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Aníbal Fernandes
A beleza castigada…
Herman Melville BILLY BUDD, MARINHEIRO
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BILLY BUDD, MARINHEIRO (U M A N A R R AT I VA N O I N T E R I O R )
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TÍTULO ORIGINAL: BILLY BUDD, SAILOR (AN INSIDE NARRATIVE)
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES CAPA A PARTIR DE HOMMAGE A BUDD DE JEAN COCTEAU 1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO 2013 ISBN 978-989-8566-32-4
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Na sua mais alta expressividade, a beleza masculina — poderá ser dito sem afrontar a verdade biográfica — era emocionalmente sentida por Herman Melville. E, com vontade de descobrir indícios que lhe agravassem no comportamento de homem as consequências desta emoção, admiradores póstumos da sua obra pesaram-lhe adjectivos, imagens literárias, subtilezas, as que deixavam em palavras o mal disfarçado rasto deste encantamento. Na vida, Herman Melville só dava provas da bem comportada sexualidade matrimonial que o fazia pai de quatro filhos. Mas tinha, na virtualidade das entrelinhas da sua literatura, prolongamentos daquela adoração estética que chegavam à sensualidade homoerótica; afirmada, ainda assim, com a medida da decência puritana que então dominava bem de alto e com severo olhar os escritores da sua época. Neste jogo de ocultações Melville chegou ao singular cometimento sob a forma de conto, a que chamou «I and My Chimney», história de uma chaminé-falo passada às aparências de um problema arquitectónico, só não absurda se entendida como floresta de símbolos sobre a verdade oculta do seu próprio falo. Foram-lhe também destacados os momentos da exaltação da beleza masculina entre os selvagens das ilhas Marquesas; foi argumentado que a tragédia «clássica» do seu estranho romance Pierre or The Ambiguities desenvolvia, em paralelo com a sombra de um conflito incestuoso, um caso de homossexualidade; e, sobretudo, foi
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posta em relevo a metáfora de masturbação recíproca que a cena do espermacete de baleia desenvolve no capítulo 94 de Moby Dick, fazendo com ela uma proposta algo whitmaniana de fraternidade entre os homens1. Mas para o caso de Billy Budd, que se isola sobre a fatalidade de um handsome sailor perante aquele que lhe inveja a beleza e secretamente o deseja, podem convocar-se dois episódios da vida do autor com sombra forte na génese da personagem. A sua família, de uma alta burguesia de Nova Iorque largamente sustentada pela importação de «novidades» francesas, enfrentou o desastre de uma falência que o atirou, aos treze anos de idade, para os serviços de paquete num banco; aos quinze para trabalhos agrícolas na quinta de um tio; e pouco depois, movido por um adolescente sonho de aventura, para grumete num navio mercante que o levaria até Liverpool. Nesta sucessão de empregos ásperos — os que iriam permitir a verdade humana das suas primeiras obras literárias — cabe-lhe aos vinte e um anos de idade o de marujo no baleeiro Acushnet e também, logo a seguir, o de gajeiro na fragata de guerra United States. Foi na violência desta disciplina militar que encontrou Jack Chase, o Marinheiro Bem Parecido do seu romance White Jacket e futuro dedicatário de Billy Budd. A beleza física de Jack Chase nunca se apagou da memória de Melville e, com ela, os versos de Camões que ele lhe recitava em inglês e ali, à beira de um oceano tumultuoso, davam a sonhar o 1 «Espremi este sémen até uma estranha loucura me dominar; dei por mim a espremer inconscientemente as mãos dos que colaboravam comigo, tomando-as por suaves glóbulos. Esta operação fez nascer uma tão intensa, afectuosa, amigável, amante sensação, que acabei por olhá-los nos olhos com ternura, ao ponto de lhes dizer: “[…] Vamos todos espremer as nossas mãos à nossa volta, sim, vamos todos espremer-nos universalmente num verdadeiro leite e esperma de bondade.”»
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Cabo da Boa Esperança e o seu temível Adamastor. Billy Budd foi dedicado quarenta e oito anos mais tarde a Jack Chase, esse marinheiro que na sua memória afectiva não se apagava como deslumbramento visual e espiritual, e surgiria como sombra inspiradora da última personagem da sua criação literária em prosa: «A Jack Chase / inglês. / Quer este grande coração esteja no mundo / Ou tenha encontrado refúgio no Paraíso / Chefe de gávea / a bordo da fragata americana “United States” no ano de 1843.» Billy Budd, «tão belo que poderia pousar nu para uma estátua de Adão antes da Queda», pensa o capitão Vere da sua novela, força da natureza e pura alegria de viver, tem a envolvê-lo a memória de Jack Chase mas perto de si outra sombra, a do escritor Nathaniel Hawthorne. Em 1850 Herman Melville já autor de Typee e Omoo, já autor do grande fracasso comercial Mardi (uma aventura espiritual inciática, cheia de especulações metafísicas, teológicas e simbólicas que o público da sua época se mostrou incapaz de amar), de Redburn e White Jacket, fez um período de férias em Pittsfield, na herdade do seu tio Thomas. E Nathaniel Hawthorne, o autor de The Scarlet Letter e The House of Seven Gables, vivia na região. Uma chuva inoportuna fê-los abrigar-se na mesma caverna da montanha Monumento, escolhida para um piquenique que reunia muitas personalidades convidadas. Hawthorne — verificou o extasiado Melville — era um grande talento literário servido por uma grande beleza física. «Quanto mais o contemplo mais se espalha e aprofunda, projectando fortes raízes da Nova Inglaterra no húmus quente da minha alma de meridional.» Melville tinha à sua frente o homem que ia permitir-lhe amar e inventar uma grande amizade apaixonada. Sophia Hawthorne, mulher do es-
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critor, faz eco numa carta à sua mãe do que Melville pensava abertamente sobre o seu marido: «Parece-lhe que Hawthorne é a primeira pessoa sua conhecida onde o físico concorda totalmente com a personalidade intelectual e espiritual; que a sua cabeleira com sol e a expressão pensativa, a harmonia do rosto, a profundidade dos olhos,“o clarão, a sombra e a paz suprema”, tudo dá resposta exacta à elevada e serena inteligência, ao coração caloroso e profundo, à pureza da sua vida material e espiritual.» A mesma Sophie Hawthorne também era capaz de elogiar Melville, notando-lhe embora a falta de «verniz»: «É um verdadeiro e caloroso coração, é uma alma e um intelecto — com vida até à ponta dos dedos; atencioso, sincero e respeitador; muito delicado e muito modesto. E não deixo de suspeitar que se trate de um grande homem. […] Tem uma visão das coisas muito penetrante, mas surpreende-me que os seus olhos não sejam grandes e profundos. Dir-se-á que tudo vê com muita acuidade, embora eu não saiba como pode fazê-lo com tão pequenos olhos. […] O seu nariz rectilíneo é muito belo, e a sua boca denuncia sensibilidade e emoção. É grande e mantém o porte direito, com um ar de à-vontade, audácia e virilidade. Quando conversa faz muitos gestos, é ardente e abandona-se por completo ao tema. Não é gracioso e falta-lhe verniz.» Melville aplicou o dinheiro de uma inesperada herança na compra de uma herdade próxima da casa onde Hawthorne vivia. E fez-se, por amor a Hawthorne, agricultor. Sofreu, porém, de hesitações e resistências que ele quereria sublimar até à mais completa das uniões espirituais, se não físicas. E quando Hawthorne resolveu viver em Nova Iorque, chegou ao seu novo domicílio a carta com este grito: «De onde vens tu, Hawthorne? Com que direito bebes da garrafa que é a minha vida? E quando a levo aos lábios —
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os lábios são teus e não meus. Verifico que a Divindade se partiu como o pão da Ceia, e somos os seus pedaços. Daí esta infinita fraternidade de sentimentos.» Esta fraterna confusão de sentimentos incluía a certeza de que a convivência com Hawthorne o elevava, e chegaria ao seu mais alto ponto como escritor. Estaria prestes a prová-lo com Moby Dick: «Fui como uma daquelas sementes tiradas das pirâmides do Egipto — anunciará a Hawthorne — durante três milénios uma semente, não mais do que uma semente, e uma vez plantadas no solo inglês se desenvolveram, fizeram plantas viçosas, e depois apodreceram. Comigo passou-se o mesmo. Até aos vinte e cinco anos [nessa altura Melville tinha trinta e dois] não tive nenhum desenvolvimento. Dos vinte e cinco anos [o ano em que escreveu Typee] data o começo da minha vida. Desde essa altura até ao dia de hoje não se passaram três semanas sem eu ter a sensação de estar interiormente desenvolvido. Mas agora sinto que atingi o mais profundo do bolbo, e dentro em breve ele irá florescer.» Moby Dick, o mais profundo do bolbo, a mais complexa e fascinante das suas obras literárias, foi posta à venda nesse mesmo ano e friamente acolhida pelo público e pela crítica. Exceptuados Typee e Omoo da sua estreia como escritor, com aquele exotismo caucionado pela afirmação autobiográfica que os impregnava de página a página e seduzira o público, os restantes Melville tinham enfrentado fracassos de vendas e reticências, ou mesmo hostilidades da crítica. A singularidade de uma voz não reconhecível pelo gosto e pela prática de leitura que os padrões da época tinham formatado, a intransigência em não se mostrar ele próprio vergado aos conselhos dessa realidade, anunciavam um ponto final. Depois de Moby Dick ainda houve a recepção desastrosa a Pierre or The
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Ambiguities, um Israel Potter sem força atractiva nas livrarias, o fiasco desse The Confidence Man que finalizaria a sua actividade de prosador — pelo menos o das obras com grande fôlego, pelo menos o que se destinava à publicação. Numa carta a Hawthorne ficou ainda este desabafo: «Os dólares causam-me a danação, o maligno demónio mantém a porta entreaberta e não pára de me fazer esgares. […] O que mais inclinado me sinto a escrever está interdito — não se venderia. E, no entanto, não posso escrever de outro modo. Por causa disto acaba em erro grave o resultado, todos os meus livros são um erro grave.» Os heróis de Melville com um sentido trágico da vida, heróis infelizes e que fracassam, eram hostis ao espírito americano do século XIX muito preocupado com o conforto e o êxito material. Não compreendiam um autor que apresentava a agonia humana como sinal de grandeza. Afectado por distúrbios nervosos, incapaz de enfrentar de novo a construção de um romance, Melville escreve poemas. Durante trinta e cinco anos só escreve e só publica poemas; e com maus resultados tenta ganhar dinheiro como conferencista. Paralisado na energia de criador de ficções, desce corajosamente degraus, aqueles que o levariam a inspector da alfândega no porto de Nova Iorque. Na aparência, Melville era um homem só atento às taxas que o governo impunha nas entradas da porta marítima de Harlem. E os colaboradores, os subordinados de Mr. Melville, não suspeitaram que um ex-romancista, um «futuro» clássico da literatura americana, àquela secretária fazia o seu melhor como cobrador de impostos; que havia na sua frieza profissional um poeta oculto. A esta violência quotidiana será aplicado, enfim, o remédio de uma reforma. E mais três anos de vida este Melville terá, os anos de Billy Budd, do texto secreto — dizem alguns que apenas escrito para si próprio — com Jack
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Chase e Hawthorne (o primeiro «desaparecido», o segundo já morto) a ensombrarem-lhe dolorosamente a memória afectiva. De talento criador inteiro, Melville entrega-se à sua última prosa. O manuscrito tem apontado um início (sexta-feira, 16 de Novembro de 1888) e um fim (19 de Abril de 1891), mas acredita-se que sejam precisões duvidosas quanto ao que podem significar. Uma dilatação cardíaca matou Melville — afirma a sua certidão de óbito; e Elizabeth Shaw, sua viúva, não considerou Billy Budd — confuso, na desordem de um maço de papéis cheio de emendas — em condições de ser publicado. Só vinte e um anos mais tarde uma neta do escritor autorizou que ele surgisse em Short Novels of Herman Melville, feita por um editor americano. Dar ao manuscrito de Billy Budd uma forma publicável foi um cometimento que submergiu os seus decifradores em perplexidades; que lhes exigiu um árduo trabalho e o papel de juízes perante variantes sem sinais sobre a preferência do autor. Hoje, versões diferentes rodeiam o seu texto essencial; a darem-lhe o título Billy Budd, sailor (marinheiro) ou Billy Budd, foretopman (gajeiro do traquete); a chamarem ao navio, cenário da acção, Bellipotent ou Indomitable; umas e outras a dividirem o texto por capítulos que oscilam em número entre vinte e sete e trinta; com a certeza de que algumas frases pertenceriam à opção final do texto, ou a avaliá-las como apontamentos não desenvolvidos literariamente pelo autor… E se qualquer das versões salva a ideia de um texto meticulosamente calculado quanto à eficácia da fábula, nenhuma afasta a suspeita de capítulos finais que não chegaram à forma definitiva1. 1
Esta tradução utilizou o texto adoptado pela Universidade de Chicago.
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Há hoje a convicção de que Billy Budd teve origem na balada «Billy a Ferros», final da novela mas poema descartado do livro John Marr and Other Sailors, de 1888; que, sem chegar a dar-lhe a forma digna de figurar naquela colecção de retratos poéticos sobre marinheiros, Melville fez dela remate para a história do Marinheiro Bem Parecido, justificando-o com o «tosco temperamento poético» de um qualquer desconhecido gajeiro do traquete, companheiro de Billy. Billy Budd, idealização grega do corpo masculino, com uma bondade que transcende a da virtude e é confrontado com a homossexualidade latente de um Claggart cruel para tudo o que admira sem conseguir dominar nem possuir, terá a sua beleza castigada. Com algum elitismo racial, Melville não resiste à tentação de explicar esta beleza com um molde aristocrático; que Billy Budd era um abandonado na via pública, encontrado dentro de um cesto com forro de seda. Nobreza física com virtudes sem mácula que caucionam, numa boa parte, as ambiguidades do tema. Claggart odeia Billy como o demónio odiaria o Adão angélico que a sua serpente não sabe vencer; ele é a função da serpente, e tem por destino destruir a inocência. Nesta maldição Melville descreve-o com olhos que se enchem de «estranhas lágrimas febris»; chega a admitir que há em Claggart o «toque de uma leve nostalgia, como se lhe fosse possível amar Billy desde que não houvesse nele um destino e uma proibição», mas faz de Billy a beleza inacessível à sexualidade (apesar da tímida referência, na balada final, à pérola oferecida à «Molly de Bristol»). E a mais eloquente prova de tudo isto está na discussão entre o médico do navio e o comissário de bordo (que ocupa todo o capítulo 26): Billy não teve nenhum espasmo físico durante o enforcamento; o que serve para lhe negar a ejaculação
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dos enforcados, a que daria ao seu corpo de homem o mais físico e humano dos sentidos. Herman Melville foi um exímio manipulador de significados ocultos; e serviu-se deles para explorar as profundas zonas da consciência humana que as convenções literárias da sua época não aprovariam ver à solta, directamente em palavras, sem a penumbra dos símbolos. Numa grande parte das suas histórias reconhecem-se sentidos múltiplos; e à de Billy Budd não bastaria este, imediato, que valoriza a frustração sexual de Claggart vivida com ódio sádico numa profunda e amarga solidão. Pode afirmar-se que nenhuma outra obra sua levou a tão variadas e audaciosas interpretações1. Aquela que se detém no problema emocional e sexual de Claggart não deixa, ainda assim, de conduzir a outro problema, levantado pelo conselho de guerra que condenou Billy Budd e põe em relevo uma verdade fundamental das sociedades regidas pela Lei: que a força desta Lei se sobrepõe à consciência da Justiça. A Lei terá de ser aplicada para a ordem do navio (do mundo) não deslizar para o caos. Um homem como o capitão Vere, intelectual e «filósofo» mas formado pela obediência à Lei, terá de preferi-la contra os sentimentos pessoais, pois só assim garante a estabilidade do mundo que ele compreende e onde lhe é dado viver. E as suas palavras de moribundo, «Billy Budd! Billy Budd!», são do homem que se sentiu num sacrifício de Abraão não interrompido por Deus; não exprimem nenhum remorso, mas a inevitável dualidade de sentimentos do austero homem devotado ao dever militar e que num último mo1 Uma delas, com surpreendente mas eficaz argumentação, está em Ensaio sobre a Revolução de Hannah Arendt, que considera a novela uma alegoria das revoluções que pretendem modificar a ordem do mundo inspirando-se numa natureza humana perfeita. Ao imaginar a tragédia de Billy Budd, Melville teria na sua ideia a Revolução Francesa.
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mento, o da maior verdade humana, escorre «para dentro do que ainda há de primitivo e genuíno nesta formalizada humanidade.» Registe-se que Billy Budd teve a meio do século XX duas consequências simétricas ao centro da sua calculada ambiguidade. Em 1951 Benjamin Britten estreou a sua ópera Billy Budd, apoiada por um libreto do romancista E.M. Forster e com a rara característica, numa ópera, de ter um texto quase todo em prosa (Forster declarava-se incapaz de escrever versos). Em Britten, a história de Melville foi subtilmente «homossexualizada». Claggart canta (na cena 2 do I Acto) palavras explícitas, com um sentido que Melville apenas nos dá ocasião para admitir como possíveis no mais secreto dos seus pensamentos: «Ó beleza, ó esplendor, ó bondade! Quem me dera nunca vos ter encontrado!… O meu destino é aniquilar-vos, estou votado à vossa destruição… Tenho-vos em meu poder e quero destruir-vos», e fá-lo num contexto de voz e de atitudes físicas que não deixam dúvidas quanto ao motivo essencial do seu desespero. O próprio capitão Vere, na novela uma personagem de severa autoridade, e que a tradição operática entregaria a um baixo, é efeminado com uma partitura de tenor que voga pelas suas notas mais altas. Em Britten, também o primeiro navio, o Direitos do Homem de onde Billy Budd é desviado, tem no seu nome um significado sexual, de uma vida privada com direitos reconhecidos, e ao navio de guerra é conferido o símbolo de um território do mundo com iniquidades, e onde a Lei se sobrepõe sempre à Justiça. A outra consequência é de 1962, o filme Billy Budd (em Portugal A Lei do Mar) onde Peter Ustinov, desta vez também realizador, propõe em campo oposto ao de Britten a história de Melville. Em ecrã largo e a preto e branco, baseando-se numa peça teatral de Louis O. Core e Robert H. Chapman, servido por uma banda so-
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nora de Anthony Hopkins, Ustinov consente a Claggart não mais do que sadismo generalizado, com alvos que se estendem para lá de Budd e do incómodo da beleza física (que é a de Terence Stamp na sua estreia cinematográfica). A elegância formal do seu filme desculpa algumas e desnecessárias divergências de Melville: a cena da sopa derramada transferida para outro marinheiro; o capitão Vere a morrer na fragata (agora chamada Avenger) e não em Gibraltar; àquele conselho de guerra (que Melville quis de testemunha única) ser também convocado O Dinamarquês… Mas, em tudo isto, Peter Ustinov (o capitão Vere) e Robert Ryan (Claggart) com desempenhos entre os melhores das sua carreiras de actores. * Quando Herman Melville morreu, na manhã de 28 de Setembro de 1892, era um escritor esquecido. Dias depois, o New York Times registou-o solitariamente: «Morreu e foi enterrado nesta cidade, há não mais do que uma semana e com idade avançada; um homem que as gerações actuais muito pouco conhecem, mesmo de nome, e de quem só um jornal publicou em três ou quatro linhas a notícia necrológica.» O seu eclipse protegeu vagamente Typee e Omoo, relembrou por acidente quinze páginas de Moby Dick e dez páginas de White Jacket, quando pareceu pertinente fazer referência a um vagabundo dos mares e a alguém que tinha contado estranhos costumes dos selvagens do Pacífico, mas que não era Stevenson, nem London, nem Conrad. Em 1921, a sua primeira biografia (de Raymond Weaver) foi uma surpresa. Existia, afinal, um escritor «desconhecido» que fi-
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zera suceder a vários anos de aventura em ilhas de selvagens, e em barcos baleeiros e de guerra, um nocturno exercício de contador de histórias onde derrotados heróis lutavam contra os anjos e os demónios da sua mais secreta consciência. Nas letras americanas, a efervescência que já soprava o novo país do século XX retratado em Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis, que respondia às mentalidades de uma época agitada por dinheiro e pelo que viria a designar-se como american way of life, abria um respeitável lugar entre as glórias do seu passado e instalava lá, de pleno direito, o velho Herman Melville. Esta ressurreição chamou-lhe «clássico» e, por que não, dos que ficavam ao lado de Poe, Thoreau, Hawthorne ou Emerson. Moby Dick, outrora indigesto, fez-se popular e cimo da literatura norte-americana; Pierre or The Ambiguities, com nove reedições entre as duas guerras… talvez não fosse obra de um louco; e «Bartleby the Scrivener» era dos melhores contos escritos naquele país. Degrau a degrau Melville subia (com a Europa a ajudar) as evidências de uma definitiva consagração: a de um escritor com mistérios dificilmente devassáveis, ou seja, a que ele gostaria de garantir à perplexidade dos que se destinam a admirá-lo. A.F.
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1. No tempo em que não havia barcos a vapor ou não eram, pelo menos, tantos como os que hoje existem, alguém que vagueasse ao longo das docas de um importante porto de mar teria por vezes a atenção alertada por um grupo de marinheiros bronzeados, homens de um navio de guerra ou mercante com a roupa domingueira de quem tinha tempo livre em terra. Em certas ocasiões caminhavam lado a lado, mas noutras eram como uma escolta a cercar uma qualquer figura superior da sua classe que andava com eles por ali fora como Aldebarã entre as luzes menores da sua constelação. Este objecto notável era o «Marinheiro Bem Parecido» de um tempo menos prosaico, tanto para a marinha de guerra como para a marinha mercante. E sem traço perceptível de vanglória, antes com a simplicidade desenvolta da sua natural realeza, é que ele parecia aceitar a espontânea homenagem dos seus camaradas. Uma muito singular ocasião nos ocorre. Em Liverpool, faz agora meio século vi à sombra do grande muro imundo da rua da Prince’s Dock (obstáculo há muito removido) um vulgar marinheiro tão retintamente negro que devia ser nativo de África e com sangue de populações hamíticas não cruzado — uma figura harmoniosa com altura bem acima da média. As duas pontas de um garrido lenço de seda, amarrado livremente ao pescoço, dançavam no ébano descoberto do seu peito; nas
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orelhas tinha grandes argolas de ouro e na cabeça bem modelada um boné escocês com faixa aos quadrados. Era um quente meio-dia de Julho; e o seu rosto, a brilhar com transpiração, irradiava um bárbaro bom humor. Com joviais palavras atiradas para um lado e para o outro, dentes brancos bem à mostra e a brilharem, lá ia a gracejar no centro de um grupo de camaradas de bordo. E um tal sortido de tribos e tons de pele bem adequados estariam para Anacharsis Cloots pô-los a desfilar à frente da tribuna da primeira Assembleia Francesa, como representantes do Género Humano1. A cada homenagem espontânea dos que invejavam esta criatura, uma extravagante visão negra — o tributo de uma paragem e um olhar demorado, e com menos frequência uma exclamação — o heterogéneo séquito mostrava qualquer coisa como um orgulho comparável ao que mostrariam os sacerdotes assírios, sem dúvida, perante os que se prosternavam cheios de fé junto do grande touro esculpido. Voltando atrás. Se nalguns dos momentos em terra havia um pouco de Murat2 naval na sua figura, o Marinheiro Bem Parecido da ocasião que nos ocupa nada mostrava da pretensão a janota de um Danado Billy, divertida personagem quase extinta mas que ainda pode de vez em quando encontrar-se, e com um aspecto bem mais divertido do que o seu original, à cana do leme dos barcos do tempestuoso canal Erie ou, com probabilidade maior, a exibir-se nas tascas ao longo de qual1 Jean-Baptiste du Val de Grâce, barão de Cloots, organizou em 1790 um desfile dos seus discípulos com trajos regionais das diversas raças e nações para reivindicar, em Paris, uma federação democrática universal. (N. do T.) 2 Ícone do dandismo militar, marechal de França, rei de Nápoles, ajudante-de-campo de Bonaparte. (N. do T.)
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quer outro canal. Sempre emérito na sua perigosa profissão, também era um mais ou menos exímio praticante de boxe ou lutador. Era força e beleza. Contavam-se histórias das suas proezas. Em terra era o campeão; a bordo o porta-voz; aproveitava todas as oportunidades para ficar em evidência. Se um temporal obrigasse a recolher as rizes na vela de mezena, ele lá estaria a cavalo na ponta do lais de verga ao vento, com o pé no estribo da verga, com ambas as mãos a fazer força na corda do gurutil como se fosse uma rédea, com uma atitude muito idêntica à do jovem Alexandre a dominar o fogoso Bucéfalo. Soberba figura como que lançada pelos cornos do Taurus contra o céu tempestuoso, a incitar jovialmente a esforçada fileira de homens ao longo do mastaréu. É raro a natureza moral e a estrutura física estarem nele em desacordo. De resto, sem a elegância e a força, sempre sedutoras quando se juntam num homem, sofrerem a influência da primeira destas naturezas, com dificuldade suscitariam esta espécie de justa homenagem que o Marinheiro Bem Parecido em vários exemplos conhecidos recebeu dos menos dotados companheiros. Este Billy Budd de olhos celestes — ou este Bebé Budd, como acabará por ser chamado num tom familiar em circunstâncias mais tarde referidas, era como uma constelação, não só no aspecto mas por qualquer coisa da sua natureza — apesar de ela sofrer importantes variações que a evolução da história tornará evidentes; tinha vinte e dois anos de idade e era gajeiro do traquete da armada britânica na última década do século XVIII. Não muito antes do tempo em que esta narrativa decorre tinha entrado ao serviço do rei depois de forçado a passar, nos mares
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da Mancha, de um navio mercante inglês que regressava ao porto, para o H.M.S. Bellipotent, um setenta-e-quatro que estava de partida. Navio obrigado, como não era raro acontecer nesses tempos de decisões apressadas, a fazer-se ao mar sem a equipagem completa. O tenente Ratcliffe, com um olhar que na prancha de embarque logo caiu sobre Billy, precipitou-se para o tombadilho mesmo antes de a equipagem do navio mercante estar formalmente reunida para ser passada em revista. E só ele foi escolhido. Ou porque os outros homens alinhados à sua frente mostravam desvantagens em relação a Billy, ou porque sentia alguns escrúpulos, uma vez que o navio mercante estava à míngua de mão-de-obra, o certo é que o oficial se contentou com a primeira e impulsiva escolha. Com surpresa da equipagem mas grande satisfação do tenente, Billy não protestou. Aliás, qualquer protesto ser-lhe-ia tão inútil como o do tentilhão dourado metido numa gaiola. Ao notar esta aquiescência sem queixumes e, poder-se-ia dizê-lo, quase prazenteira, o capitão deitou ao marinheiro um olhar surpreendido e silenciosamente reprovador. O capitão era um destes dignos mortais que há em todas as vocações, mesmo nas mais humildes — o género de pessoa que todos concordam em chamar «um homem respeitável». E — coisa menos estranha neste caso do que possa parecer — apesar do seu trabalho em águas turvas, de ao longo da vida ter enfrentado elementos intratáveis, não passava daquela alma honesta com um coração que apenas gosta das singelezas da paz e da tranquilidade. Quanto ao resto, andava pelos cinquenta anos ou perto disso, tinha alguma tendência para ser corpulento, um rosto afável sem bigode e de cor agradável — rosto bastante cheio, com
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uma inteligente expressão de humanidade. Num dia bonito com bom vento e tudo a correr bem, uma certa musicalidade harmoniosa na voz parecia uma sincera emanação dimanada do seu ser mais profundo. Era muito prudente, muito consciencioso, virtudes que em certas ocasiões lhe causavam uma excessiva inquietação. Não havia sono que fizesse o capitão Graveling dormir enquanto o seu barco estivesse numa travessia próximo de terra. Levava a peito graves responsabilidades que nalguns capitães de navio não descarregam tão grande peso. Enquanto Billy Budd descia até ao castelo de proa para reunir o seu equipamento, o corpulento e rude tenente Ratcliffe do Bellipotent, de forma alguma desconcertado por o capitão Graveling não ter proferido, num momento de muito desconforto, as habituais palavras de boas vindas, omissão apenas causada por aquilo que o mantinha preocupado, dispensou cerimónias e convidou-se a entrar no camarote e também a tirar do armário dos álcoois um frasco, um recipiente que os seus olhos cheios de experiência tinham desde logo descoberto. Era, de facto, um destes homens do mar a quem os rigores e os perigos de uma vida naval com prolongadas guerras nunca nublavam o natural instinto para os prazeres dos sentidos. Cumpria sempre os deveres com fidelidade; mas o dever é por vezes uma obrigação árida, e ele achava que devia regar o maior número de vezes possível essa aridez com uma fertilizante decocção de líquidos fortes. Nesta hospitalidade forçada só restava ao proprietário do camarote fazer o seu papel com a graça e a alacridade possíveis. À frente do indomável hóspede pôs em silêncio um copo e um jarro de água, os necessários acessórios da garrafa. Mas, desculpando-se por não o acompanhar nessa oca-
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sião, consternadamente olhou para o desembaraçado oficial que diluía com presteza o grogue e depois o engolia com três golos, afastando de si o copo vazio mas sem o deixar tão longe que não ficasse à mão, ao mesmo tempo que se instalava numa cadeira, a estalar com muito regozijo os lábios e a olhar bem de frente o seu anfitrião. Terminados estes preliminares, o capitão quebrou o silêncio e disse com uma reprovação oculta no tom da voz: — Tenente, vai ficar-me com o melhor dos homens, a jóia que entre eles existe. — Sim, eu sei — respondeu o outro puxando imediatamente para trás o copo já repleto. — Sim, eu sei. Desculpe-me. — Peço-lhe perdão, mas o tenente não está a compreender. Veja isto: antes de esse jovem ter embarcado, as querelas do meu castelo de proa faziam dele um ninho de ratos. Foram a bordo do Rights tempos negros, garanto-lhe. Eu tinha dissabores que nem o meu cachimbo conseguia consolar. Mas o Billy chegou; e foi como se um padre católico fizesse descer a paz numa zaragata de irlandeses. Não porque lhes pregasse ou dissesse qualquer coisa de especial, mas por emanar uma virtude que sabia adoçar os mais ásperos. Agarraram-se a ele como vespões ao melaço; todos, excepto a mola do bando, um grande tipo peludo com suíças de um ruivo flamejante. Aliás, com provável inveja do recém-chegado e sem acreditar muito que «um doce e encantador rapaz», como ele o designava aos outros por troça, pudesse ter o espírito de um galo de combate, sentiu grande necessidade de lhe arranjar uma porção de brigas. O Billy não se aborreceu, foi amável para com ele… é um pouco do meu género, tenente, detesta tudo o que pareça uma contenda… mas
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de nada lhe valeu. E houve então um dia em que o Suíças Ruivas durante a vigília do segundo quarto, na presença dos outros e com o pretexto de mostrar ao Billy como se cortava uma fatia de lombo de vaca… porque o indivíduo já tinha trabalhado num talho… deu-lhe um pouco abaixo das costelas uma insultuosa pancada. Com rapidez de um relâmpago, o Billy fez o seu braço responder-lhe. Posso garantir que ele nunca pensou em ser tão radical, mas seja como for deu ao latagão daquele louro uma terrível sova. Durou cerca de meio minuto, ao que imagino. O labrego, valha-o Deus, ficou estupefacto com a sua rapidez. Pode acreditar, tenente, que o Suíças Ruivas agora gosta realmente do Billy. A não ser que seja o maior hipócrita de que ouvi alguma vez falar, adora-o. Mas todos o adoram. Alguns lavam-lhe a roupa, engomam-lhe as velhas calças; em momentos de folga o carpinteiro fez para a sua roupa interior uma pequena cómoda muito bonita. Qualquer deles estará disposto a fazer seja o que for para o Billy Budd; é como se houvesse aqui uma família feliz. Mas, tenente, se este jovem se for embora… sei o que acontecerá a bordo do Rights. Não voltarei em breve a encostar-me ao cabrestante depois do jantar, para fumar com tranquilidade o meu cachimbo… não, não vou fazê-lo já a seguir, creio eu. Sim, tenente, vai levar a jóia que entre eles existia; vai levar o meu pacificador! E a boa alma teve alguma dificuldade em reprimir, de facto, um soluço prestes a soltar-se. — Pois bem — disse o tenente que tinha ouvido tudo isto com divertido interesse, e a quem o álcool dava agora um crescente bom humor. — Pois bem, abençoados sejam os pacificadores; em especial os pacificadores que lutam. Setenta e quatro
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belezas esperam-me naquele navio de guerra, e como vê algumas põem os narizes de fora nas portinholas do convés — disse a apontar para o Bellipotent através da janela do camarote. — Mas, coragem! Homem, não fique tão cabisbaixo. Vamos lá ver, faço-me desde já garante de que vai ter a aprovação real. Esteja sossegado, porque Sua Majestade ficará encantada quando souber que nestes tempos em que os marinheiros não olham para os seus biscoitos de bordo com a avidez desejável, num tempo em que alguns capitães de navios mercantes alimentam um rancor secreto por lhes pedirem de empréstimo um ou dois marujos para o servir, Sua Majestade, digo eu, ficará encantada por saber que pelo menos um capitão entrega de bom grado ao rei a flor do seu rebanho, um marinheiro que mostra idêntica lealdade ao não fazer nenhum protesto. Mas a minha beleza onde está? Ah! Ali vem ela — disse a olhar pela porta aberta do camarote. — E vem, com mil diabos!, a arrastar a sua caixa… Apolo com a sua trouxa!… Meu amigo — disse a aproximar-se dele — não podes levar essa caixa grande para bordo de um navio de guerra. Lá as caixas servem, sobretudo, para as munições. Mete num saco a tua farrapada, rapaz. Botas e sela para o cavaleiro, saco e rede para o homem de guerra. O conteúdo da caixa foi passado para um saco. E depois de o tenente ver o seu homem embarcar na pequena chalupa, e para lá descer depois dele, afastou-se do Rights-of-Man. Era este o nome do navio mercante, embora o seu capitão e a equipagem o abreviassem chamando-lhe Rights. O seu proprietário, armador de Dundee com ideias firmes, era admirador acérrimo de Thomas Paine cujo livro, réplica ao de Burke que culpabilizava a Revolução Francesa, tinha sido pouco tempo antes
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publicado e largamente difundido. Ao baptizar o seu navio com o título da obra de Paine, o homem de Dundee assemelhava-se um tanto a Stephen Girard, o armador de Filadélfia seu contemporâneo e com simpatia idêntica pela sua terra natal e pelos filósofos liberais, que aos seus navios dava nomes inspirados em Voltaire, Diderot, e outros como eles. Mas, com o barco a deslizar sob a popa do navio mercante, e o oficial e os remadores a repararem no nome ali celebrado — uns com azedume, outros com um riso escarninho — nesta precisa altura o novo recruta levantou-se impetuosamente na proa da embarcação, onde o timoneiro lhe tinha ordenado que se sentasse, agitou o chapéu e dirigindo-se aos seus silenciosos camaradas que o olhavam com tristeza do alto do corrimão da popa, lançou àquela malta amiga um caloroso adeus. E fez depois uma saudação ao próprio navio: «Também a ti, velho Rights-of-Man, digo adeus.» — Queira sentar-se, senhor! — rugiu o tenente, que embora assumisse de imediato todo o rigor da sua posição reprimia com dificuldade um sorriso. É certo que o acto de Billy infringia terrivelmente o bom comportamento naval. Mas, a não ter havido este remate do adeus ao navio, como ele nunca tinha sido iniciado nesse bom comportamento o tenente levaria em conta o facto impedindo-se de ser tão enérgico na reprovação. Tomou-o, porém, como uma forma de o novo recruta fazer uma dissimulada investida contra aquela transferência, uma encoberta censura ao serviço público em geral, e ao seu em particular. No entanto, a haver aqui um lado satírico era mais provável que não fosse intencional; porque, apesar de Billy ter a sorte de ser dotado com sau-
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dável jovialidade, juventude e franqueza, não possuía nenhuma espécie de vocação satírica. Não havia nele vontade de fazê-lo, como não havia a intenção maldosa de se mostrar malicioso. Manejar duplos sentidos e insinuações de qualquer espécie eram coisas completamente estranhas à sua natureza. Quanto ao alistamento forçado, parecia que o suportava quase como uma vicissitude de ordem metereológica. Mesmo sem ser filósofo, era na prática um fatalista com a inconsciência, a bem dizer, dos animais. E talvez gostasse bastante de sentir o lado aventureiro daquilo que lhe acontecia, a prometer uma abertura a novos cenários e a excitações guerreiras. A bordo do Bellipotent o nosso marinheiro mercante foi de imediato classificado como homem competente, e afectaram-no ao quarto de estibordo da gávea do traquete. Não tardou que estivesse à vontade no serviço, e longe de ser detestado por haver nele um ar despretensioso e uma espécie de alegre afabilidade. Ninguém era mais divertido entre os comensais e fazia um marcado contraste com alguns indivíduos, incluídos como ele na parcela dos alistados à força na equipagem do navio; porque estes, quando não estavam activamente ocupados, e mais ainda quando faziam o último quarto, altura em que o crepúsculo incita ao devaneio, ficavam atreitos a cair num estado de entristecido humor que numa parte deles chegava ao génio sombrio. Mas não eram tão jovens como o nosso vigia do cesto da gávea, e não poucos tinham conhecido um lar, fosse de que género fosse, tinham abandonado mulheres e filhos, é muito provável que em condições precárias, e alguns deles não estariam desprovidos de parentes e amigos, sem dúvida, ao passo que toda a família de Billy a bem dizer se resumia, como em breve veremos, a si próprio.
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tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
A beleza castigada…
Herman Melville BILLY BUDD, MARINHEIRO
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