querido inglês; e não o faria por ser causadora de uma advertência «supérflua», mas

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por estar impregnada de um muito característico chico-espertismo (não sei se haverá em inglês um termo que corresponda de forma tão expressiva ao mesmo sentido) disposto a convencer os leitores praticantes do catolicismo de Roma — tão afastados da leitura da Bíblia pela sua igreja — de que todos os incómodos deste texto só ferem a franja anglicana da religião cristã. Mas para terminar, mais isto: depois da revolução de setenta e quatro, a editora «Livros do Brasil» muito rapidamente deitou fora o seu já gasto lápis softizador e até se atreveu a alguns livros eróticos, confissões de sexo à solta, pertencentes à literatura clandestina do século dezanove. Quem iria imaginar que dentro de si escondia assim, bem guardada, uma tão tentadora cobra? A.F.

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— Onde está Deus? — perguntou a negrinha à missionária que a tinha convertido. — Ele disse: «Procura e encontrarás.» — respondeu a missionária. A missionária era uma mulher branca franzina, que ainda não tinha chegado aos trinta anos; um pequeno e estranho corpo com uma alma que não se sentia satisfeita no seio de uma família acomodada; que vivia na Inglaterra, a sua terra natal, e foi instalar-se na floresta africana para ensinar os filhos do continente negro a amarem o Cristo e a adorarem a Cruz. Era desde nascença um apóstolo do amor. Na escola tinha adorado alguns professores com uma idolatria à prova de todas as reprimendas, mas nunca prestou muita atenção às raparigas da sua idade e da sua posição. Aos dezoito anos começou a apaixonar-se por severos clérigos, e chegou a comprometer-se sucessivamente com seis. Rompia no entanto o compromisso quando chegava a altura decisiva; porque estas histórias de amor, ao princípio cheias de uma felicidade e uma esperança que atingiam o êxtase, acabavam por se tornar irreais e escapar-lhe ao entendimento. O clérigo desenvencilhado de tão súbita e repentina forma, nem sempre dissimulava a sensação de alívio e libertação; era como se descobrisse que aquele sonho não passava de sonho ou de uma espécie de

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metáfora que tinha dado expressão a qualquer coisa autêntica mas que não era, apesar de autêntica, real. Um dos rejeitados cometeu o suicídio; tragédia que lhe deu uma extraordinária alegria. Pareceu-lhe que era transportada desde um louco paraíso de felicidades falsas até uma região de realidades onde a dor intensa se transformava em transcendente enlevo. Isto pôs um fim às suas estranhas batalhas matrimoniais. Que afinal não se ficaram por aqui. Uma sua prima mundana com uma inteligência que lhe metia algum medo, chamou-lhe sem rodeios frívola e coquette; um dia acusou-a de brincar com os que tinham sido os seus últimos comprometimentos, tendo em vista outro suicídio, e advertiu-a de que muitas mulheres tinham sido por menos enforcadas. Apesar de saber que isto não era verdade, num certo sentido, e a sua prima por ser mulher mundana não podia compreendê-la, também sabia que continha, sob um ponto de vista mundano, uma boa dose de verdade. Para conseguir compromissos matrimoniais teria de renunciar a esse estranho jogo da sedução de homens, embora estivesse naquele momento segura de que nunca iria conseguir fazê-lo. Abandonou portanto o sexto clérigo e foi espetar a sua cruz na mais escura das Áfricas. E a derradeira perturbação que nela se manifestou, repudiada como um pecado, foi um relampejante ataque de raiva por esse clérigo se ter casado com a sua prima e, por ser inteligente e cheio de sabedoria mundana, ter chegado sem dar por isso a bispo. A negrinha, uma bela criatura de pele acetinada e músculos reluzentes que faziam a raça branca dos missionários parecer feita, por contraste, de acinzentados fantasmas, era

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uma interessante mas insatisfeita convertida; porque em vez de abraçar com suave docilidade o cristianismo que lhe era incutido, recebia-o com inesperadas e interrogativas reacções que forçavam a sua professora a improvisar réplicas doutrinais e a inventar evidências ao sabor do impulso do momento, ao ponto de não conseguir ocultar a si mesma que a vida do Cristo, tal como ela a narrava, era acrescentada com muitos circunstanciais pormenores e um corpo de doutrina caseira que não deixaria de confundir e pasmar evangelistas de vívida experiência quando ouvissem o que era ali posto atrevidamente a contradizer a sua autoridade. De facto, a preferência da missionária por um posto tão especial e distante, que tinha começado por ser um acto de devoção — bem depressa se fez uma necessidade por ter aparecido uma missionária rival que ia pôr a descoberto a doutrina religiosa daí resultante; embora algumas das mais escolhidas ameixas do pudim evangélico, que ela preparara, fossem tiradas da Bíblia, e o cenário e as dramatis personæ lhe fossem pedidos de empréstimo, ele era produto da sua inspiração directa, tendo embora como elemento inspirador as páginas da Bíblia. Só como pioneira e sozinha, a missionária poderia fazer de si própria a sua Igreja, e determinar o seu cânone sem medo de ser excomungada como herege. No entanto, talvez tivesse sido temerária quando no dia do aniversário da negrinha, que ela ensinara a ler, lhe deu uma Bíblia. Porque ela, tomando muito à letra o que a sua mestra lhe tinha respondido, agarrou numa moca e aventurou-se a percorrer a floresta africana à procura de Deus, levando consigo a Bíblia para lhe servir de guia.

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A primeira coisa que encontrou foi uma mamba, uma das poucas cobras venenosas que atacam os homens se eles se atravessarem no seu caminho. A missionária, que se tinha habituado a ser carinhosa para os animais, por eles se afeiçoarem e nunca fazerem perguntas, ensinara a negrinha a nunca os matar desde que pudesse evitá-lo, e a nunca os temer. Por isso, com a mão um pouco mais firme empunhou a moca e disse: — Pergunto a mim mesma quem te criou; e por que razão ele te fez sentir vontade de me matares, e te deu veneno para conseguires fazê-lo. Com um imediato sinal da cabeça, a mamba convidou-a a segui-la e levou-a até um monte de pedras onde um homem branco, com um bom aspecto que lhe era dado pelo ar aristocrático e por feições regulares, uma imponente barba e uma luxuriante cabeleira ondulada, qualquer delas tão branca como o rabo dos peixes, estava sentado como num trono. O seu rosto exprimia uma implacável severidade e tinha na mão uma vara que parecia combinar as funções de ceptro, grande bordão e enorme lança. Sem hesitar, matou com ela a mamba que se ia aproximando com humildade e adoração. Ensinada a não ter medo de nada, a negrinha sentiu que o seu coração endurecia; estava contra ele, em parte por achar que os homens fortes deviam ser negros e as mulheres missionárias de raça branca, em parte por ele ter morto a sua amiga cobra, em parte porque se vestia com uma ridícula camisa de dormir, o que lhe reavivava a oposição a uma coisa à qual a sua professora nunca tinha conseguido convertê-la: a obrigação de sentir vergonha da sua própria pessoa e ter de vestir saias. Havia na sua voz um certo desdém quando lhe dirigiu a palavra.

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— Ando à procura de Deus — disse ela. — Podes indicar-me o caminho? — Já o encontraste — respondeu ele. — Presunçosa criatura, ajoelha-te de imediato e adora-me, ou temerás a minha cólera. Sou o Senhor dos Exércitos; criei os céus, a terra e tudo quanto neles existe. Fiz o veneno da cobra e o leite no peito da tua mãe. Tenho na minha mão a morte e as enfermidades, o trovão e o relâmpago, a tempestade, a peste e todas as provas da minha grandeza e da minha majestade. Ajoelha-te, rapariga, e quando voltares a ter-me à tua frente traz contigo o teu filho predilecto para um sacrifício; porque me agrada o cheiro a sangue recém-derramado. — Não tenho nenhum filho — disse a negrinha. — Sou virgem. — Então vai ter com o teu pai, e seja ele a matar-te — disse o Senhor dos Exércitos. — Diz aos teus parentes que me tragam muitos carneiros e cabras para os assarem à minha frente como oferenda propiciatória, ou tenham a certeza de que vou fustigá-los com a mais horrível das pragas, de forma a saberem que sou Deus. — Não sou nenhuma pretinha reles nem mesmo uma tontinha, para acreditar num tão rancoroso absurdo — disse-lhe a rapariga. — E em nome do verdadeiro Deus que procuro darei cabo de ti como deste da pobre mamba. Para se aproximar dele, subiu pelas pedras com a moca em riste. Mas quando chegou ao cimo, nada encontrou. Atónita, resolveu sentar-se e abrir a Bíblia para tomá-la como seu guia. No entanto, porque as térmitas lhe tivessem chegado

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ou porque era um velhíssimo livro, estava tão naturalmente deteriorado, que as suas primeiras páginas desfizeram-se num pó, espalhado no ar quando ela a abriu. Deu um suspiro, levantou-se e voltou à sua busca, mas agora incomodada por uma cobra da espécie a que chamam cascavel, que lhe cuspiu e deslizou para longe quando ela lhe disse: — Não te atrevas a cuspir-me. Quero saber quem te criou e por que és tão diferente de mim. O Deus da mamba não era grande coisa. Quando tentei dar-lhe uma mocada, vi que não era real. Leva-me ao teu Deus. Quando ouviu isto, a cascavel voltou atrás e com a cabeça fez à negrinha um sinal para ela a acompanhar. E a negrinha acompanhou-a.

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Levou-a a uma aprazível clareira onde um cavalheiro muito idoso, com cabelo e barba quase prateados e também uma camisa de dormir, estava sentado a uma mesa coberta com um pano branco, cheia de poemas manuscritos e penas de anjo preparadas para a escrita. Embora tivesse um ar muito simpático, as sobrancelhas e os bigodes retorcidos denunciavam uma presumida astúcia que a negrinha achou ridícula. — Minha querida cospe-cospe — disse ele à cobra — trazes-me alguém para discutir comigo? Entregou à serpente um ovo que ela levou, louca de alegria, para a floresta. — Não tenhas medo de mim — disse à negrinha — porque não sou um deus cruel; sou, pelo contrário, um dos razoáveis. Não faço nada de mal, só discuto. Sou danado para o parlapié. Não me adores. Censura-me. Descobre os meus erros. Não te poupes a denunciar-me as fraquezas. Propõe-me qualquer coisa dura de roer e que dê azo à discussão. — Fizeste o mundo? — perguntou a negrinha. — É claro que fiz. — Por que o fizeste assim, tão cheio de maldade? — quis ela saber. — Esplêndido! — exclamou o deus. — É mesmo o que eu queria que me perguntasses. És uma rapariga de muito viva inteligência. Tive um servo chamado Job, e noutros tempos discutiu comigo; mas era tão humilde e estúpido, que para eu lhe arrancar o mais pungente dos desabafos precisava de provocar as suas queixas. A mulher dele disse-lhe para me amaldiçoar, mas morreu. Não foi coisa que me surpreendesse, vinda dessa pobre mulher, porque a fiz passar um mau boca-

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consciência desenvolvida a partir de uma infantil idolatria por um destruidor e todo-poderoso Papão que troveja, faz tremer a terra, concede espantosos tempos de fome e dissemina pestes; que é capaz de cegar, ensurdecer e matar; que é construtor da noite e do dia, do sol e da lua, das quatro estações e do milagre da semente e da colheita; que passa pela mais nobre das idealizações, fazendo-o evoluir desde o sábio benévolo, o justo juiz, o pai afectuoso, até chegar ao verbo incorpóreo que nunca se torna carne; o ponto em que a ciência e a filosofia modernas assumem o problema com a sua Vis Naturæ, o seu Élan Vital, a sua Força de Vida, o seu Apetite Evolucionista, o seu mais abstracto Imperativo Categórico, e sei lá quantas coisas mais. Acontece que o estudo dessa história, que é o desenvolvimento de uma hipótese com início numa idolatria selvagem e um percurso que a leva a uma sumamente refinada metafísica, é tão interessante, instrutivo e tranquilizador como qualquer estudo pode sê-lo para um espírito aberto e um intelecto honesto. Estragamo-lo porém totalmente com o hábito indolente e desmazelado de não deitarmos fora a água suja quando recebemos a limpa. A Bíblia apresenta-nos uma série de deuses, cada um deles com uma notável melhoria em relação àquele que o antecede, marcando assim a ascensão do homem até uma concepção mais profunda da Natureza, com cada um dos seus degraus a implicar uma purificação da água da vida e a necessidade do total esvaziamento e limpeza do vaso, antes de voltar a enchê-lo com uma provisão fresca e limpa. Malogramos porém este benefício se enlamearmos a água da nova fonte, misturando-a com aquilo que o balde velho e sujo con-

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tém, e se repetirmos essa loucura até o nosso pensamento se converter numa infecta confusão, ao ponto de nos tornamos objectos de piedade para os superficiais mas lúcidos ateus, felizes sem a metafísica, e que em todo este problema só vêem confusões e incongruências. Considere-se a situação em pormenor, tal como ela se desenvolve na Bíblia. O Deus de Noé não é o Deus de Job. Comecemos por contemplar a irascível divindade que afoga todas as coisas vivas da terra, com excepção de uma família de cada espécie, cedendo a uma crise de indignação perante a perversidade do homem, e em seguida constatamos como ele permite que a cabeça da única família humana o acalme com «o suave aroma» de um monte de carne assada. Será possível que este seja o mesmo especulador tolerante, argumentador, académico, cortês e filosófico que conversava familiarmente com o demónio e apostava que ele não conseguiria levar Job a perder a esperança na benevolência divina? Quem não vir a diferença entre estes dois Deuses não superará o mais elementar teste de inteligência; não saberá distinguir entre o que é semelhante e o que é diferente. Mas apesar de o Deus de Job representar um grande avanço sobre o Deus de Noé, ainda assim é um muito mau argumentador, a menos que lhe concedamos o crédito de querer salvar-se deliberadamente da derrota com o velho expediente de não haver razão para processo, uma vez que a alegação do queixoso não tem fundamento. Ao levantar o problema da existência do Mal e da sua incompatibilidade com a benevolência omnipotente, Job não merece a zombaria com que lhe respondem: que ele é incapaz de criar uma baleia ou de

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brincar com ela como se fosse um pássaro1. E há um suspeitoso rasto do Deus de Noé na proposta de deixarmos passar em vão a cumplicidade dos amigos de Job, no que respeita às suas dúvidas, só porque levamos em conta que foi feito um sacrifício de sete bois e sete carneiros. A divina tentativa de argumentação não é mais do que repetir e aperfeiçoar as zombarias de Elihu2, embora muito abruptamente intercalada, fazendo-nos concluir que deve tratar-se de uma piedosa contrafacção no texto, destinada a ocultar o facto de ter havido um primeiro poema que deixava sem solução o problema do Mal e a crítica de Job sem resposta, como realmente aconteceu até a Evolução Criadora lhe dar uma solução. Quando chegamos a Miqueias, encontramo-lo sem medo e a deitar fora a água suja. Ele não quer o Deus de Noé nem o Deus de Job com os seus sete bois e os seus sete carneiros. Eleva a concepção de Deus ao mais alto ponto que alguma vez atingiu, renegando os sacrifícios sangrentos com uma enérgica e insolente denúncia, e uma inspirada e inspiradora pergunta: «O que te pede o Senhor, senão que actues com justiça e amor à misericórdia, e caminhes humildemente à frente do teu Deus?» Perante esta vitória do espírito humano sobre a superstição grosseira, o Deus de Noé e o Deus de Job caem como paus de um jogo de boliche: é o seu fim. No entanto, ainda se ensina aos nossos filhos que não devem regozijar-se com esse grande triunfo do conhecimento espiritual sobre o simplório 1 Curiosamente, no livro de Job não se trata de uma baleia, mas de um animal chamado behemoth, que tem sido por muitos identificado como um hipopótamo. (N. do T.) 2 Um dos argumentadores que se opõem às diatribes de Job. (N. do T.)

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terror animal perante o Papão, e se limitem a acreditar que o Deus de Miqueias, o Deus de Noé e o Deus de Job são todos o mesmo, e as crianças boas tanto devem venerar o espírito de justiça, misericórdia e humildade, como o gosto pela carne assada e pelo sacrifício humano: uma veneração absurda e sem discernimento, inculcada como crença religiosa. Mais tarde chega Jesus, que se atreve a voar ainda mais alto. Sugere que a divindade é qualquer coisa incorporada no homem, na sua própria pessoa. É de imediato apedrejado por todos os que horrorizadamente o ouvem e só conseguem ouvir nesta sugestão o monstruoso intento de ele querer fazer o papel de Jeová. Este malentendido, típico da água teológica suja, foi mil e oitocentos anos depois consentido como artigo de fé por Emmanuel Swedenborg. Mas a sugestão de Jesus é um verdadeiro avanço em relação à teologia de Miqueias; porque o homem que obedece a um Deus exterior é uma ineficaz criatura se o compararmos com o homem que progride sendo ele próprio instrumento e encarnação de Deus, sem outro guia além da centelha de divindade que tem dentro de si. É esta, por certo, a maior brecha entre o Velho e o Novo Testamentos. Mas a água suja continua a estragar tudo, porque vemos Paulo falar do Cristo aos habitantes de Éfeso como «alguém que se ofereceu por nós em oferenda e em holocausto a Deus, feitos em odor de santidade», arrastando assim o cristianismo para trás e para baixo, até ao nível de Noé. Nenhum dos apóstolos superou este nível, e isto teve como resultado que os grandes avanços de Miqueias e Jesus tivessem sido cancelados, e o cristianismo histórico fosse construído sobre o altar de sacrifícios de Jeová, tendo Jesus como sacrificado.

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Aquilo que Jesus e Miqueias diriam se pudessem cá voltar e ver os seus nomes e a sua reputação ligados a idolatrias que abominavam, só podem imaginar os que sabem compreendê-los e com eles simpatizam. Poder-se-ia censurar a Jesus a muito imprudente escolha dos seus discípulos, se acreditássemos que houve uma verdadeira escolha. Há momentos em que somos tentados a dizer que não havia entre eles um só cristão, e era Judas o único que mostrava algumas centelhas de senso comum. Como Jesus tinha poderes mentais e um discernimento muito acima da sua compreensão, eles adoravam-no como um super-homem e ainda como um fenómeno sobrenatural, fazendo da memória que dele tinham o núcleo da sua agreste crença e do seu «noeismo», do seu sentimentalismo, do seu puritanismo masoquista, da sua moral simplista, mas sem estarem alguma vez ao nível intelectual de Jesus e, no pior dos casos, com o germe de todos os horrores que houve mais tarde nas guerras da religião, dos judeus queimados por Torquemada, das atrocidades de que são culpadas todas as Igrejas pseudo-cristãs, desde o momento em que tiverem poder bastante para perseguir. Lamentavelmente, a morte de Jesus contribuiu para a popularidade da sua reputação e para lhe obscurecer a doutrina. Os Romanos executavam os seus criminosos políticos precipitando-os desde o alto da Rocha Tarpeia, mas puniam a revolta dos escravos com a crucificação. Um século antes do sumo-sacerdote judaico ter denunciado Jesus como um agitador dessa mesma têmpera, tinham crucificado seis mil seguidores de Espartaco, o gladiador revolucionário. Ele foi, como consequência disto, torturado e morto desta hedionda forma, e com

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o infinitamente mais hediondo resultado de ter feito a cruz e os outros instrumentos da sua tortura tornarem-se símbolos da fé que foi, trezentos anos mais tarde, legalmente estabelecida em seu nome. Em toda a cristandade ainda se aceitam como tais. A crucificação converteu-se para as Igrejas no que a câmara dos horrores é para os museus de cera: a irresistível atracção das crianças e dos mais agrestes adoradores adultos. A água limpa da vida do Cristo foi turvada pela mais suja das águas sujas das idolatrias dos seus bárbaros antecessores; e os nossos prelados e procônsules tomam como modelos o que Caifás e Pôncio Pilatos fizeram em nome da vítima que depreciaram e rejeitaram. Não só o caso se complicou ainda mais com o lamentável facto de o próprio Jesus se ter sentido quebrantado pelo mesmo desespero que abalou a razão de Swift, Ruskin e muitos outros perante o espectáculo da crueldade humana, da injustiça, miséria, loucura, e da incapacidade política aparentemente sem remédio, mas talvez por a adoração dos seus discípulos e da multidão ter permitido que Pedro conseguisse persuadi-lo de que era o Messias, e que a morte não iria prevalecer contra ele nem o impediria de voltar para julgar o mundo e estabelecer por todos os séculos dos séculos o seu reino na terra. Com esta ilusão, que tão facilmente se ajustava ao nível mental dos seus discípulos como a sua doutrina social se afastava do seu entendimento, o «cruztianismo» foi implantado sob a autoridade do próprio Jesus. Mais tarde, num curioso relato das visões de um toxicómano absurdamente admitido nos livros canónicos com o título A Revelação1, de Ou seja, o chamado Apocalipse de um João que a Igreja gosta de reconhecer como o apóstolo do mesmo nome. (N. do T.) 1

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acordo com o prometido foi designado o período de mil anos para o regresso de Jesus. No ano 1000 D.C. a última possibilidade do prometido advento expirou; mas nessa época já as pessoas estavam tão habituadas a atrasos, que substituíram sem demoras o Segundo Advento pelo Segundo Adiamento. O pseudo-cristianismo foi e há-de ser sempre imune à prova dos factos. Todo este assunto é uma espantosa confusão que se tem mantido, não só por as ideias de Jesus estarem acima de todas as cabeças e da maior parte dos espíritos, mas porque o seu aparecimento foi seguido de um retrocesso da civilização a que chamamos Idade do Obscurantismo e de onde emergimos agora o suficiente para começar a apanhar o mais avançado fio do pensamento do Cristo, salvando-o da confusão em que os apóstolos e os seus sucessores o lançaram. Seiscentos anos depois de Jesus, Maomé fundou o Islão e deu um colossal passo em frente deixando para trás a idolatria em estado bruto, para chegar a um muito iluminado Unitarismo. Mas embora tenha morrido vitorioso, escapando assim de se tornar a principal atracção de uma Câmara de Horrores Árabe, viu que era impossível dominar os seus árabes sem seduzir os que tivessem fé com as promessas de uma vida deliciosa, sem intimidar os malvados com uma eternidade de pavorosos tormentos, depois da morte do corpo; e após sinceros protestos, sem aceitar o carácter sobrenatural que a infantil superstição dos seus fiéis lhe atribuía. Antes de ressurgir na terra como uma fé viva, o Islão também precisará de ser descoberto na sua verdadeira natureza.

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Penso que as aventuras da negrinha, tal como elas me foram reveladas, não devem agora intrigar ninguém. Era difícil que acontecessem a uma rapariga branca, desde o nascimento mergulhada no pseudo-cristianismo das Igrejas. Suponho que a missionária a libertou, pondo-a fora do seu feiticismo tribal, e a levou até uma contemplação sem preconceitos da Bíblia com a sua série de deuses que marcam etapas no desenvolvimento da concepção de Deus, desde o Papão até ao Pai Eterno e ao Príncipe da Paz. A negrinha deverá olhar para a sublimação de Deus operada pela Igreja Anglicana, considerando-o um espírito desprovido de corpo, de membros e paixões; e que isto, apesar do que diz o Quarto Evangelho, não tem como corolário que Deus seja amor. O amor não basta (como descobriu Edith Cavell, quando fez uma descoberta idêntica a respeito do Patriotismo) e a negrinha descobre que é mais sensato seguir o conselho de Voltaire, cultivando o seu jardim e criando os seus filhotes, do que passar a vida a imaginar que consegue, com pancadas a torto e a direito, obter a explicação total do universo.

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Mas, para abrir caminho, é preciso dar pauladas. Um mero agnosticismo não leva a lado nenhum. Quando o problema da existência do ídolo de Noé se levanta até ao ponto vital de uma civilização superior — saber se os nossos filhos continuarão a ser ensinados a adorá-lo e a transigir perante os seus próprios pecados porque lhe fazem sacrifícios, ou se encontram abrigados atrás do sacrifício dos outros, o que ainda é mais económico — quem hesitar em deixar cair com toda a força e no sítio certo as suas pauladas, estará ridiculamente incapacitado de desempenhar uma função qualquer no governo de um estado moderno. Perante a crise mundial dos nossos dias, é provável que a importância de uma mensagem com este sentido esteja no âmago da curiosa e súbita inspiração que eu tive e me levou a escrever esta história, em vez de atravancar com mais outra comédia a literatura teatral. Ayot St Lawrence 1932-1946.

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