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Jean Cocteau VISÃO INVISÍVEL
Jean Cocteau VISÃO INVISÍVEL
tradução e apresentação por
Aníbal Fernandes
Parece-me que a invisibilidade é a condição para a elegância. A elegância acaba se for notada.
www.sistemasolar.pt
Jean Cocteau VISÃO INVISÍVEL
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Jean Cocteau
VISÃO INVISÍVEL
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: JEAN COCTEAU, O VASO ETRUSCO (1952) 1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2016 ISBN 978-989-8833-05-1
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cronologia numa câmara de ecos
Nunca tive um rosto bonito. A mocidade fazia-me o papel de beleza. A minha estrutura óssea é boa. Por cima dela, as carnes organizam-se mal. Além disso, o esqueleto altera-se com o tempo e estraga-se. O nariz, que era direito, encurva-se como o do meu avô. E reparei que o da minha mãe se encurvou no leito de morte. Demasiadas tempestades internas, dores, crises de dúvida, revoltas dominadas a pulso, bofetadas da sorte de uma tal maneira me amarrotaram a testa, cavaram uma ruga funda entre as sobrancelhas e as entortaram, fizeram dobras pesadas nas pálpebras, amoleceram as faces cavadas, baixaram os cantos da boca, que ao debruçar-me sobre um espelho baixo vejo a minha máscara soltar-se do osso e tomar uma forma informe. A barba cresce branca. Os cabelos, que perderam espessura, conservam a sua revolta; daí resulta um punhado de mechas que se contradizem e não podem ser penteadas. Quando se abatem dão-me um ar miserável. Dir-se-á, quando voltam a levantar-se, que a cabeleira hirsuta parece um sinal de afectação. Tenho dentes tortos. Para resumir, num corpo nem grande nem pequeno, franzino e magro, armado com pés e mãos admiradas porque longas e muito expressivas, passeio uma cara ingrata. Dá-me um ar de falsa sobranceria. Sobranceria falsa, vinda do desejo de vencer o mal-estar que sinto ao mostrar-me como sou e da sua prontidão a desfazer-se, do receio de poderem vê-la como uma sobranceria a sério.
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* A vida é a primeira parte da morte.
Nasci a 5 de Julho de 1889, na praça Sully em Maisons-Laffitte (Seine-et-Oise). Maisons-Laffitte é como que um parque para treino de cavalos semeado com moradias, jardins, avenidas de tílias, relvados, canteiros, repuxos em praças. O cavalo de corridas e a bicicleta reinavam como senhores. Jogava-se ténis na casa uns dos outros, num mundo burguês que o caso Dreyfus dividia. O Sena, a álea de manutenção, o muro da floresta de Saint-Germain onde se entra por uma pequena porta, recantos ao abandono bons para brincarmos aos detectives, o campo escavado, os retiros em caramanchão, a feira da aldeia, o fogo-de-artifício, as proezas dos bombeiros, o castelo de Mansard, as suas ervas daninhas e os seus bustos de imperadores romanos, tudo construía à infância um domínio próprio para alimentar a ilusão de vivermos em locais únicos no mundo. * Desde criança e desde as saídas da minha mãe e do meu pai para o teatro, contraí a doença vermelha-e-ouro. Nunca chegarei a habituar-me a ela. Cada pano de boca que se levanta conduz-me ao minuto solene em que o pano de boca do Châtelet se levantou para A Volta ao Mundo em Oitenta Dias e os abismos de
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sombra e luz se juntaram, separados pela ribalta. Esta ribalta incendiava a base da parede de tela pintada. E como esta parede leve não tocava no palco, adivinhava-se uma fenda que se acendia e apagava, uma fornalha. Não levando em conta esta fenda, um buraco contornado a cobre era o único orifício por onde os dois universos comunicavam. O cheiro a circo era um facto. O camarote estreito com pequenas cadeiras incómodas era outro. E tal como os quartos do Mena House com janelas que dão para as Pirâmides, o pequeno camarote atirava-nos directamente à cara o rumor-oceano do público, o grito das empregadas: «Pastilhas de mentol, caramelos, bombons de limão», a caverna cor de púrpura e o lustre que Baudelaire preferia ao espectáculo. Com o tempo, o teatro onde trabalho não perde o prestígio. Respeito-o. Intimida-me. Fascina-me. Nele me desdobro. Habito-o e volto a ser a criança a quem o tribunal da fronteira autoriza a entrar nos Infernos. 1898 — O pai — formado em Direito mas ocioso — suicida-se. Este suicídio com causas quase secretas fará o futuro teatro de Jean Cocteau encher-se de sangue e suicidas. Mme Singer: «E aquele miúdo estranho, tão frágil! A mãe retinha-o a maior parte do tempo na cama, e não o largava. Gostava de andar vestido à menina…» A mãe? «Delicada», dirá Mme Simone da Comédie Française, «muito delicada mas evanescente…» E Mlle Chanel: «Boa mulher mas pavorosamente burguesa!» O novo século ainda fará mais obsessiva a presença desta mãe dominadora, embora ofereça a Cocteau compensações como o liceu
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Condorcet e o colega Dargelos que assombra vários livros e poemas seus com uma sugestão de força e de sexo.
Para os seus tempos de estudante, Cocteau escolhe a imagem de um rebelde: Eu era… péssimo aluno… fui expulso de todos os colégios… Deleita-se com a narrativa da sua fuga para Marselha aos dezassete anos de idade — onde terá andado, como nos livros de aventuras, perdido da família durante um ano; enfeita-a até ficar mítica e argumentada com dados improváveis, nebulosa. Roger Stéphane perguntou-lhe: — Eras feliz em Marselha? — Ah! Como aquilo me libertou! Uma velha adamita encontrou-me completamente perdido nos cais de Marselha e levou-me para a rua De la Rose, no bairro velho. Expliquei-lhe que não queria voltar para casa; menti-lhe, fiz da minha família um retrato monstruoso ao máximo! Durante um ano vivi entre vadios… com um nome falso: um miúdo tinha-se apagado e fiquei-lhe eu com os papéis… A polícia nunca se atreveria a entrar na velha cidade onde morávamos…
O regresso a Paris terá sido epílogo de um grande inquérito policial que o localizou; dos esforços do seu irmão Paul (oito anos mais velho do que ele) que foi a Marselha buscá-lo. Mas se esta Marselha parece nebulosa e duvidosamente biográfica, já existem certezas associáveis a 1908: com dezoito anos de idade é poeta reconhecido, ou não teriam os actores Edouard de Max e Sarah Bernhardt alugado o teatro Fémina para um recital com os
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seus versos; e no ano seguinte está publicado La Lampe d’Aladin, o seu primeiro livro de poemas (e alguns meses chegarão para ser também autor de Le Prince Frivole). Frívolo? Há-de o adjectivo por diversas vezes aparecer-lhe colado, saído de críticos menos rendidos ao seu talento. Mas a frivolidade, explicará ele, é diferente de tudo o que em si próprio existe: só é uma falta de heroísmo e como que recusa a expor-nos a tudo. É uma fuga que passa por dança, uma lentidão que parece uma velocidade, um ar pesado aparentemente análogo à leveza de que eu falo e só existe nalgumas almas profundas. * A sua verdadeira evasão, aquela que corre por dentro das palavras, por dentro dos traços de um desenho, guardá-la-á fora dos olhares do mundo até aos vinte e três anos de idade. A minha primeira evasão importante (porque não conto as do colégio, a fuga para Marselha e outras) data de 1912. Eu era de uma família apaixonada por música e pintura, e onde as letras representavam pouco ou mal. O meu pai pintava. Basta um pintor abrir a sua caixa, sinto o cheiro dos óleos e vejo-o. O meu avô coleccionava excelentes quadros, stradivarius, bustos gregos. Organizava quartetos. Com o violoncelo a seu cargo. Eu desenhava. Escrevia. Entregava-me às cegas a esses dons que nos dispersam e, se não forem canalizados, correspondem a uma sífilis. Era natural que me gabassem. Eu não me opunha. Assumia as consequências. Cheguei a seduzir muita gente e a embriagar-me com os meus erros. Não haja dúvidas de que esta linha nos leva a direito até à Academia. Uma vez encontrei Gide. Fez-me ter vergonha do que
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eu escrevia. Que eu alindava com arabescos. Gide está na origem de um acordar em sobressalto, com um prólogo que eu iria pagar caro. Poucas almas admitem que sejamos nós próprios a fazer a nossa descoberta. Acusam-nos de passar para o outro campo. Desertor para uns, suspeito para outros: é a solidão de Calchante1.
Em 1914, primeiro ano da Grande Guerra, André Gide deixou escrito no seu diário: «Cocteau quase se veste à soldado, e a chicotada dos acontecimentos dá-lhe bom aspecto; não abdica de nada e limita-se a pôr na petulância um ar marcial. Para falar das mortandades de Mulhouse recorre a frases divertidas e a mímicas; imita o som do cornetim, o assobiar das bombas. Depois vê que não diverte e muda de assunto, diz que está triste. […] Estranho é parecer-me que daria um bom soldado.» De facto, Cocteau vivia a guerra com elegância (a sua farda tinha sido feita por um grande costureiro de Paris) mas com tédio: um tédio só amenizado na aventura de uma amizade apaixonada pelo aviador Roland Garros: Sim, aquilo aborrecia-me, mas conheci Garros e deixei por completo de me aborrecer. Garros levou-me no seu Morane para fazermos acrobacias, os primeiros loopings… Quando partiu e o mataram, nos destroços do avião encontraram uma carlinga cheia de provas tipográficas que eram do meu poema «Le Cap de Bonne-Espérance».
1 Adivinho grego que ordenou o suplício de Ifigénia e aconselhou a construção do cavalo de Tróia. Matou-se quando Mopso o suplantou na arte de adivinhar o futuro. (A.F.)
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A guerra, ainda, mas com o Paris culto a distrair-se no escândalo de coreografias marcadas por ousadias pânicas em ballets russos de Diaghilev. E, para este Diaghilev, Cocteau escreve o argumento de Parade com música de Erik Satie, cenários e figurinos de Picasso: O primeiro som de sino (num período que começa em 1912 e só há-de terminar com a minha morte) tocou-o certa noite Diaghilev na praça da Concórdia. Saíamos de uma ceia, depois do espectáculo. Nijinski mostrava o enfado que lhe era habitual. Ia à nossa frente. Diaghilev divertia-se com os meus ridículos. E porque o interroguei sobre a sua reserva (eu estava habituado a elogios) parou, ajustou o monóculo e disse: «Espanta-me». Em 1917, na noite de estreia de Parade espantei-o. O excelente homem escutava lívido aquela sala em fúria. Sentia medo. Tinha de quê. Picasso, Satie e eu queríamos ir ter com ele aos bastidores. Mas a multidão conhecia-nos, ameaçava-nos. Não fosse o Apollinaire e a sua farda, a ligadura que lhe envolvia a cabeça, as mulheres armadas com alfinetes seriam capazes de nos furar os olhos. (Diaghilev: «Parade é uma das melhores garrafas da minha cave, e não a quero agitada com muita frequência.»)
Em 1918 funda com Blaise Cendrars as Éditions de la Sirène, que farão aparecer Le Coq et l’Arlequin, texto sobre música e origem de uma prolongada zanga sua com Stravinski. E o ano seguinte é da publicação de Le Cap de Bonne-Espérance, livro de poemas dedicado à memória de Roland Garros, e de Le Potomak, seu primeiro romance (chamemos-lhe assim). Em meados desse mesmo ano terá porém um sobressalto na casa de Max Jacob: o encontro «fatal» com o muito jovem Raymond Radiguet.
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Nessa altura Raymond Radiguet tinha catorze anos e Erik Satie quase sessenta. Estes dois extremos ensinaram-me a acender a lanterna. A única glória que posso exibir é ter-me vergado aos seus ensinamentos. A partir de 1919, Raymond Radiguet ensinou-me a desconfiar do novo e do ar de novo, a andar ao contrário das modas da vanguarda. É tomar uma posição difícil. Escandaliza-se a torto. Escandaliza-se a direito. Acontece, no entanto, que à distância todos os contrastes se organizam sob o mesmo rótulo. Quem souber livrar-se disto é astuto. A mocidade que visita as nossas ruínas só lá vê um estilo. A chamada época «heróica» só exibe a sua audácia. É o trabalho do museu. Banaliza. Ingres fica ao lado de Delacroix, Matisse ao lado de Picasso, Braque ao lado de Bonnard. A fogueira de Radiguet incendeia-o durante quatro anos: No primeiro, 1920, Le Bœuf sur le Toit é dançado com música de Darius Milhaud inspirada num argumento seu. Mas os tumultos de Parade não se repetem: Agora o escândalo é cheio de vida, embora perturbe os artistas, a orquestra, e impeça algumas pessoas sérias de ver os inúmeros matizes de um trabalho de vários meses. Evitei-o aparecendo à frente da cortina e pronunciando algumas palavras que faziam do público meu cúmplice. No segundo, 1921, é posta em cena uma peça de teatro; chama-se Les Mariés de la Tour Eiffel e faz Cocteau reconhecer-se pela primeira vez como Cocteau: Não, não é cómodo uma pessoa formar-se. E ainda menos reformar-se. Até chegar a Les Mariés de la Tour Eiffel, a primeira obra onde não devo nada a ninguém, que não se parece com nenhuma outra, onde encontrei o meu algarismo próprio, forcei a fechadura e em todos os sentidos dei voltas à minha chave.
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No terceiro oferece ao público duas novelas e um dos seus livros de poemas mais importante. Le Grand Écart, a primeira dessas novelas, apresenta aos especialistas uma carcaça de montanhas russas. O leitor parte do alto, cai até muito baixo numa intriga medíocre, volta a subir depressa com o seu próprio impulso, e (no epílogo) percorre em terreno plano uma certa distância. O choque dos tampões há-de pará-lo no fim. A segunda, Thomas l’Imposteur, levá-lo-á a escrever: Podem acusar-me de pintar a guerra com cores frívolas. […] As suas personagens só conseguem reunir-se e fazer o seu precipitado no vazio do princípio da guerra. São as moscas irisadas do monte de cadáveres. Entram e saem como Mélisande. […] Termina com a morte de Guillaume, que é apoteose de uma magia: o momento em que a corça se transforma em princesa. E ainda: Dei-vos Thomas l’Imposteur, um livro de neve; e Le Grand Écart, uma estátua pintada como as deusas de Atenas. Mas para quê? Fazei à França oferta de toda a vossa fortuna. Ela é uma bailarina; não perde tempo e com outros se aproveita dela. Quanto à poesia de Plain-Chant, há numa carta referência à animosidade surrealista: É claro que Breton e os seus colegas denegriram estes poemas com estilo clássico. Inútil será dizer que esta gente «moderna» pôs-se de trombas. Ainda não parei de os chatear. E mais este momento, excelente na sua lucidez: Toma-se por obra clássica a obra que «o parece». Ora, uma obra verdadeiramente clássica só pode sê-lo no futuro; não saberia, portanto, parecê-lo. A fraqueza da obra de Anatole France é ter este ar clássico, ser feita segundo o modelo das obras clássicas. É uma obra de arte inspirada em obras que foram vivas, não uma obra viva. Ficará como um objecto, um monumento encantador. A sua
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única hipótese de vida é esboroar-se com o tempo e a «erva crescer sobre ela». Falta-lhe a emoção; terá a emoção que vai sempre a par com as ruínas. Como se tudo isto não bastasse às abundâncias do ano 1923, surge Le Diable au Corps, primeiro romance e escândalo do «seu» Radiguet, autor com vinte anos de idade, invulgar exibição de um talento precoce. «É maravilhoso que alguém da tua idade escreva um Laclos sem dar por isso», disse Max Jacob ao romancista; «é o primeiro romance que ousa mandar a guerra à merda», disse-lhe Maurice Sachs. Mas tão altas alegrias escondem um insuspeitado riso negro e desfazem-se num 12 de Dezembro cruel quando a Radiguet — o anjo, o demónio — é dado o papel de vítima mortal de uma febre tifóide. Eu considerava Raymond Radiguet como meu filho, e a sua morte deixou-me as mãos cortadas — dirá Cocteau num texto, muitos anos mais tarde. — Diaghilev levou-me para Monte Carlo, onde o seu grupo dançava Les Biches e Les Fâcheux de Poulenc e Auric. Eu estava tão doente, tão taciturno, que o meu amigo Laloy, autor de um muito belo livro sobre o ópio (era administrador da Ópera, e andava com o grupo), me aconselhou a tomá-lo como remédio. E pronto! Caí na armadilha, e sair dela foi bastante demorado: só depois de sete inúteis tentativas. Eu recorria ao ópio que os nossos mestres usavam todos os dias com o rótulo de láudano ou de opiatos para atenuar insuportáveis dores nervosas… O ópio é uma substância viva. Não gosta que o forcem. Deixava-me doente. Só depois de grandes experiências me ajudou. Mas fazia adormecer a minha oficina, e eu temia-o.
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Radiguet é póstumo em 1924: Bernard Grasset publica Le Bal du Comte d’Orgel, outra grande surpresa do seu talento, embora muito mais tarde Milorad achasse por bem esclarecer: «Apesar do que disse Cocteau, o exame dos manuscritos e da provas tipográficas de Le Bal du Comte d’Orgel prova que o seu papel ultrapassou o de simples vigilante e conselheiro. Não só interveio na composição, na redacção e na correcção do livro, com Radiguet ainda vivo, como sete meses se passaram, entre a morte do jovem romancista e a publicação do seu romance póstumo, com o editor Bernard Grasset, Jean Cocteau e Joseph Kessel a concertarem-se numa verdadeira mentira piedosa, bem próxima da mistificação literária. Seria mais justo o Bal du Comte d’Orgel que conhecemos ser assinado por Raymond Radiguet e Jean Cocteau.» * Primeira desintoxicação. O ópio tinha-o adormecido. Mas a memória das suas visões transtornará «L’Ange Heurtebise», um dos seus melhores poemas, muitos versos de Opéra (São os primeiros poemas que acho da minha verdadeira essência, os poemas mobilados com tudo o que me acusarão um dia de usar. […] Mostram as famosas deformações devidas ao ópio. Lentidões, preguiças, sonhos inactivos. É a obra de um opiómano.), a peça de teatro Orphée. 1926 revigora-o com a juventude do jovem escritor Jean Desbordes (na altura a cumprir o serviço militar), talento inventado peça a peça por um Cocteau seduzido, que lhe não chega a cantar o físico mas as surpresas veladas, retidas no uniforme: Usava a farda mais bonita deste mundo…
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(Pierre Chanel veio a falar da ruptura de 1929, que os encantos do sedutor não puderam impedir: «Apesar dos elogios ditirâmbicos que Cocteau desbaratava com Les Tragiques e L’Âge Ingrat — como tinha anteriormente sucedido com J’Adore1 — a ligação entre ambos começou a enfraquecer a partir de Maio, quando Jean Desbordes foi de livre vontade para a Itália com Geneviève Mater. Este namoro ambíguo levou Cocteau a uma violenta crise de ciúmes.») * Le Livre Blanc (a novela cuja autoria nunca assumiu), livro de sexualidade explícita publicado sem nome de autor nem de editor, foi de 1928. E Les Enfants Terribles, o seu melhor e mais célebre romance, de 1929: Já muitas vezes contei a paragem que me foi imposta enquanto estava a escrever Les Enfants Terribles na clínica de Saint-Cloud — dezassete páginas de cada vez; a liberdade que tomei abandonando o meu papel de médium para o substituir por certas ideias pessoais, pela força misteriosa que me ditava o livro de costas voltadas e dobrada em silêncio sobre si própria. Opium, o diário da sua desintoxicação, é de 1930; e Le Sang d’un Poète, o seu primeiro filme explorado comercialmente, também: Não passa de uma descida dentro de mim próprio, uma forma de aplicar o mecanismo do sonho sem dormir, uma vela inábil que muitas vezes se apaga com um sopro, a passear pela noite do corpo humano — explicou incansavelmente o autor mas sem impedir tumultos na noite da estreia. A imprensa de direita reclamou de ime1 Obras de Jean Desbordes, que a influência de Cocteau fez publicar na editora Grasset. (A.F.)
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diato a sua proibição; e a comissão de censura satisfê-la, invocando a necessidade de «proteger a família, a pátria e a religião».
1936 — Volta ao mundo em oitenta dias através de países reais: Há muitos anos que eu circulo em países que os mapas não registam. Tive muitas fugas. Desse mundo sem atlas nem fronteiras, povoado com sonhos, trouxe uma experiência que nem sempre agradou. As vinhas dessa região produzem um vinho negro que embriaga a mocidade. Mas agora tratava-se de sonhar com uma aventura marítima onde Jules Verne lhe dava o papel de Phileas Fogg. Quem fazia de Passepartout era Marcel Khill, o jovem árabe mensageiro de Corinto em La Machine Infernale, a peça de teatro de Cocteau. Khill não tinha sido bom actor mas deixara o público admirar o seu corpo, tinha sabido merecer-se como dedicatário de Portraits-Souvenirs, o livro onde o poeta relembra os fantasmas mais persistentes na sua memória. «Era um rosto de nariz direito e boca fina», disse Serge Dieudonné, «afastado daquele Dargelos a quem Radiguet oferecera alguma coisa de seu; com perfil achatado, lábios grossos e o género de olhos rasgados que sempre foram fatais ao poeta. Já anunciava outros perfis e outros rostos; quer dizer, o tipo de que Jean Marais seria, sozinho e um pouco mais tarde, um suficiente resumo». Marcel Khill, o meu companheiro de viagem, esquecia-se da minha idade. Só sentia a idade da nossa fuga. Todo o barco tinha vinte anos. Em 1938 Les Parents Terribles (título simétrico do outro, que o autor tinha dado ao seu melhor romance) é teatro, é êxito e escândalo. Jean Marais entrou em cena. As relações de amor e tempestade de Marais com a sua mãe estão na base da peça, veio a escrever Coc-
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teau. Houve quem ali visse qualquer coisa de escabroso, sei lá, mas eu não, nunca. Fiquei estupefacto quando verifiquei o género de obsessões refreadas que as pessoas teriam para imaginar o pior onde só existia uma mãe presa ao filho pelo cordão umbilical. * Em 1940, quando o exército alemão marchava sobre Paris, aluguei uma cave minúscula, apertada entre o teatro do Palais-Royal e a amálgama de casas que termina na Comédie Française. Morei no Hotel Beaujolais ao lado de Colette, e só em 1941, depois do êxodo, fui instalar-me no n.º 36 da rua de Montpensier. Com um pouco de insensatez atendi à vizinhança de amigos para alugar este túnel insólito; mas eles foram levados a fugir do edifício. Os Berl, os Mille, os Lazareff. Vivi quatro anos debaixo de insultos, atingido na minha obra e na minha pessoa. Agora curo-me disso com fadiga, já que é impossível encontrar instalações convenientes, já que o Palais-Royal tem um feitiço (no exacto sentido do termo) que opera sobre certas almas. É um feitiço feito de espectros revolucionários que o assombram, de um silêncio enfeitado com pássaros que sucede às festas do Directório, de uma posição quase chinesa de cidade morta entre as muralhas de três velhas casas sórdidas e tão inclinadas como os palácios de Veneza onde Delphine de Nuncingen levava Rastignac ao salão de jogos1. Não gostaria de deixar este quarto, mas terei de fazê-lo. Sou impelido por um vento duro. Hei-de ter saudades dele onde quer que eu vá pôr ao sol a minha penumbra. 1
Personagens de A Comédia Humana de Balzac. (A.F.)
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Em 1942, Jean Genet: admiração e entusiasmo tão fortes, que vemos Cocteau inventar as Éditions Paul Morihien, nome do seu secretário, para publicar um Notre-Dame-des-Fleurs sem viabilidade na programação das editoras «respeitáveis»; e no mesmo ano — atitude corajosa — defendê-lo no Tribunal preparado para lhe aplicar a pena de prisão perpétua por reincidência no roubo. É o maior escritor desta época, diz Cocteau ao juiz. — E pode acreditar nas minhas palavras; é assunto em que bem sei o que digo. Em 5 de Julho de 1944 (dia do aniversário de Jean Cocteau), Jean Desbordes é preso pela Gestapo, torturado e morto sem denunciar os que formam a sua célula da Resistência. Cocteau regista-o com um grito de desespero que envolve os queridos mortos que tem atrás de si: O avião de Garros arde. Cai. Jean Le Roy dispõe as minhas cartas em leque na cantina. E agarra na metralhadora. Morre. A tifóide leva-me Radiguet. Marcel Khill foi morto na Alsácia. A Gestapo tortura Jean Desbordes. Eu bem sei que procurava a amizade de máquinas excessivamente rápidas e com uma forma dramática de se gastarem. Hoje, o instinto paterno afasta-me. Volto-me para os que não trazem consigo uma estrela negra. Maldita seja! Detesto-a. Reaqueço ao sol a minha carcaça. (A vítima desta estrela negra reconhece-se como um profissional da amizade: Eu disse, não sei onde, que faço melhor a amizade do que o amor. O amor é à base de espasmos breves. E se esses espasmos nos decepcionam, o amor morre. Bem raro é resistir à experiência e transformar-se em amizade. A amizade entre homem e mulher é delicada, ainda é uma forma de amor. Anda por lá o ciúme disfarçado. A amizade é um espasmo tranquilo. A felicidade de um amigo encanta-nos. Acrescenta-nos. De nada se esquece.
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Se a amizade se ofende, é porque não é. Não passa de um amor escondido. Julgo que esta raiva de amizade, que sempre tive, vem dos filhos de que fui frustrado. Porque os não tenho, invento-os.)
1947 marca a presença de La Difficulté d’Être (que inclui alguns dos seus textos autobiográficos mais celebrados), de L’Aigle à Deux Têtes (peça de teatro e filme no mesmo ano), mas sobretudo a chegada de Édouard Dermit que virá a ser seu filho adoptivo e herdeiro universal: «Um dia, Cocteau disse-me: eu já previa que havias de chegar. Em 1925 ele tinha escrito um poema chamado “L’Ange Heurtebise”, onde fala de Cégeste; e declarou-me: eras tu. Por que não? O Jean previa muitas coisas deste género. O nosso encontro foi realmente estranho. Um ignorante rapaz da província aparece na casa de Jean Cocteau! Porquê? Mistério! Nunca cheguei a compreendê-lo. O Jean talvez compreendesse. Eu não. Porque foi tudo muito rápido e só decidido por ele…»
Cocteau abandona Paris para se instalar com Dermit em Milly-la-Fôret: Fugi de uma casa onde campainhas de porta e o telefone me expulsavam. Moro agora num campo onde o silêncio, os pássaros, as plantas, as flores sucedem à desordem doméstica. Mas não me gabo de estar onde estou e ser livre. Pouco de mim o aproveita. Para passar da prisão ao ar livre não me foi preciso vencer apenas a contrariedade que existiria no acto inverso; porque nos agarra-
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mos a hábitos, quaisquer que sejam; dá-se também o caso de uma metade de mim ter decidido fugir e a outra ficar… É desta altura a sua conhecida resposta numa entrevista divulgada por um programa de rádio: — Se houvesse lá um incêndio, que objectos salvava? — Creio que salvava o fogo! * Nos seus últimos dez anos de vida Cocteau publica o Journal d’un Inconnu (1953) e os poemas Le Requiem (1962); faz pinturas na capela de São Pedro em Villefranche, na sala dos casamentos da mairie de Meudon; rescreve La Voix Humaine, agora para a versão lírica de Poulenc; filma Le Testament d’Orphée; aceita as consagrações da Academia Real da Bélgica e da Academia Francesa. O enfarte de miocárdio de 11 de Outubro de 1963 é-lhe fatal; pouco tempo antes tinha havido um texto onde passavam as sombras do fim: Esta noite a dor era tão viva, que o sono não funcionava… Micróbios devoravam-me a mão direita. Quando eu tocava no rosto encontrava a máscara de crosta sob a qual eles vivem e irradiam a toda a velocidade. Acabam agora de me chegar ao peito. Aí se inscrevem na constelação vermelha que tão bem conheço. Pergunto se o sol não exaspera este povo de sombra, e se o dia soalheiro de ontem não tem qualquer coisa a ver com esta crise. Que esgotante caçada! Que rápido animal! Os médicos aconselham-me armas que não matam. Pomadas, álcoois, vacinas. De-
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sisto. Não há dúvidas de que a morte é necessária, quer dizer, um fim de mundo. * Cocteau viveu ao contrário da invisibilidade. Foi tão fotografado como Dalí ou Picasso, teve o seu rosto tão conhecido como o dos actores. Nas convivências mundanas encantava; encenava um jogo de mãos para cercar tudo de frases que não esqueciam a exibição de uma inteligência vertida em palavras com posições novas ou já esquecidas do seu sentido. Foi inevitável falar-se de uma renda. Os seus talentos — na escrita, no desenho, no cinema — apontavam ao despeito acusações de artifício, de brilhantismo enfeitado pelas facilidades do salão. Mas a sua rédea segura vencia. Era capaz de surgir moderno, embora fiel às lições de Malherbe; de não recusar a prestidigitação se ela lhe garantisse um brilho de prosa. O desejo de uma modernidade clássica agarrou-o às mitologias e inscreveu nelas a explicação dos desesperos do seu tempo. Apareceu, com isto, sumptuoso e heteróclito. O tempo serenou-o. Uma distância tranquila que assentou entre o olhar de hoje e os muitos salões de ontem, entre o incómodo da sua passividade perante o invasor alemão e a frase colorida que a propósito de tudo os jornais lhe pediram, tem construído uma isenção. Há no romance, sem dúvida, o mistério iluminado de Les Enfants Terribles; na poesia a nudez impalpável de «L’Ange Heurtebise», «La Crucifixion», «Le Discours du Grand Sommeil»; em textos curtos surpresas magníficas de poeta a circular entre os vivos; no teatro La Machine Infernale, l’Aigle à Deux Têtes, no cinema Orphée, Le Sang d’un Poète…
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O tempo de Cocteau deixou-o em suspenso. E longe do seu tumulto vai construindo outro, que é o tempo da sua visão — invisível, como ele a queria por uma questão de elegância. A.F.
As transcrições de textos de Cocteau recorrem a La Difficulté d’Être, Journal d’un Inconnu, Maalesh, Entretiens e Cocteau Par Lui-Même de André Fraigneau, o número de Masques dedicado a Jean Cocteau e Cocteau, a Biography, de Francis Steegmuller.
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Parece-me que a invisibilidade é a condição para a elegância. A elegância acaba se for notada. Sendo a poesia a elegância por excelência, não sabe ser visível. Então, para que serve?, dir-me-eis. Para nada. Quem a vê? Ninguém. O que a não impede de ser um atentado contra o pudor, e apesar de o seu exibicionismo se exercer entre os cegos. Contenta-se em exprimir uma moral particular. Depois, esta moral particular solta-se sob a forma de obra. Exige que a deixem viver a sua vida. Faz-se pretexto para imensos mal-entendidos que se chamam a glória. A glória é absurda por resultar de um ajuntamento. A multidão cerca um acidente, conta-o a si mesma, inventa-o, perturba-o até se transformar noutro. O belo resulta sempre de um acidente. De uma queda brutal entre hábitos adquiridos e hábitos a adquirir. Derrota, nauseia. Chega a causar horror. Quando o novo hábito for adquirido, o acidente deixará de ser acidente. Far-se-á clássico e perderá a virtude de choque. Por isso uma obra nunca é compreendida. É admitida. Se me não engano, a observação pertence a Eugène Delacroix: «Nunca se é compreendido, é-se admitido.» Matisse repete com frequência esta frase. As pessoas que realmente viram o acidente afastam-se, perturbadas, incapazes de dar por ele. As que o não viram, testemunham-no. Exprimem a sua ininteligência através de um pretexto, que é darem importância a si próprias. Mas o acidente permanece na estrada ensanguentado, estupidificado, atroz de solidão, presa das loquacidades e dos relatórios da polícia. J.C.
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o número barbet te
Desde há dois anos me tenho recusado a escrever algumas linhas sobre o número Barbette. Frequentei muito os cursos do music-hall; reconheço-os como Sorbonne. Acrescento que o music-hall me irrita pela forma arrogante como dá o último retoque às nossas investigações, e com o ar de quem anda mais depressa que os outros. Mas o número Barbette é excepção. O génio é uma prenda do céu. Só nos cabe o cuidado de lhe fabricar um veículo, porque até ordem em contrário seremos forçados a atirar pela borda o nosso fluido e, através da arte, hipnotizar suavemente o mundo. Isto limita o papel do artista ao de uma mão-de-obra. A vida e os seus horrores encarregam-se do resto. Perante certos especialistas sentimos vergonha de saber tão mal a nossa profissão, e eu só julguei possível atrever-me à escrita de uma peça (Orphée) depois de sete anos de estudos, e com o pretexto de pantomimas e adaptações. Estava, assim, a fazer a mão. É dizer-vos que estou reconhecido ao número Barbette, uma extraordinária lição de profissionalismo teatral. Este parágrafo explicará um entusiasmo que os parisienses espirituais e os diletantes levaram à conta da fantasia com que os nossos empreendimentos em precipício são sempre confundidos. Barbette é um jovem americano de vinte e quatro anos, com o dorso um tanto curvo dos pássaros, um andar com qualquer coisa de doente (por ter, sem dúvida, mãos e pés muito peque-
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nos). De uma queda de trapézio ficou a cicatriz que lhe retorce o lábio superior sobre uma dentição desordenada. Só a espantosa arcada superciliária, que tem por cima dos olhos desumanos, assinala à atenção a sua pessoa tão anónima como era a de Nijinski na rua. Por volta das seis horas partilhemos a sanduíche, o ovo cozido do nosso acrobata, e acompanhemo-lo ao camarim aonde chega às oito (actua às onze) com essa consciência desconhecida dos nossos comediantes e habitual nos palhaços, nos mimos anamitas, nas dançarinas do Cambodja que todas as noites passam por nós com o seu trajo de ouro. * Barbette faz-nos perder a inocência perante a fábula grega dos rapazes transformados em árvores, em flores. Retira-lhe a magia fácil. Em plena luz, ao retardador, vamos seguir as fases de uma metamorfose que Man Ray quis fixar e oferecer-me nalguns dos seus progressos significativos; entre outros o momento em que Barbette, com a cara de mulher que o torso nu e cingido por calções de couro contradiz, se parece muito com os Apolos das enfaixadoras1. * 1 Cocteau lembra-se, aqui, de um enfaixamento feito por Coco Chanel e que tapava «o mínimo» a Jean Marais, para ele surgir como uma nudez vestida na sua peça Œdipus Rex (ver imagens das pp. 143 e 144). (N. do T.)
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Este camarim não me intimidava. Eu fumava, tagarelava com um camarada desportivo que se limpava, espalhava às mãos cheias uma gordura no rosto. Entram girls, dão um pequeno grito e desaparecem até Barbette enfiar um roupão de pano turco e abrir a porta, trocar com elas algumas palavras. Mesmo depois de acabada a sua pintura, tão preciosa como uma caixa nova em folha de tintas para pintura a pastel, com os maxilares cobertos por uma goma de esmalte que cintila, o corpo esfregado por um estuque irreal, este estranho jovem diabo, São Justino de sonho, cocheiro da morte, continuará homem só ligado por um cabelo ao seu duplo. Quando enfiar a peruca loura, presa por um simples elástico à volta das orelhas, é que assumirá, com um monte de ganchos cor de neve na boca, todas as poses de uma mulher que se penteia. Levanta-se, anda, põe anéis. A metamorfose está feita. Jeckyll é Hyde. Sim, Hyde! Porque sinto medo. Volto-me para o lado. Esmago o cigarro. Tiro o chapéu. É a minha vez de ser intimidado. A porta abre-se, as girls já não se perturbam; entram e saem como se estivessem em sua casa, sentam-se, empoam-se, falam de trapos. A mulher que o ajuda a vestir-se passa o vestido, frisa as plumas, agrafa a blusa (suspensórios de tule que nem mesmo ocultam a ausência de seios) e o cortejo — a ajudante, as visitas, as girls — vai pela escada onde Barbette volta a ser o rapaz mascarado para fazer uma farsa, estorvado pelas saias e tentado a descer, empoleirado no corrimão. *
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Homem continua ele a ser no palco, quando visita os seus aparelhos, exercita as pernas, faz esgares sob a luz forte dos projectores, fica pendurado nos arames, trepa as escadas. Mal o problema do perigo é resolvido, a mulher reaparece. A mundana que deita um derradeiro olhar ao seu salão antes do baile, que dá toques nas almofadas, arranja as jarras e os candeeiros. * A orquestra faz um prelúdio. Vamos lá então ocupar o nosso lugar e ver Barbette como qualquer outro espectador. * O pano corre sobre um cenário útil: arame entre dois suportes, um conjunto que é o trapézio e as argolas pendurados no enquadramento do palco. Ao fundo, divã coberto com uma pele de urso branco, sobre a qual Barbette despe o vestido incómodo e desempenha, entre o exercício do arame e o exercício do trapézio, uma cena curta e escabrosa, uma verdadeira obra-prima de pantomima em que parodia, resume todas as mulheres estudadas para se transformar na mulher-tipo, ao ponto de apagar as mais bonitas figuras que o precedem ou seguem no cartaz. Porque é preciso não esquecer: estamos nessa luz mágica do teatro, nessa caixa de pregar partidas onde o verdadeiro já não tem circulação, onde o natural já não tem nenhum valor, onde as estaturas pequenas esticam, as altas encolhem, onde truques de cartas e passes de mágica, com uma dificuldade que o público não avalia, chegam para aguentar a parada. Aqui, Barbette será tão mulher
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como Guitry era «o general russo». Far-me-á compreender que os grandes países e as grandes civilizações não apenas por decência restringiam a homens os papéis de mulher. Vai recordar-me François Fratellini a explicar, quando eu me cansava a não obter nada de um palhaço inglês no papel do bookmaker de Le Bæuf sur le Toit, que um inglês não podia fazer de inglês; e esta frase de Réjane: «Por exemplo, quando faço o papel de uma mãe tenho de esquecer o meu filho Jacques. Por vezes, para saltar para lá do palco tenho de imaginar-me homem a fazer o papel de mulher.» Que recuo! Quantos esforços! Que lições de profissionalismo! Ouvindo-as, vendo Nijinski ou Pavlova a arfarem depois de uma dança como jogadores de boxe meio mortos, conhecendo esta atmosfera de navio perdido, dos bastidores, enquanto um amável ballet se desenrola, aprendi os segredos do palco. Quando Barbette entra, atira poeira aos olhos. Atira-a de repente, com uma tal força, que vai permitir-se pensar apenas no que é trabalho de equilibrista. A partir daí os seus gestos de homem começam a servi-lo, em vez de o venderem. Terá o ar de uma dessas amazonas que nos fascinam nas páginas de anúncios das revistas americanas. Durante a cena do divã, volta a lançar outro punhado de poeira porque a seguir precisará de toda a liberdade de gestos para baloiçar entre o palco e a sala, pendurar-se por um pé, imitar a queda, mostrar o seu rosto de anjo louco virado ao contrário, reunir as duas sombras que se ampliam quando o seu trapézio o leva. Ao entrar, e assim por cima das cabeças, e quando volta a pousar no chão, até mesmo quando saltita, terá um aspecto pouco feminino.
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* Pensamos nessas pinturas florentinas que levaram jovens a posar para o rosto das madonas, e em Proust quando enreda os sexos com astúcia e inabilidade que dão um prestígio misterioso às suas personagens. Barbette tem êxito por se dirigir ao instinto de várias salas numa só, e agrupar obscuramente sufrágios contraditórios. Porque agrada aos que vêem nele a mulher, aos que adivinham nele o homem, e a outros com uma alma que se emociona pelo sexo sobrenatural da beleza. Barbette move-se em silêncio. E apesar da orquestra que lhe acompanha a trajectória, das graças e dos exercícios perigosos, o seu número parece visto de muito longe, feito nas ruas do sonho, num lugar onde os sons não podem ouvir-se, que é levado até ali por um telescópio ou o sono. O cinematógrafo destronou a escultura realista. As suas personagens de mármore, as suas grandes caras pálidas, os seus volumes com sombras, com iluminações soberbas, toda essa humanidade abstracta, essa desumanidade silenciosa, substituem o que outrora era pedido pelo olhar às estátuas. Barbette descende dessas estátuas que se movem. E mesmo quando o conhecemos, não perde o mistério. Mantém-se um modelo de gesso, um manequim de cera, o busto vivo que cantava numa base envolta em veludo, no espectáculo de Robert Houdin. *
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A sua solidão é a de Édipo, a de um ovo de Chirico no primeiro plano de uma cidade num dia de eclipse. Aliás, deixo aos poetas o cuidado de comparar, de imaginar a encantadora criatura. Em mim é o operário quem procura o seu mecanismo e o desmonta, como Edgar Poe ao jogador de xadrez turco de Maëlzel. No fim desta mentira inesquecível, que cabriola não haveria em certos espíritos se Barbette tirasse, pura e simplesmente, a peruca. Dir-me-eis que a tira depois de cinco chamadas ao palco, e a cabriola acontece. Que até chega a ouvir-se um rumor. Vêem-se incómodos, caras vermelhas. É ponto assente. Porque depois de colher o êxito de ginasta e provocar uma ligeira síncope, é-lhe preciso colher o êxito de comediante. Mas vede qual é o seu derradeiro instante de prodígio. Voltar a homem, passar o filme ao contrário não chega. É também preciso que a verdade se traduza e conserve um relevo possível de manter na mesma linha que a mentira. E por isto, mal levanta a peruca Barbette «interpreta um papel de homem», remexe os ombros, abre as mãos, incha os músculos, exagera o andar desportivo de um jogador de golfe. E que malícia, aperfeiçoar esta máquina de sortilégios, de emoções, de ilusão de alma e de ilusão dos sentidos, quando o ex-Barbette pisca o olho depois do pano corrido pela décima quinta vez, salta num pé e no outro, esboça um gesto de desculpa, executa toda uma pequena dança de garoto das ruas para apagar a memória de fábula, de exéquias de cisne que o número que ele conhece bem, embora o não tenha premeditado, nos deixa e parece uma falta de gosto na sua perfeita modéstia de trabalhador. Todas as almas em desordem, doentes, desesperadas, esgotadas pelas forças que nos ameaçam para aquém e para além da
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morte, encontram repouso num relevo de estilo. Depois de anos de americanismo, da onda que a capital dos Estados Unidos tinha para nos hipnotizar, o número Barbette mostra-me enfim, de mãos levantadas como um revólver, a verdadeira Nova Iorque com as penas de avestruz do seu mar e das suas fábricas, com os seus edifícios em tule, a sua precisão, a sua voz de sereia, os seus enfeites, a sua electricidade emplumada.
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Não deve confundir-se a vida das formas com as formas da vida. J.C.
Uma vez que a maior parte das pessoas encara a santidade como qualquer coisa insulsa e conforme a uma pureza legal, é provável que a depravação represente uma maneira do génio dos sentidos, quer dizer, de desvio até ao extremo de uma vertente descida em liberdade e exterior às regras. Disto resulta que o génio tal como é aceite, ou antes, tal como é tolerado, constitua uma depravação espiritual análoga a uma depravação dos sentidos. Muitas vezes uma arrasta a outra, e é raro um génio das letras, da escultura ou da pintura não se denunciar e, mesmo que lá não meta a sua carne, fazer prova de uma liberdade de ver, sentir e admirar que ultrapassa os limites consentidos. Gostaríamos de mais pormenores sobre a magistratura dos doze Césares. Talvez ficássemos a saber que Heliogábalo e Tibério, como esse Henrique III de quem se citam apenas as infâmias, foram grandes príncipes, e o desregramento só é cartaz das audácias políticas do seu espírito. Se assim não for, resta à sua singularidade exprimir-se de uma forma admitida como baixa, em vez de se exprimir de uma forma admitida como alta, embora chegue assim mesmo a exprimir-se e a demonstrar o des-
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prezo que eles sentem pelo vulgar. Através dos séculos forma-se a pouco e pouco uma família de excêntricos julgada por um centro que ora se vangloria de estar na norma, ora se resigna a ela, ora se instala nela com uma mentira pregada a si próprio e aos outros. Esta mentira arrasta consigo uma hipocrisia com uma defesa que é, na forma mais simples, agredir ferozmente quem expuser com franqueza os instintos cultivados pelos hipócritas às escondidas e contrários ao que eles próprios apregoam. Precisaríamos de ser ingénuos para não verificar a depravação fulminante de um Miguel Ângelo, e a desenvoltura com que ele larga num mundo cego os monstros graciosos da sua alma e dos seus sentidos. A Capela Sistina só é uma confissão lírica feita em pleno Vaticano e sem os padres a verem. A partir do momento em que o jogo for feito, o papel dos enganados consiste em defender quem os engana e provar que ele não está a enganá-los. E assim foi que os mais célebres debochados da alma encontraram advogados naqueles que enganaram. Quem acusaria Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Da Vinci, Miguel Ângelo? Estão cobertos por elogios em forma de folha de parra, a sua espiritualidade é exaltada sem se notar que essa espiritualidade sublime também é, repito, um deboche, uma depravação monstruosa do espírito. Aliás, todo o lirismo é um deboche do espírito e resulta de uma depravação. Se esta depravação se esconder, confere à obra onde habita um segredo que a impregna, que se solta dela, que a envolve numa fosforescência misteriosa. Por isto certas obras calmas propõem um enigma e fazem-se veículo entre a alma tumultuosa de um artista e outras almas parecidas com ela. Deve ser um mecanismo deste género que vale à Gioconda o lugar de
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A tourada, o flamenco, são uma língua falada com o corpo. Conheço, ai de mim, as minhas contradições, o meu repisar, os meus erros de sintaxe. Não altero nada. Só esperam um bater de mãos para ganhar estilo. E desejo que o meu texto se pareça com esses conciliábulos nocturnos em que alguns toureiros, à volta de uma mesa, aceitam interessar-se pelo meu ponto de vista. Era eu muito jovem, tive Bombita por amigo. Foi em Saint-Jean-de-Luz. Maravilhavam-me a sua pequena trança, essa coleta que costuma ser postiça nos colegas dele, e a palavra toreador que é rima de ópera-cómica, agradável de usar por quadrar tão bem com matador e picador, e tão bem dizer o que quer dizer. De touradas eu nada sabia, e não me gabo agora de saber mais. E tal como acontece em Santa Cruz, onde casas cheias parecem vazias e só habitadas por um repuxo, possam alguns segredos murmurar no interior deste texto. No fim de contas, um profano devia ter tão pouca liberdade de entrar nas arenas da Espanha como tem nessas outras, da Índia, que só os abutres visitam.
Estava eu a acabar de ler este texto que Jean-Marie Magnan, jovem poeta de Arles, soube extrair de notas ilegíveis, umas tiradas sobre o joelho durante a tourada, as outras sobre os meus dois joelhos levantados de doente, e ouvi Toscanini, morto na véspera, a dirigir a Quinta Sinfonia de Beethoven. Tão grande pompa altiva lembrava-me o espantoso encontro entre Beethoven e Goethe, que Nietzsche descreveu: «O camponês e o aristocrata». E de repente perguntei a mim mesmo se o «Que desgraça a minha eu ser diferença mínima», de Nietzsche, não perdia forças (não mudava de significação) perante este
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surdo onde as diferenças mínimas não existem; e se Beethoven não nos daria exemplo de um génio em estado selvagem; numa palavra, se o texto que agora reencontro, graças à paciente nobreza de um jovem galo de Arles, não irá uma vez mais condenar-me a ruminar diferenças mínimas, longe das marchas triunfais e das apoteoses. Volta-me à ideia a frase do Potomak da minha juventude: «Eu tanto podia ter escrito a Marselhesa como o Plaisir d’Amour. Escrevo este livro.» Nada se altera. Mesmo que uma curva ampla contorne de passagem as cúpulas de uma capela romana, lutos e lutas e ruínas e vazios que são as minhas cicatrizes gloriosas, arrisca-se a fechar o círculo do terrível zero de uma serpente de orgulho que morde a sua própria cauda; do zero das arenas com um centro onde se pavoneia, à espera de todos nós e com uma imobilidade que assusta, esse insecto andrógino de asas brancas: a morte (macho ou fêmea, conforme as línguas).
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IMAGENS NOTAS SOBRE OS TEXTOS
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Barbette fotografado por Man Ray.
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Jean Marais «enfaixado» por Coco Chanel.
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Miguel Ângelo, A Sagrada Família.
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Pontormo, Descida da Cruz.
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El Greco, O Martírio de São Maurício (versão «suavizada» do Escurial).
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Mounet-Sully no papel de Rodrigo em O Cid de Corneille.
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Dois desenhos do álbum dos Eugénios.
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O Auriga do Museu de Delfos.
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Jean Cocteau na tourada, ao lado de Picasso.
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o número barbette Jean Cocteau conheceu Barbette em 1923; um jovem acrobata norte-americano, chamado Vander Clyde, que executava no Casino de Paris e no Moulin Rouge números de trapézio «perturbados» por um disfarce em travesti. Balançava-se sobre o público, sobre a morte, sobre o ridículo e o mau gosto, sobre o escândalo, sem cair. Fascinado por esta metáfora, que aos seus olhos ultrapassava a verdade das verdadeiras mulheres, Cocteau frequentou as suas exibições, publicitou-as de viva voz e por carta junto de amigos, pô-las em literatura num texto que, em edição de luxo, escorre entre fotografias de Man Ray. Fê-lo aparecer como figurante numa cena do seu filme Le Sang d’un Poète e, veio a dizê-lo mais tarde, foi sua inspiração para caracterizar a mulher no papel da Morte que aparece no seu filme Orphée. Depois do episódio francês, Vander Clyde regressou aos Estados Unidos e prolongou quanto pôde a sua carreira de trapezista-travesti. Em 1966 foi visitado por Francis Steegmuller, biógrafo de Cocteau. Tinha sessenta e dois anos de idade e falava de Paris com emoção. Diz Steegmuller que teve consciência de passar por um momento raro: «com um andar hesitante e rígido, ferido pela lembrança do que tinha sido o amor pela sua arte, vi desaparecer em carne e osso, no fim de um passeio de uma rua do Texas, a inspiração viva de um poeta.»
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«Le Numéro Barbette» foi publicado em 1926 na Chronique des Spectacles dirigida por Drieu La Rochelle (e teve o seu texto definitivo em 1947, num álbum com as fotografias de Man Ray).
desordem e génio Encontrado entre os papéis que o escritor conservou até à altura da sua morte, foi publicado postumamente nos Cahiers Jean Cocteau. Alguns pontos de contacto com «Le Discours d’Oxford» poderão fazer-nos pensar que seja um texto dos anos cinquenta do século XX. Em paralelo com o título «Désordre et Génie», Cocteau assinala outro bastante estranho, «Inédit Féodal» (Inédito Feudal), que talvez só viesse a ganhar sentido conhecendo o projecto literário onde ele pensava integrá-lo. Em «Le Mystère Laïc», Cocteau também estabelece uma mesma ligação entre a obra dos génios e o jogo que oculta, mas não ilude, os tumultos mais secretos do seu espírito: Toda a obra-prima é feita de confissões escondidas, de cálculos, de trocadilhos altivos, de estranhas adivinhas. O mundo oficial ficaria de pernas para o ar se descobrisse o que um Leonardo da Vinci ou um Watteau dissimulam, isto para citar apenas dois conhecidos importunadores. Através daquilo que Freud chama coisas de criança é que um artista se explica sem abrir a boca, domina a arte e perdura. Porque este avesso invisível da beleza ilude as personagens que só distinguem o direito. Ministros, académicos, críticos sofrem, sem saber, a influência de farsas profundas.
o mito do greco Primeira publicação autónoma em 1943, num álbum das Éditions du Divan que reproduziu as duas versões de O Martírio
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de São Maurício numa visão de conjunto e nos pormenores que ilustram as observações de Cocteau. Em 1959 passou a fazer parte da recolha Poésie Critique I. Em «El Viaje de Cocteau en España», Gregorio Marañon sustenta que os grandes encontros do poeta no seu país foram Góngora e El Greco: «Na realidade, nos grandes encontros achamos sempre uma parte de nós mesmos. A mulher, o amigo ou um verso do poeta que um dia se nos deparam na encruzilhada do caminho e marcam para sempre a nossa vida, são como espelhos onde vemos o que nos está velado na nossa alma; e se logo os amamos é porque nos aliviam da angústia que é ignorar o que somos. Penso que Cocteau, quando encontrou Góngora, reencontrou uma parte daquele classicismo fulgurante que hoje vem bater como uma onda no limiar da Academia. Para um espanhol moderno é prodigioso ver que a veia que corria na alma de um poeta cordovês (quer dizer, supra-espanhol) do século XVII, reaparece num poeta francês do século XX. Cocteau traduziu um dos sonetos simbólicos de Góngora dedicado ao sepulcro do pintor Domenico Theotocopoulos. […] Mas o reencontro dos dois poetas só ganha todo o sentido tendo fatalmente lugar nesse jardim do Greco, em Toledo, onde julgamos ver as telas ardentes, iluminadas pela luz pálida “de um céu entreaberto e parecido com uma ostra”.» Também há um «prolongamento» de Cocteau ao texto «O Mito do Greco»: José Maria Sert, que agora me autoriza a citar pelo nome, possui o mais belo quadro do Greco que há no mundo. […] O rei tinha feito a sua encomenda. A obra apavorou a corte. A sua violência revoltava e fazia rir. Supõe-se que por intervenção de Pompeo Leoni, escultor do rei, um Greco cansado da guerra transformou a obra-prima original até obter outra obra-prima
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bastante mais ajuizada e com ar menos rebarbativo. […] Há falsos Grecos. Uma multidão deles. O primeiro Martírio de São Maurício poderia servir, como preâmbulo, para os destrinçar. Bastaria pô-los lado a lado. O génio explode em surdina em todos os pontos do percurso das linhas, na menor das superfícies pintadas ou pensadas. Cheio como um ovo com a casca atravessada pelas luzes celestes, reina num mundo onde as vicissitudes do nosso não penetram. Nada existe, como o estudo das duas telas, para exemplo mais admirável das faltas de perspectiva que ameaçam os contemporâneos de um artista. Os que obrigaram Greco a reprimir o seu ritmo, a descer uma vertente com menos rapidez, hoje veriam no primeiro Martírio, sem dúvida, o que julgaram ver no segundo. Seria possível mostrá-lo sem receio. Admirá-lo-iam e tomá-lo-iam pelo outro. […] Em 1944, o ilustre quadro do Escurial fica a parecer-nos o primeiro esboço.
teatro Houve tempos não muito distantes — mas ainda inocentes dos malefícios de algum cinema e de quase toda a televisão — que conferiam ao actor de teatro poderes quase incompreensíveis na época actual. O palco era a porta mágica privilegiada que se abria à evasão; que criava a grande distância próxima e só cortada da realidade por uma cortina. A criança sensível Jean Cocteau não conseguia, não queria, dificultar os exercícios violentos deste poder. Pierre Mounet-Sully surgia-lhe como uma expressividade de rosto e de gesto que passavam por sublimes no que então era o Bom Teatro. Ele, Sarah Bernhardt, Edouard de Max faziam-se deuses com actuações que hoje deixariam toda uma plateia a rir. Mas estes
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ÍNDICE
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Parece-me que a invisibilidade… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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HOMENS O número Barbette . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Desordem e génio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O mito do Greco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
31 39 43 56
HISTÓRIAS A lenda de Santa Úrsula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O homem dos pássaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O nascimento dos Eugénios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Visita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
63 67 71 76
REVEL AÇÕES O ópio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 Das casas assombradas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 Sentidos ocultos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 A bengala branca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 Tourada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 Imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Notas Sobre os Textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence
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Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O Capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva
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REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Jean Cocteau VISÃO INVISÍVEL
Jean Cocteau VISÃO INVISÍVEL
tradução e apresentação por
Aníbal Fernandes
Parece-me que a invisibilidade é a condição para a elegância. A elegância acaba se for notada.
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