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tradução e introdução de
José A. Palma Caetano
A Autobiografia de Thomas Bernhard, como hoje se lhe chama, porque o próprio autor nunca deu esse título aos cinco volumes que a constituem, foi publicada no espaço de sete anos, entre 1975 e 1982. Os cinco volumes autobiográficos de Thomas Bernhard aqui reunidos — A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982) — ocupam uma posição-chave na relação que existe entre a sua obra, o autor e o público.
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A U TO B I O G R A F I A a causa a cave a respiração o frio uma criança tradução e introdução
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apoio à edição Ministério da Educação, Arte e Cultura, Áustria Embaixada da Áustria, Lisboa
Título original: Autobiographische Schriften (5 volumes reunidos)
© Residenz Verlag im Niederösterreichischen Pressehaus Druck-und Verlagsgesellschaft mbH St. Pölten – Salzburg-Wien Die Ursache©1975 Der Keller©1976 Der Atem©1978 Die Kälte©1981 Ein Kind©1982 © Sistema Solar, Crl Rua Passos Manuel, 67 B, 1150-258 Lisboa tradução © José A. Palma Caetano Na capa: Thomas Bernhard no Hotel Tivoli, Sintra, 1987 Fotografia de Peter Fabjan 1.ª edição, Janeiro 2014 ISBN: 978-989-8566-31-7
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ÍNDICE
Introdução, por J.A. Palma Caetano . . . . . . . . . . .
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A CAUSA — uma alusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
17 Grünkranz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Tio Franz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Anexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
A CAVE — uma retirada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 A RESPIRAÇÃO — uma decisão . . . . . . . . . . . . . . 235 O FRIO — um isolamento . . . . . . . . . . . . . . . . . 331 UMA CRIANÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 429
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A Autobiografia de Thomas Bernhard, como hoje se lhe chama, porque o próprio autor nunca deu esse título aos cinco volumes que a constituem, foi publicada no espaço de sete anos, designadamente entre 1975, ano em que foi também estreada a peça O Presidente, e 1982, quando Bernhard regressa às suas grandes obras de prosa narrativa, iniciando com Betão a série dos seus últimos cinco romances, publicados até 1986. Os cinco volumes autobiográficos, hoje reunidos por vezes num só com o já citado título de Autobiografia, são os seguintes: A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982). Na edição destes cinco textos num só volume, publicada pela Editora Suhrkamp em 2004, escreve-se, no Anexo que acompanha a obra, o seguinte: «Os cinco volumes autobiográficos de Thomas Bernhard ocupam uma posição-chave na relação entre a obra, o autor e o público — não só literário. A maneira aparentemente sincera como é referida a realidade e a descrição sem qualquer disfarce do seu próprio pensamento e da sua acção sugerem que estes livros devem ser lidos como uma revelação. Apesar disso, é evidente que a Autobiografia nos revela, é certo, aspectos fundamentais da vida e da escrita de Bernhard, mas é preciso ter sempre em conta o seu carácter de obra de arte.» (Thomas Bernhard: Die Autobiographie. Herausgegeben von Martin Huber Introdução
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und Manfred Mittermayer. Werke 10, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 2004, p. 544)
Estas palavras fornecem-nos uma ideia que o leitor deve ter sempre presente e que é fundamental para a compreensão não só destes volumes autobiográficos, mas também de toda a obra narrativa e da vida de Thomas Bernhard. É certo que os cinco livros da Autobiografia servem a Bernhard para dar a conhecer o que foi a sua infância e a sua juventude, mas sempre na medida em que esses períodos da sua vida e os acontecimentos por ele narrados foram relevantes para a sua obra literária. O escritor enfatiza os momentos que o marcaram para o resto da existência, faz notar os seus problemas, os seus erros, as fraquezas e os aspectos contraditórios do seu carácter, mas também as suas grandes decisões, a sua independência, a sua força de vontade, a sua natureza insubmissa e inconformada, mesmo na luta pela própria vida. Estes cinco volumes são, portanto, como escreveu Eva Marquardt, «ficcionais na mesma medida em que os romances são autobiográficos» (v. ob. cit., p. 550). Efectivamente os romances de Thomas Bernhard, sobretudo os da última fase da sua criação literária, não só se fundamentam na vida do autor, como também dela participam e fornecem elementos importantes. Recordamos apenas, como exemplo, os romances Derrubar Árvores e Antigos Mestres ou a novela O Sobrinho de Wittgenstein. Assim, ficção e biografia interpenetram-se em Bernhard de uma forma nem sempre clara, porque ambas participam igualmente da sua escrita enquanto obra de arte e ambas se completam e explicam reciprocamente. Apenas num caso ou noutro por assim dizer se realça uma dessas componentes, competindo ao leitor fazer um juízo daquilo que na literatura é produto da vivência do 10
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autor ou, por outras palavras, daquilo que na vida de Bernhard, sobretudo na sua infância e juventude, foi determinante para a sua criação literária. Na verdade, esse período da infância e juventude — e a ele se limita a Autobiografia — influencia decisivamente a personalidade do escritor, modela o seu carácter e de certo modo constrói as bases da sua carreira literária. Pode-se mesmo dizer que, sem conhecer as suas origens, as circunstâncias em que se verificou o seu nascimento, o que ele foi em criança e as provações por que passou na adolescência, não será fácil compreender devidamente a sua obra. E terá sido mesmo por se sentir incompreendido e considerar falso o que Carl Zuckmayer escreveu sobre a sua infância na obra Henndorfer Pastorale (1972) que lhe surgiu a ideia de escrever algo sobre esse período da sua vida. Esse projecto teria mesmo por título Erinnern (Recordar) e acabou só por ser concretizado três anos depois, impulsionado também pelo escândalo provocado pela representação da sua peça O Ignorante e o Louco no Festival de Salzburgo desse mesmo ano de 1972 e as discussões que se seguiram. Levar-nos-ia muito longe narrar aqui todas as circunstâncias em que esse projecto acabou por se realizar, mas será bom dizer que provavelmente terá sido esse escândalo e a repulsa que Bernhard nessa altura sentiu pela maneira como em Salzburgo foi tratado a razão da diatribe contra essa cidade com que abre o volume A Causa e que lhe valeu críticas acerbas, sobretudo nos jornais de Salzburgo e não só. Daqui se colhe já a ideia de que os cinco volumes autobiográficos não seguem uma ordem absolutamente cronológica, já que o primeiro publicado, A Causa, trata inicialmente do tempo em que Thomas Bernhard frequentava em Salzburgo a escola básica elementar, a Andräschule, e vivia num lar nacional-socialista, Introdução
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o internato da Schrannengasse, ainda no período final da guerra, e em que, depois de esta terminar, voltou ao mesmo internato, mas então para frequentar o liceu. E é a vida no internato que constitui o objecto principal da sua narrativa e deu origem a mais um escândalo e a uma questão judicial em que Bernhard se viu envolvido. Com efeito, como o leitor verificará, ao descrever o funcionamento do internato, o Johanneum, como sempre se chamou, antes e depois do fim da guerra, primeiro como uma instituição nacional-socialista e depois como um lar católico, Thomas Bernhard conclui que esse funcionamento era no fundo idêntico, as práticas eram as mesmas e só os símbolos eram diferentes: o director era primeiro um oficial nazi (Grünkranz) e depois um padre católico (a quem chamavam o Tio Franz), onde estava antes o retrato do Hitler via-se depois um crucifixo, as canções nazis que se cantavam primeiro passaram depois a ser religiosas, etc. Mas o rigor, as exigências e os castigos eram os mesmos. É significativo o facto de este volume se dividir em duas partes, cada uma das quais tem por título o nome do director do internato no período a que se refere: Grünkranz, o oficial nazi, e Tio Franz, de seu nome completo Franz Wesenauer, o padre católico. Aqui será, porém, necessário observar que quem corresponde mais ao Grünkranz, no carácter, na severidade e no procedimento odioso para com os educandos, não é propriamente o Tio Franz, que é descrito até como uma pessoa bondosa e de certo modo bonacheirona, mas sim o prefeito, que adoptava métodos de punição semelhantes aos do director nacional-socialista. No entanto, Franz Wesenauer, que era então pároco em Salzburgo, julgando reconhecer-se no Tio Franz, apresentou uma queixa contra Thomas Bernhard e o processo arrastou-se por quase dois 12
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anos, até que em Maio de 1977 se chegou a um compromisso, segundo o qual se deviam suprimir no livro algumas passagens, em que o sacerdote se considerava especialmente atingido. Bernhard sempre se recusara a fazer quaisquer cortes na sua obra, mas acabou por ceder. São quatro esses trechos, que ainda hoje não figuram na edição da Editora Residenz, de Salzburgo, detentora dos direitos, mas foram incluídos no Anexo da recente edição da Editora Suhrkamp. Reproduzimo-los também neste volume, igualmente num Anexo, com a indicação das páginas a que pertencem. No texto da obra, assinalam-se com […] os pontos em que essas quatro passagens foram cortadas. Este primeiro volume da Autobiografia termina com uma breve referência à maneira como um dia, de motu proprio, o jovem Thomas, então com dezasseis anos, resolve virar as costas ao liceu e ir ao serviço de emprego procurar um lugar de aprendiz num estabelecimento comercial. O segundo volume, A Cave, começa com a descrição pormenorizada desse acto, em que Bernhard repete inúmeras vezes a expressão ir na direcção oposta, isto é, em vez dos estudos, da frequência do liceu, que nada lhe dizia e era para ele um tormento, dar início à vida profissional, no ramo do comércio. A cave era uma mercearia com um armazém de géneros alimentícios, situada no bairro de Scherzhauserfeld, o bairro mais miserável e mais mal-afamado de Salzburgo. Aí contrai ele um dia, após uma gripe mal curada, uma doença pulmonar, que o irá afectar para o resto da vida. No terceiro volume, A Respiração, narra o escritor a sua estada num hospital de Salzburgo, onde a pleurisia de que sofre se agrava de tal modo que ele é colocado na enfermaria dos moribundos, dado que a sua morte é esperada a todo o momento. Mas, graças à sua vontade, como ele próprio declara, consegue sobreviver e a Introdução
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pouco e pouco, perante o espanto dos próprios médicos, se vai restabelecendo. Quando já estava internado nesse hospital, nele deu entrada o avô materno, o escritor Johannes Freumbichler, uma das chamadas «pessoas da sua vida», que aí vem a falecer inesperadamente, constituindo para o jovem enfermo um rude golpe, que mais ainda agrava o seu estado. Superado, no entanto, o período crítico da sua doença é enviado para uma espécie de casa de repouso nos arredores de Salzburgo, onde lhe descobrem uma sombra no pulmão, o princípio da tuberculose que a seguir o afecta e que era o flagelo da época. É então enviado para o sanatório de Grafenhof, na região montanhosa de Pongau. O quarto volume, O Frio, descreve a experiência do escritor nesse sanatório, de onde a maior parte dos que lá entravam já não saía com vida, uma experiência que, aliás, é de grande importância para Thomas Bernhard. Aí encontra ele pela primeira vez a segunda das «pessoas da sua vida», Hedwig Stavianicek, 35 anos mais velha do que ele, que o irá proteger até à sua morte, em 1984, com 89 anos de idade (cinco anos antes da morte de Bernhard). Também para a sua formação literária e artística essa sua estada em Grafenhof foi importante, não só devido ao estabelecimento de uma relação de amizade com um maestro e compositor, Rudolf Brändle, mas também às suas primeiras tentativas literárias e poéticas e, por assim dizer, ao encontro consigo próprio. Aí reflecte também Bernhard sobre as suas origens, a sua infância, e isso constitui como que uma chamada de atenção, de certo modo o caminho que conduz ao quinto e último volume da Autobiografia, Uma Criança. Pode-se dizer, portanto, que não é arbitrária a sequência dos cinco volumes, mas que há neles uma ordem. E essa ordem obedece ao pretexto que deu origem ao primeiro volume, que não foi concebido como o início de uma autobiografia, mas nela veio de14
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pois a resultar, como um encadeamento natural, que não deve nem pode deixar de ser respeitado (como já houve quem quisesse fazer, transformando o quinto volume em primeiro). Também a narrativa de Uma Criança não obedece a uma ordem cronológica, pois começa com uma «aventura», um passeio de bicicleta do pequeno Thomas quando tinha oito anos, de Traunstein, na Baviera, onde a família então vivia, para Salzburgo, a 35 km de distância, uma viagem que terminou, porém, com uma tremenda queda e um regresso extremamente penoso. Neste último volume recorda Bernhard algo do que caracterizou, de forma mais saliente, esse período da sua vida, em que ressalta a figura do avô, realmente a figura tutelar da sua existência, que o marcou indelevelmente. E, também por esse motivo, foram os anos da infância, em que viveu com o avô ou na sua proximidade, os mais felizes que terá passado. São cinco volumes, portanto, em que Thomas Bernhard «narra literariamente», acentue-se, os factos e as circunstâncias da sua infância e juventude que considera mais relevantes e de maior influência na sua vida e na sua carreira literária. Trata-se dos primeiros vinte anos da sua vida, aqueles que de certo modo moldam o carácter, definem as tendências e preparam o caminho que depois se vai procurar seguir. Bernhard estava realmente a cerca de um mês de completar vinte anos quando teve alta definitiva do sanatório de Grafenhof. Agora já não era, porém, o comércio, a actividade profissional de comerciante ou de empregado num estabelecimento comercial, que comandava os seus interesses. Agora o que o interessava era a literatura, a música, o teatro, em suma, o mundo das artes, não o aspecto prático da existência, com vista apenas à obtenção dos meios materiais necessários para subsistir, conquanto ele sempre tenha tido uma atitude de homem de negócios quando se Introdução
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tratava das remunerações do seu trabalho de escritor. De qualquer modo, o seu caminho estava traçado, o seu futuro definido. Ainda levou algum tempo até obter o êxito que desejava, mas a sua força de vontade, como quando conseguiu sobreviver à doença, para lá o conduziu.
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Duas mil pessoas tentam, por ano, na região federada de Salzburgo, pôr fim à própria vida e um décimo dessas tentativas de suicídio acaba de forma mortal. Deste modo, Salzburgo detém, na Áustria, que apresenta, com a Hungria e a Suécia, a maior taxa de suicídios, um recorde austríaco. Salzburger Nachrichten de 6 de Maio de 1975
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A cidade, em que vivem duas categorias de pessoas, homens de negócios e as suas vítimas, só se torna habitável para o estudante de uma forma dolorosa, que perturba e, com o tempo, transtorna e destrói qualquer natureza e muitas vezes mesmo se revela perfidamente mortal. Por um lado, as extremas condições atmosféricas, que permanentemente excitam e enervam e de qualquer modo fazem sempre ficar doentes as pessoas que aqui vivem e, por outro, a arquitectura de Salzburgo, que, em tais condições, exerce um efeito cada vez mais devastador no estado de espírito dessas pessoas, em consequência do clima pré-alpino, que consciente ou inconscientemente é, em sentido médico, sempre prejudicial a tais pessoas, na verdade dignas de dó, e, por consequência, pesa na cabeça e no corpo e em todo o organismo exposto por completo a essas condições naturais, e que produz sem cessar, com uma incrível brutalidade, moradores tão irritantes e enervantes e molestos e humilhantes e insultuosos e dotados de grande vilania e baixeza, tais condições geram constantemente salzburgueses desse género, ou da cidade naturais ou que nela se fixaram e que, entre as paredes frias e húmidas, queridas, em resultado de um amor prévio, ao estudante que eu fui nesta cidade há trinta anos, mas odiadas por força da experiência, se ocupam das suas obstinações tacanhas, dos seus absurdos e desatinos, dos seus negócios brutais e das suas melancolias, constituindo uma inesgotável fonte de receitas para toda a espécie de médicos e agências funerárias. A Causa
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Aquele que cresce nesta cidade por desejo dos seus encarregados de educação, mas contra a sua própria vontade, que, desde a mais tenra infância e com toda a propensão da sua sensibilidade e da sua inteligência para esta cidade, se encontra encerrado no processo de ostentação da celebridade mundial que ela possui, por um lado como numa perversa máquina de beleza transformada em hipocrisia, que produz dinheiro e contradinheiro, e, por outro, como numa fortaleza de medo e de angústia, na carência e no desamparo da sua infância e juventude sem protecção de lado nenhum, e que assim está condenado a ter nesta cidade o local de desenvolvimento do seu carácter e do seu intelecto, tem da cidade e das condições de existência nesta cidade, dito de uma forma nem muito grosseira nem muito leviana, uma recordação acentuadamente triste e que muito obscureceu e ensombrou o evoluir da sua infância e juventude, uma recordação horrível e de qualquer modo fatídica, que se foi tornando cada vez mais determinante em toda a sua existência, unicamente uma recordação deste género, nenhuma outra. Rejeitando qualquer ideia de difamação, de mentira ou de hipocrisia, tem o autor de dizer a si próprio, ao escrever esta alusão, que esta cidade, que impregnou toda a sua natureza e determinou o seu entendimento, foi sempre para ele, e sobretudo na infância e juventude, nas duas décadas do período de desespero enquanto amadurecimento em que nela existiu e para a existência se exercitou, uma cidade que muito feriu o entendimento e o espírito, mesmo que só maltratou sempre o espírito e o entendimento, uma cidade que incessantemente, de forma directa ou indirecta, o puniu e castigou por delitos e crimes não cometidos e que nele destruiu a sensibilidade e a afectividade, qualquer que fosse a sua natureza, e nunca favoreceu os seus dotes criadores. Nesse tempo dos seus estudos, que foi sem dúvida para 22
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ele o tempo mais horrível, e é desse tempo dos seus estudos e das sensações que nesse tempo experimentou que aqui se trata, teve ele de pagar pelo resto da sua vida um preço elevado e provavelmente a quantia máxima. Esta cidade não mereceu o apego e o amor que lhe fora transmitido pelos seus antepassados sob a forma de um apego antecipado e de um amor por igual antecipado, tendo-o rejeitado, repelido, sempre e em todos os tempos e em todos os casos até ao dia de hoje, ou pelo menos atingido duramente no seu íntimo ainda desprotegido. Se eu não tivesse abandonado de um momento para o outro, precisamente no momento decisivo e salvador, no momento da máxima tensão nervosa e da maior afronta intelectual, esta cidade que, em última análise, foi desde sempre agressiva e provocante e afinal sempre aniquiladora do homem criativo e que foi para mim, através dos meus pais, simultaneamente mátria e pátria, teria, como tantos outros homens criadores que nela viveram e como tantos a quem estive ligado e que foram meus amigos, feito jus à única faceta típica desta cidade e ter-me-ia de súbito suicidado, como tantos nela de súbito já se suicidaram, ou ter-me-ia finado lenta e miseravelmente dentro dos seus muros e na sua atmosfera desumana, nesta atmosfera asfixiante, única e simplesmente asfixiante, como tantos lenta e miseravelmente nela se têm finado. Tive muitas vezes a possibilidade de descobrir e amar o carácter especial e a singularidade absoluta desta região que é minha mátria e pátria e se compõe de paisagem (famosa) e (famosa) arquitectura, mas os habitantes mentecaptos que existem nesta região e natureza e arquitectura, e que de ano para ano se multiplicam levianamente, e as suas leis abjectas e ainda mais abjectas interpretações dessas suas leis destruíram sempre de imediato o descobrir e o amar esta natureza (enquanto paisagem), que é uma maravilha, e esta arquitectura, que é uma obra A Causa
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de arte, destruíram-nos logo nos primeiros momentos, os meios de que eu dispunha para a minha existência, e que eram apenas os meus próprios, sempre tinham ficado logo impotentes contra a lógica pequeno-burguesa dominante nesta cidade como em nenhuma outra. Tudo nesta cidade é contra o espírito criador e, embora cada vez mais se afirme o contrário e com uma veemência cada vez maior, a hipocrisia é o seu fundamento e a sua maior paixão é a banalidade, e onde nela se mostra só um pouco de imaginação que seja, esta é logo exterminada. Salzburgo é uma pérfida fachada, na qual o mundo pinta ininterruptamente a sua hipocrisia e por detrás da qual a criatividade (ou o criador) tem de se definhar e degradar e extinguir. A cidade onde eu cresci é na realidade uma doença mortal, na qual os seus habitantes nascem e vão viver, e se não a abandonarem no momento decisivo, ou cometem, directa ou indirectamente, mais cedo ou mais tarde, em todas estas circunstâncias horríveis, de súbito suicídio ou são aniquilados, directa ou indirectamente, de forma lenta e miserável, neste solo de morte arquitectónico-arquiepiscopal-estúpido-nacional-socialista-católico, no fundo inteiramente inimigo das pessoas. A cidade é, para aquele que a conhece e aos seus habitantes, um cemitério de fantasias e desejos, belo à superfície, mas sob essa superfície efectivamente horroroso. Para o estudante que nesta cidade, que por toda a parte goza apenas da fama da sua beleza e da sua acção edificante e todos os anos, por ocasião do chamado festival, também da fama da chamada grande arte, procura encontrar o seu caminho e encontrar justiça, ela só já é, dentro de muito pouco tempo, um museu da morte, frio e aberto a todas as doenças e baixezas, no qual se lhe levanta toda a espécie de obstáculos imagináveis e inimagináveis, que lhe arruínam sem dó nem piedade as suas energias e as suas aptidões e faculdades mentais e profundamente o 24
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atingem, ao fim de pouco tempo a cidade já não é para ele uma bela jóia da natureza e de uma arquitectura exemplar, mas apenas um matagal humano impenetrável, feito de ignomínia e baixeza, e ele, quando vai pelas ruas, já não caminha através da música, mas só sente a repugnância que lhe inspira o pântano moral dos seus habitantes. Para aquele que, de acordo com a sua idade, nela foi de súbito de tudo espoliado, a cidade não é, nessas condições, desengano, mas sim terror, e ela tem para tudo, mesmo para o susto, os seus argumentos mortais. O rapaz de treze anos encontra-se de repente, como eu senti nessa altura e como hoje penso, com todo o rigor de uma tal experiência, juntamente com trinta e quatro da mesma idade num dormitório do internato da Schrannengasse sujo e malcheiroso, a cheirar horrivelmente a paredes velhas e húmidas e a roupa de cama velha e sórdida e a alunos jovens e sujos, e durante semanas não consegue adormecer, porque o seu entendimento não entende por que motivo tem de repente de estar nesse dormitório sujo e malcheiroso, porque é forçado a sentir como uma traição o que não lhe é explicado como necessidade de se instruir. As noites são para ele uma escola de observação do abandono a que são votados os dormitórios nos estabelecimentos públicos de educação e, por conseguinte, dos estabelecimentos de educação em geral e constantemente dos internados nesses estabelecimentos, crianças dos municípios rurais, que pelos pais são, como ele próprio, de certo modo enjeitados e entregues à disciplina estatal e que, como lhe parece durante a observação nocturna a que é forçado, podem sem problemas fazer do seu estado de esgotamento um sono profundo, enquanto ele próprio não consegue nunca fazer do seu estado de esgotamento ainda muito maior, sentido como um estado de punção ininterrupta, um momento sequer de sono e de repouso. As noites proA Causa
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longam-se em estados de desespero e de angústia e o que ele ouve e vê e apreende com um pavor permanente é sempre e só novo alimento para novo desespero. O internato é para o recém-internado um cárcere requintadamente projectado contra ele e, portanto, contra toda a sua existência, construído de modo infame contra o seu espírito, no qual o director (Grünkranz) e os seus acólitos (vigilantes) dominam tudo e todos e no qual só o que se permite é a obediência absoluta e, portanto, a absoluta subordinação dos educandos, isto é, dos fracos aos fortes (Grünkranz e os seus acólitos), é só o silêncio como resposta e a prisão no escuro. O internato enquanto cárcere significa um agravamento da pena de forma progressiva e por fim uma descrença total e uma completa desesperança. Que aqueles que, como sempre julgara, o amavam o tivessem lançado com plena consciência naquele cárcere estatal é algo que ele não compreende e o que logo nos primeiros dias em primeiro lugar lhe anda na cabeça é a ideia do suicídio. Acabar com a vida ou a existência, para não ter mais de a viver e existir, pôr fim a essa súbita e completa miséria e a esse total desamparo com um salto da janela ou enforcando-se por exemplo no compartimento do calçado no rés-do-chão parece-lhe ser a única solução acertada, mas ele não o faz. Sempre que ele, no compartimento do calçado, estuda violino, para os estudos de violino foi-lhe destinado por Grünkranz o compartimento do calçado, pensa no suicídio, existem aí as maiores possibilidades de se enforcar, não lhe é nada difícil obter uma corda, e faz logo no segundo dia uma tentativa com os suspensórios, mas desiste dessa tentativa e fica-se apenas no estudo do violino. Sempre que, de futuro, entra no compartimento do calçado, entra na ideia do suicídio. O compartimento do calçado está cheio de centenas de sapatos e botas dos educandos a cheirar a chulé, dispostos em prateleiras de 26
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madeira apodrecida, e tem apenas, um pouco abaixo do tecto, o vão de uma janela aberta na parede, pela qual, porém, só entra o ar empestado da cozinha. No compartimento do calçado está ele só consigo próprio e só com o seu pensar no suicídio, que começa com o estudar do violino. Assim, a entrada no compartimento do calçado, que é indubitavelmente a divisão mais horrorosa de todo o internato, é para ele refúgio em si próprio sob o pretexto de estudar violino, e toca tão alto no compartimento do calçado que ele próprio receia ininterruptamente, durante esse seu estudo, que o compartimento possa explodir, ao tocar o violino, o que ele consegue facilmente e da forma mais virtuosa, ainda que não mais exacta, fica ele inteiramente absorto no seu pensamento do suicídio, no qual já se tinha adestrado ainda antes de entrar para o internato, pois enquanto vivera com o avô, durante todo o período anterior da sua infância, tinha passado pela escola da especulação com o suicídio. O estudo do violino e o Sevcik todos os dias eram para ele, com a consciência de que no violino nunca conseguiria ser um grande executante, um álibi sempre desejado para estar sozinho e estar consigo próprio no compartimento do calçado, no qual ninguém podia entrar durante o período do seu estudo; no lado de fora da porta estava pendurado um letreiro escrito pela senhora Grünkranz, no qual estava escrito «Proibida a entrada, estudo da música». Todos os dias ele esperava ansiosamente o momento de poder interromper as torturas da educação no internato, que o esgotavam por completo, com a ida para o compartimento do calçado, de poder aproveitar esse horroroso compartimento, com a música tocada no seu violino, para os seus fins de pensar no suicídio. Ele tinha arranjado no seu violino a sua própria música, que era propícia à sua ideia do suicídio, uma música extremamente virtuosa, mas que não tinha absolutamente nada A Causa
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a ver com a música prescrita no Sevcik nem com os trabalhos que o professor de violino, Steiner, lhe marcava, essa música era para ele efectivamente um meio de se poder isolar todos os dias, depois do almoço, dos restantes educandos e de toda a engrenagem do internato e se dedicar a si próprio, única e exclusivamente, nada tendo a ver com um estudo de violino como teria sido necessário e ao qual fora obrigado, mas que detestava, porque no fundo não tinha nele qualquer interesse. Essa hora dedicada a estudar violino no compartimento do calçado quase completamente às escuras, no qual os sapatos e as botas dos educandos, dispostos em fileiras até quase ao tecto, iam concentrando cada vez mais o seu cheiro a couro e suor fechado no compartimento, era para ele a única possibilidade de fuga. A sua entrada no compartimento do calçado significava o início simultâneo da sua meditação sobre o suicídio e o violino tocado com grande intensidade, com uma intensidade que se ia tornando sempre cada vez maior, uma reflexão cada vez mais intensa, continuamente mais intensa, sobre o suicídio. Ele fez efectivamente no compartimento do calçado muitas tentativas para se suicidar, mas nunca levou demasiado longe essas tentativas, o manejo de cordas e suspensórios e as centenas de tentativas com os numerosos ganchos que havia nas paredes do compartimento foram sempre interrompidos no momento decisivo e salvador e por ele combatidos com uma forma mais consciente de tocar o violino, com uma interrupção plenamente consciente do pensamento do suicídio e uma concentração plenamente consciente nas possibilidades, para ele cada vez mais fascinantes, que encontrava no violino, o qual com o tempo se foi tornando para ele não tanto um instrumento musical, mas antes um instrumento para desligar a sua meditação sobre o suicídio e o seu apego a essa ideia, para interromper subitamente uma tal meditação e uma tão grande 28
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sujeição a esse pensamento; por um lado altamente musical (Steiner) e, por outro, naturalmente à mercê de uma completa não-disciplina no referente a prescrições (igualmente Steiner), o seu estudo do violino, principalmente no compartimento do calçado, tinha única e simplesmente o objectivo de ir de encontro à sua ideia do suicídio, nenhum outro, e tornara-se evidente a sua incapacidade para obedecer às ordens de Steiner e de progredir no violino, isto é, no estudo do violino como tal. O pensar no suicídio, que o dominava quase ininterruptamente no internato e fora dele e ao qual, nesse tempo e nesta cidade, de modo nenhum e em nenhum estado de espírito se conseguira subtrair, esteve para ele, nesse período, ligado ao seu violino e à sua execução no violino mais do que a qualquer outra coisa, e era nessa altura só pelo pensamento na execução violinística e depois, intensamente, com o acto de tirar o violino da caixa e começar a tocar que era posto em movimento como um mecanismo a que, com o tempo, se tivera de entregar por completo e que só parou com a destruição do violino. Mais tarde, quando lhe vinha à ideia o compartimento do calçado, pensava muitas vezes se não teria sido melhor ter terminado nesse compartimento a sua existência, ter liquidado com o suicídio todo o seu futuro, qualquer que fosse o seu conteúdo, se para isso tivesse tido coragem, em vez de ter continuado durante décadas essa existência, em suma inteiramente incerta e árdua e cujo conteúdo eu agora conheço. Ele foi, porém, sempre demasiado fraco para uma tal decisão, enquanto tantos outros no internato da Schrannengasse se suicidaram, arranjaram essa coragem, curiosamente nenhum no compartimento do calçado, que era realmente ideal para o suicídio, todos eles se atiraram das janelas do dormitório ou das retretes ou se enforcaram nos chuveiros dos lavabos, ele nunca conseguiu arranjar a força e a determinação e a A Causa
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firmeza de carácter para o suicídio. Efectivamente suicidaram-se no seu tempo, e quantos antes e depois!, no internato da Schrannengasse, só no período nacional-socialista entre o Outono de quarenta e três (a sua entrada) e o Outono de quarenta e quatro (a sua saída), quatro educandos, que se atiraram da janela ou enforcaram, e muitos outros estudantes que, possuídos de um desespero insuportável, deixavam o caminho da escola e se iam atirar dos dois montes da cidade, de preferência do Mönchsberg directamente para a Müllner Hauptstrasse asfaltada, a rua dos suicidas, como eu sempre chamei a essa rua horrorosa, porque muitas vezes nela vi corpos humanos dilacerados, estudantes ou não-estudantes, mas especialmente estudantes, pedaços de carne amontoados dentro de peças de vestuário variegadas, de acordo com a estação do ano. Ainda hoje, três décadas depois, leio amiúde, com intervalos regulares e em grande número na Primavera e no Outono, notícias de estudantes e outras pessoas que se suicidaram, anualmente dezenas, embora, como eu sei, sejam centenas. Em internatos e principalmente naqueles que possuem condições extremas de sadismo humano e de clima, como o da Schrannengasse, provavelmente o tema principal entre os estudantes, entre os educandos, não é senão o do suicídio, muito diferente, portanto, de uma matéria científica, uma matéria que não pertence ao programa dos estudos, mas provém do primeiro pensamento que a todos mais intensamente preocupa, e o suicídio e a ideia do suicídio constituem sempre a matéria mais científica, mas isso é incompreensível para a sociedade da mentira. Estar com os colegas era sempre estar com a ideia do suicídio, em primeiro lugar com a ideia do suicídio e só em segundo lugar com a matéria a aprender. Efectivamente não fui só eu que, durante todo o período dos meus estudos, tive de passar a maior 30
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parte do tempo com a ideia do suicídio, a isso arrastado pelo ambiente brutal, rigoroso e infame em todos os seus aspectos, por um lado, e pela maior sensibilidade e susceptibilidade de qualquer jovem, por outro. O período dos estudos é um período dominado principalmente pela ideia do suicídio, se alguém o negar é porque esqueceu tudo. Quantas vezes, centenas de vezes com certeza, eu andei pela cidade pensando só no suicídio, só na extinção da minha existência e onde e como é que eu havia de cometer o suicídio (sozinho ou acompanhado), mas estas ideias e tentativas, provocadas por tudo o que havia nesta cidade, levavam sempre a regressar ao internato, ao cárcere do internato. A ideia do suicídio, a única operante de forma ininterrupta, não a tinha cada um só por si, todos tinham este pensamento ininterrupto, e uns foram logo mortos por este pensamento e outros por este pensamento apenas destroçados, sem dúvida destroçados para toda a vida; sobre a ideia do suicídio e sobre o suicídio sempre se debateu e discutiu e em todos sem excepção ininterruptamente se silenciou, e reiteradamente saiu de entre nós um suicida de facto, eu não indico os seus nomes, que em grande parte já não sei, mas vi-os a todos pendurados e despedaçados, como prova do que isso tinha de horrível. Sei de vários enterros no Cemitério Municipal e no Cemitério de Maxglan, nos quais esses jovens educandos de treze ou catorze ou de quinze ou dezasseis anos, assassinados pelo seu meio ambiente, foram enterrados, não sepultados, pois nesta cidade profundamente católica esses jovens suicidas não eram, naturalmente, sepultados, mas apenas enterrados nas condições mais deprimentes e mais reveladoras da hipocrisia humana. Esses dois cemitérios estão cheios de provas da fidelidade da minha memória, que por coisa alguma, e por isso estou grato, foi falsificada e que aqui só pode ser expressa numa breve alusão. O Grünkranz, A Causa
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em silêncio junto da cova com as suas botas de oficial, os chamados parentes do suicida, que ali estão com um terror cheio de vergonha e pomposamente vestidos de preto, os condiscípulos, os únicos junto da cova que sabem a verdade e o verdadeiro horror da verdade e que observam o decorrer desses enterros embaraçosos, é isto que eu vejo, palavras com que os chamados encarregados de educação enlutados procuram distanciar-se do suicida, enquanto o fazem descer para a terra no seu caixão de madeira, é o que eu oiço. Um padre não tem nada a ver com o enterro de um suicida numa cidade como esta, entregue por completo à estupidez do catolicismo e completamente dominada por essa estupidez católica e que ainda por cima era também nessa época uma cidade inteiramente nazi. O final do Outono e a chegada da Primavera com podridão e febre exigiam sempre as suas vítimas, aqui mais do que em qualquer outra parte do mundo, e os mais predispostos ao suicídio são os mais novos, deixados pelos seus progenitores e outros educadores entregues a si próprios e aos estudos e efectivamente meditando sempre e só em auto-extinção e autodestruição, para os quais simplesmente a verdade e a realidade são ainda tudo e que nessa verdade e realidade, como numa única horribilidade, acabam por fracassar. Cada um de nós podia cometer suicídio, nuns podíamos vê-lo antecipadamente com nitidez, noutros não, mas raramente nos enganávamos. Quando um, de repente num estado de fraqueza, já não conseguia resistir à terrível pressão do seu mundo interior, bem como do mundo circundante, porque havia perdido o equilíbrio desses dois pesos que permanentemente o oprimiam, e depois subitamente, a partir de um determinado momento, tudo nele indicava suicídio, era possível notar em todo o seu modo de ser e reconhecer em breve com uma nitidez assustadora a sua decisão de cometer suicídio, 32
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estávamos sempre preparados para que se tornasse um facto esse terrível desenlace que não nos surpreendia, preparados para o suicídio do nosso condiscípulo e companheiro de infortúnio, consumado então de forma consequente, ao passo que ao director, como aos seus acólitos, nunca, nem num único caso sequer, despertou a atenção uma tal fase de preparação para o suicídio, que se desenvolvia e podia observar sempre, mesmo exteriormente, durante muito tempo, e por isso ele ficava naturalmente sempre espantado com o suicídio do suicida seu educando ou fingia ficar espantado com o suicídio desse seu educando suicida, todas as vezes se mostrava horrorizado e ao mesmo tempo enganado por esse jovem que não passava de um infeliz e ele considerava um desavergonhado impostor e era sempre impiedoso na sua reacção, que a todos nós repugnava, ao suicídio do educando, acusando friamente e de uma maneira nazisticamente egoísta um culpado que naturalmente estava de qualquer modo sempre inocente, pois o suicida não tem culpa nenhuma, a culpa é do ambiente em que vive, aqui, portanto, sempre do ambiente católico-nazi em que vivia o suicida e que o oprimia e impelia para o suicídio, qualquer que tivesse sido a razão ou as centenas e milhares de razões que a cometer suicídio o tinham levado, e num internato ou num estabelecimento educativo, cuja verdadeira designação oficial era mesmo Lar de Estudantes Nacional-Socialista, e precisamente num como o da Schrannengasse, que naturalmente em tudo induz e incita qualquer pessoa sensível ao suicídio e tem efectivamente de levar ao suicídio numa elevada percentagem, tudo era ininterruptamente razão para o suicídio. Os factos são sempre assustadores e não os podemos encobrir com o nosso medo desses mesmos factos, que doentiamente trabalha e se alimenta em cada um de nós de forma ininterrupta, falseando assim toda a história natural enA Causa
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quanto história do homem e transmitindo toda essa história como uma história sempre por nós falseada, porque é hábito falsear a história e como falseada a transmitir, quando bem sabemos que toda a história é apenas uma história falseada e só como falseada foi sempre transmitida. Que ele havia entrado para o internato com a finalidade da sua destruição, mesmo do seu aniquilamento, não para um acurado desenvolvimento da inteligência e da percepção e da sensibilidade, como lhe asseguraram e depois sempre e reiteradamente lhe fizeram crer, incessantemente e com a insistência dos encarregados de educação, que estão, no fundo, perfeitamente conscientes dessas mentiras de educadores, de todas as mais descaradas e pérfidas e criminosas, em breve para ele, o educando até então inteiramente crédulo, se tornara evidente, e ele não conseguira compreender sobretudo o avô enquanto seu encarregado de educação (o seu tutor fora chamado às fileiras, à chamada «Wehrmacht» alemã, e fez toda a guerra nos chamados Balcãs jugoslavos), hoje sei que o meu avô não tinha outra solução senão meter-me no internato da Schrannengasse e, como preparação para o liceu, na Andräschule, uma escola básica complementar, se não queria que eu ficasse excluído de qualquer espécie de ensino secundário e, por consequência, mais tarde do ensino superior, mas mesmo pensar em fugir teria sido disparate, quando a única possibilidade de fuga era o suicídio, e por isso muitos preferiam atirar da janela a sua existência dominada pelo totalitarismo nacional-socialista (e por esta cidade, que, se não glorificava ou mesmo idolatrava em tudo esse totalitarismo, decerto o fomentava com insistência e que para o jovem desprotegido, mesmo sem esse totalitarismo nacional-socialista com uma influência permanente em tudo, sempre tinha como objectivo a sua decomposição e destruição e morte), uma existência, portanto, abalada e impe34
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lida para o suicídio, atirá-la de uma das paredes rochosas do Mönchsberg, optando assim por acabar com tudo de uma forma rápida, da forma mais rápida possível, em vez de se deixarem destruir e aniquilar a pouco e pouco por um projecto de educação estatal-sádico-fascista, enquanto sistema educativo que dominava o Estado segundo as regras da arte da educação e, portanto, da destruição de pessoas da Grande Alemanha de então, pois mesmo o jovem que saía ou se escapava de uma instituição desse género classificada de internato, e de nenhum outro falo eu neste caso, era para o resto da vida e para o resto da sua existência sempre problemática, fosse ele quem fosse e o que quer que viesse a ser, de qualquer modo uma natureza morta de humilhação e simultaneamente desesperada e, por isso, uma natureza perdida sem esperança, um jovem aniquilado em consequência da sua estada num cárcere educativo de uma tal espécie como recluso educativo, ainda que pudesse continuar a viver durante décadas, fosse ele o que fosse e onde quer que fosse. Assim, havia sobretudo dois medos que, nesse tempo, dominavam o educando que eu era então, o medo de tudo e de todos no internato, particularmente o medo do Grünkranz, que, sempre de forma inopinada, aparecia e castigava com toda a infâmia e astúcia militares e era um oficial exemplar e um oficial exemplar da SA, que eu quase nunca vi vestido à civil, mas sempre com o uniforme de capitão ou o uniforme da SA, esse homem nacional-socialista até à medula, que provavelmente nunca conseguiu vencer os seus espasmos e contra-espasmos sexuais e perverso-geralmente-sádicos, como eu agora sei, e dirigia um grupo coral de Salzburgo, esse homem, por um lado, e, por outro, a guerra, que de súbito se tornara perceptível e estava presente, não só como um pesadelo enquanto relato, que devorava gente e dominava toda a Europa, mas se passava lá muito A Causa
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longe e nos chegava através dos jornais e dos relatos dos familiares que vinham gozar a sua licença de soldados, como o meu tutor, que estava nos Balcãs, e o meu tio, que estava estacionado na Noruega e me ficou na memória como um comunista e inventor genial, que ele foi durante toda a vida, sempre como um espírito que em qualquer caso me confrontava com pensamentos extraordinários e perigosos e com ideias incríveis e igualmente perigosas e como um homem criativo, conquanto um carácter morbidamente instável, mas também uma guerra que de súbito para todos nós estava bem presente nos chamados alarmes aéreos ou de ataques aéreos, dois medos, entre os e nos quais este período do internato tinha de se tornar, em cada vez mais larga medida, numa ameaça para a existência. A matéria dos estudos era impelida para segundo plano pelo medo do nacional-socialista Grünkranz, por um lado, e pelo medo da guerra sob a forma de centenas e milhares de aviões que todos os dias, ribombantes e ameaçadores, obscureciam e anuviavam o céu claro, por outro, pois a partir de certa altura já não era na escola, na Andräschule ou nas salas de estudo e, portanto, com o que tínhamos para estudar, que passávamos a maior parte do tempo, mas sim nos abrigos antiaéreos, que, como tínhamos observado durante meses inteiros, haviam sido escavados nos dois montes da cidade por estrangeiros, principalmente russos e franceses e polacos e checos, condenados a trabalhos forçados em condições desumanas, galerias enormes com centenas de metros, às quais a população da cidade acorria, primeiro só por curiosidade e só de forma hesitante, mas depois, após os primeiros bombardeamentos também em Salzburgo, todos os dias aos milhares, que o susto e o medo impeliam para essas cavernas tenebrosas, nas quais se passavam diante dos nossos olhos as cenas mais horríveis e muitas vezes letais, pois a ventilação nas galerias não era suficiente 36
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e muitas vezes estive eu com dezenas e, pouco a pouco, com centenas de crianças e mulheres e homens de cabeça esvaída nessas galerias umbrosas e húmidas, nas quais vejo ainda hoje os milhares de pessoas que nelas se haviam refugiado, comprimidas umas contra as outras, temerosas, em pé e sentadas e deitadas. Os abrigos nos montes da cidade constituíam um refúgio seguro contra as bombas, mas muitas pessoas morreram nesses abrigos ou de asfixia ou de medo, e eu vi muitas das que aí encontraram a morte serem, já como cadáveres, arrastadas para fora das galerias. Muitas vezes, logo após a entrada no chamado abrigo da Glockengasse, para o qual nós próprios íamos sempre, todos os educandos do internato conduzidos por guias para isso designados, condiscípulos ou estudantes mais velhos, juntamente com centenas e milhares de alunos de outras escolas, pela Wolfdietrichgasse, passando junto da Hexenturm, até à Linzergasse e à Glockengasse, logo após a entrada no abrigo havia filas inteiras de alunos que desmaiavam e tinham de ser arrastados de imediato para fora do abrigo, para que se salvassem. Diante das entradas do abrigo estavam sempre à espera alguns grandes autocarros com macas e mantas de lã, nos quais se metiam esses desmaiados, mas na maior parte dos casos eram mais os desmaiados do que os lugares que para eles havia nos autocarros, e aqueles que não tinham lugar nos autocarros eram colocados ao ar livre diante das entradas do abrigo, enquanto os que iam nos autocarros eram levados, através da cidade, até ao chamado Neutor, onde os autocarros com aqueles que neles iam deitados, muitas vezes também neles entretanto falecidos, ficavam estacionados até que fosse dado o sinal de fim de alarme. Eu próprio desmaiei por duas vezes no abrigo da Glockengasse e fui arrastado para um autocarro desses e, durante o estado de alarme, levado para o Neutor, mas em cada uma desA Causa
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sas vezes me refiz rapidamente com o ar fresco fora do abrigo, de modo que me foi possível fazer também nos autocarros no Neutor as minhas observações, como mulheres e crianças desamparadas iam a pouco e pouco acordando do seu desmaio ou simplesmente já desse desmaio não acordavam, e não era possível saber se aquelas que já não acordavam tinham morrido de asfixia ou de medo. Esses mortos por asfixia ou de medo foram as primeiras vítimas desses chamados ataques aéreos ou de terror, antes ainda de ter caído em Salzburgo uma única bomba. Até isso ter acontecido, em meados de Outubro de mil novecentos e quarenta e quatro, num dia de Outono perfeitamente límpido ao meio-dia, ainda muitas pessoas morreram desse modo, tendo sido as primeiras de muitas centenas ou milhares que depois, nos verdadeiros chamados ataques aéreos, ataques de terror a Salzburgo, perderam a vida. Por um lado tínhamos medo de um verdadeiro ataque aéreo ou à bomba ou de terror à nossa cidade, que até a esse meio-dia de Outubro fora inteiramente poupada, mas, por outro, nós todos (educandos) desejávamos efectivamente, em segredo, ser confrontados com um desses ataques aéreos ou à bomba ou de terror como uma verdadeira vivência, não tivéramos ainda a nossa vivência de um terrível acontecimento dessa natureza, e a verdade é que nós, por curiosidade (pubertária), sentíamos um enorme desejo de que, depois das centenas de cidades alemãs e austríacas que já tinham sido bombardeadas e em grande parte ou mesmo completamente destruídas, como nós sabíamos e o que não só não nos ocultavam, como também todos os dias nos era forçosamente dado a conhecer através de toda a espécie de relatos pessoais ou do que os jornais publicavam com todo o seu horror de autenticidade, também a nossa cidade fosse bombardeada, o que realmente veio a acontecer, creio que no dia dezassete de Outubro. Como centenas 38
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de vezes antes, fomos nesse dia, em vez de para a escola ou da escola, logo pela Wolfdietrichstrasse para o abrigo da Glockengasse e aí, com a disponibilidade para a apreensão e a observação e, portanto, também para a sensação, que num jovem é sempre a maior possível, apercebemo-nos do que se passava, algo já habitual, mas sem dúvida terrível e assustador, da angústia das pessoas que estavam no abrigo, em pé e sentadas e deitadas, mais ou menos confusas, mas ininterruptamente dominadas por completo, já durante muito tempo, consciente ou inconscientemente, por tudo o que de horroroso tinha a guerra, sobretudo da angústia das crianças e dos estudantes e das mulheres e dos velhos, que se observavam incessantemente e com desconfiança, num desamparo mútuo e no estado de permanente expectativa da guerra, como se já fosse esse o seu único alimento, e que só já seguiam tudo de uma forma apática com os olhos abatidos pelo medo e pela fome, aceitando com indiferença, em grande parte os adultos, tudo o que estava a acontecer, tudo o que no seu total desamparo ia chegando ao fim. Todas essas pessoas estavam, como nós, habituadas havia muito aos moribundos no abrigo, tinham aceitado havia muito o abrigo e, portanto, o que de horroroso tinha a escuridão desse abrigo, o local que todos os dias tinham de demandar, a ininterrupta humilhação e destruição da sua natureza. Nesse dia, na altura em que soava sempre o chamado sinal de fim de alarme, ouvimos de repente um estrondear, apercebemo-nos de um abalo invulgar do solo, a que se seguiu um completo silêncio no abrigo. As pessoas olharam-se, não disseram nada, mas deram a entender com o seu silêncio que tinha acontecido agora o que já havia meses receavam, e efectivamente, pouco depois desse abalo e do silêncio que se lhe seguiu durante um quarto de hora, depressa se espalhou a ideia de que tinham caído bombas na cidade. Depois do sinal de fim de A Causa
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alarme, as pessoas, ao contrário do que até então fora hábito, precipitaram-se para fora do abrigo, queriam ver com os seus próprios olhos o que sucedera. Porém, quando nos encontrámos ao ar livre não vimos nada diferente do que era habitual, e julgámos que afinal era mais uma vez apenas o boato de que a cidade tinha sido bombardeada, e duvidámos imediatamente desse facto, retomando logo a ideia de que esta cidade, que é considerada uma das mais belas do mundo, não seria bombardeada, no que realmente muita gente nesta cidade acreditava. O céu estava claro, azul-acinzentado, e não ouvimos nem vimos qualquer prova de um bombardeamento. De repente, porém, constou que afinal a parte antiga da cidade, isto é, a que ficava na outra margem do Salzach, tinha sido destruída, tudo aí fora destruído. Nós tínhamos imaginado um bombardeamento de uma maneira diferente, toda a terra devia ter tremido e outras coisas mais, e descemos a correr a Linzergasse. Nessa altura ouvimos toda a espécie de sinais, sinais de emergência de bombeiros e ambulâncias, e depois de corrermos, por trás da fábrica de cerveja Gabler, pela Bergstrasse até à Marktplatz, vimos de repente os primeiros sinais de destruição: as ruas estavam cheias de escombros, vidros estilhaçados e paredes caídas, e no ar havia o cheiro característico da guerra total. Uma bomba certeira tinha reduzido a chamada casa de habitação de Mozart a um monte de destroços fumegantes e danificado gravemente, como vimos de imediato, os edifícios vizinhos. Por mais horrível que fosse este quadro, as pessoas não ficaram aí paradas, mas, na expectativa de uma devastação ainda muito maior, continuaram a correr para a parte antiga da cidade, onde se supunha que tinha sido o centro da destruição e de onde vinha toda a espécie de ruídos e de cheiros até então para nós desconhecidos, apontando para uma maior devastação. Até passar a chamada Staatsbrücke, eu não 40
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conseguira verificar qualquer alteração do que era habitual, mas no Alter Markt o conhecido e apreciado Slama, um estabelecimento de vestuário para homem, onde o meu avô, quando tinha dinheiro e oportunidade para isso, costumava fazer compras, estava grandemente danificado, como já de longe se podia ver, todas as janelas da loja e os vidros das montras despedaçados e esfarrapadas as peças de vestuário expostas por detrás, que, conquanto de qualidade inferior, como não podia deixar de ser durante o período da guerra, ainda assim despertavam a cobiça, e eu fiquei admirado por as pessoas que tinha visto no Alter Markt, quase sem fazer caso da destruição do Slama, correrem em direcção à Residenzplatz, mas logo que dobrei a esquina do Slama, com vários outros educandos, compreendi o que levava as pessoas a não ficarem aí paradas, mas continuarem a andar a toda a pressa: a catedral tinha sido atingida por uma chamada mina aérea e a cúpula caíra na nave da igreja e nós tínhamos chegado no momento exacto à Residenzplatz: uma enorme nuvem de pó estendia-se por cima da catedral e no sítio onde estivera a cúpula havia agora um buraco do mesmo tamanho e podíamos olhar directamente, logo da esquina do Slama, para a grande pintura, em grande parte brutalmente despedaçada, que havia nas paredes da cúpula: estas elevavam-se agora, iluminadas pelo sol da tarde, para o céu de um azul-claro; como se ao enorme edifício, que dominava o panorama da parte baixa da cidade, tivessem aberto nas costas uma ferida que sangrava horrivelmente, era esta a impressão que dava. Toda a praça abaixo da catedral estava cheia de pedaços de parede e as pessoas que, como nós, acorriam de todos os lados, olhavam com espanto o quadro fascinante e exemplar, monstruoso sem dúvida, que era para mim uma monstruosidade como beleza e que não me inspirava qualquer susto ou pavor, de repente A Causa
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vi-me confrontado com a brutalidade absoluta da guerra e ao mesmo tempo fascinado por essa monstruosidade e permaneci durante alguns minutos, sem dizer uma palavra, a contemplar o quadro, espantoso e inconcebível, que a praça, com a catedral pouco antes atingida e brutalmente lacerada, constituía para mim e em que ainda continuava o movimento de destruição. Depois fomos, como todos os outros foram, para o outro lado, para a Kaigasse, que fora quase por completo destruída por bombas. Durante muito tempo aí ficámos, compelidos à inactividade, diante dos enormes e fumegantes montes de escombros, sob os quais, segundo se dizia, muitas pessoas, provavelmente já mortas, estavam soterradas. Olhávamos para os montes de escombros e para os que neles procuravam desesperadamente pessoas, e vi nesse momento toda a impotência e perplexidade de quem tinha, de súbito, entrado directamente na guerra, da pessoa completamente desamparada e humilhada, que subitamente tomava consciência do seu desamparo e da sua absurdidade. Pouco a pouco tinham chegado cada vez mais equipas de socorro e nós lembrámo-nos de repente da ordem do nosso internato e voltámos para trás, mas acabámos por não ir para a Schrannengasse, mas sim para a Gstättengasse, onde se tinham registado devastações tão grandes como na Kaigasse. Na Gstättengasse, na casa muito antiga à esquerda do ascensor do Mönchsberg, a qual nessa altura pertencia ainda a parentes meus, que indubitavelmente no momento do ataque estavam em casa, vi, a partir da casa dos meus parentes, quase todos os edifícios completamente destruídos, em breve tive, porém, a certeza de que os meus parentes, um mestre-alfaiate, que tinha ao seu serviço vinte e duas máquinas de costura e as respectivas vítimas, e a sua família estavam vivos. No caminho para a Gstättengasse pisei um objecto mole que estava no passeio diante da igreja do Bürgerspi42
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tal e julguei que se tratava, quando pisei esse objecto, da mão de uma boneca, e os meus condiscípulos julgaram igualmente que se tratava da mão de uma boneca, mas era a mão de uma criança, que à criança tinha sido arrancada. Só ao ver essa mão de criança é que este bombardeamento de aviões americanos à minha cidade se tornou subitamente, de uma sensação que pusera o rapaz que eu era então num estado febril, num horroroso acto de violência e numa catástrofe. E quando nós depois, nós éramos uns quantos, horrorizados por aquele achado diante da igreja do Bürgerspital, atravessámos a Staatsbrücke e, ao contrário de tudo o que seria razoável, não regressámos ao internato, mas corremos até à estação de caminho-de-ferro e entrámos na Fanny von Lehener Strasse, onde tinham caído bombas no edifício do Konsum, que tinham matado muitos dos seus empregados, e vimos, por detrás da grade de ferro do parque do chamado Konsum, mortos cobertos com lençóis e dispostos em filas, com os pés nus na relva cheia de pó, e pela primeira vez vimos passar camiões que transportavam grandes pilhas de caixões de madeira para a Fanny von Lehener Strasse, imediatamente e em definitivo se desvaneceu em nós o fascínio da sensação. Até hoje não esqueci os mortos cobertos com lençóis e deitados na relva do jardim em frente do edifício do Konsum e, se hoje vou até às proximidades da estação, vejo esses mortos e oiço as vozes desesperadas dos familiares desses mortos, e o cheiro a carne queimada de animais e seres humanos na Fanny von Lehener Strasse continua ainda hoje e reiteradamente a fazer parte desse quadro horroroso. O sucedido na Fanny von Lehener Strasse foi para mim uma vivência determinante e que me marcou para toda a vida. A rua ainda hoje se chama Fanny von Lehener Strasse e o Konsum, reconstruído o edifício, está no mesmo sítio, mas agora, se eu perguntar às pessoas que aí moram e (ou) trabalham, ninguém sabe A Causa
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nada do que eu vi então na Fanny von Lehener Strasse, o tempo vai sempre tornando cada vez mais esquecidas as suas testemunhas. As pessoas viviam nessa altura num estado de angústia permanente e, numa sucessão quase ininterrupta, havia no ar aviões americanos, e a ida para os abrigos para todos se tornou um hábito na cidade, muitos já nem se despiam à noite, para, logo que soasse o alarme, poderem meter numa mala ou numa bolsa o que era mais necessário e ir para os abrigos, mas muitos na cidade contentavam-se em descer para as caves das suas próprias casas, porque já se julgavam aí em segurança, mas as caves, quando nas casas caíam bombas, tornavam-se em sepulturas. Em breve se começou a dar o alarme mais de dia do que de noite, porque os americanos se podiam movimentar à vontade no ar, que, segundo parecia, fora completamente abandonado pelos alemães, em pleno dia os aviões em cardume descreviam as suas trajectórias por cima da cidade em direcção a alvos alemães, e nos fins de quarenta e quatro era já raro de noite o fragor e o zunido dos chamados bombardeiros inimigos no ar. Mas também houve ainda nesse período alarmes nocturnos de ataque aéreo, nesse caso saltávamos da cama e vestíamo-nos e dirigíamo-nos, pelas ruas e ruelas completamente às escuras, como era de norma, para os abrigos, que já estavam sempre cheios pelos habitantes da cidade quando nós lá chegávamos, pois muitos iam logo para os abrigos com toda a família ao começo da noite, antes ainda de ter sido dado o sinal de alarme, preferindo passar logo a noite nesses abrigos, sem esperarem pelo sinal de alarme e sem terem, portanto, de acordar sobressaltados pelo silvar das sirenes e serem impelidos para os abrigos pelas ruas fora, em face do grande número de mortos em Salzburgo, logo após o primeiro ataque as pessoas corriam aos milhares para os abrigos, para os rochedos negros, cintilantes de humidade e que 44
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efectivamente também constituíam sempre um grande perigo, já que provocavam bastantes doenças mortais. Muitas dessas pessoas apanharam realmente nos abrigos as doenças que lhes causaram a morte. Uma vez acordei de noite em sobressalto com o silvo das sirenes, penso eu, e, sem pensar, corri pelo meio dos outros para a casa de banho e voltei da casa de banho para o dormitório e deitei-me e voltei imediatamente a adormecer. Pouco depois fui despertado por uma pancada na cabeça, o Grünkranz tinha-me batido com a lâmpada de bolso na cabeça, eu saltei da cama e, com o corpo todo a tremer, perfilei-me diante dele. Vi então, à luz dessa lâmpada, uma lâmpada do Grünkranz em forma de barra, que todas as camas do dormitório estavam vazias e lembrei-me nesse momento de que realmente tinha sido dado o sinal de alarme e todos tinham ido para o abrigo, mas eu, em vez de me vestir como os outros, tinha ido à casa de banho e lá tinha-me esquecido de que fora dado o alarme e, ao voltar da casa de banho, fora para o dormitório, completamente em silêncio e às escuras, e para a minha cama, porque julgara que todos estavam a dormir, visto ter-me esquecido do alarme, tinha-me deitado e adormecido imediatamente, sozinho no enorme dormitório, enquanto todos os outros estavam havia muito no abrigo, o Grünkranz, porém, na sua qualidade de vigilante em caso de ataque aéreo, havia-me descoberto ao fazer a sua ronda e acordado pura e simplesmente com uma pancada na cabeça dada com a lâmpada. Ele deu-me uma bofetada e ordenou-me que me vestisse, dizendo-me que ia reflectir sobre o castigo para a minha falta (o castigo foi provavelmente dois dias sem pequeno-almoço), antes de me ordenar que descesse para o abrigo antiaéreo do próprio edifício, onde estava apenas a sua mulher, a senhora Grünkranz, na qual eu tinha confiança, a Grünkranz estava sentada num canto da cave e foi-me permitido sentar-me junto dela, e A Causa
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a presença desta mulher, que tinha um ar maternal e me protegia sempre que lhe era possível, acalmou-me. Contei-lhe que, como todos os outros educandos, me tinha levantado, mas, em vez de me vestir e ir com eles para o abrigo, tinha ido à casa de banho e depois, ao regressar ao dormitório, me esquecera do alarme e voltara a deitar-me, o que tinha irritado o senhor Director, seu marido. Mas não disse que o marido me tinha batido com a lâmpada na cabeça para me acordar, só que tinha de contar com um castigo. Nessa noite não caiu nenhuma bomba. O regulamento do internato deixou por completo de ser respeitado, porque havia alarme com grande frequência e, fosse qual fosse a actividade, esta tinha de ser imediatamente interrompida em caso de alarme e toda a gente se dirigia para os abrigos, ainda enquanto se ouvia a sirene já a corrente humana se movia em direcção aos abrigos e diante das entradas havia sempre cenas horríveis de violência, para entrar as pessoas empurravam-se com toda a brutalidade que lhes era inata e já não conseguiam reprimir, exactamente como quando saíam, e os fracos eram muitas vezes simplesmente espezinhados. Nos abrigos, em que a maior parte já tinha os seus lugares fixos devido ao hábito, eram sempre as mesmas pessoas que ficavam juntas, tendo-se formado grupos e nesses grupos, que eram às centenas, permaneciam elas horas sentadas no chão de pedra e por vezes, quando faltava o ar e as pessoas desmaiavam em série, começavam todas a gritar, mas depois fazia-se também muitas vezes um silêncio tão profundo que dava a impressão de que esses milhares de seres humanos já estavam mortos. Os que desmaiavam eram colocados em mesas compridas de madeira já preparadas, antes de serem levados para fora do abrigo, e eu lembro-me ainda dos muitos corpos de mulheres completamente nus em cima dessas mesas, que eram massajados por enfermeiras e enfermeiros e mui46
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tas vezes também por nós próprios sob a sua direcção, a fim de os manter com vida. Toda essa sociedade da morte, pálida e faminta, que se juntava nos abrigos ia-se tornando, de dia para dia e de noite para noite, cada vez mais fantasmagórica. Nos abrigos, numa escuridão em que só havia angústia e desesperança, essa sociedade da morte era também sempre da morte que falava e de nada mais, todos os horrores da guerra tornados públicos ou vividos pelos próprios e milhares de mensagens de morte vindas de todos os lados e de toda a Alemanha e da Europa inteira eram debatidos nos abrigos por toda a gente sempre com grande insistência, enquanto estavam sentadas nos abrigos essas pessoas explanavam na escuridão que aí reinava, sem qualquer constrangimento, a queda da Alemanha e a situação actual, que se encaminhava cada vez mais rapidamente para a maior catástrofe mundial de todos os tempos, e só se calavam quando o esgotamento era total. Muitas vezes todas essas pessoas que estavam no abrigo caíam num estado de esgotamento horrível, que tudo nelas aniquilava, e em grande parte ficavam deitadas em longas filas e aos montes, adormecidas junto das paredes, cobertas pelas suas roupas e muitas vezes já por completo indiferentes ao estado dos seus semelhantes que aqui e além se ouviam e viam a morrer. Nesse período, a maior parte do tempo estávamos nós, educandos, nos abrigos, aprender e mesmo estudar já de modo algum era possível, mas o funcionamento do internato mantinha-se à força num ritmo conturbado, embora nós, por exemplo, muitas vezes só voltássemos dos abrigos para o internato às cinco da manhã, tínhamos de nos levantar, segundo o regulamento, logo às seis e ir para os lavabos, para às seis e meia em ponto estarmos na sala de estudo, mas num estado de esgotamento total, em que não era possível pensar em estudar fosse o que fosse, e o pequeno-almoço era muitas vezes novamente a parA Causa
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tida para os abrigos, de modo que se passavam com frequência dias inteiros em que não chegávamos a ir para a escola nem para as aulas. Assim, quase só me vejo nesse tempo a caminhar pela Wolfdietrichstrasse para o abrigo e do abrigo, pela Wolfdietrichstrasse, de volta para o internato, sempre em grupos, e as refeições, cujo horário era cada vez mais irregular e que de dia para dia iam piorando, eram apenas tempos de espera pela nova partida para o abrigo. Em breve deixou quase por completo de haver aulas na Andräschule, porque se fechava a escola logo que havia o chamado pré-aviso e mandavam-se os alunos sair da escola e ir para os abrigos, e todos os dias pelas nove horas havia logo pré-aviso e as aulas, que começavam às oito, só já consistiam em esperar pelo pré-aviso às nove, e já nenhum professor se dava ao trabalho de começar efectivamente a aula, tudo ficava à espera que houvesse o pré-aviso e fosse dada ordem de ir para os abrigos, nem se chegava a abrir as pastas, que ficavam em cima das carteiras ao alcance da mão, os professores passavam o tempo das oito às nove, até ao pré-aviso, a comentar as notícias dos jornais ou a referir casos de pessoas que tinham morrido, ou descreviam a destruição de muitas das mais famosas cidades alemãs, mas, no que me diz respeito, havia sempre as lições de inglês e violino, pois no período entre as duas e as quatro horas geralmente não havia alarme. O professor de violino, Steiner, continuava a dar-me as lições, sem qualquer preocupação, no terceiro andar da sua casa, a professora de inglês só já na sala escura do restaurante que pertencia à pensão da Linzergasse. Um dia, provavelmente depois do segundo bombardeamento da cidade, o restaurante da Linzergasse, em que a senhora de Hannover me dava as lições, foi transformado num monte de escombros, eu não fazia ideia nenhuma de que o restaurante tivesse sido destruído por completo e fui para a lição, mas de 48
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repente, quando estava diante do monte de escombros, alguém que eu não conhecia, mas que aparentemente me conhecia a mim, disse-me que debaixo dos escombros estavam todas as pessoas que moravam na pensão e também a minha professora de inglês. Parado diante dos escombros, eu ouvia, por um lado, o que o desconhecido me estava a relatar e pensava simultaneamente na minha professora de inglês de Hannover, agora já morta, que, depois de ter perdido tudo num bombardeamento em Hannover, de ter sido totalmente «ausgebombt» (é esta a expressão alemã para uma pessoa que perdeu tudo num ataque aéreo ou num chamado «Terrorangriff», um ataque, especialmente aéreo, em que se produz uma destruição total), se refugiou em Salzburgo, para aqui estar em segurança contra as bombas, e que aqui não só tinha novamente perdido tudo, mas perdera também a própria vida. Hoje existe um cinema no local em que antigamente havia uma pensão com um restaurante, no qual a senhora de Hannover me dava lições de inglês, e ninguém sabe do que é que eu falo quando falo disso, como em geral toda a gente, segundo parece, perdeu a memória no que diz respeito às muitas casas destruídas e às pessoas que então foram mortas, toda a gente se esqueceu de tudo isso ou disso já nada quer saber quando em tal se fala, e quando ainda hoje me encontro na cidade, dirijo-me com frequência às pessoas e falo desse tempo horrível, mas elas reagem abanando a cabeça. Em mim próprio, porém, esses terríveis acontecimentos continuam tão presentes como se tudo isso tivesse sido ontem, ruídos e cheiros surgem imediatamente quando vou à cidade, que apagou a sua recordação, segundo parece, e quando aqui falo com pessoas que são efectivamente velhos habitantes desta cidade e que viveram e presenciaram o mesmo que eu também vivi e presenciei, falo com gente extremamente irritada, ignorante, esquecida, é como se A Causa
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falasse com uma única ignoração ofensiva, na verdade ofensiva do entendimento. Quando eu me vi diante do restaurante totalmente destruído e, portanto, diante do monte de escombros e de repente a professora de inglês de Hannover já não era mais que uma recordação, nem sequer chorei, embora tivesse vontade de chorar, e ainda me lembro de que, notando subitamente a circunstância de ter na mão um envelope em que estava o dinheiro a pagar pelo meu avô à professora pelo seu trabalho de me ensinar inglês, ponderei se não devia dizer em casa que tinha entregado o dinheiro à professora de inglês, a senhora de Hannover, ainda antes da sua morte horrível; não sei e, portanto, não posso dizer como procedi, provavelmente disse em casa que tinha pago as lições à senhora ainda antes da sua morte. De repente eu ficava assim sem lições de inglês e só já com as de violino. Durante essas lições de violino, eu olhava, seguindo as indicações do meu severo e nervoso professor, isto é, por um lado ouvindo e executando as ordens do Steiner e, por outro, pensando em tudo menos no que à lição de violino se referia e, desse modo, não avançando obviamente na aprendizagem do violino, eu olhava para baixo, para o Cemitério de S. Sebastião, para o belo mausoléu de cúpula do arcebispo Wolfdietrich e para os túmulos enquanto monumentos funerários e para os jazigos, que com o tempo já estavam meio abertos e de onde saía um frio horrível que me angustiava, para as arcadas do cemitério com os nomes dos cidadãos de Salzburgo, entre os quais se encontram muitos nomes de parentes meus. Eu sempre gostei de ir aos cemitérios, isto tinha eu da minha avó materna, que era uma apaixonada visitante de cemitérios e sobretudo de capelas mortuárias e câmaras-ardentes, e ainda quando eu era muito pequeno ela me levava muitas vezes aos cemitérios, para me mostrar os mortos, quaisquer que eles fossem, sem ter com eles nenhum 50
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parentesco, mas sempre mortos que estavam amortalhados nos cemitérios, ela sempre se sentira fascinada pelos mortos, pelos mortos colocados no caixão, e procurou sempre transmitir-me essa sua fascinação enquanto paixão, mas ela, ao levantar-me para eu ver os mortos no caixão, só o que conseguira fora sempre encher-me de medo, eu ainda hoje vejo muitas vezes como ela me leva para as capelas mortuárias e me levanta para eu ver os mortos no caixão e me segura assim todo o tempo que ela consegue aguentar, repetindo o seu estás a ver, estás a ver, estás a ver e assim me segurando até eu começar a chorar, depois punha-me no chão e ficava ela própria ainda bastante tempo a olhar o morto, até sairmos por fim da capela mortuária. Várias vezes por semana a minha avó me levava aos cemitérios e às capelas mortuárias, ela visitava regularmente os cemitérios, primeiro tinha ido ver comigo as sepulturas dos familiares, depois foi examinando, durante muito tempo, todas as outras sepulturas e jazigos, não lhe tendo provavelmente escapado uma única sepultura, ela sabia tudo sobre todas as sepulturas, como elas eram, em que estado se encontravam e todos os nomes inscritos nessas sepulturas e jazigos lhe eram sempre familiares, e assim tinha ela sempre um assunto de conversa em qualquer grupo de pessoas. E provavelmente foi da minha avó que recebi a minha própria e, confesso, grande fascinação pelos cemitérios e nos cemitérios, pois a minha avó não me ensinou outra coisa senão a visitar os cemitérios e a examinar e contemplar as sepulturas e a examinar e observar intensamente os mortos colocados no caixão. Ela tinha os chamados cemitérios preferidos e todos os cemitérios que ela na sua vida conheceu e repetidamente visitou, esses cemitérios que marcaram as etapas da sua vida em Meran e em Munique, em Basileia e em Illmenau, na Turíngia, em Speyer e em Viena e na sua cidade natal, Salzburgo, onde o seu cemitério predilecto não A Causa
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era o de Sankt Peter, que é considerado frequentemente o mais belo cemitério do mundo, mas o Cemitério Municipal, no qual está sepultada a maior parte dos meus parentes e dos que me acompanharam na vida e já faleceram. Para mim próprio foi sempre o Cemitério de S. Sebastião o mais sinistro e, por isso, o mais fascinante, e eu estive muitas vezes horas e horas no Cemitério de S. Sebastião, sozinho e a meditar sobre a obsessão da morte. Durante as lições de violino, olhando para o Cemitério de S. Sebastião, eu pensava sempre, se o Steiner me deixasse em paz e eu pudesse estar lá em baixo só comigo próprio, indo de sepultura em sepultura, como aprendi com a minha avó, pensando nos mortos e na morte e observando a Natureza entre as e nas sepulturas, como ela aí, numa completa solidão, anunciava e mudava as estações do ano, este cemitério tinha sido abandonado e os antigos proprietários das sepulturas deixaram de se ocupar da sua propriedade; muitas vezes eu sentava-me numa pedra tumular tombada, para me escapar do internato uma, duas horas e me acalmar. O Steiner havia-me ensinado primeiro no violino de três quartos, depois no chamado completo, durante o seu ensino teórico e prático, ele tocava primeiro cada passagem do Sevcik utilizada para o ensino básico e a seguir tinha eu de tocar, sempre do Sevcik, mas a pouco e pouco já sonatas clássicas e outras peças, e ele batia-me com o seu arco nos dedos em momentos determinados, mas sempre imprevistos, castigando-me, com intervalos para ele, para a sua natureza com o tempo completamente ritmizada, adequados, pois ele ficava quase sempre furioso com a minha distracção, com a minha resistência e já doentia relutância à aprendizagem do violino, pois se eu tinha, por um lado, o maior gosto em tocar violino, o maior gosto em fazer música, porque para mim a música era o que de melhor e mais belo havia no mundo, odiava qualquer 52
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espécie de teoria e de processo de aprendizagem e, portanto, o ter de seguir permanente e atentamente as regras do estudo do violino para neste poder avançar, eu tocava o que havia de mais virtuoso segundo a minha sensibilidade, mas por notas não conseguia executar de forma correcta a coisa mais simples, o que naturalmente tinha de irritar contra mim o meu professor Steiner, e eu admirava-me tantas vezes de que ele continuasse a dar-me lições e não as interrompesse um dia simplesmente de um momento para o outro, mandando-me para casa com o meu violino e a correspondente vergonha. A música por mim produzida no meu violino era, para o leigo, a mais extraordinária e aos meus próprios ouvidos a mais virtuosa e excitante, embora fosse inteiramente inventada por mim, e sem ter absolutamente nada a ver com a matemática da música, só com o meu ouvido altamente musical, como Steiner dizia com frequência, fosse a expressão da minha sensibilidade altamente musical, como o Steiner também dizia sempre ao meu avô, que pagava estas lições, expressão do meu talento altamente musical, mas esta música que eu tocava só para minha própria satisfação não era, na verdade, senão uma música destinada, de modo diletante, a servir de fundo às minhas melancolias e que naturalmente obstava, no meu estudo do violino, que devia ser um estudo normal, a que eu avançasse, eu dominava, em suma, o violino com virtuosismo, mas nunca o conseguia tocar de forma correcta segundo as notas, o que não podia deixar de, com o tempo, não só aborrecer, mas também irritar o Steiner. O grau do meu talento musical era, sem dúvida, o mais elevado, mas assim era também o grau da minha indisciplina e da minha chamada distracção. As lições com o Steiner não mostravam senão a inutilidade dos seus esforços, que cada vez ainda mais se ia acentuando. Precisamente na alternância das lições de violino com as de inglês, duas formas de disciplina A Causa
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tradução e introdução de
José A. Palma Caetano
A Autobiografia de Thomas Bernhard, como hoje se lhe chama, porque o próprio autor nunca deu esse título aos cinco volumes que a constituem, foi publicada no espaço de sete anos, entre 1975 e 1982. Os cinco volumes autobiográficos de Thomas Bernhard aqui reunidos — A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982) — ocupam uma posição-chave na relação que existe entre a sua obra, o autor e o público.
Thomas Bernhard AUTOBIOGRAFIA
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