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CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA EGEAC
ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR
Joana Gomes Cardoso Lucinda Lopes Manuel Veiga
directora | curadora Sara Antónia Matos adjunta de direcção Graça Rodrigues conservação e produção Sara Antónia Matos Graça Rodrigues Pedro Faro comunicação Graça Rodrigues investigação Sara Antónia Matos Pedro Faro coordenação editorial Sara Antónia Matos serviço educativo Teresa Santos apoio ao serviço educativo Teresa Cardoso
apoio / parceria
serviços administrativos Isabel Marques Teresa Cardoso
Atelier-Museu Júlio Pomar | EGEAC Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa, Portugal Tel + 351 215 880 793
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Rui Cha fes SOB A PELE
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Rui Chafes SOB A PELE conversas com Sara Antรณnia Matos
D O C U M E N TA CADERNOS DO ATELIER-MUSEU Jร LIO POMAR
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PACTO E CURADORIA Sara Antónia Matos
Serve esta introdução para contextualizar a entrevista Rui Chafes, Sob a pele e explicar a razão por que se considera que a mesma integra o processo da curadoria. Partamos do princípio de que o resultado de um projecto não é totalmente previsível, e que aceitar o desafio nele envolvido implica, por parte de quem o integra, travar um pacto cujo desfecho não tem eficácia garantida. Devido à sua natureza condicional, esse pacto reside numa espécie de acordo, o qual envolve em si uma expectativa. São assim os projectos de curadoria que, até se levarem à prática, possuem uma condição de virtualidade tratando do possível, do optativo, do hipotético, do utópico. Nessa medida, o compromisso estabelecido entre o curador e o artista só pode sustentar-se na confiança mútua, no reconhecimento dos pares, na empatia com a obra e com o pensamento do autor — factores a que também não são alheias outras dimensões da vida. Isso fica patente nesta entrevista a Rui Chafes, realizada por ocasião da sua exposição com Júlio Pomar, no Atelier-Museu. Como adiante se verá, a amizade, as cumplicidades e as relações desenvolvidas ao
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longo do tempo podem interferir no trabalho de negociação inerente à curadoria. O relacionamento com o escultor surgiu estava eu a organizar um programa de intervenções artísticas para o Mosteiro de Alcobaça, e pretendia saber se podia inserir o seu nome no projecto a apresentar ao IPPAR, então tutela daquele monumento. Tive a sua adesão mas não sem um aviso cuidadoso de que, «a maior parte das vezes, projectos desta natureza não chegam a concretizar-se dada a complexidade institucional e exigência orçamental». Respondi que não desistiria, mas o projecto nunca chegou a acontecer, provavelmente por inexperiência minha. Pouco tempo depois, encontrámo-nos numa conferência que o escultor foi dar à Fundação Cultural Armazém das Artes, em Alcobaça, onde eu fazia parte do conselho de administração — promotor do convite. Daí para os colóquios que organizei nas Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, onde o mesmo aceitou participar, foi um passo. Os textos que escrevi sobre o seu trabalho para a revista L+arte aconteceram já no sedimentar de uma amizade, e assim sucessivamente até à exposição na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, onde o seu trabalho em desenho se juntou ao de Alberto Carneiro sob o título Khora, numa exposição por mim comissariada. Aí, pude confirmar aquilo que já antecipara: a sua fundamentação teórica e a sua imensa erudição.
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A conversa com Rui Chafes foi sempre fácil, não no sentido dos temas. Julgo que isso nunca o terá sido. Foi fácil por decorrer com honestidade, sem entraves, por não evitar perguntas ou escamotear assuntos difíceis. Mas também foi sempre exigente no sentido de requerer correspondência, isto é, comprometimento, lealdade, alguma audácia e vontade de arriscar. É assim quando há relação, no trabalho, no ensino, na curadoria: cresce-se com os outros, cresce-se com quem se admira. Talvez valha a pena dizer ainda que parte do entendimento com o escultor veio por via do conhecimento do material que adquiri no curso de Escultura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Tenho defendido várias vezes que um curador com formação artística facilmente entra em sintonia com o pensamento do artista, por um processo de osmose proveniente da experiência do fazer. Como se a memória carnal, o esforço, a resistência, a temperatura e o comportamento dos materiais plásticos viessem incorporados nas palavras emitidas e nas obras produzidas, de tal modo que deixa de ser necessário traduzir verbalmente certos procedimentos ou decisões para que os mesmos se tornem compreensíveis. Como diz Rui Chafes, nesta entrevista, «entre pares — quando os fios estão descarnados — há coisas que não precisam de ser ditas porque a corrente eléctrica passa». A curadoria, enquanto prática de especificidades próprias, só se efectiva quando faz exercício de todas as instâncias
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inerentes ao processo de formulação de uma exposição, ou seja, quando o processo é negociado, porque mesmo quando os artistas não estão vivos há um conjunto de forças históricas, sociológicas, institucionais, físicas, com as quais é necessário entrar em jogo e que é preciso conduzir. De outro modo, a ocasião será talvez a reunião e apresentação de um conjunto de obras num espaço, caso em que a concepção da exposição — as ideias e os discursos a ela inerentes, as tensões e as relações entre obras, destas com o espaço arquitectónico e as suas condicionantes — é arbitrária ou não existe. Uma vez que a curadoria se institui como um locus de ensaio para algumas práticas artísticas, num processo contínuo e indissociável das mesmas, que potencia novas formulações da obra e do espaço expositivo, o processo que lhe está inerente passa por pensar, discutir e negociar o que se quer comunicar com a exposição, se ela tem um carácter monográfico ou pontual, se nela se exploram um ou vários meios artísticos, uma ou múltiplas dimensões da obra. Passa inclusive por debater o que a exposição representa no percurso do artista, como condiciona a leitura anterior e posterior do trabalho, do que está para a frente e para trás. Nesse sentido, a curadoria pode ser entendida como um pacto, um acordo que se estabelece entre o curador e o artista (ou o curador e outra entidade), mas também um compromisso com o público que legitimamente possui expectativas.
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As relações humanas, em particular com os artistas, geram expectativas e o terreno da arte é, por excelência, o terreno de emergência de novas perspectivas. Elas passam por aspirações que os artistas inscrevem nas nossas vidas e que não são apenas de ordem apaziguadora ou do domínio da contemplação. O universo da arte também é da ordem da desestabilização e da reviravolta do mundo, da intensidade das relações, da brutalidade dos encontros, da imprevisibilidade da vida. As propostas artísticas trazem ao mundo normalizado novos folgos e possibilidades não previstas. Com a convivência desenvolve-se um conjunto de reconhecimentos, relações e empatias que interferem no processo de curadoria, o qual decorre do conhecimento da obra e do pensamento do seu criador, das escolhas, decisões, riscos, cedências que se operam durante o processo de negociação inerente a esse exercício. Assim se torna compreensível como esta conversa, em forma de entrevista, concorre para tornar esse exercício, em parte, legível e apreensível. Quando os processos de investigação são longos, permitem pensar em conjunto, andar para trás e para a frente, aferir fragilidades, expor inseguranças e recorrer ao interlocutor em momentos críticos. Tudo isso se espelha nesta conversa, por vezes silenciosa, por vezes protelada para encontros posteriores, em que o curador e o artista deixam perguntas um ao outro, dúvidas e inquietações que trazem e levam consigo,
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semeando labaredas e ateando chamas que vão sendo consumidas, remoídas, dia após dia, e que não raras vezes encontram respostas intuitivas. Nesse sentido, conviver com um artista, desenvolver um relacionamento duradouro com o mesmo, fazer visitas regulares ao atelier, se possível acompanhar a sua produção e nuances de pensamento ao longo do tempo, e não apenas no momento prévio da exposição, torna-se indispensável no processo de negociação inerente à curadoria. Alguns anos de amizade e convivência permitem-me saber de antemão que o artista recusa expor a intimidade e evita conceder entrevistas, tendo eu por isso hesitado em pedir-lhe esta que, para chegar debaixo da pele, exigiria de si muita disponibilidade. Hesitei como da primeira vez que o contactei, e, como da primeira vez, a resposta foi generosa. As gravações decorreram ao longo de várias sessões, em circunstâncias variadas, estendendo-se por um ano e meio, correspondente à preparação da sua exposição no Atelier-Museu, com Júlio Pomar, de quem fui mediadora. Sobre o texto que vos chega às mãos, sei que está fiel aos diálogos desenvolvidos, constato que em alguns pontos vai mais longe do que as perguntas pediam e recordo que o artista nunca evitou ou se desviou de qualquer questão incómoda. A sua voz está aqui como sempre a conheci: recta, grave e desobrigada de simpatias excessivas. O trabalho de edição, com
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as palavras, talvez comprove que, para si, a linguagem é, como o mesmo diz, «precisa como um edifício». Partes, ou mesmo a totalidade, de algumas conversas ficaram sem registo, devido à desatenção ao gravador ou à falta de pilhas. Por esse motivo, depois da transcrição e primeira edição, o artista leu e retrabalhou cuidadosamente a conversa e entregou-a pronta a publicar, ficando eu na expectativa pelo que dela pudesse ter desaparecido ou reaparecido. De resto, não seria a primeira vez que o artista o faria. Recordo e compartilho aqui um pequeno episódio que ocorreu durante o trabalho de selecção dos desenhos a apresentar na exposição Khora, na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa. Tinham-se escolhido quatro grupos de desenho, de entre os quais uma série executada a traços leves de grafite, em que figuravam corpos abertos e órgãos entrelaçados. Quando volto ao atelier, numa sessão posterior, encontro novamente três das séries, e mais alguns desenhos. Eram bons sem dúvida, melhores do que os que levei na memória, mas não os mesmos. Reclamo taxativamente com o artista que faltavam desenhos, ao que o mesmo me diz para olhar com atenção para o que tinha nas mãos. Volto a olhá-los, um a um, demorando-me neles, e qual não é o meu espanto quando, por baixo das manchas azuis de tinta, descubro os traços leves dos desenhos anteriores, que agora emergiam e submergiam por entre a cor adicionada. O artista retrabalhou os desenhos em sigilo, acrescentando-
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-lhes novas camadas, dando espessura à representação, e impondo tempo à penetração do olhar. Conto este episódio por entender que processos desta natureza também intervêm na curadoria funcionando esta como um trato que envolve raptos, labirintos e enredos, sem os quais provavelmente cada novo projecto não seria um repto e, naturalmente, uma fonte de adrenalina. Devo admitir ainda que, após dois anos de prática e vivência no Atelier-Museu, conhecendo a amplitude do espaço e dos seus vãos, tive dúvidas sobre o modo como o escultor iria aí instalar as suas obras. Partilhei consigo as minhas dúvidas e, em retorno, em tom absolutamente sereno, disse-me que não podia antecipar o resultado porque iria desenhar no espaço com o ferro, como com o lápis sobre a folha de papel. Aceitei arriscar com ele, alinhar neste voo vertiginoso, erótico, do não-saber, porque afinal é também deste pacto que trata a curadoria. *** Rui Chafes, Sob a pele… Conversas com Sara Antónia Matos insere-se na colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar e dá seguimento ao projecto de entrevistas que se iniciou com Júlio Pomar, em O Artista Fala… [Atelier-Museu Júlio Pomar/Documenta: 2014], que terá continuidade com
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o decorrer do programa de exposições que cruza a obra do pintor com a de artistas convidados. Assim, a propósito de cada exposição de Júlio Pomar com outro artista, editar-se-á uma entrevista realizada com o mesmo. O projecto de entrevistas do AMJP nasce da vontade de ouvir os próprios criadores e com eles gerar espaço para o pensamento sobre arte. Não há dúvida de que a voz do artista faculta uma aproximação à obra diferente daquela que é veiculada pelos profissionais da crítica e da teoria. Com um discurso não mediado, que escapa ao crivo e ao hermetismo do especialista, a fala em discurso directo dá a sensação de que se tem um contacto não só com a obra mas também com o criador. Essa aproximação é fundamental, não só porque muitas vezes a obra se apresenta distante, mas porque é através dos olhos dos artistas que aprendemos a ver o mundo sob outras perspectivas.
A Rui Chafes, a quem reiteradas vezes disse que escreveria apenas um parágrafo de introdução, técnica e objectiva, subtraindo-me ao máximo também das perguntas da entrevista, deixo aqui o meu profundo agradecimento pela partilha.
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conversas com Sara Antรณnia Matos
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Para os meus Pais
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RUI CHAFES Sob a pele…
Novembro de 2014, Praia do Guincho
Rui, o que tanto escreve nos seus papéis, essas folhas soltas, pequenas, que tira do bolso e enche de palavras? Segredos. Escrevo segredos, depois queimo-os e guardo as suas cinzas em caixas de ferro. Escrever é uma fraqueza e uma dependência. Mas estas palavras escritas, que não têm importância nenhuma, acabam quase todas na fogueira. Sempre acreditei no Fogo. Disse fraqueza? Escrever, anotar, é uma fraqueza? Quer explicar em que sentido? No sentido de não ser capaz de guardar o mundo na sua totalidade, através da vivência imediata. Existe sempre uma necessidade de aprofundar as coisas e, simultaneamente, uma incapacidade de nós, seres humanos, para abrangermos o real nas suas múltiplas dimensões. Portanto, socorro-me de todas as formas para guardar essa experiência da realidade. É nesse sentido que falo em debilidade, uma muleta ou um vício que
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gostaria de largar. Há pessoas que fumam, eu escrevo. Talvez seja parecido. Isso pode ser entendido como uma necessidade sua de deglutição do real? Uma vontade de integração da experiência em todas as suas dimensões? É exactamente isso, o que não deixa de ser uma dependência. E gosta de palavras? Tanto que acredito que podem salvar uma pessoa ou, pelo contrário, matá-la. Isso é metafórico ou real? Real. A palavra pode ter um poder conciliador ou mortal, um poder redentor ou destrutivo. Uma palavra pode salvar uma pessoa ou aniquilá-la. Todos nós já tivemos experiências dessas, momentos em que alguém nos disse alguma coisa que nos levantou ou, pelo contrário, arruinou. «Diz uma só palavra e seremos salvos…». Pelo mesmo motivo, gosto também de conhecer outras línguas, são uma maneira de testar as palavras em contextos diferentes e com a estranheza que a língua estrangeira instaura. Dos momentos mais felizes que passei na minha vida foi quando traduzi os Fragmentos de Novalis. Tinha 26 anos, vivia
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na Alemanha, e os meus dias eram passados a esculpir as palavras, letra a letra, a escolher qual o melhor significado e qual a melhor maneira de transformar uma palavra alemã numa palavra portuguesa. Foram, verdadeiramente, dias felizes. Vivia para a palavra. Isso faz-me lembrar o ensaio Sobre a Tradução de Paul Ricoeur, em que ele defende que a possibilidade de tradução radica na «fidelidade à capacidade da linguagem, para preservar o segredo, contra a propensão para o trair». Concorda? Concordo e concordo com Samuel Beckett: «Words are all we have». Tratar-se-á sempre de não trair o segredo da própria linguagem. Então, neste contexto da língua, do texto e da palavra, que importância têm os textos que escreve? Eles ajudam o espectador na relação com a obra? Eu acredito que nada que um artista diga tem demasiada importância face à sua obra, a obra deve valer por si. Ela fala e transporta uma voz mais poderosa do que as suas pobres palavras. Só a obra tem uma linguagem auto-suficiente, própria, interna, o resto surge como acessório. O que não significa que não haja um complemento indispensável à obra que passa pelo discurso e pela tentativa de produção de pensamento. Não é só o objecto que conta, é importante que exista um corpo de
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ideias e um discurso por detrás, a acompanhar, a sustentar ou a fundamentar a obra, e que a torne diferente dos outros objectos e artefactos comuns. Nesse sentido, a voz ou os textos dos artistas podem contribuir para a construção desse sustento teórico em que uma obra se alicerça. Mas há de tudo: artistas que sabem falar e outros que não, alguns que gostam de o fazer e outros que não, os que querem pronunciar-se e os que optam por se calar. Todas as opções são possíveis e legítimas. E eu, considerando que sei falar um pouco do meu trabalho, não gosto de o fazer. De qualquer modo, de uma maneira ou de outra, com mais ou menos silêncios, com mais ou menos palavras, sabemos que é preciso haver um corpo de pensamento e ideias que identifique os objectos que os artistas fazem. A arte será sempre pensamento e acção, não existe arte sem pensamento. E, portanto, quando participa em conferências, quando concede entrevistas, quando escreve textos, está a participar na construção desse discurso e de um corpo de ideias que identifica e diferencia a sua obra das demais? Esses momentos são sempre uma tentativa de, num determinado tempo e contexto, pôr as pessoas a pensar no mesmo que eu, quando executei as obras. Mas tenho consciência de que nunca pensarão no problema do mesmo modo que eu, incorporando o mesmo ponto de vista. Não passam de meras tentativas.
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Mas é isso mesmo que se espera da experiência da arte, não é? Que ela dê a ver a realidade a partir de outros ângulos e pontos de vista, que possa abrir a realidade e mostrar outras possibilidades? Sim, mas hoje pode ser necessário situar as pessoas num campo de pensamento muito mais alargado que anteriormente e que exige uma nova intuição. Esta questão também se coloca, igualmente, na música que nasceu no início do século XX (por exemplo com Schönberg, Berg e Webern) e que foi a raiz de toda uma nova tradição musical que, ao longo do século, teve muita dificuldade em se aproximar de um público vasto. Foi uma mudança de paradigma e das formas de entender aquilo a que as pessoas chamavam «harmonia». Nas artes plásticas, a partir da utopia do Modernismo e das suas versões mais iconoclastas e, sobretudo, a partir de Marcel Duchamp, os objectos artísticos já não podem ser deixados órfãos porque, pela sua própria natureza e pelo seu aspecto material e formal, não podem ter uma existência autónoma da mesma forma que tinham antes do Modernismo, como sabemos: deixaram de ser credíveis e reconhecíveis. A nossa memória foi estilhaçada em destroços tão pequenos que a mais ninguém podem servir. Por um lado, é difícil diferenciar esses objectos artísticos da multiplicidade da «realidade» que nos circunda e, por outro, passou a existir uma teia de ideias, uma rede de conceitos de tal modo afinada que se tornou um domínio quase exclusivo dos «especialistas»; portanto, é necessário situar as pessoas e veicular-lhes portas de entrada. Ou não.
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Fale-nos um pouco dessa transformação irreversível que o Duchamp operou na história da arte. Marcel Duchamp teve um papel fundamental, que cumpriu de forma genial, e a quem todos nós devemos muito. No entanto, deixou muitos seguidores ou continuadores (talvez demais: os netos, os bisnetos, os tetranetos…) que o assimilaram de forma literal. Isso está à vista, claramente, na enormidade de feiras de arte, bienais, galerias, revistas, etc., etc. Além disso, uma grande parte dessas criações não passa de trouvailles, ideias giras, gags divertidos, flashes rápidos que se esgotam ainda mais rapidamente. Nada disso me interessa. Penso que já percebemos todos a questão de base, já a podemos ultrapassar e avançar noutras direcções. A consequência da sua acção foi abrir o universo da arte a um campo em que deixou de ser possível acreditar nos olhos, no que se vê — o que é também uma traição de Duchamp em relação às artes visuais. Isso abriu, desde logo, uma cisão tremenda entre a arte retiniana e a arte não-retiniana. Traição, em que sentido? Que as artes visuais radicam na visão mas que deixámos de poder acreditar somente no que os olhos vêem. Desse modo, Duchamp atirou as pessoas para um abismo. Para mim, existe um campo de trabalho que tem que ver com a recuperação dessa possibilidade perdida. Eu defronto-me,
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permanentemente, com esse campo de trabalho e tento operar na recuperação dessa possibilidade. Recuperação? Fale-nos mais desse seu entendimento sobre a história da arte. Tem que ver com o desenvolvimento daquilo a que eu chamo um pensamento e uma arte «horizontal», que brotou de momentos específicos. Esta produção não radicou apenas em Marcel Duchamp, embora ele tenha sido um dos primeiros a introduzir esse pensamento horizontal ao abolir, entre outras coisas, a hierarquia entre os materiais e entre as formas. Existe uma anulação do valor representativo dos materiais — o que aconteceu também com o Dadaísmo e com Kurt Schwitters e, mais tarde, com a pop e a arte povera, etc. — que contribuiu também para essa horizontalidade. Mas quero deixar claro que, para mim, a questão dos «materiais nobres versus materiais pobres» também não faz qualquer sentido, é uma mera questão académica. Considero que todos os materiais são válidos. O problema passa por poder restituir alguma verdade ao olhar. Refere-se a momentos que abriram as fronteiras entre arte e vida, fundindo realidade e representação? A arte e a vida sempre foram inseparáveis, o importante é saber de que arte e de que vida falamos. A distância entre ambas sempre foi e será essencial para introduzir sentido a
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essa relação. A arte terá sempre uma existência separada da realidade pelo simples facto de operar num nível totalmente diferente e num espaço de linguagem ficcionada, mesmo quando se trata de representação. Sempre foi assim, de uma forma absolutamente intuitiva, desde as grutas de Lascaux. Aquilo a que me refiro, quando falo do Modernismo, é à necessidade legítima de questionar os códigos que, na altura, estavam esgotados. Por isso falo de uma produção que também deixou de explorar o eixo vertical e se expandiu pelo plano horizontal, prosseguindo com a não-hierarquia de materiais e, formalmente, se passou a estender pelo espaço, com grande desconfiança da verticalidade. Penso que a poética e a força inovadora das obras de Carl Andre e de Eva Hesse, por exemplo, foram absolutamente fundadoras de muita da escultura que se faz hoje. Nos anos 70, os textos de Rosalind Krauss (que analisou de forma brilhante todo o desenvolvimento da escultura americana, a começar por David Smith) conceptualizaram, precisamente, este momento em que o minimalismo e o pós-minimalismo americanos exploraram a horizontalidade de forma «literal», no espaço e na forma. Artistas como Donald Judd, Robert Morris, Michael Heizer, Robert Smithson, Walter de Maria, Richard Serra ou Sol Lewitt são extremamente sérios e radicais, tiveram uma audácia e uma capacidade para questionar a natureza da escultura que, nessa altura, poucos artistas europeus tiveram. Com os americanos, alte-
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rou-se a noção de escala e de posição, inverteu-se o próprio espaço e a acção passou a ser a própria obra, o caminho passou a ser o fim. Foram momentos admiráveis e essenciais para o desenvolvimento da arte (sobretudo a escultura) e que foram acompanhados por iguais transformações radicais na música, na dança e na literatura, por exemplo. Falando da arte europeia dessa mesma época, nunca será demais sublinhar a gigantesca importância da obra de Joseph Beuys e a sua inegável influência até aos nossos dias. A sua capacidade de transformar a escultura numa heróica mitificação dos objectos esquecidos (investindo-os de uma energia quase mitológica), as suas acções de intervenção social e os seus happenings «xamânicos» alargaram o campo de possibilidades da escultura para áreas formais e performativas surpreendentes e misteriosas. A sua obra instaurou e explorou um poderoso campo poético cujo irracionalismo arcaico é o oposto da arte que se fazia na América. Tudo isto, naturalmente, contribuiu para estilhaçar ainda mais as fronteiras e as noções de arte, atirando o espectador e o artista para o tal abismo de que já falámos, mais confuso do que lúcido. Naturalmente, existem sempre grandes artistas que trabalham de forma extraordinária nesse campo minado (penso nos trabalhos de Bruce Nauman, Fischli & Weiss ou Gabriel Orozco, por exemplo), mas as suas obras são sempre fruto de uma inteligência e de uma intuição absolutamente excepcionais.
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Quem é, no século XX, um artista incondicional para si? Na verdade, pensando no século XX, o artista que mais me interessa é, sem dúvida, Alberto Giacometti. Só ele conseguiu continuar, de forma válida, a tradição europeia da verticalidade, abrindo furos na linguagem e apresentando apenas o vazio, a casca (tal como o fez Samuel Beckett, na literatura). É o único artista moderno cuja obra, quando a vejo ao vivo, me comove realmente, me emociona. Mas, a «verticalidade» espelha-se apenas na forma ou corresponde a uma estrutura interna, de premissas e fundamentos estéticos? É muito mais do que uma questão formal. Quando falo de «pensamento vertical», refiro-me a artistas com uma obra e um conhecimento compacto, sem brechas nem frinchas, inteiros e sábios como, por exemplo, Pedro Costa e Paulo Nozolino (que, curiosamente, afirma que o seu trabalho é olhar para o chão, para os restos, não é olhar para cima…). Pelo contrário, o «pensamento horizontal» é cheio de fragmentos, de buracos, de espaços ocos, sem hierarquias… tudo é válido e de qualquer maneira. Uns vêem os filmes todos, do primeiro ao último, formando colunas compactas de saber, de conhecimento. Outros vêem fragmentos no Youtube e, depois, compõem uma imagem com os fragmentos que apanharam superficialmente.
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A questão que ponho, afinal, é saber se, neste mundo poroso e horizontal onde nos obrigamos a viver, será que ainda fazem sentido estas «torres verticais e compactas» que algumas pessoas como eu veneramos. Será que têm alguma importância? Quer dar-nos exemplo de um artista ou escultor que considere uma «torre vertical/coluna»? Richard Serra é um «monstro genial», a sua obra é uma «monstruosidade genial e inevitável», um corpo de pensamento e de trabalho denso e compacto, uma verdadeira torre vertical. E no domínio da música, os paradigmas de produção são semelhantes aos das artes plásticas? Nicolas Bourriaud fala de uma cultura de «pós-produção», espelhada na figura do DJ, que compõe sonoridades a partir das já existentes. Se falar de música, pergunto: onde está Sonny Rollins, John Coltrane, Miles Davis, Chet Baker ou, nos nossos dias, Peter Brotzmann? O que eles fazem e fizeram não é bem a mesma coisa que comprar um Mac e misturar umas músicas… Está-se perante uma «cultura Google» de fragmentos em que, por vezes, a realidade se confunde com um videojogo na cabeça dos mais jovens. São eles próprios a dizer que «hoje em dia não se cria nada, mistura-se: everything is remix».
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Respeito, mas não acredito muito nessa maneira de ver o mundo. Se tudo é remix de fragmentos, não haverá nunca um corpo de trabalho muito denso. Se juntarmos a isso a obsessão pela «partilha» (a palavra-chave deste mundo é share…) de tudo e qualquer coisa, de qualquer imagem, por mais banal que seja, de forma instantânea no Youtube, Facebook, Instagram e todas as plataformas digitais de partilha, temos de concluir que as modalidades do olhar e as formas de capturar o mundo se alteraram e passaram a ser, sobretudo, momentâneas. Não têm peso nem deixam lastro, são transparentes, escorregadias e muito voláteis… Mas nada se partilha e constrói dessa maneira superficial e rápida. A partilha efectiva exige muito tempo, é difícil e lenta. Nunca tive Facebook nem nada desse género. Para mim, o tempo é lento e denso, e a arte que me interessa é lenta, densa e áspera, oferece resistência à aceleração leviana. O excesso de informação a que temos acesso transformou a nossa capacidade de ver e apreender o mundo: as pessoas consomem imagens em alta velocidade, sem verem, como se estivessem a passar o dedo no ecrã do tablet, sempre à espera da próxima. Mas é essencial aprender a ver, a interromper essa corrida superficial pelas imagens. É essa, talvez, a maior lição do cinema estruturalmente perfeito de Straub e Huillet: obrigar-nos a parar e ensinar-nos a construir o momento perfeito de conjugação entre som e visão, sem qualquer distracção ou inutilidade. Temos de acreditar numa forma de arte que seja
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capaz de desafiar o actual estado de superficialidade da civilização humana. Acho realmente que precisamos de avançar para um novo estágio, já chega de multiplicar os ecos deste caminho de facilidades e de mal-entendidos. Provavelmente, teremos de chegar agora à conclusão de que nos deparamos de novo, tal como no Modernismo, com a necessidade de questionar códigos já esgotados.
Dezembro de 2014, Atelier-Museu
No último dia, terminámos a conversa a falar sobre os desafios que se avizinham. Vivemos tempos de grandes mudanças… Claro que o mundo está em plena mudança, em muitos aspectos brutal. É inevitável que alguma coisa nova vá ter de aparecer. Ainda não sabemos de que forma o mundo da estética (e da arte) vai ser influenciado pelo mundo da técnica, ou conviver com ele. Tal como existe um antes e um depois da invenção da tipografia, também existirá um antes e um depois da Internet, em todos os cantos do planeta. Assistimos a uma revolução gigantesca e irreversível. É uma revolução tecnológica e, consequentemente, também moral e filosófica. Para os artistas, a Internet e todas as suas ferramentas e plataformas digitais têm permitido a construção de diversas mitologias individuais que se adaptam à «realidade do mercado». Isso pa-
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rece ser a solução possível e inevitável para contornar os problemas que a crise económica impõe. Por outro lado, vejo que esta «arte horizontal» de que tenho vindo a falar possui a qualidade inegável de ser capaz de mergulhar na realidade sem mediações especulativas, e isso é uma virtude enorme, no sentido em que pode retirar os objectos artísticos do panteão asséptico do museu e reconduzi-los ao mundo dos homens, onde eles sempre pertenceram. Pode dizer-se que, nos seus melhores casos, existe uma humildade, uma pobreza e uma seriedade radical que vejo com o maior respeito. Admiro a força de muitos artistas que trabalham de uma maneira completamente oposta à minha, com técnicas e objectivos muito distantes dos meus, construindo obras poderosas. Tenho sempre os olhos abertos, sigo com admiração e respeito o trabalho de alguns grandes artistas, também os que trabalham com «papelão, tábuas e pedaços do lixo quotidiano», tal como outros trabalharam com gordura e feltro, noutros tempos… O que pretendo dizer é que a tendência niilista, que o século XX instaurou, não é muito louvável. No final do século XIX já se anunciava a morte de Deus, nomeadamente pela mão de Nietzsche e Dostoievsky, cada um à sua maneira e por razões diferentes. Avançámos alegremente para a convicção de que «tudo é permitido», confundindo liberdade e dignidade humanas com o «deixar andar» em nome do prazer imediato, ao alcance da mão, sem esforço. Esse niilismo é
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ร NDICE
Pacto e Curadoria, Sara Antรณnia Matos . . . . . . . . . .
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Conversas com Sara Antรณnia Matos . . . . . . . . . . . . Novembro de 2014, Praia do Guincho . . . . . . . . Dezembro de 2014, Atelier-Museu . . . . . . . . . . Janeiro de 2015, Guincho . . . . . . . . . . . . . . . . . Fevereiro de 2015, Atelier de Rui Chafes . . . . . . Marรงo de 2015, Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abril de 2015, Praia do Guincho . . . . . . . . . . . . Abril de 2015, Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Maio de 2015, Atelier-Museu . . . . . . . . . . . . . . Junho de 2015, Guincho . . . . . . . . . . . . . . . . . Junho de 2015, Atelier de Rui Chafes . . . . . . . . Junho de 2015, Lisboa-Coimbra . . . . . . . . . . . . Julho de 2015, Atelier de Rui Chafes . . . . . . . . . Setembro de 2015, Atelier-Museu . . . . . . . . . . .
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CADERNOS DO ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR D O C U M E N TA
Caveiras, Casas, Pedras e uma Figueira Tratado dos Olhos Notas Sobre uma Arte Útil Parte Escrita I, 1942-1960 Da Cegueira dos Pintores Parte Escrita II, 1981-1983 Temas e Variações Parte Escrita III, 1968-2013 O Artista Fala… Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro Rui Chafes, Sob a Pele Conversas com Sara Antónia Matos
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© Atelier-Museu Júlio Pomar / Sistema Solar, Crl (Documenta), 2015 Textos © Rui Chafes, Sara Antónia Matos 1.ª edição, Dezembro de 2015 ISBN 978-989-8833-00-6
colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar apresentação Sara Antónia Matos concepção Manuel Rosa Rui Chafes Sara Antónia Matos design gráfico Manuel Rosa
Depósito legal: 404673/16 Este livro foi impresso na Gráfica Maiadouro, SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 – Vermoim 4471-909 Maia