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apresentação, selecção e tradução de
MANUEL AFONSO COSTA
CEMITÉRIO, s.m. […] onde os enlutados parentes unanimemente mentem, […]
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Ambrose Bierce O DICIONÁRIO DO DIABO
Ambrose Bierce O DICIONÁRIO DO DIABO
Ambrose Bierce O DICIONÁRIO DO DIABO
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Ambrose Bierce
O DICIONÁRIO DO DIABO tradução e apresentação
Manuel Afonso Costa
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N O TA
As letras do alfabeto são as do «Alfabeto da Morte» de Hans Holbein (1523). Porque este alfabeto não contém as letras «J» e «U», foram utilizadas em seu lugar, respectivamente, as letras «I» e «V», tal como aconteceu na primeira aplicação deste alfabeto.
TÍTULO ORIGINAL: THE DEVIL'S DICTIONARY
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © MANUEL AFONSO COSTA, 2016 NA CAPA: LETRA «D» DE UM ALFABETO DE HOLBEIN REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO DE 2016 ISBN 978-989-8833-14-3
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Ambrose Bierce, vida e obra
Ambrose Gwinnett Bierce nasceu no Ohio no Condado de Meigs no dia 24 de Junho de 1842 e pensa-se que terá falecido a 26 de Dezembro de 1913 ou 1914, provavelmente no México. Pensa-se, porque depois de uma incursão em território mexicano, desapareceu sem deixar rasto. Dizem que foi fuzilado pelo exército revolucionário de Pancho Villa, mas nem isso é absolutamente seguro. Em língua portuguesa destaco a obra Um Incidente na Ponte de Owl Creek e além desta, um livro de Contos e ainda Esopo Emendado & Outras Fábulas Fantásticas, Fábulas Fantásticas e finalmente, tanto quanto sei, Histórias de Fantasmas. Em toda a sua obra prevalece o humor negro misturado com um pessimismo por vezes libertino e deletério, no entanto o maior problema para introduzir Ambrose Bierce, a grande dificuldade, reside no facto do carácter inclassificável deste autor, ou melhor desta personagem. Até pelo seu misterioso fim, Ambrose Bierce é uma figura de romance, como de resto veio a ser no clássico de Carlos Fuentes, O Velho Gringo. Atrever-me-ia a considerá-lo aparentado a Mark Twain, o que é um facto até fisicamente falando, mas talvez mais, ainda assim, a um cínico, coisa que Twain não era de modo nenhum. Por essa via eu iria ao encontro da sua própria intuição auto-reflexiva e auto-proclamada. O Dicionário do Diabo, a sua obra mais importante e por isso a mais traduzida e divulgada, intitulou-se num primeiro momento O Dicionário do Cínico, consideração essa que acompanhou a versão final e definitiva e que eu mantive aqui nesta versão pessoal. O problema ideológico ficaria assim mais ou menos resolvido, porém, confesso, a designação não me agrada e não se adequa
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ao conteúdo do texto senão a partir de uma perspectiva simplificadora em que o conceito traduz semanticamente um entendimento de senso comum. Mas ao mesmo tempo a posição é totalmente correcta, porque Ambrose Bierce não cultivou um cinismo culto, antes um cinismo de circunstância, de facto ao nível do senso comum. A verdade é que qualquer erupção niilista, ética e moralmente disfórica, truculenta nos seus recursos retóricos pode ser considerada cínica, e estaremos então, desse modo a falhar inevitavelmente algum rigor conceptual. Na história da Filosofia aconteceu muito que alguns conceitos sobreviveram agarrados a escórias deformativas por falta de uma fixação crítica e hermenêutica, subordinada esta ao esforço de clarificação e limpeza levada a cabo por quem de direito. Nesta acepção vou dar alguns exemplos: passou a tonar-se insustentável utilizar os conceitos de transcendentalidade e transcendência de modo intermutável a partir da separação judiciosa levada a cabo por Kant. E, pelos mesmos motivos, a partir de Hegel deixou de ser aceitável a utilização indiscriminada dos conceitos de eticidade e moralidade. Ora, por maioria de razão não se pode nem se deve usar o conceito de cinismo de uma forma genérica e vaga depois da sua poderosa actualização na obra de Peter Sloterdijk, A Filosofia do Cinismo. E se em Sloterdijk, apesar do carácter didáctico do seu texto, se pode falar de alguma dificuldade interpretativa, pela sua complexidade, já o mesmo não se poderá dizer de Racionalidade e Cinismo de Jacques Bouveresse, que é de uma clareza meridiana, uma vez que aí a distinção entre cinismo moderno e cinismo antigo é instrumental e prática, na medida em que o autor pretende justamente distingui-los para melhor poder criticar o cinismo contemporâneo. Para este autor, reporto-me a ele, pois é mais fácil e transparente, o cinismo moderno não tem verdadeiramente nada a ver com o cinismo antigo, uma vez que o primeiro não passa de uma corruptela da grandeza moral do segundo. Posso adiantar-me já, afirmando que Ambrose Bierce não se encaixa em nenhum dos dois. É verdade que os seus aforismos possuem a rispidez, a
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zombaria, o sarcasmo, o azedume e sobretudo a imoralidade própria de um Príncipe do Mal, aqui e ali tinta de algum pessimismo amargurado, mas jamais o sentido moral dos cães, discípulos de Diógenes, ou o relativismo ético radical dos cínicos contemporâneos. Ambrose Bierce não desdenha de todo o sistema globalmente, a sua corrosiva ironia incide sempre sobre casos particulares e identificáveis, os políticos, os religiosos, a crendice, os valores consensuais mas irreflectidos, as verdades sem fundamento que escoram a ideologia dominante. Pode falar-se, como é hábito, de um Bitter Bierce, mas jamais de um aboiyeur. Contudo, não sendo genuinamente cínico, o enciclopedista comunga elementos próprios do cinismo, sobretudo do cinismo antigo. Mas, considerar, sem mais, Ambrose Bierce um cínico, seja na acepção antiga, seja na acepção moderna, vai um passo que não se pode dar. Ambrose Bierce é sobretudo um autor ecléctico que colecciona as ideologias que lhe interessam e lhe permitem usar de um sarcasmo sem contemplações. Sendo assim, eu posso proceder de igual modo relativamente a outras orientações ideológicas similares, como é o caso tanto do epicurismo, como do cepticismo, uma vez que é nesta linha que as suas coordenadas mentais devem ser entrevistas; mas se o faço não é porque seja pertinente tendo em conta a convergência inequívoca com algumas das linhas temáticas destas orientações éticas e morais, é apenas porque ao reconhecer as afinidades e as convergências parciais com estas formas de pensamento e cultura, e reconhecendo que em nenhuma o autor se subsume totalmente, posso passar à configuração de uma ideologia ecléctica do autor encurtando caminho analítico e sintético. O que nos mostra que não são totalmente adequadas as considerações que possam comprometer Ambrose Bierce com a filosofia do cinismo e em particular o conteúdo do seu Dicionário do Diabo; reside ainda mais explícita no facto de que usando os mesmos critérios podermos estabelecer outras injunções ideológicas. Veja-se a título emblemático a possibilidade de aproximação de Bierce aos ideários epicurista e céptico.
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O que melhor caracteriza o pensamento de Epicuro, sobretudo a partir da Carta a Meneceu e das Máximas Vaticanas, é a denúncia sistemática, tal como em Bierce, dos equívocos que assentam numa cultura da mistificação, do erro e do medo, em particular do medo dos deuses. O outro ponto da ideologia epicurista está ligado, para o bem e para o mal, à crítica e abandono da vida pública o que se tornou, como sabemos, o nó górdio da dissensão com os estóicos. Ora, Bierce procede também inúmeras vezes à crítica da vida pública em particular da vida social e política. Finalmente, deve salientar-se, como comum, a mesma atitude de rejeição clara da ubris, sob a forma mais vulgar da ambição e nesse aspecto, tanto social e política como vimos, mas também económica ou de qualquer outra forma de poder. Há contudo um ponto que afasta Ambrose Bierce do epicurismo, que é a questão da irreligiosidade, pois se chega a ser grosseira em Bierce nunca se encontra no epicurismo, cuja filosofia era na sua essência uma Imitatio Dei. Portanto, ficando provado que não é um epicurista, tal como não era um cínico, há elementos epicuristas dispersos no Dicionário. Podemos ainda, a mais justo título, estabelecer uma relação entre Ambrose Bierce e o cepticismo, naturalmente mais centrada agora na vertente gnoseológica; posição que no Dicionário do Diabo aparece permanentemente mas, tal como em tudo o resto, sempre numa perspectiva corrosiva e irrisória. Por último, também não seria destituído de pertinência se paralelamente ao pessimismo dominante na obra pudéssemos rastrear alguns elementos onde se exprime uma dívida ao racionalismo e a uma crença na ideia de progresso. Penso aliás e com razão, parece-me, que uma boa parte do seu pessimismo e desencanto é a expressão invertida do seu espírito racional e ilustrado, mas um pouco amargurado e desiludido, talvez. Em síntese, podemos por pura metodologia construtiva imaginar o pensamento de Bierce numa perspectiva tridimensional; na qual: — o eixo das abcissas, o da horizontalidade mostraria a estrutura axiológica básica essencial, a ideologia, a política, etc. e nesse domínio Bierce é um iconoclasta e de algum modo um cínico;
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— o eixo das ordenadas, o da verticalidade, dar-nos-ia a questão da altura, da elevação, ou seja a questão do excesso e da moderação no quadro do qual Bierce opta sempre por uma banalidade mediana e medíocre, pois há uma clara rejeição por princípio da ambição ou de qualquer forma de heroísmo, podendo considerar-se neste domínio como forma de expansão de uma sensibilidade epicurista; — finalmente o eixo que nos dá a profundidade de campo, ou pelo contrário a sua superficialidade, a sua ausência de espessura existencial, digamos assim: nesse plano a opção de Ambrose Bierce é por um universo sem transcendência, sem espessura metafísica, adstrito à ideia de um mundo empírico no sentido mais prosaico e mais estreito. E nessa perspectiva parece portanto muito dominado por um cepticismo radical mas estritamente imanente. É muito evidente que esta esforçada grelha compreensiva não me satisfaz, senão em parte. Vejamos: Ambrose Bierce cabe no espartilho do cinismo e do cepticismo, sem esforço, embora em qualquer dos casos sem programa e sem qualquer enquadramento histórico. Bierce é um cínico e um céptico à la carte, muito timbrado de um pessimismo niilista também muito seu. A coisa complica-se com a questão do epicurismo, que eu trouxe aqui com um objectivo e não por puro capricho. Se é verdade que globalmente falando a sua ideologia é epicurista no sentido em que condena e apostrofa todas as formas de severidade existencial, de ascetismo mais ou menos bento, é ainda no sentido em que ridiculariza todas as fantasias que possam engendrar medo e superstição, sobretudo as de natureza religiosa; também é verdade que Ambrose Bierce, que propugna por uma posição intermédia relativamente aos outros, é ele próprio um aristocrata. De resto, o seu desdém, por vezes manchado de verdadeiro desprezo, sempre amparado, pela mais pura ironia mordaz e cínico sarcasmo é dessa ordem elitista ditada pela sua educação: os pais não sendo ricos eram bastante ilustrados e com tradição literária na família e além disso sua mãe era descendente do
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separatista e governador da colónia de Plymouth. Penso não exagerar se afirmar que Ambrose Bierce cultivou amplamente uma variante muito especial do horaciano odi profanum vulgus, et arceo. O «muito especial» radica no facto de que o vulgus, para Bierce é toda a gente, desde o soldado ao general, do frade ao bispo, do amanuense ao mais alto dignitário da administração pública ou mesmo das funções de Estado. Bierce varre tudo a eito e compra-os a todos com a mesma moeda. Este radicalismo social elitista é de facto epicurista e configura mesmo o perfil de um misantropo. A misantropia social epicurista detinha-se diante dos confrades que tal como o mestre se afastaram da vida pública e cultivaram um retiro longe do vulgo, esse vulgo alienado pelos negócios, pelas carreiras sociais e políticas, pelo poder enfim. Bierce acabou por fugir, desaparecer, não se sabe ao certo para onde, provavelmente para o México, como reza a literatura e a lenda. Mas durante muito tempo, teve vida pública, o tempo suficiente para destilar em crónicas, a sua misantropia social. Sabe-se que o fez nas páginas de um célebre jornal, que se designava o Examiner do não menos célebre William Randolph Hearst, que, para quem não sabe, foi nem mais nem menos o modelo de Orson Welles no filme Citizen Kane. Este sim, celebérrimo. Dessas crónicas resultou, em boa hora, para nos provocar e divertir o Dicionário do Diabo, que aqui vos deixo. Manuel Afonso Costa Macau, 9 de Junho de 2016
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Prefácio do Autor
O Dicionário do Diabo foi iniciado num semanário em 1881, e continuou a um ritmo irregular com longos intervalos até 1906. Nesse ano, uma grande parte dele foi publicado em artigos de revista com o título de O Universo dos Cínicos em livro, um título que o autor não teve o poder de rejeitar nem a felicidade de aprovar. Para citar os editores do presente trabalho: «Este título mais conveniente foi previamente forçado pelos escrúpulos religiosos dos jornais em que tinha parcialmente aparecido, com a consequência natural de que, quando apareceu nas capas dos jornais o país já tinha sido inundado por uma verdadeira enchente de livros cínicos — os cínicos isto, os cínicos aquilo, os cínicos assim e assado. A maior parte desses livros eram apenas idiotas, ainda que alguns deles merecessem bem ser considerados estúpidos. No seu conjunto promoveram o termo “cínico” a uma tão grande desgraça que qualquer livro sobre o tema já estava desacreditado mesmo antes da sua publicação.» Enquanto isso, alguns dos artistas mais atrevidos do país tiraram partido de algumas partes da obra para os seus propósitos, de tal modo que muitas das definições, das histórias, frases e assim por diante, tornaram-se mais ou menos vulgares na gíria popular. Esta explicação vem aqui, não por qualquer tipo de orgulho na prioridade relativamente a ninharias mas apenas na precaução da acusação de possíveis plágios, o que não é de somenos. Em síntese, o autor deseja ser considerado inocente por aqueles a quem a obra se destina — almas esclarecidas que
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preferem vinhos secos aos adocicados, a consciência ao sentimento, a inteligência ao humor e um inglês limpo ao calão. Uma característica notável do livro, não desagradável esperemos, consiste nas abundantes citações ilutrativas de poetas ilustres, à cabeça dos quais se encontra este clérigo engenhoso e avisado, Padre Gassalasca Jape, S.J., reconhecido através das suas iniciais (G.J.). O autor do texto em prosa manifesta a sua dívida ao Padre Jape e agradece o seu encorajamento e apoio 1.
1 Na versão que vos propomos optámos por deixar cair muitas destas citações ilustrativas. De facto, nem os poetas são ilustres, nem o Padre Gassalasca Jape, S.J. é assim tão engenhoso. Mantivemos, porém, algumas, quando a qualidade literária e o sentido de humor as justificam e ainda quando a sua inclusão serviu o texto, quer reforçando bem o seu sentido, quer mesmo esclarecendo-o em casos de ambiguidade excessiva.
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Abdicação, s.m. Acto pelo qual um Soberano se mostra sensível à subida de temperatura do seu trono. Pobre morte de Isabella, cuja abdicação Pôs toda a Espanha a dar à língua Para que o desempenho, fosse injusto para ser repreendida Ela sabiamente deixou um trono quente de mais para segurá-la. Para a História ela não será um real enigma Apenas uma mera ervilha tostada que saltou da grelha G.J.
Abdómen, s.m. O templo do deus estômago, ao qual todos os verdadeiros homens prestam culto e sacrifício. Para as mulheres esta
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antiga religião merece apenas uma adesão vacilante. Elas às vezes oficiam no altar deste templo, mas é de modo incompleto e a meio gás, pois um culto verdadeiro a esta divindade que os homens adoram sem reservas, não é com elas. Se as mulheres tivessem total poder sobre os negócios do mundo a humanidade tornar-se-ia rapidamente herbívora. Aborígenes, s.m. Pessoas desvalorizadas que oneram o solo dos países recém-descobertos. Em breve deixarão de ser um custo uma vez que passarão a fertilizá-lo. Aborrecido, adj. Pessoa que fala quando queremos que nos ouça. Abracadabra, s.m. Por Abracadabra queremos dizer Um infinito número de coisas É a resposta para o quê? e como? e porquê? E de onde? E para onde? — a qual palavra A Verdade (com o conforto que ela traz) Está ao alcance de todos os que tacteiam na noite Clamando pela Santa Luz da Sabedoria Seja a palavra um verbo ou um substantivo É conhecimento que está fora do meu alcance Eu só sei que ela é proferida De sábio para sábio De Idade para Idade Uma Parte imortal do Discurso! De um homem antigo se diz Que viveu até aos dez séculos de idade Numa Caverna num flanco da montanha
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Ladrão, s.m. Homem de negócios sincero. Ele mantinha na corte uma posição tão alta Que os outros nobres inquiriam as razões. «Porque», Foi a resposta: «aos outros falta habilidade para coçar as costas reais». Aramis Jukes
Lambe-botas, s. 2 gén. Um funcionário útil, que muitas vezes dirige um jornal. Nesta função está intimamente ligado ao privilégio dos chantagistas pelo vínculo de identidade ocasional; na verdade o lambe-botas é só o chantagista sob outro aspecto, embora este último seja frequentemente de uma espécie independente. A ba-
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julação é mais detestável do que a chantagem, tal como o vigarista é mais detestável do que o ladrão de estrada. Lamentável, adj. 2 gén. Estado em que alguém imaginariamente encontra e deixa um adversário ou inimigo. Laocoonte, s. A famosa escultura antiga representando um sacerdote com esse nome e seus dois filhos entre os anéis de duas enormes serpentes. A habilidade e diligência com que o velho e os seus rapazes suportam as serpentes e as obrigam a fazer o seu trabalho constituem uma das mais nobres ilustrações artísticas do domínio da inteligência humana sobre a força bruta. Lazer, s.m. 1. Tipo particular de aborrecimento para aliviar uma fadiga geral. 2. Intervalos lúcidos numa vida desordenada. Legado, s.m. Um presente de alguém que está fora deste vale de lágrimas. Legal, adj. 2 gén. Compatível com a vontade de um juiz com jurisdição. Leiloeiro, s.m. Homem que proclama com um martelo que acaba de ir aos bolsos de alguém, apenas com a língua. Leitura, s.f. É o corpus geral daquilo que se lê. No nosso país consiste, em regra, de novelas de índios, histórias curtas em dialecto e humor brejeiro. Pelo que alguém lê sabemos Sua cultura e herança Sua vida futura conhecemos Por aquilo que o sorriso alcança Por não ler e não rir com a gente Ficou a esfinge menos inteligente Jupiter Muke Lenço, s.m. Pequeno quadrado de seda ou de linho, que se usa em muitas funções ignóbeis no cenário do rosto, e é particularmente útil nos velórios para disfarçar a ausência de lágrimas. O lenço é uma invenção recente; os nossos antepassados, que não o conhe-
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ciam, usavam a manga. A introdução do lenço por Shakespeare no Otelo, é um anacronismo. Desdémona limpava o nariz à saia, enquanto que o dr. Walker e outros reformadores coevos faziam-no com as abas da casaca — o que prova que as revoluções por vezes fazem a história andar para trás. Ler, v.t. Para obter o sentido de algo escrito, se é que tem algum. Geralmente não tem. Levar, v.t. Adquirir, frequentemente pela força, mas de preferência à socapa. Leviatã, s.m. Um enorme animal aquático mencionado por Job. Alguns supõem que possa ter sido uma baleia, mas o distinto ictiólogo, Dr. Jordan, da Universidade de Stanford, mantém com considerável paixão que era uma espécie de gigantesco Girino (Thaddeus polandensis) ou Polliwig-Maria pseudo-hirsuta. Para uma descrição exaustiva e histórica do Girino consulte a monografia famosa de Jane Potter, Thaddeus de Varsóvia. Liberdade, s.f. 1. Um dos bens mais preciosos da imaginação que permite, entre um número infinito de métodos de coerção, através dos quais se exerce a autoridade, a isenção de meia dúzia. 2. Condição política da qual todas as nações acreditam deter virtualmente o monopólio. A distinção entre liberdade e independência é vaga. Os naturalistas não conseguiram encontrar ainda espécimes vivas de nenhuma delas. A crescente população, quente e sem fôlego, ruge em redor do palácio: «liberdade ou morte!» «se vai haver morte», disse o rei, «deixem-me reinar; Vocês vão tê-la, estou certo, não há razão para se queixarem» Martha Braymance
Libertino, s.m. Literalmente um liberto, portanto, aquele que está sob o jugo das suas paixões. Ligas, s.f. p. 1. Bandas elásticas destinadas a impedir que uma mulher possa sair de dentro das meias e devaste o país. 2. Ordem de mérito
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criada por Eduardo III, atribuída a pessoas que se distinguiram em favores ao rei. Outros tipos de serviços públicos são recompensados de outra maneira. Língua (idioma), s.f. A música com a qual nós encantamos as serpentes que guardam o tesouro de outra pessoa. Linho, s.m. «Uma espécie de pano para confecção que, quando feito de cânhamo, implica um grande desperdício de cânhamo». Calcraft o Carrasco. Lira, s.f. Antigo instrumento de tortura. A palavra é agora usada em sentido figurado para designar um dom poético. Litigante, s. 2 gén. Uma pessoa prestes a desistir da sua pele na esperança de manter os seus ossos. Litígio, s.m. A máquina em que você entra como um porco e sai como uma salsicha. LL.D., Letras que indicam o grau Legumptionorum Doctor, ou seja, erudito em leis, dotado de bom senso legal. Contudo há suspeitas que são lançadas sobre esta interpretação pelo facto de que o título anteriormente era ££.d. (Libras e penies), e só era conferido a cavalheiros que se distinguiam pela sua riqueza. À data desta escritura a Universidade de Columbia está considerando a conveniência de criar outro título para clérigos, em vez do antigo D.D. que significa Divinitatis Doctor, doutor em teologia ou Damnator Diaboli. A nova honra será conhecida como Sanctorum Custos e deverá escrever-se $$cts. O nome do Reverendo John Satan foi sugerido como primeiro destinatário do título. Lobisomen, s.m. Lobo que já foi homem pelo menos uma vez. Todos os lobisomens possuem um carácter maligno, pois assumem uma forma bestial para satisfazer apetites bestiais. Porém, alguns, transformados por arte de bruxaria, são tão humanos como o permite o seu gosto por carne humana. Um certo dia, camponeses bávaros capturaram um lobo, ataram-no pela cauda a um poste e
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como era noite foram-se deitar. Na manhã seguinte, o lobo tinha desaparecido. Bastante perplexos, consultaram o padre da paróquia local, que lhes afirmou categoricamente que o preso era um lobisomen, sem margem para dúvidas, e que tinha reassumido a sua forma humana pela manhã. — A próxima vez que apanharem um lobo — disse o bom homem — prendam-no pela pata, e na manhã seguinte encontrarão um luterano. Lógica, s.f. A arte de pensar e argumentar em estrita conformidade com as limitações e incapacidades da humana incompreensão. O fundamental da lógica é o silogismo, que consiste numa premissa maior, numa premissa menor e numa conclusão — assim: Premissa maior: Sessenta homens podem realizar um trabalho sessenta vezes mais rápido que um só homem. Premissa menor: Um homem pode cavar um buraco em sessenta segundos; então — Conclusão: Sessenta homens podem cavar um buraco num segundo. Isto é o que podemos chamar silogismo matemático por meio do qual, combinando lógica e matemática, obtemos uma dupla certeza e somos duas vezes abençoados. Logomaquia, s.f. Guerra em que as armas são as palavras e as feridas punções nas bexigas-natatórias da auto-estima; espécie de concurso em que aos vencedores se nega a recompensa da vitória porque os vencidos estão inconscientes da derrota. Longevidade, s.f. Extensão incomum do medo da morte. Loquacidade, s.f. Perturbação que coloca aquele que dela sofre na incapacidade de se manter calado quando você deseja falar. Louco, adj. Dizemos isso de quem parece afectado por um elevado nível de independência intelectual; aquele que não se adequa às regras do pensamento, do discurso e da acção que resultam do estudo por observação dos que se conformam relativamente a si mesmo; aquele que não concorda com a maioria; em suma de tudo o que é raro. Há um ponto a ter em conta e que consiste no
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Mr. Debs 1 é um cidadão redundante. Theodore Roosevelt
Referendo, s.m. Lei que permite submeter um projecto de lei ao voto popular e deste modo recensear a estupidez da opinião pública. Reflexão, s.f. Actividade do espírito pela qual se obtém uma perspectiva mais nítida da nossa relação com os acontecimentos de ontem e ficamos em condições de evitar perigos que nunca mais iremos encontrar. Reforma, s.f. Aquilo que satisfaz antes do mais todos os reformadores opostos aos reformistas. Regaço, s.m. Um dos dispositivos mais importantes do sistema da fêmea — uma disposição admirável da natureza para o repouso da infância, mas principalmente útil em festas rurais para apoiar pratos de frango frio e as cabeças de homens adultos. O macho da nossa espécie tem um colo rudimentar, imperfeitamente desenvolvido e em nada contribui para o bem-estar substancial do animal. Rei, s.m. Indivíduo do sexo masculino, geralmente conhecido na América por «cabeça coroada», embora nunca use uma coroa e nem tem cabeça para falar com propriedade. Relicário, s.m. Cofre destinado a guardar objectos sagrados, tais como fragmentos da verdadeira cruz, costelas de santos, as orelhas da burra de Balaam, os pulmões do galo que levou Pedro ao arrependimento, etc. Os relicários são geralmente de metal e possuem uma fechadura para impedir que o conteúdo se derrame e proporcione milagres em momentos inoportunos. Uma vez, uma pena das asas do Anjo da Anunciação soltou-se enquanto era celebrado um sermão na Basílica de São Pedro e fez tantas cócegas em 1 Eugene Debs, líder ferroviário norte-americano, candidato presidencial em 1912, perseguido por Theodore Roosevelt e encarcerado por Woodrow Wilson.
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todo o auditório que todos despertaram e desataram a espirrar três vezes com inusitada veemência. A «Gesta Sanctorum» refere que um sacristão da Catedral de Canterbury surpreendeu a cabeça de São Dionísio na biblioteca. Repreendida pelo severo custódio, respondeu que andava à procura de um corpo de doutrina. Esta piada de mau gosto enfureceu tanto o diocesano, que o culpado foi publicamente anatematizado, lançado para uma fossa e substituído por uma outra cabeça de São Dionísio, trazida de Roma. Religião, s.f. Filha da esperança e do medo que vive explicando à ignorância a natureza do incognoscível. Relógio, s.m. Máquina de grande valor moral para o homem, que mitiga a sua preocupação relativamente ao futuro ao recordar-lhe quanto tempo lhe sobra ainda. Renda, s.f. Indicador natural e racional de medida da respeitabilidade. Todos os outros critérios vulgarmente aceites são artificiais, arbitrários e falaciosos. Pois como justamente observou Sir Sycophas Chrysolater, «a propriedade (dinheiro, terra, casas ou mercadorias, ou seja o que for que nos pertence por direito para satisfazer as nossas necessidades) assim como honras, títulos, privilégios e estatuto, ou o conhecimento e favor de pessoas respeitáveis ou competentes, não servem senão para ganhar dinheiro. Portanto, todas as coisas valem na medida em que favorecem esse objectivo, e os seus possuidores devem assumir uma posição de acordo com tais princípios. Como consequência disso, nem o proprietário de um castelo improdutivo — por grande e antigo que seja —, nem aquele que exerce uma dignidade meramente honorífica, nem o favorito, sem bens, de um rei, não podem ser considerados no mesmo plano de quem diariamente aumenta a sua fortuna; e aqueles cujo património é estéril não podem legitimamente aspirar a uma honra maior que a dos pobres e indignos».
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Reparação, s.f. Satisfação que é acrescentada a uma falta cometida e deduzida da satisfação experimentada quando esse mal se cometeu. Réplica, s.f. 1. Insulto prudente que se dá em resposta. Praticado por cavalheiros que têm uma visceral aversão à violência, mas uma forte tendência para ofender os seus semelhantes. Numa guerra verbal, é a táctica dos índios da América do Norte. 2. (réplica artística) Reprodução de uma obra de arte pelo artista original. Chama-se assim para se poder distinguir da «cópia», que é realizada por outro artista. Quando ambas forem executadas com o mesmo virtuosismo, a réplica é mais valiosa, uma vez que se supõe que é melhor e mais bela do que parece. Repórter, s.m. Escritor que à custa de suposições e juízos temerários abre caminho para a verdade e depois a dispersa através de uma tempestade de palavras. Repousar, v.t. Paragem no aborrecimento. Repreensão, s.f. Um dos métodos pelos quais os idiotas preferem perder os seus amigos. Reprovação, s.f. Trata-se, em teologia, da condição de má sorte de um ser humano condenado antes de nascer. A teoria da predestinação foi teorizada por Calvino; a satisfação que ela lhe causava ficava um pouco ensombrada, pela sua convicção, triste e sincera, de que apesar de alguns estarem condenados ao inferno, outros estariam votados à salvação. República, s.f. 1. Nação em que o governante e o governado, não passam da mesma coisa. Só uma autoridade consentida pode impor uma optativa obediência. Na República, a ordem pública é fundada sobre um hábito de submissão que vai decrescendo, herdada de antepassados, que sendo verdadeiramente governados, submetiam-se porque a tal eram obrigados, não tendo outro remédio. Existem todas as espécies de repúblicas, tantas quantos os
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graus entre o despotismo de que são herdeiras e a anarquia para que tendem e conduzem. 2. Entidade administrativa dominada por um número incalculável de parasitas políticos logicamente activos mas só eficazes fortuitamente. Reputação, s.f. Grau de distinção que se situa entre a fama e a glória — um pouco mais suportável que a primeira e um pouco menos intolerável que a segunda. — É por vezes conferida por uma mão inamistosa e desconsiderada. Requiem, s.m. Missa de defuntos, em que os poetas menores nos asseguram que ela é cantada pelos ventos sobre os túmulos dos seus favoritos. Às vezes, para variar os prazeres, entoam um canto fúnebre. Resgate, s.m. A compra do que nem ao vendedor pertence, nem pode pertencer ao comprador. O mais inútil dos investimentos. Residente, s.m. Incapaz de partir. Resignar, v.t. Renunciar a uma honra por uma vantagem e a uma vantagem por uma vantagem maior. Respeitabilidade, s.m. Fruto de uma ligação entre calvície e conta bancária. Respirador, s.m. Aparelho colocado sobre o nariz e a boca de um londrino para filtrar o universo que se vê no momento da sua passagem a caminho dos pulmões. Resplandecente, adj. 2 gén. Diz-se de um simples cidadão americano quando se comporta como um grão-mestre na sua loja maçónica, ou quando evidencia a sua importância na Ordem das Coisas, enquanto unidade elementar de um desfile. «Os Cavaleiros do Domínio estavam tão resplandecentes nas suas casacas de ouro e veludo que os seus patrões dificilmente os tinham reconhecido.» (Crónica das Classes). Responder, v.t. e i. Dar troco, ou manifestar de outro modo que se tem consciência de ter inspirado um interesse no que Herbert
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Spencer chama «eternas coexistências»; Foi assim como o diabo «encolhido como um sapo» junto ao ouvido de Eva respondeu ao toque da lança do anjo. Responder por danos, significa contribuir para o sustento do advogado do queixoso e, de caminho, para a satisfação do próprio queixoso. Responsabilidade, s.f. Carga desmontável que se transfere facilmente para as costas de Deus, do Destino, da Fortuna, da Sorte, ou do vizinho. Os adeptos da astrologia costumam descarregá-la numa estrela. Retaguarda, s.f. Em linguagem militar americana, parte exposta do exército que se encontra mais próxima do Congresso. Restituição, s.f. Fundação ou apetrechamento de universidades e bibliotecas públicas, por meio de legados ou donações. Resultado, s.m. Um tipo particular de desilusão. Tipo de inteligência que vê nas excepções a prova da regra de que a sabedoria é julgada pelo seu resultado. Isto é um disparate monumental: a sabedoria de um acto deve ser julgada pela luz do agente ao realizá-lo. Retaliação, s.f. A rocha natural sobre a qual se construiu o edifício do Direito. Revelação, s.f. Livro célebre no qual S. João dissimulou tudo o que sabia. As revelações são feitas pelos comentadores que, porém, não sabem nada. Reverência, s.f. Atitude espiritual do homem relativamente a um Deus e de um cão relativamente ao homem. Revisor, s.m. Malfeitor que transforma o seu texto num absurdo, para que o tipógrafo o possa tornar ininteligível. Revolução, s.f. No domínio da política, abrupta mudança na forma de desgoverno. Especificamente, na história norte-americana, substituição de um Ministério por uma Administração, o que permitiu que o bem-estar e a felicidade do povo tenha progredido pelo menos um palmo. As revoluções são, em geral, acompanha-
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das de considerável efusão de sangue, contudo considera-se que mesmo assim valem a pena, sobretudo para os que beneficiam com ela e cujo sangue nunca esteve em perigo de ser derramado. A revolução francesa é de indubitável valor para o socialista dos nossos dias: quando ele puxa os fios que movem o seu esqueleto, os seus gestos são indescritivelmente aterrorizadores para todos os tiranos sangrentos suspeitos de fomentar a lei e a ordem. Rezar, v.reg.mt. Pedir para que as leis do universo sejam anuladas em benefício de um único requerente, confessadamente indigno. Rico, adj. Aquele que detém com total confiança, com a convicção de dar conta disso, os bens dos indolentes, dos incompetentes, dos gastadores, dos invejosos e dos azarados. Esta é a opinião que prevalece no submundo, onde a fraternidade humana encontra o seu pleno desenvolvimento, o mais lógico, e a defesa mais sincera. Para os habitantes do mundo normal, a palavra significa sábio e virtuoso. Ridículo, adj. Palavra designada para mostrar que a pessoa à qual ela se dirige é desprovida da dignidade que caracteriza a pessoa que a diz. Pode ser gráfica, mimética, ou simplesmente risível. Diz-se que Shaftesbury via aí a prova da verdade — o que não deixa de ser ridículo, pois muitos erros solenes foram alvo de gozo ao longo dos séculos sem que isso tenha feito diminuir a aprovação popular. Rima, s.f. Sons, em geral maus, que concordam no fim de um verso. Os versos, eles mesmos, não confundir com a prosa, são em geral aborrecidos também. Rimador, s.m. Poeta considerado com indiferença ou pouca estima. R.I.P., Abreviação desenvolta de «Requiescat In Pace» (Descansa em Paz), o que testemunha uma benevolência indolente relativamente aos mortos. No entanto e se acreditarmos no erudito Dr. Drigge, no início estas letras não significavam senão «Reductus In Pulveris» (Reduzido a Cinzas).
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Riqueza, s.f. 1. Uma prenda vinda do céu, que significa: Este é o meu filho amado, com o qual me sinto satisfeito. John D. Rockefeller
A recompensa do labor e da virtude. J.P. Morgan
As economias de muitos nas mãos de alguns». Eugene Debs
Perante a probidade de tais definições, o autor deste dicionário não se atreve a acrescentar seja o que for. 2. Deus da religião dominante no mundo. O seu templo principal encontra-se na cidade santa de Nova Iorque. Jurou que todas as religiões só traziam incerteza E deu cabo dos joelhos a adorar a riqueza Jared Oopf
Riso, s.m. Convulsão interior, produzindo uma distorção das feições e acompanhado por ruídos inarticulados. É infeccioso e, embora intermitente, é incurável. Ser sujeito a ataques de riso é uma das características distintivas dos homens relativamente aos animais — estes últimos são não só insensíveis à provocação do seu exemplo, mas inexpugnáveis aos micróbios que estão na origem da doença. A questão de saber se o riso pode ser transmitido aos animais por inoculação é uma questão que não foi resolvida através da experimentação. O Dr. Meir Witchell sustenta que o carácter infeccioso do riso é devido à fermentação instantânea de sputa difundido num pulverizador. A partir desta peculiaridade ele designa o transtorno Convulsio spargens. Rito, s.m. Cerimónia religiosa ou semi-religiosa regulada por uma lei, um preceito ou um costume, do qual se extrai cuidadosamente o óleo essencial da sinceridade. Romance (de Aventuras), s.m. Ficção que não presta homenagem ao Deus das coisas tal como elas são. Na novela, o pensamento do
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Zani, s.m. Personagem popular da Comedia dell’arte, que imitava com ridícula incompetência o bufão ou o palhaço, sendo portanto o macaquinho de imitação do macaco; o palhaço por sua vez imitava a personagem séria da peça. O Zani é o verdadeiro progenitor do especialista do humor, tal como temos a infelicidade de conhecer hoje em dia. Enquanto no Zani vemos um exemplo de criação; no humorista, vemos um exemplo de transmissão. Uma outra excelente espécie de moderno Zani é o padre, que imita o reitor, que imita o bispo, que imita o arcebispo, o qual imita o Diabo. Zanzibar, s.m. Habitante do Sultanato de Zanzibar, ao longo da costa leste de África. Os zanzibares, povo guerreiro, são conhecidos
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nos Estados Unidos por causa de um incidente diplomático ameaçador que aconteceu há alguns anos. O cônsul americano na capital vivia numa casa com frente para o mar, separada por uma praia de areia. Para grande escândalo da sua família, apesar das repetidas advertências do próprio cônsul, os habitantes da cidade insistiam em usar a praia para banhos. Um dia, uma mulher chegou à beira da água, agachou-se a tirar a roupa (um par de sandálias) quando o cônsul, não foi capaz de controlar a sua irritação e descarregou uma espingarda contra a parte visível do intruso. Infelizmente para a entente cordial que existia entre as duas grandes nações, o banhista era a mulher do Sultão. Zelo, s.m. Uma determinada desordem nervosa que afecta jovens e inexperientes. Paixão que precede uma prostração. Zénite, s.m, Ponto no céu situado directamente sobre um homem parado ou sobre uma couve enterrada na terra. Não se considera que um homem deitado na cama ou uma couve numa marmita possuam um zénite, se bem que sobre este assunto tenha havido antigamente grandes controvérsias entre os eruditos, pois alguns opinavam que a posição do corpo não tinha nenhuma importância. Estes ficaram conhecidos como os Horizontalistas, ao passo que os seus adversários ficaram conhecidos como os Verticalistas. A heresia Horizontalista foi finalmente aniquilada por Xanobus, rei filósofo de Abara e Verticalista convicto. Entrando numa assembleia de filósofos que discutiam o assunto, lançou uma cabeça degolada aos pés dos seus opositores e interpelou-os no sentido de que determinassem o seu zénite, dando a entender que o corpo estava no exterior pendurado pelos pés. Constatando que se tratava da cabeça do seu chefe, os Horizontalistas apressaram-se a declarar-se convertidos à posição que agradava à Coroa e o Horizontalismo passou a ocupar o seu lugar entre as fides defuncti.
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Zeus, s.m. Rei dos deuses gregos adorado pelos romanos como Júpiter e pelos americanos como Deus, Ouro, Plebe e Cão. Alguns navegadores que tocaram as costas da América, incluindo um que pretende ter penetrado até uma distância considerável para o interior do país, pensaram que estes quatro nomes representavam quatro deuses separados, mas em sua obra imortal sobre as crenças sobreviventes, Frumpp insiste que os nativos são monoteístas, e que não possuem outro deus a não ser eles mesmos, que adoravam sob vários nomes sagrados. Ziguezaguear, v.i. Andar para a frente, de modo incerto, de lado a lado, como quem carrega a responsabilidade de um homem branco. (De zed, z, e entalhe, uma palavra islandesa de significado desconhecido). Zoologia, s.f. Ciência e história do reino animal, incluindo a sua rainha, a mosca doméstica (Musca maledicta). O pai da Zoologia foi Aristóteles; como é universalmente considerado e aceite, mas o nome da sua mãe, no entanto, não é ainda consensual para nós. Dois dos homens mais famosos desta ciência foram Buffon e Oliver Goldsmith os quais nos ensinaram (um na História Geral dos Animais o outro na História Animada da Natureza), que a vaca doméstica muda de cornos de dois em dois anos.
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire
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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce
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DEPÓSITO LEGAL 416619/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL
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apresentação, selecção e tradução de
MANUEL AFONSO COSTA
CEMITÉRIO, s.m. […] onde os enlutados parentes unanimemente mentem, […]
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