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tÍtulO dO ORiginal: Novela del CasamieNto eNgaÑoso e Novela y Coloquio que pasó eNtre CipióN y BergaNza, perros del Hospital de la resurreCCióN, que está eN la Ciudad de valladolid, fuera de la puerta del Campo, a quieN ComúNmeNte llamaN «los perros de maHudes»
© sisteMa sOlaR, CRl (2020) Rua PassOs Manuel, 67B, 1150-258 lisBOa tradução © anÍBal FeRnandes 1.ª ediÇãO, JulHO 2020 isBn 978-989-8833-49-5 na CaPa: gRaVuRa de RaFael esteVe Vilella da ediÇãO inglesa (sÉCulO XiX) ReVisãO: diOgO FeRReiRa dePósitO legal 000000/20 este liVRO FOi iMPRessO na euROPRess Rua JOãO saRaiVa, 10 a 1700-249 lisBOa PORtugal
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sebastião, rei jovem, falho de senso e beato, a mandar como podia desde os catorze anos de idade, com uma virilidade indolente que só apontava para o chão como os seus olhos quando viam uma mulher, receou que os mouros voltassem à andaluzia e os turcos fizessem do sultão de marrocos seu vassalo, pondo em perigo a integridade frágil do seu portugal. resolveu-se, com estas inquietações, à tristemente célebre batalha de alcácer-quibir. filipe ii de espanha (cognominado muito a propósito como o prudente) não quis acompanhá-lo no que parecia uma grande temeridade política e militar; e vozes próximas desaconselhavam sebastião a ir com mais de oitocentas velas para a costa de marrocos, para terçar armas com os infiéis. pedro Nunes, cosmógrafo-mor do reino e mestre em geometria, já tinha muito antes alertado para os perigos do seu mau céu astrológico. saturno e Júpiter olhavam-se ali de soslaio; e a lua, meu deus!, que mal colocada! «o juízo astrológico é que, começando a reinar nesta data, terça-feira 20 de Janeiro de 1568, será o seu reinado instável, cheio de inquietação ordinária e de mui pouca dura.» o duque de alba, esse, na iminência da batalha estremecia de apreensão à sua frente. — de que cor é o medo? — tinha-lhe perguntado o rei. — senhor, é da cor da prudência. sebastião, imprudente, desapareceu na refrega. Chamaram-lhe o desejado e começou a dizer-se que talvez voltasse numa manhã de nevoeiro; mas só veio a fazê-lo num dia claro de cinco
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séculos mais tarde, em pedra polida, de pé e cor-de-rosa numa praça de lagos. perante o reino vizinho enlutado e débil, filipe segundo de espanha viu que seria facilmente primeiro de portugal. a defesa lusitana da fronteira pouco mais foi do que uma escaramuça. e diz-se que o rei espanhol muito gostou de sentir-se no seu novo território. o estranho e irritável monarca vestia-se austeramente em espanha e mostrava-se mais colorido em portugal; era severo de costumes em Castela e amigo de diversões na foz do tejo. foi nesta conjuntura festiva que Cervantes veio para lisboa, supõe-se que alferes no tercio militar de lope de figueroa — alferes com os movimentos da mão esquerda perdidos desde a batalha naval de lepanto (maneta para a glória da direita, dizia ele) — e disposto a passar o seu entusiasmo a frases de um desmedido encanto: lisboa é uma grande cidade; a beleza das mulheres portuguesas admira e enamora; as margens do tejo são o paraíso da terra; a língua portuguesa é a mais doce que jamais ouvi; não se espere que eu diga mais, senão que os Campos elísios em mais nenhuma parte da terra têm assento; e quando se deu a comparações com a itália, também disse: para as galas Milão, para amores a lusitânia. falamos de um miguel de Cervantes saavedra a rondar os trinta e cinco anos de idade e com uma vida que poderia dar corpo a um qualquer romance de cavaleiros e aventuras; quarto filho dos sete que don rodrigo, um pobre e surdo cirurgião-barbeiro de alcalá de Henares, teve de uma doña leonor de Cortinas, nascido em dia incerto de 1547 (mas provavelmente um dos que findavam o mês de setembro) e que somos convidados por algumas referências dispersas a imaginar nos seus anos de juventude magro, com cabelo claro e quase ruivo. (No entanto, o auto-retrato
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físico da sua idade avançada, extensamente escrito com sessenta e seis anos de idade para o prólogo das novelas exemplares, é pródigo a somar decadências : este que aqui vedes de rosto aquilino, cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, alegres olhos e nariz curvo, apesar de bem proporcionado, com barbas de prata que ainda não passaram vinte anos eram de ouro, bigodes grandes, boca pequena, dentes nem miúdos nem muitos porque só tem seis, e estes mal acondicionados e ainda pior instalados por não terem entre si nenhuma correspondência, com o corpo entre dois extremos porque não é grande nem pequeno, de cor intensa mas mais branca do que morena, um pouco curvado de ombros e com pés não muito ligeiros; este, afirmo eu, é o autor de a galateia e do d. quixote de la mancha, aquele que fez a viagem do parnaso… e outras obras que por aí andam desencaminhadas e talvez sem nome do dono. Vulgarmente lhe chamam Miguel de Cervantes saavedra.) as instáveis tesouras e o instável bisturi do seu pai mudaram-no com frequência de cidades; don rodrigo barbeou e operou em Córdoba, sevilha, toledo, Cuenca, valladolid… e teve uma presença mais demorada em madrid. e o seu filho miguel, com os balanços de uma instrução errática, sincopada e defeituosa, ministrada pelo saber de jesuítas, só na maior estabilidade da capital, e sob a orientação do catedrático de gramática e filoeramista Juan lópez de Hoyos, chegou ao saber de escrita que um dia lhe permitiu sonhar a triste figura que hoje bem conhecemos com o nome de quixote. don Hoyos, convidado a escrever uma relação da morte e Honras fúnebres de isabel de valois, terceira mulher de filipe ii, quis dar-lhe um bom recheio de orações, elegias, estâncias e sonetos, e convidou alguns dos seus discípulos a colaborarem no trabalho.
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a intervenção de Cervantes destacou-se no acervo das bem comportadas e apenas correctas intervenções. pouco depois, miguel de Cervantes saavedra está na itália. as forças que para lá o levaram mantêm-se obscuras e biograficamente divididas. Há um registo de que um tal miguel Cervantes foi nesses dias condenado à amputação da mão direita por ter ferido num duelo antonio sigura, mestre de obras, na zona defendida pela interdição do uso de armas que rodeava o palácio real. será este Cervantes o filho de don rodrigo, que em fuga se furtou a tão cruel sentença? outra versão destes momentos dizem que a primeira e circunscrita fama de miguel chegou aos ouvidos do futuro cardeal Julio acquaviva, nesse momento em espanha para discutir com o rei o delicado assunto das possessões espanholas da itália que muito incomodavam o papa; e que o seu gosto renascentista, muito dado à convivência com artistas, fê-lo levar consigo o jovem miguel, cantando-lhe douradas promessas culturais que em roma, e sem ele perceber porquê, foram diminuídas até às que não destoariam muito das funções de um pajem. tempos depois, farto de vénias, lateralidades e mãos respeitosamente beijadas, miguel teria agradecido a monsenhor acquaviva a sua «generosa» protecção e pedido que o deixasse distanciar-se das suas púrpuras romanas. acquaviva ter-se-ia surpreendido, incomodado ou feito de conta que se incomodava, mas cedido. Certo é que um miguel de Cervantes livre, mas sem dinheiro, vagabundeou na itália a sentir a fome que as suas tão reduzidas posses lhe determinavam; certo é que fez em solo italiano avulsas poesias assim-assim, que teve de uma tal «silena» um filho a que foi dado o sugestivo nome de promontorio, e que talvez tenha escrito alguma coisa do mau romance a galateia.
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mas os incómodos desta penúria excitavam-se com o auge da contenda entre roma (mais os seus fiéis de Cristo) e os infiéis de maomé; a que teve o glorioso e provisório epílogo da batalha naval de lepanto, onde a esquadra da liga santa, que juntava vários países abençoados pelo papa, um deles a espanha, acabaria por vencer em terras gregas o infiel império otomano. o ocioso vagabundo da itália tinha-se alistado nestes exércitos cristãos, diz-se que doente e pouco prestável para refregas, mas com a esforçada decisão de mostrar-se soldado aguerrido. e foi nesta desfavorável conjuntura que um tiro de arcabuz lhe acertou a 10 de outubro de 1571 na mão esquerda, tornando-a mole, imprestável de vez, inspirando desde logo alcunhadores que passariam a chamar-lhe O Maneta de lepanto. Cervantes, porém, nesta desgraça alindava-se: Perdeu na batalha naval de lepanto a mão esquerda com um tiro de arcabuz, ferida que parece feia mas ele tem por formosa por tê-la arranjado na mais memorável e elevada ocasião que os séculos até hoje viram, e que os vindouros não verão, a militar sob as vencedoras bandeiras do filho de um raio da guerra, Carlos quinto de feliz memória. Cervantes saavedra, que na messina da sicília curava as feridas da mão pendente, ainda teve um fervor e um sobressalto bélicos porque o malvado turco voltava a ganhar forças. Não ia desistir; podia ser, e seria, um soldado de mão direita. foi aceite numa expedição mal preparada e destinada a nenhum êxito, onde teve a companhia do seu irmão rodrigo, também alistado, acabando por desembarcar em Nápoles entre soldados vencidos. viu a cidade como um poeta; sentiu-a toda de castelos e torres coroada, por forte e por formosa em mesmo grau temida, conhecida e estimada, e palmilhou-a sem mostras de cansaço até imaginar que fazia um merecido regresso a espanha.
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Cervantes começou realmente a fazê-lo numa galera (com o radioso nome de sol), mas viu-se às tantas rodeado de galeotas comandadas pela voz e pelos modos selvagens de um pirata de argel. Não foi longa a batalha que o meteu, com o seu irmão e outros espanhóis a repatriarem-se, num navio que o largou em áfrica e o fez escravo do renegado dalí mamí, lendário na ferocidade, implacável nos castigos. este dalí — bravio e sem nada ter em si de salvador — era drástico nas punições à rebeldia: o sargento Navarrete, por exemplo, que fez uma desastrada tentativa de fuga, teve as duas orelhas cortadas. mas Cervantes, metido nesta crueldade, não se consentiu quebrado de ânimo. nunca me abandonou a esperança de ter liberdade, veio mais tarde a escrever; e quando eu fabricava, pensava e punha qualquer coisa em obra, o êxito não correspondia à intenção; eu fingia e procurava ter a sustentar-me outra esperança, ainda que débil e frágil. «por quatro vezes esteve a ponto de perder a vida empalado, enganchado ou queimado vivo», diz um padre beneditino Haedo que também lá andava. em quase cinco anos de cativeiro Cervantes fez, de facto, quatro tentativas de fuga. Houve um dia em que um tal gabriel de Castañeda, alferes, conseguiu furtar-se às severidades de mamí e levou para espanha uma carta de miguel dirigida aos seus pais. os saavedra sabiam que os piratas eram sensíveis ao dinheiro conseguido com as somas de bem pesados resgates. mas dinheiro… de onde viria ele, se a pobre família do cirurgião-barbeiro surdo mal chegava a sustentar-se? Houve nos membros da família saavedra concertos de estratégias e diligências; houve peditórios pouco aliciantes que juntavam escassos maravedis; houve cartas que tentavam, ao que parece sem êxito, chegar às mãos do príncipe Juan
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que estava na flandres e simpatizava com miguel. a sua mãe e as suas irmãs, vestidas de luto, acabaram em derradeira instância por se ajoelhar à frente do bondoso frei Jorge del olivar do Convento da mercê. e este frei Jorge, mesmo sem ter consigo a quantia capaz de dourar a concupiscência de dalí mamí, foi a argel. Jorge del olivar levava consigo poucos escudos mas ardilosos planos; os que fizeram da primeira tentativa de fuga do maneta de lepanto um total fracasso; ele foi incitado a uma acidentada corrida por montes e vales, em direcção a orão, que se viu obrigada a retroceder até aos domínios de mamí, sem que hoje se saiba ao certo que imediatas consequências teve. entretanto, duas filhas da família saavedra tinham obtido como dote matrimonial quantias que dariam para o resgate de um dos dois irmãos Cervantes. miguel sacrificou-se a favor de rodrigo, que em 1577 regressou a espanha. a miguel só restava o sonho de uma segunda tentativa de fuga. e esta acolheu-o com outros catorze espanhóis numa gruta, à espera do navio espanhol que viria resgatá-los mas foi aprisionado mal se aproximou da costa. ao bei turco de argel, azán Bajá, não caiu bem esta aventura de espanhóis que duvidavam da eficácia dos vigilantes do seu país. encarcerou Cervantes durante cinco meses, depois de tê-lo comprado por quinhentos escudos de ouro a dalí mamí. Cervantes era agora escravo do bei azán Bajá. e a sua terceira tentativa de fuga, congeminada através de cartas dirigidas a don martín de Cordoba, governador da possessão espanhola de orão, todas a insistirem numa ajuda de homens seus para a fuga dos espanhóis escravizados por azán, não obteve resultados que lhe garantissem qualquer espécie de auxílio. Cervantes mudou então de destinatário; escreveu ao rei de espanha filipe ii, desta vez uma
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carta em versos que não escondiam a sua miserável situação num cativeiro que durava quase quatro anos. Cuan cara eres de haber, oh dulce españa!, lamenta-se o poeta a sonhar com uma espanha que, embora doce e desejada, permanecia inerte e muda perante os seus apelos. a descoberta desta vontade de fuga para orão chegou a ter como sentença duas mil pauladas, mas nunca levada a cabo por ter havido influências locais que se manifestaram, pedindo ao bei clemência para os desmandos do poeta espanhol. À quarta foi de vez, embora com intermédias peripécias que pareciam negar-lhe de novo a liberdade. porque Cervantes convenceu um rico renegado espanhol, com o estranho nome abderranán, a adiantar-lhe dinheiro para a compra de uma fragata que o levaria, com outros, de regresso ao seu país natal, garantindo-lhe uma futura recompensa por este empréstimo. e quando tudo parecia aproximar-se do melhor dos epílogos, interveio conspiradoramente um tal Blanco de la paz, que se dizia sacerdote embora acrescentasse à sua caridade as durezas de um comissário do santo ofício. vaidoso e soberbo, movido pela inveja do prestígio intelectual de Cervantes entre os espanhóis de argel, de la paz transmitiu toda a tramóia da fuga ao poderoso azán. Cervantes escondeu-se na casa do alferes diego Castellan, mas a polícia secreta de azán via através das paredes. foi levado à presença do bei enfurecido com as artimanhas do seu fugidio escravo, e encarcerado numa segura prisão do palácio. parece ter havido, no entanto, uma inesperada brandura. porque mais tarde, falando de si como terceira pessoa, o escritor veio a confessar : Com ele, [azán], só um soldado espanhol conseguiu haver-se bem, um tal chamado saavedra a quem jamais açoitou nem mandou açoitar, nem disse má palavra apesar de ele ter feito coisas que ficarão por muitos anos na memória daquelas gentes, todas para alcan-
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çar a liberdade, e de temermos que fosse, como ele próprio receou mais do que uma vez, pela menor dessas coisas empalado. a liberdade insistentemente sonhada vai agora surgir, mas ainda assim a complicar-se (ou talvez a simplificar-se) numa reviravolta que mal não ficaria nos transes de um romance de aventuras. o caprichoso azán, ao sabor de um temperamento variável que se movimentava entre bondades e fúrias, integrou-o num grupo de escravos que se destinavam a ser negociados em Constantinopla. e um tal frei Juan gil, padre trinitário chegado nesse maio de 1580 a argel, tentou persuadir azán a definir um resgate a preço compatível com a não muito farta bolsa de um padre. Na bolsa de Juan gil havia trezentos escudos de ouro, entregues antes da sua partida pela mãe de Cervantes, mas que não chegavam para um escravo que valia, na benevolência de azán, a soma de quinhentos. e só com um apressado e piedoso peditório ele conseguiu chegar aos duzentos que somavam, com aquilo que já tinha, os escudos exigidos pelo bei. frei Juan gil, com provas do resgate na mão, chegou apressadamente ao porto onde Cervantes estava a dois passos de entrar no barco que o destinava a escravo de um qualquer turco endinheirado. miguel de Cervantes saavedra, futuro autor do d. quixote, voltou a ser cidadão livre do reino de espanha. Há encantadores que me maltratam, mas também os há que me defendem, virá mais tarde a desabafar o seu herói alucinado por moinhos de vento — falando de si mas reflectido, ao que parece, no seu criador. * espanha ressurge-lhe através do porto de valência nos primeiros dias de Novembro de 1580, e por ali anda dois meses sem
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saber que rumo dar à sua vida. O país em seu redor excita-se; sente que o rei Filipe não tardará a transbordar no seu poder, somando à Espanha aquele Portugal incapaz de escolher um plausível sucessor do jovem rei que um qualquer marroquino matou, começa a creditar-se, nas planícies desoladas de Alcácer-Quibir. Em Madrid, Cervantes entusiasma-se com esta conquista que alarga o seu país a novas terras cantadas com muito mar e paisa~ publicou nove anos antes um extenso gens; onde um tal Camoes poema de versos portugueses, chamado Os Lusíadas, que celebrava um Portugal forte e heróico, cheio de armas e varões assinalados, bem diferente do que chorava nesses dias o desaparecido Sebastião. E aos ouvidos de quem precisa de ganhar dinheiro para compensar a sua família da dívida que lhe pesa e chega ao montante daquele resgate em Argel, Portugal soa a muito agradável oportunidade. Cervantes faz entretanto um trabalho secreto de espionagem que o leva a Orão, mas aproveita no regresso a companhia do seu amigo Rodrigo de Chaves para chegar a Lisboa, uma cidade que volta a sorrir, depois de se ver livre de uma epidemia que tinha andado a matar por todas as portas e à qual só fora dado o vago nome de peste. Cervantes integra-se como alferes (podemos concluí-lo a partir de algumas frases que ele próprio escreveu) no tercio de Lope de Figueroa; apaixona-se por uma dama portuguesa (até hoje não identificada) e escreve páginas desse romance A Galateia que vai sair-lhe difuso, cheio de pastores tão cultos que até já leram Platão, e mostra de artifício em artifício as cores retóricas de um género para o qual ele próprio olhará — em O Colóquio dos Cães — acusando-o de fantasia e incredulidade. Mas os bons tempos de Lisboa acabam, e Cervantes regressa a Madrid. Começam a sair-lhe da pena comédias e entremezes,
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o que não parece decente aos pais da jovem rica Catalina de salazar y palacios, que insiste em casar com o poeta sem prever como os seus costumes de burguesa rica e conservadora irão confrontar-se com os irreprimíveis desvios do boémio saavedra. em 1587, este casal de conflitos mais e menos surdos vai afastar-se de uma incómoda vigilância familiar e refugiar-se nas distâncias de sevilha. Cervantes leva consigo uma esposa de poucos sorrisos, e deixa em madrid uma filha extra-conjugal que começa por ter os sobrenomes do atraiçoado marido da sua mãe, mas dezasseis anos mais tarde, na situação de órfã, passará a ser isabel saavedra e reconhecida pelo seu verdadeiro pai. sevilha dá-lhe o cargo de Comissário de provisões, encarrega-o de abastecer as cozinhas dos homens da invencível armada que se destina a invadir uma inglaterra demasiado influente nos países Baixos espanhóis. Cervantes, que deverá armazenar azeites, trigos e cevadas necessários à boa forma dos soldados do seu país, lê atentamente e à letra as determinações do rei: «onde se entenda encontrar o dito trigo e cevada, tomareis toda a quantidade, tirando todo o poder a qualquer pessoa que a tiver, sejam quais forem o seu estado e a sua condição, tanto eclesiástica como secular.» eclesiástica? É afrontar o enorme e arrogante poder da igreja. esta ordem, executada contra todos os protestos, irrita o arcebispo de sevilha. Cervantes é excomungado (a nível andaluz) e passa a ter bem visível o seu amaldiçoado nome na porta das igrejas. mas não faz mal; em 1588, as competências do seu cargo são aumentadas. e não só arrebanha azeites e cereais para alimentarem aquela armada que ninguém poderá vencer, mas trata da sua embalagem e do seu transporte. É provável que pequenos ócios, vividos nesta azáfama de sevilha, sejam ocupados por trabalhos de escritor, e já existam notas
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mais ou menos elaboradas para futuras páginas do seu d. quixote; mas tudo isto começa pouco depois a declinar porque a invencível armada é afinal vencível; tinha levado consigo trinta mil homens para darem cabo das forças bélicas de isabel i, e regressa abatida e apenas com dez mil, deixando atrás de si vinte mil arcabuzados e afogados numa grande tempestade marítima que o deus anglicano orquestrou, ao que parece, para deixar bem tratado o incurável orgulho inglês. Cervantes, com poucos cereais para armazenar, decide fazer peças de teatro. assina com um empresário teatral um contrato onde se compromete a escrever seis comédias; e tão grande e presumido está na sua auto-confiança, que declara por escrito: se havendo representação de cada comédia, parecer que não é uma das melhores de espanha, não sejais obrigado a pagar-me por tal comédia coisa alguma, porque assim estou convosco de acordo e concerto. No entanto, para infelicidade sua também surge nestes mesmos dias de 1597 uma ordem de prisão que o confiante escritor cumprirá durante quatro meses no Cárcel real de sevilha. É assim punido por graves irregularidades como comissário acusado de se apropriar e extorquir, de ceder a inqualificáveis abusos de poder. quando o restituem à liberdade é destituído do seu cargo e obrigado por sentença a pagar terços e alcavalas devidos ao erário real. doña Catalina de salazar y palacios, com dinheiro que chega e sobra para salvar o seu marido deste mau momento, limita-se a mostrar um azedume de esposa incomodada. mas neste drama conjugal, que vai encher-se de choros e súplicas, acaba por ceder; põe a sua fortuna a servir de fiança, dizendo porém a Cervantes que terá de efectuar a tempo e horas as prestações exigidas por lei. se o lazer de quatro meses de cárcere não soube inspirar-lhe nenhuma das seis comédias prometidas por contrato, sabe-se que
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fê-lo sonhar nos mais significativos traços a aventura do cavaleiro da triste figura que só será publicada na sua primeira parte oito anos mais tarde, vinte anos depois de ter dado a conhecer a sua galateia. vai ter, neste intervalo de tempo, os já referidos desaires do seu cargo de comissário, mas também os de um mal sucedido cobrador de impostos. porque andava ele desde há três anos a surgir perante incautos e relapsos com as suas coacções de cobrador, quando foi metido de novo na prisão. esteve outra vez detido, acusado de apropriação de dinheiro público e também punido por ter depositado somas cobradas num banco que declarara a sua falência. paralelamente a estes percalços materiais, surge em pleno o escritor de comédias e entremezes que chegaram ao respeitável número de vinte ou trinta (de acordo com o que ele um dia declarou) mas com textos hoje perdidos, na sua maior parte, e reduzidos ao mais baixo número de onze. Cervantes criava com reconhecido talento teatral personagens alegóricas, determinadas em prosa e verso pelas coordenadas aristotélicas de acção, tempo e lugar, embora já fosse nessa altura suplantado — com que cenas de ciúmes, com que controvérsias — pela audaciosa modernidade de lope de vega. também fazia versos; os que são hoje conhecidos na sua Viaje del Parnaso, um extenso número de tercetos publicado em 1614, um ano antes da segunda parte do d. quixote. mas nunca o poeta Cervantes alcançou em poemas as suas alturas de prosador. e dele conhecemos, a tal respeito, esta sinceridade: Yo que sempre trabajo y me desvelo por parecer que tengo de poeta la gracia que no quise darme el cielo.
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se miguel de Cervantes no teatro mostrava um talento suplantado por lope de vega, se em versos nunca era mau sem ser muito bom, surgiu como fulgurante inovador da ficção em prosa, considerada no seu tempo arte menor perante as formas poética e teatral. o seu d. quixote conquistou no mundo literário um primeiro e bem explícito exemplo do que hoje conhecemos pela designação de romance; e as suas ficções curtas — só antecedidas no género pelas que tinham construído o decameron de Bocaccio — também se afirmavam em castelhano como novidade absoluta. Bocaccio já era, em várias línguas e tons, imitado nas cem histórias de um grupo de privilegiados que fugia dos contágios da peste; mas Cervantes mostrava, a navegar nas águas dessa mesma disciplina literária, um saber de escrita que ele insistia em ver reconhecido na sua originalidade: sou o primeiro a fazer novelas em língua castelhana, porque as muitas novelas que nela andam impressas são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são minhas, não imitadas nem furtadas; o meu engenho engendrou-as e pariu-as a minha pena, e vão crescendo nos braços da imprensa. Cervantes chamou-lhes «exemplares», palavra a que não devemos dar o mais previsível sentido de exemplo moralizador, mas reconhecer-lhes uma pretensão experimental e de exemplaridade estética. estas ficções curtas, escritas em épocas diferentes da sua vida, foram revistas e sujeitas à forma definitiva que assumiram para surgir reunidas nas suas novelas exemplares publicadas em 1613, três anos antes da sua morte. são doze, se incluirmos nelas o exemplo discrepante de O Colóquio dos Cães, metido dentro de outro texto, O Casamento enganoso, este conciliável com o que reconhecemos como novela. o incómodo estrutural desta discrepância já excluiu por várias vezes
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o Colóquio do conjunto destas novelas, mesmo que tenha sido preciso amputar com ele a parte final de O Casamento enganoso. Cervantes, por certo inspirado num diálogo do grego luciano de samósata com animais dotados de racionalidade, dá a dois cães algumas horas de fala e superior entendimento, para oferecer aos seus leitores um espectáculo de males muito difundidos na sociedade do seu tempo e perturbadores do comportamento moral que uma inocência de cão julgaria inseparáveis da raça humana. o prodígio mental concedido ao cão Berganza permite que ele nos dê conta, de forma irónica e por vezes pícara, das experiências que teve com todos os seus donos, ouvido atentamente pelo cão Cipión, que ao ser abrangido pelo mesmo prodígio decide retribuir-lhe com outro relato. Cervantes teria pensado em duplicar este diálogo de cães, sem nunca chegar a fazê-lo, promessa não cumprida que incitou um tal ginés Carrillo Cerón, escritor de granada, a publicar em 1635 los Perros de Mahudes, executando o que Cervantes prometeu mas nunca realizou. a introdução de O Colóquio dos Cães na novela O Casamento enganoso, esta de um realismo directo e que frequenta sem hesitações a rasteira alcaiotagem, chocou e continua a chocar muitos leitores. o que parece à primeira vista arbitrário e dissonante, foi em 1973 justificado pelo inglês peter N. dunn, argumentando este contraste como prova de uma possível e lograda convivência entre dois extremos da atitude literária, mesmo que a sua relação com a realidade seja diversa, fazendo deles uma totalidade apenas conseguida pela mesma verdade poética da palavra, e chamando também a atenção para a grande qualidade metanovelística de O Colóquio dos Cães, que ele considera «mais francamente dedicado ao estudo das relações entre a vida e a ficção do que qualquer outra obra cervantina, com a excepção
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de quixote, e mais intimamente comprometido com a experiência do próprio acto de escrever, em particular quando valoriza as muito fortes e ambíguas imagens da fantasia.» miguel de Cervantes morreu em 1616, em madrid, depois de um ataque de diabetes, umas horas antes de morrer na inglaterra William shakespeare; e o dia 23 de abril, considerado pela unesco com possibilidades de celebrar em termos de calendário estas duas mortes, foi escolhido pela unesco para dia internacional do livro. Cervantes teve em 1617 a sua obra postumamente acrescentada pelo romance los trabajos de Persiles y sigismunda, uma complexa história inscrita no subgénero da novela bizantina e que se atreve a competir, segundo o autor, com o modelo de Heliodoro. as suas personagens principais, dois príncipes nórdicos, fazem uma peregrinação que desce a europa e os deixa alguns dias em lisboa. este romance que levantava, ao que parece, hesitações de publicação ao seu autor, nada acrescenta à dimensão de prosador que lhe é concedida pelo d. quixote e pelas suas novelas. se miguel de Cervantes saavedra brilha hoje no mundo inteiro como criador de um inesquecível d. quixote enlouquecido pelos valores já decadentes da cavalaria, e de um sancho pança sério que o ladeia e é aos poucos pervertido pelos delírios do seu companheiro, também brilha muito longe na constelação ara, a cerca de cinquenta anos-luz, onde uma estrela Cervantes domina quatro planetas obedientes que à sua volta rodam, e aos quais uma astronomia literariamente culta chamou dulcineia, sancho, quixote e rocinante. pelos vistos, muita razão tinha quando escreveu: el único limite es el cielo. a.f.
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ilustração da edição de antonio de sancha, 1783.
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saía um soldado do Hospital de la Resurrección, que fica em Valladolid para lá da Puerta del Campo; e pela espada utilizada como báculo, pela fraqueza das pernas e pelo amarelado do rosto, mostrava com muita clareza que, embora o tempo não estivesse muito quente, devia em vinte dias ter transpirado todo o suor que talvez lhe não tivesse sido dado pelo trabalho de uma hora. ia a fazer cambaleios e escorregadelas como um convalescente. ao entrar pela porta da cidade, viu aproximar-se dele um amigo que há mais de seis meses não encontrava; e que ao aproximar-se, persignando-se como se tivesse uma má visão, disse: — Mas o que é isto, senhor alferes Campuzano? será possível que esteja vossa mercê nesta terra? Por quem sou! imaginava-vos na Flandres, e bem mais a terçar por lá a lança do que a arrastar por aqui a espada! Mas que cor! Mas que fraqueza é essa? a isto Campuzano respondeu: — senhor licenciado Peralta, se estou ou não nesta terra, vendo-me nela tendes a resposta; às demais perguntas só tenho de dizer que saio daquele hospital depois de rebentar catorze doses de borbulhas da sífilis, deixadas no meu corpo por uma mulher que eu, sem dever fazê-lo, escolhi para ser minha. — quer isso dizer que vossa mercê se casou? — foi a pergunta de Peralta.
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— sim, senhor — respondeu Campuzano. — tê-lo-á feito por amores — disse Peralta — e esses casamentos trazem agarrada a sentença do arrependimento. — não saberei dizer se foi por amores — respondeu o alferes — embora saiba afirmar que foi por dores; porque do meu casamento, ou cansamento, muitas foram as que tive no corpo e na alma; curar as do corpo custou-me quarenta suadelas, e para as da alma nem sequer encontro remédio que as alivie. Mas como não estou para ter grandes conversas na rua, perdoe-me vossa mercê se eu só lhe der noutro dia conta, e com maior comodidade, das coisas que me aconteceram mais inesperadas e estranhas, talvez, do que vossa mercê em todos os dias da vida ouviu. — isso não será assim — disse o licenciado — pois quero que venha comigo até à minha casa para fazermos juntos uma almoçarada, já que um cozido é bom para doentes; embora tenha sido feito para dois, contentar-se-á o meu criado com um pastel; e se a convalescença lho permitir, umas fatias de presunto de Rute1 servirão de entrada, e sobretudo a boa vontade com que o ofereço não apenas uma vez, mas todas as que vossa mercê quiser. Campuzano agradeceu-lhe, aceitando o convite e o que ele oferecia. Foram a san llorente e assistiram à missa; Peralta levou-o a sua casa e deu-lhe o prometido, fazendo de novo a oferta, e quando acabou de comer pediu que contasse as coisas que lhe tinham acontecido e tanto empenho fazia em transmitir-lhe. Campuzano não se fez rogado, pelo contrário, e começou desta maneira: 1
Célebre presunto de Córdoba. (N. do t.)
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— Vossa mercê, senhor licenciado Peralta, recordar-se-á de que eu era nesta cidade colega do capitão Pedro de Herrera, agora na Flandres. — Bem me recordo — respondeu Peralta. — Pois um dia — prosseguiu Campuzano — acabávamos de comer naquela pousada da solana, onde vivíamos, e entraram lá duas mulheres de gentil parecer, com duas criadas. uma pôs-se a falar de pé com o capitão, encostados a uma janela; e a outra sentou-se ao pé de mim numa cadeira, com o manto descido até ao queixo, sem deixar que lhe víssemos mais o rosto do que o permitido pela esquisitice do manto. e embora eu lhe suplicasse que me fizesse a cortesia de se destapar, não foi possível convencê-la, coisa que me acendeu ainda mais o desejo de vê-la. e como se não bastasse, fizesse-o de propósito ou por acaso, a senhora pôs à mostra uma mão muito branca e com muitos bons anéis. eu estava nessa ocasião muitíssimo garboso com aquela grande corrente que vossa mercê já deve ter-me visto, e o chapéu com penas e cinteiro, o colorido trajo próprio dos soldados, aos olhos da minha loucura galhardo ao ponto de ela dar-me a entender que eu seria capaz de tiro e queda. tudo isto levou-me a pedir-lhe que se destapasse, tendo-me respondido: — «não sejais importuno. tenho casa, como vos dirá um pajem a quem ordenareis que me siga; e apesar de mais honrada do que esta resposta pressupõe, como compensação e para ver se a sensatez corresponde em vós à galhardia, permitirei que me vejais. «Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia e prometi, para lhe pagar, montes de ouro. O capitão terminou a sua conversa; as duas foram-se embora e seguiu-as um criado meu.
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a dama, disse-me o capitão, queria que ele levasse umas cartas a outro capitão que estava na Flandres; afirmava que era seu primo, embora ele soubesse que não passava de um homem que lhe fazia a corte. «Fiquei em brasa com as mãos de neve que tinha visto, e morto pelo rosto que desejava ver. Por isso num outro dia, tendo como guia o meu criado foi-me permitida entrada livre. deparei com uma casa muito bem apetrechada e uma mulher com cerca de trinta anos, que reconheci pelas mãos. não era extremamente formosa, embora do género que consegue fazer-nos apaixonar pelo trato, pois tinha um tom de voz muito suave que entrava na alma pelos ouvidos. tive com ela longos e amorosos colóquios; ostentei, abri caminho, ofereci, prometi e fiz todas as demonstrações que pareceram necessárias para me querer bem. Mas como estava acostumada a ouvir ofertas e razões iguais ou maiores do que as minhas, parecia dar-lhes um ouvido atento mas nenhum crédito. Por fim, nos quatro dias em que continuei a visitá-la, toda a nossa conversa foi de frioleiras mas sem eu colher o fruto que desejava. «durante o tempo em que a visitei vi sempre a casa livre, sem lhe vislumbrar falsos parentes nem amigos verdadeiros; tinha a servi-la uma rapariga mais matreira do que simplória. Por fim, tratando os meus amores como um soldado em vésperas de mudar de sítio, pressionei a minha senhora doña estefania de Caicedo (pois é o nome da que assim me prende) e respondeu: — “senhor alferes Campuzano, seria tolice eu querer vender-me a vossa mercê como santa; pecadora fui, e ainda agora sou, mas não de forma a que os vizinhos me maldigam ou os afastados me apontem a dedo. nem dos meus pais nem
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de outro parente herdei quaisquer haveres; mas, assim mesmo, os móveis da minha casa valem bem vendidos dois mil e quinhentos escudos; e isto em coisas que um leiloeiro, tardando a pô-las à venda, só tardará a convertê-las em dinheiros. “Com estes haveres procuro marido a quem entregar-me e a quem prestar obediência; a quem entregarei, juntamente com a minha emendada vida, uma inacreditável solicitude no cuidar e no servir; porque quando eu mostro que sou doméstica, e decido sê-lo, não há príncipe com cozinheiro capaz de excitar mais o apetite nem que melhor saiba levar ao ponto certo os seus guisados. sei em casa ser mordomo, criada na cozinha e senhora na sala. sei, de facto, mandar e fazer com que me obedeçam. nada desperdiço e poupo muito; o meu dinheiro não vale menos, e é mesmo muito mais quando sob as minhas ordens o gastam. a muita e muito boa roupa branca que tenho, não foi arranjada em lojas nem em mercadores; fiaram-na estes polegares e os das minhas criadas; e se pudesse ser tecida em casa, aqui a teceríamos. “Faço a mim própria estes louvores por não serem causa de vitupério quando há forçosa necessidade de fazê-los. quero por fim dizer que procuro um marido que me ampare, mande em mim e honre, e não um galanteador que me sirva e vitupere. se vossa mercê gostar de aceitar a dádiva que lhe é oferecida, aqui me tem dócil e afeita, disposta a tudo o que ordenar; isto sem me pôr à venda, que é o que acontece quando se anda na língua de casamenteiros; e nada remata tão bem o todo como os pedaços que lhe pertencem.” «eu, que nesses tempos não tinha o juízo na cabeça mas nos calcanhares; que nessa altura ainda sentia com mais força os deleites do que a imaginação os pintava, e porque a exten-
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são dos seus haveres me parecia tão evidente que já os via convertidos em dinheiro, sem discursos além daqueles que o prazer ocasionava e punham grilhetas no meu entendimento disse-lhe que era venturoso e afortunado por o céu me ter dado, quase por milagre, semelhante companheira, fazendo-a senhora da minha vontade e dos meus haveres que não eram tão poucos e até perfaziam, com a corrente que trazia ao pescoço e outras joiazinhas que tinha em casa, e se me desfizesse de umas quantas farpelas de soldado, somados aos dois mil e quinhentos escudos que eram seus, suficiente quantia para nos retirarmos e vivermos numa aldeia de onde eu era natural e onde tinha algumas raízes; haveres que acrescentados com o dinheiro, vendendo na altura certa os seus frutos, podiam dar-nos uma alegre e descansada vida. Foram desta vez prontamente concertados os nossos esponsais, e deles se deu notícia como se ambos nos despedíssemos do estado de solteiros; e foram feitos os pregões nos três dias de festa que calharam logo agarrados a uma Páscoa, e casámo-nos no quarto dia tendo estado presentes nos esponsais dois amigos meus e um mancebo que ela deu como seu primo e tratei como parente, dirigindo-lhe palavras de tanta urbanidade como as que tinha até então dirigido à minha recente esposa; mas fazendo-o com tão falsa e traiçoeira intenção prefiro calar-me, porque embora eu diga apenas verdades, não são dessas, de confessionário, que não podem deixar de ser bem ditas. «O meu criado levou o baú desde a pousada até à casa da minha mulher; e lá guardei à frente dela a minha magnífica corrente; mostrei-lhe outras três ou quatro, que a não serem tão grandes seriam de melhor feitura, e ainda outros três ou quatro cinteiros de diversas espécies; exibi-lhe os meus atavios
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a papisa Joana — segundo o texto de alfred Jarry, emmanuel Rhoides o raposo, d.H. lawrence Bom Crioulo, adolfo Caminha o meu corpo e eu, René Crevel manon lescaut, Padre Prévost o duelo, Joseph Conrad a felicidade dos tristes, luc dietrich inferno, august strindberg um milhão conta redonda ou lemuel pitkin a desmantelar-se, nathanael West freya das sete ilhas, Joseph Conrad o nascimento da arte, georges Bataille os ombros da marquesa, Émile Zola o livro branco, Jean Cocteau verdes moradas, W.H. Hudson a guerra do fogo, J.-H. Rosny aîné Hamlet-rei (luís ii da Baviera), guy de Pourtalès messalina, alfred Jarry o capitão veneno, Pedro antonio de alarcón dona guidinha do poço, Manoel de Oliveira Paiva visão invisível, Jean Cocteau a liberdade ou o amor, Robert desnos a maçã de Cézanne… e eu, d.H. lawrence o fogo-fátuo, drieu la Rochelle memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — o parceiro secreto, a laguna, mocidade, Joseph Conrad o homem que falou (un de Baumugnes), Jean giono o dicionário do diabo, ambrose Bierce a viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco o caso Kurílov, irène némirowsky a costa de falesá, Robert louis stevenson Nova safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura gaspar da Noite — fantasias à maneira de rembrandt e Callot, aloysius Bertrand rimbaud-verlaine, o estranho casal o rato da américa, Jacques lanzmann as amantes de dom João v, alberto Pimentel
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os cavalos de abdera e mais forças estranhas, leopoldo lugones preceptores – gabrielle de Bergerac seguido de o discípulo, Henry James o Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, ernest Renan derborence, Charles Ferdinand Ramuz o farol de amor, Rachilde diário de um fuzilado, precedido de palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière a minha vida, isadora duncan rakhil, isabelle eberhardt fuga sem fim, Joseph Roth o castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans tufão, Joseph Conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, antonin artaud van gogh o suicidado da sociedade, antonin artaud eu, antonin artaud a morte difícil, René Crevel a lenda do santo bebedor seguido de o leviatã, Joseph Roth o Chancellor (diário do passageiro J.r. Kazallon), Jules Verne orunoko ou o escravo real (uma história verídica), aphra Behn as portas do paraíso, Jerzy andrzejewski tirano Banderas (novela de terra quente), Ramón del Valle-inclán Cáustico lunar seguido de ghostkeeper, Malcolm lowry Balkis (a lenda num Café), gérard de nerval diálogos das carmelitas, georges Bernanos o estranho animal do vaccarès, Joseph d’arbaud riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, leonid andreiev Nossa senhora dos ratos, Rachilde
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