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uma evocação de Ruy Cinatti e tradução de
Aníbal Fernandes O navio-mulher. O mais cruel amor em Joseph Conrad.
Joseph Conrad FREYA DAS SETE ILHAS
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FR EY A DAS SETE ILHAS uma evocação de Ruy Cinatti e tradução de
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: FREYA OF THE SEVEN ISLES
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2015 ISBN 978-989-8566-99-7 NA CAPA: CLAUDE MONET, PAISAGEM DE PALMEIRAS (PORMENOR), 1884 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 391042/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Se bem me lembro… No Chiado e mais ou menos onde Fernando Pessoa cruza hoje a sua perna, senti uma mão pousar-me no ombro. Quando é que traduzes Freya das Sete Ilhas? Nunca tinha pensado nisso. Mas era sempre um prazer falar com o Ruy Cinatti, que media os seus interlocutores com um compasso guardado numa gaveta do cérebro e só a partir dessa informação secreta decidia o seu discurso. Sempre magoado até ao sangue pelo mundo dos homens (o familiar e o social), ocultava com inesperada suavidade a amargura de nunca ter conseguido modificá-lo em tudo o que ele lhe tinha dado a ver de tão injusto e tão errado. Era também um homem obcecado por Deus; sobretudo pelo católico, que o fazia rezar segundo as orações-fórmulas do Pai Nosso e da Avé Maria, e venerar imagens de santos, e trazer ao peito uma cruz. Mas um crente culto não deveria ficar-se pela oração-pensamento? Que não; com a persistência da sua universal litania, a oração estabilizada pela fórmula construiu a palavra enérgica que rasga o caminho privilegiado até Deus. As paredes das catedrais impregnaram-se com essa energia rezada que as transforma numa antecâmara da suprema Comunicação. Mas as imagens… Sabe-se que os Mandamentos revelados a Moisés tinham no Segundo a sua proibição formal; e a Igreja Católica interessada em preservá-las anulou esse Mandamento obtendo
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o número dez por desdobramento do Sexto e fazendo uma segunda parte da sua ideia transbordar para o Nono. É da natureza humana preferir às divindades abstractas a representação visível… Ainda bem, porque sem isso não teríamos as obras-primas do Renascimento e o que persiste em quase tudo do que podemos ver de El Greco… O povo hebraico acedeu à verdade central de Deus, e depois de Cristo morrer a sua lição difundiu-se imaginando-o, a ele e à sua corte, por imagens. Outros povos mais distantes deste centro não tiveram a mesma revelação autêntica e directa, mas chegaram sempre às outras formas de Deus pela representação pintada ou esculpida. Menos os do judaísmo, do protestantismo, do islamismo. É um dos seus pontos fracos. As preces e as cerimónias rituais do homem precisam de um recurso mental ou visual próximos do seu estado humano, da imagem que certifique o laço orgânico que existe entre ele e aqueles a quem se dirige pela oração ou pelos actos do culto. Mas outras religiões, pelo contrário, só imaginaram seres fantásticos, zoológicos… Levadas a isso por características muito próprias da civilização que as sustentava. Eram religiões menos humanizadas, que só chegavam à transcendência com representações acima do homem e cheias de uma força que sublinhasse pelo temor o seu poder sobre aqueles que as veneravam. E isto é curioso porque não tiveram consciência de haver na natureza, a eles tão de perto ligada, ícones serenos e naturais da divindade. Eu, por exemplo, senti a floresta tropical de São Tomé como uma poderosa representação do Deus vegetalmente multiplicado.
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Mas nada disso, em Timor… Lá havia, sobretudo, a sua representação humilde em minúsculas flores do campo. Essa representação natural de Deus ausentou-se por completo dos desertos… Talvez não. No deserto, nos desertos que se mostram na sua versão agravada, há o vento como escultor dessa móvel e inconstante representação divina a que chamamos dunas. A Yourcenar acaba de publicar um livro chamado O Tempo esse Grande Escultor… Sim, admitamos que o tempo e o vento, os cinzéis de Deus. (Mas não estou a referir-me ao Erico Veríssimo.) Este homem, tão rendido às adorações que o catolicismo preconiza, conseguia com a sua universal apreensão dos ícones estender-se até ao D.H. Lawrence da exaltação solar mexicana. E dir-se-ia que dele adoptava, também, a forte descrença em perduráveis relações profundas com a mulher, desde que não baseadas na função primordial da complementaridade orgânica dos sexos, onde uma virilidade no seu máximo esplendor cumpre o «exigido por Deus para a comunhão sacramental». Para Ruy Cinatti, entre o sexo e a consciência decorria toda a vida do homem normal. Tinha ido ao México, que lhe exigia «respostas tão difíceis como as de Édipo à Esfinge», seduzido pelos rituais descritos e pressentidos em The Plumed Serpent e The Woman who Rode Away, textos de Lawrence com histórias de europeus capturados pelos lugares onde tinham existido em ultrapassados tempos as venerações de Quetzalcoatl. Nele havia, como em Lawrence, um leve toque machista (que faz afirmações acidentais em versos da sua obra poética, como por exemplo: era loira a inglesa / que eu comi…); e, tal como ele, encontrava nas relações de homem a homem o campo essencial
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da amizade e da partilha; decididas, como uma vez exprimiu, por um ritual de desdobramento: Esta é a minha condição: andrógino para os amigos, mas homem para as mulheres, mesmo amigas. Pouco tempo depois daquele encontro à frente d’A Brasileira, ficámos lado a lado num jantar com mais de vinte pessoas. O tempo estava quente, bom para a noite no pátio interior de um restaurante das Escadinhas do Duque; e com o bacalhau à minhota já adiantado voltou a perguntar-me: Quando é que traduzes Freya das Sete Ilhas? Era uma insistência com direito a alguma curiosidade. Encontrei-o a par de pormenores que circundam esta novela. Sabia, por exemplo, que a sua história se inspirava num episódio real onde o navio Bonito se chamava Costa Rica, e a sua personagem Jasper Allen era um inglês Sutton; sabia que o autor não tinha conseguido publicá-la na revista Century de Nova Iorque, intransigente quanto a um fim feliz como o exigido pela sensibilidade dos que eram seus leitores; e que ele, Conrad, recebera a carta de um americano que o insultava e não lhe reconhecia o direito de fabricar uma história tão inutilmente cruel… Um leitor destes, dizia eu, saía de um tempo em que os livros exaltavam até à desrazão apaixonada, incitavam à interferência, à confrontação. Mas talvez o próprio autor levantasse em mais privado restrições à sua novela. Porque se conhece uma carta, julgo que a Edward Garnett, onde ele chama a Freya «essa história estúpida». Nada tem de estúpida, é verdade, e este momento de animo-
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sidade contra a sua própria obra deve ter-lhe chegado da consciência de nunca se sentir tão à vontade fora dos largos espaços e da relação do homem com eles; quando sai do ponto de vista distante, onde em geral consegue ser magnífico, e se aproxima muito dos homens e dos conflitos do seu mundo interior, principalmente quando existe neles uma paixão romântica, deparamos muitas vezes com um Conrad menor e menos hábil. E pode também ter havido algum desagrado pessoal por lá ter deixado a falsa dor de dentes e aquele maxilar tão magoado pela bofetada de Freya. Falsa? Era um maxilar do século XIX… naquelas regiões privadas dos cuidados dentários europeus. Havia dores de dentes terríveis, gengivas sensibilizadas por cáries e infecções que roíam com paciência a polpa dos molares. Mesmo em Díli e já no século XX, um amador com broca de pedal sabia praticar torturas de meterem inveja à PIDE. A bofetada de Freya atingiu provavelmente um desses maxilares oitocentistas… Suponho que a mágoa de Joseph Conrad estaria muito mais ligada à consciência da sua falta de coragem ao não deixar totalmente claro o verdadeiro eixo daquela catástrofe. Apercebeu-se do meu momento de surpresa. Conrad era polaco mas um produto típico do vitorianismo que o modelou desde criança no país de adopção. Em pontos do seu texto deixou frases próximas da verdade que movimenta os actos menos comuns da sua história, mas o seu puritanismo impediu-o de ser muito explícito quanto à natureza do impulso que atirava Jasper para os braços de Freya. Esta novela reflecte um facto recorrente em navios com proprietários que apaixonadamente os amam, que os sonham sob a forma orgânica e feminina, que sentem a frustração de não possuírem sexualmente a sua enorme massa. O navio-mulher…
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Qualquer coisa do mesmo género foi sugerida desde recuados tempos nas figuras que se exibiram nessas proas-anúncio, afirmações de que havia um corpo e uma alma femininos a desentranhar-se no formidável corpo de metais e madeiras. Convivi em Díli com um caso que pode ser reconhecido como variante em mais adiantado capítulo de Freya das Sete Ilhas. Participou nela um australiano, ou antes, um canadiano residente na Austrália, proprietário de um navio que fundeava de vez em quando em Timor. Fazia transporte de mercadorias; e embora esta utilização em geral se associe a aspectos visuais menos requintados ou mais desleixados, dava-nos com ele a surpresa de um navio tratado como corpo feminino prestes a comparecer num qualquer acontecimento nocturno de grande gala. Aquele casco parecia constantemente saído das mãos de um pintor; aquele convés… teria levado cera? Aqueles metais seriam areados? A sala de estar tinha um piano de cauda, sofás dignos de uma grande loja de decoração, na parede um quadro que ele dava a conhecer como um trabalho de Monet, com uma figura feminina em tons aquáticos e de um pincel que podia, de facto, ter pintado nenúfares. Também lá viviam o gato e a mulher… A mulher, esta Freya imprescindível em todas as suas viagens, servia uns chás magníficos e com sabor oriental; tocava no piano valsas sentimentais, era interrompida na leitura de Pierres Lotis traduzidos para inglês, e lembro-me de que ia uma vez a meio em The good Earth de Pearl Buck… O marido chamava-a pelo nome do seu navio, Liberty, e possuía-a sexualmente conferindo-lhe o lugar de representação orgânica do seu idolatrado barco… Como pode ter-se a certeza disso?
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Transparecia em muitos momentos na sua fala, nos seus gestos, nos seus olhares, mas teve confirmação mais tarde, quando lhe aconteceu o mau dia da catástrofe. Foi preciso algum tempo para eu me surpreender com a longa ausência do Liberty. E perguntei um dia a outro australiano, que o conhecia, por onde andava agora esse navio. Fiquei a saber que tinha havido um… dois desastres. O não assinalado banco de areia por onde ele quis passar perto de uma daquelas ilhas encalhara-o, fizera-lhe um rombo de consequências materialmente impossíveis de enfrentar pelos seus recursos; e pouco tinha conseguido salvar dos tesouros que o seu amor e o seu temperamento cheio de emoções ali coleccionavam. Diziam alguns que tinha enlouquecido, embora quem me falava não tivesse provas disso. O destroçado proprietário do Liberty não quis regressar ao Canadá e… separou-se da sua querida «Liberty» que deixara, como é evidente, de ter qualquer utilidade no seu mundo sentimental e afectivo desde que não pudesse reconhecer-lhe o estranho papel de transposição, desde que não pudesse imaginá-la durante os seus transportes físicos como uma enorme massa sexuada que cortava águas do mar e dava resposta às exigências da sua paixão. Na história do Conrad, o jovem Jasper não atinge o ponto máximo desta mesma realização do seu amor. Freya interessa-lhe como corpo a transportar para dentro do seu navio e a ser dotado de uma função sexual que lhe permitiria amar fisicamente o Bonito; há uma frase da novela onde ela própria parece reconhecer-se destinada a esse papel; e quando Jasper compreende que nunca chegará a consumar o seu sonho porque deixou de possuir o Bonito, também deixa de ter para ele sentido a posse física de Freya.
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Pelos vistos, a novela apaixona por não desvendar o verdadeiro sentido de todos aqueles actos que a justificam, os de uma nevrose difícil de entender pelos leitores habituados a comportamentos mais comuns… O puritanismo vitoriano teve por vezes a vantagem de contornar os excessos da verdade que dariam à obra de arte zonas mais claras mas uma sedução menos inquietante. Como reagiríamos à monstruosa obscenidade de The Turn of the Screw se ela não fosse tolhida pelos não-ditos de toda aquela sombra? No que se tornaria The Master of Ballantrae se aquela vontade de incesto chegasse a ficar claramente assumida? Sim, o que seria de Oliver Twist se ficássemos a saber tudo sobre aquele serralho pedófilo? O que seria de The Ebb-Tide se ficassem mais do que subtilissimamente sugeridas as verdadeiras intenções da ilha paradisíaca de Attwater? Em Freya das Sete Ilhas é dominada com mão de mestre a sombra de uma verdade sexual indecente aos preconceitos da maioria dos ingleses-leitores desse tempo. O grupo de Bloomsbury, já a agitar-se nestas águas, ainda não tinha vencido as suas maiores batalhas. A novela de Conrad impressiona-me como belo exemplo de arte que a vida se pôs a imitar, e não o contrário, como é costume acontecer. Mas Conrad tinha imitado a vida, uma vez que o Bonito de Freya só existe por ele ter sabido do caso de um anterior Costa Rica… Trata-se, como eu disse, de uma história recorrente que surgiu e talvez venha a ressurgir na vida, e que uma vez chegou com este apuro à arte literária, e talvez venha lá a repetir-se; a arte a imitar a vida a imitar a arte a imitar a vida… O regresso eterno… esse Nietszche… Jean Cocteau e Jean Delannoy recontaram em L’Eternel Retour a história de Tristão e
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Isolda como uma fatalidade cíclica. Já lá vão uns anos, mas ficou-me de vez na memória aquela torrente loura dos cabelos de Madeleine Sologne, aquele magnífico salto do cão para os braços de Jean Marais… O mundo tem uma imaginação reduzida; contém na sua matriz umas quantas situações que insiste em repetir sob formas melhores e piores, a maior parte das vezes degradadas. Hitler repetiu Napoleão em muito mais grave… Napoleão repetiu os Césares com menos pompa… as histórias dos jornais falam constantemente de Cármens de meia tigela… de Annas Karenines e Bovarys de subúrbio… de Putifares, de Judites, de Betsabés… Fomos nesta altura (que pena!) interrompidos pelas sonoridades de um brinde colectivo. O tempo estava quente e muitos dos convivas com uma bem visível alegria acrescentada. Depois deste jantar (que aconteceu em 1984), durante os mais dois anos que Ruy Cinatti viveu encontrámos-nos duas, três vezes… a última à porta de um alfarrabista do Poço dos Negros. Lamentou este Portugal a afastar-se de Abril e sem nenhum indício do país que ele tinha chegado a sonhar nos entusiasmos de 74. Mas nunca mais voltámos a Conrad nem à verdade oculta no mau destino da sua Freya. Parece, no entanto, que ainda o oiço: Quando é que traduzes Freya das Sete Ilhas? Qualquer dia… Era na altura a resposta possível; sem poder chegar a dizer-lhe que esse «qualquer dia» podia ser distante, distante trinta e um anos. A.F. (1984 e 2015)
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i. Um dia — e muitos anos passaram sobre esse dia — recebi uma longa e prolixa carta de um dos meus velhos camaradas e companheiros que vaguearam comigo nos mares orientais. Ele continuava por aquelas paragens, mas agora estabelecido e já de meia idade; imaginei-o corpulento na figura e caseiro nos hábitos; para resumir, atingido pelo comum destino de todos nós, com a excepção dos muito amados pelos deuses que apanham cedo uma pancada na cabeça. Era uma carta com reminiscências do género «como deves lembrar-te» — uma carta melancólica com olhadelas ao passado. Entre outras coisas escrevia: «Lembras-te, com certeza, do velho Nelson.» Lembrar-me do velho Nelson! É claro que sim. E, para começar, o seu nome não era Nelson. Os ingleses do Arquipélago chamavam-lhe Nelson por ser mais conveniente fazê-lo, suponho eu, e ele nunca ter protestado contra isso. Não teria sido mais do que pedantismo se o fizesse. A verdadeira grafia do seu nome era Nielsen. Chegara ao Oriente muito antes do advento dos fios de telégrafo, trabalhara em firmas inglesas, casara-se com uma rapariga inglesa e durante anos tinha sido um dos nossos, fazendo viagens e comércio em todas as direcções no Arquipélago Oriental; durante anos e anos atravessara-o e andara à sua volta, cortara-o transversalmente, em diagonal, na perpendicular, em semicírculos, aos ziguezagues, fazendo oitos.
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Não havia recanto ou greta destas águas tropicais onde os cometimentos do velho Nelson (ou Nielsen) não tivessem penetrado de uma forma muitíssimo pacífica. Se desenhássemos os seus rastos cobriríamos o mapa do Arquipélago como uma teia de aranha — todo ele tomado, com a única excepção das Filipinas. Nunca se aproximara desses lados, devido a um estranho temor que os espanhóis lhe inspiravam ou, para sermos exactos, as suas autoridades. Aquilo a que ele se imaginava sujeito era impossível dizer-se. Talvez tivesse lido nalgum momento da vida histórias sobre a Inquisição. Mas de uma forma geral temia o que ele próprio chamava «autoridades»; não as inglesas, que ele respeitava e lhe mereciam confiança, mas as outras duas daquela região do mundo. Não tinha tanto pavor aos holandeses como aos espanhóis, embora aqueles maior desconfiança lhe merecessem. Uma grande desconfiança, aliás. De acordo com a sua opinião, os holandeses eram capazes de «pregar às pessoas uma terrível partida» se elas tivessem a pouca sorte de lhes desagradar. Tinham leis e regulamentos, mas não mostravam nenhuma noção de honestidade ao aplicá-los. Era lamentável, de facto, vermos a inquieta circunspecção do seu comportamento perante as entidades oficiais e outras, e recordarmos que este mesmo homem era conhecido por ter na Nova Guiné palmilhado calmamente e sem mostrar medo até uma aldeia de canibais (devendo notar-se que em toda a sua vida foi um homem carnudo e, se nos for permitido dizê-lo, um apetitoso manjar) e tê-lo feito por uma troca de géneros de que talvez resultasse uma soma de cinquenta libras. Lembrar-me do velho Nelson! Sem dúvida! A verdade é que ninguém da minha geração o conheceu nesses dias cheios
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de actividade. No nosso tempo estava «retirado». Comprara, ou talvez tivesse arrendado parte de uma pequena ilha do sultão, pertencente a um pequeno grupo chamado as Sete Ilhas, ao norte e não muito longe de Banka. Fora, ao que suponho, uma transacção legítima, embora eu não duvide de que os holandeses, se Nelson fosse inglês, teriam descoberto uma razão para corrê-lo dali sem cerimónias. No que respeita a este pormenor, valeu de muito a verdadeira grafia do seu apelido. A sua qualidade de dinamarquês modesto, com uma conduta o mais correcta possível, tinha feito com que o deixassem em paz. Empatou todo o seu dinheiro na agricultura e, como é natural, mostrou-se cuidadoso em nada fazer que pudesse ser tomado como sombra de uma ofensa, e pelas mais prudentes razões deste género é que ele não via Jasper Allen com bons olhos. Mas isto fica para mais tarde. Sim! Todos se lembram bastante bem do grande e hospitaleiro bangaló do velho Nelson construído na inclinada extremidade de uma ponta de terra; da sua arrogante figura, em geral vestida com uma camisa branca e calças (tinha o arreigado hábito de ao mais leve pretexto despir a jaqueta de alpaca), dos seus redondos olhos azuis, do desgrenhado bigode de um branco de areia sempre espetado como as cerdas de um mal-humorado porco-espinho, da propensão para se sentar de repente e abanar-se com o chapéu. Mas de nada valerá ocultar aquilo de que todos realmente nos lembramos: a sua filha, que tinha nessa altura vindo viver com ele — e se converteu numa espécie de Senhora das Ilhas. Freya Nelson (ou Nielsen) era desse género de raparigas que não esquecemos. Tinha o oval da face perfeito; e no interior desta fascinante moldura o mais feliz conjunto de traços e feições com um admirável tom de pele que lhe dava um aspecto
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de saúde, força e do que poderíamos chamar uma inconsciente presunção — um muitíssimo agradável e, por assim dizer, caprichoso ar determinado. Não vou comparar os seus olhos com violetas porque tinham uma cor de matiz verdadeiramente peculiar, não muito escura e mais brilhante. Eram dos que se abrem muito e em qualquer circunstância nos olham com franqueza. Nunca lhe vi as longas e escuras pestanas baixarem-se — mas posso garantir que Jasper Allen, como ser privilegiado, viu-as assim — embora não duvide de que elas se tenham mostrado encantadoras na sua complexa expressão. Podia — disse-me uma vez Jasper com um tocante e estúpido entusiasmo — sentar-se em cima da sua cabeleira. Posso admitir que sim, posso admitir que sim. Não me era dado contemplar estas maravilhas; contentava-me em admirar a maneira simpática e adequada como procedia para não ocultar a bonita forma da cabeça. E o aspecto saudável do cabelo conferia-lhe um tal brilho, que até com as persianas da varanda voltadas a poente corridas, a darem-lhe uma agradável meia-luz, ou quando estava à sombra do pequeno bosque de árvores de fruto, perto da casa, parecia emitir uma dourada luminosidade que só tinha nele a sua origem. Em geral andava com um longo vestido branco, de um comprimento que lhe não estorvava o andar mas deixava visíveis as limpas botas castanhas com atacadores. Se houvesse no seu trajo alguma cor, talvez não passasse de um pouco de azul. Nenhum esforço parecia cansá-la. Vi-a descer de um pequeno barco, depois do grande passeio em que remara ao sol (dava muitos passeios em que ela própria remava), sem ter a respiração acelerada nem um cabelo fora do lugar. De manhã, quando ia até à varanda e dava uma primeira olhadela ao mar do lado
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poente, na direcção de Sumatra, parecia tão fresca e cintilante como uma gota de orvalho. Mas uma gota de orvalho é efémera, ao passo que em Freya nada havia de efémero. Recordo-me dos seus braços roliços e sólidos mas com pulsos finos, das mãos largas e habilidosas com dedos cónicos. Não sei se tinha realmente nascido no mar, mas sei que aos doze anos de idade navegara em vários navios com os seus pais. Depois de o velho Nelson perder a sua mulher, foi para ele um grave problema decidir o que fazer com a rapariga. Comovida com esta silenciosa preocupação e esta deplorável perplexidade, uma amável senhora de Singapura ofereceu-se para tomar conta de Freya. Foi uma combinação que durou seis anos, durante os quais o velho Nelson (ou Nielsen) «se retirou» e instalou na ilha, tendo depois decidido (a senhora amável tinha ido para a Europa) que a sua filha viria para junto de si. O primeiro e mais importante preparativo que este acontecimento exigiu foi a velha criatura dar ordens ao seu agente de Singapura para comprar um grande piano vertical Steyn and Ebhart. Nessa altura eu comandava um pequeno vapor que fazia carreira nas ilhas e coube-me a tarefa de o transportar e entregar-lho, o que me deixa saber alguma coisa sobre o grande piano vertical de Freya. Descarregámos com dificuldade a volumosa embalagem num pedaço de rocha plana no meio de matagais, e durante esta operação náutica estivemos perto de arrombar o fundo de um dos botes. Depois, com a assistência de toda a minha tripulação, maquinistas e fogueiros incluídos, com uma grande e preocupada engenhosidade e recorrendo a roldanas, alavancas, guinchos e planos inclinados untados com sabão, labutando debaixo de sol como os antigos egípcios quando construíam uma pirâmide conseguimos levá-lo tão
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longe quanto o necessário para chegar à casa e içá-lo até à borda da varanda virada a poente — que viria a ser a sala de estar do bangaló. Desfeita com cuidado a caixa, o belo monstro de pau-rosa acabou por se deixar ver. Com um reverente entusiasmo fomo-lo levando contra a parede, e pela primeira vez nesse dia respirámos fundo. Naquela pequena ilha, e desde que o mundo fora criado, com toda a certeza nunca se tinha procedido à deslocação de um objecto de tão grande peso. Era de facto espantoso o volume sonoro que ele soltava naquele bangaló (a funcionar como uma caixa de ressonância). A sua atroadora suavidade chegava ao mar. Jasper Allen contou-me que uma manhã muito cedo, no convés do Bonito (o seu maravilhoso brigue, formoso e veloz) tinha ouvido com muita nitidez as escalas que Freya tocava. Mas este sujeito ancorava sempre a uma insensata proximidade do promontório, como eu mais de uma vez lhe disse. É certo que são mares de uma serenidade quase sempre inalterável, e a zona das Sete Ilhas é por regra particularmente calma e despida de nuvens. Mas ainda assim há, uma vez por outra, tardes tormentosas sobre Banka ou uma dessas fortes e traiçoeiras borrascas chegadas da costa distante de Sumatra, que fazem repentinas investidas sobre o grupo de ilhas envolvendo-o um par de horas num turbilhão de ventos e conferindo-lhe um tom negro-azulado de aspecto particularmente sinistro. E então, com as persianas de junco-da-índia descidas e a baterem num desespero ao vento, com todo o bangaló a estremecer, Freya sentava-se ao piano e tocava um violento trecho de Wagner no meio de relâmpagos que ofuscavam, com raios trovejantes que ali à volta caíam, suficientes para o seu cabelo acabar por ficar em pé. Jasper, esse, mantinha-se imóvel na varanda, extasiado com a visão da parte posterior da sua fle-
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xível e balanceada figura, o miraculoso brilho da cabeça loura, as mãos rápidas nas teclas, a brancura da nuca no pescoço — enquanto lá em baixo, na base do promontório, o brigue sacudia as amarras apenas a uma centena de jardas das negras, reluzentes e perigosas pontas rochosas. Uf! E tudo isto — imagine-se — sem outra razão além de sentir que chegada a noite a bordo, e com a cabeça assente no travesseiro, ficaria o mais perto possível, respeitando conveniências, da Freya a dormitar no bangaló. Se alguma vez se viu! E este brigue, fique a saber-se, era o lar — o seu lar — o paraíso flutuante que aos poucos tinha preparado como um iate para navegar para longe com Freya, por toda uma felicíssima vida. Imbecil! Mas o sujeito estava sempre a correr riscos. Lembro-me de estarmos um dia, eu e Freya, na varanda a ver o brigue aproximar-se do promontório, vindo de noroeste. Imagino que Jasper tivesse visto com o seu óculo a rapariga. E o que fez ele? Em vez de se manter mais outra milha e meia ao largo dos baixios, e depois virar de bordo para ancorar da forma adequada e digna de um homem do mar, descobriu uma brecha entre dois desagradáveis recifes farpados, desde há muito conhecidos, e deitou de repente a mão à barra do leme fazendo-a baixar e o brigue correr por ali fora com todas as velas a abanar e a estalar, ao ponto de podermos ouvir na varanda o seu ruído. Retive, posso garantir-vos, a respiração entre os meus dentes cerrados e Freya soltou uma blasfémia. Sim! Crispou as habilidosas mãos, bateu com as lindas botas castanhas no chão, e disse: «Raios o partam!…» Depois, um pouco mais corada — não muito — olhou para mim e fez esta observação: «Esqueci-me de que estava aqui», e riu-se. Com certeza, com certeza. Com Jasper à vista não se lembrava de que havia no
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mundo outras pessoas. No que me dizia respeito, tão preocupado eu estava com aquela desatinada manobra, que não pude deixar de fazer um apelo ao seu compreensivo bom senso: — Ele estará doido? — perguntei emocionado. — É um perfeito idiota — concordou num tom vivo, a olhar para mim com olhos muito abertos, olhos onde havia seriedade, e com a covinha de um sorriso na face. — E tudo isto — fiz-lhe ver — para ganhar qualquer coisa como vinte minutos até se encontrar consigo. Ouvimos a âncora a descer; e ela fez-se, então, muito decidida e ameaçadora: — Espere um pouco. Vou dar-lhe uma lição. Foi para o seu quarto e fechou a porta, deixando-me na varanda sozinho e com instruções sobre o que teria de fazer. Muito antes de as velas do brigue serem ferradas já ali tinha chegado Jasper, a subir a escada de três em três degraus, esquecendo-se de me dizer «como passa» e a olhar para um lado e para o outro com ansiedade. — Onde está a Freya? Não estava há instantes aqui? Quando lhe comuniquei que ia ficar privado toda uma hora da presença de Miss Freya, «só para lhe dar uma lição», disse-me que tinha sido eu a induzi-la a isso, sem dúvida, e estava a temer que tivesse um dia de dar-me um tiro. Ela e eu tínhamos uma grande intimidade. Depois deixou-se cair numa cadeira e tentou falar da sua viagem. Mas o engraçado era aquele sujeito estar realmente a sofrer. Isso era visível. A voz faltava-lhe, e para ali estava sentado, emudecido, a olhar para a porta com um rosto de homem sofredor. A sério… E foi divertido o que a seguir aconteceu porque, ainda não tinham passado dez minutos, a rapariga saiu com toda a calma do seu quarto. Nessa
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altura fui-me eu embora. Quero dizer que o fiz para ir ter com o velho Nelson (ou Nielsen) à varanda de trás, o seu canto favorito no conjunto de toda aquela casa; com o amável propósito de conversar com ele, não fosse dar-lhe para vaguear por ali e meter-se involuntariamente onde não era desejado. Ele sabia da chegada do brigue, embora desconhecesse que Jasper já ali estava com a sua filha. Suponho que isso lhe parecia impossível num tão curto espaço de tempo. Era natural que um pai pensasse assim. Suspeitava que Allen tivesse um fraco por aquela rapariga; as aves do ar e os peixes do oceano, a maior parte dos comerciantes do Arquipélago e na cidade de Singapura homens de todas as condições davam por isso. Mas não era capaz de avaliar até que ponto a rapariga estava interessada naquela criatura. Na sua opinião, Freya tinha demasiada sensatez para se prender a alguém — ao ponto de a situação não ser dominável, quero eu dizer. Não; não era isto que o fazia estar, com o seu habitual à-vontade despretensioso, sentado durante as visitas de Jasper na varanda de trás. Preocupavam-no as «autoridades» holandesas. Porque era um facto que os holandeses olhavam de soslaio para as actividades de Jasper Allen, proprietário e patrão do brigue Bonito. Achavam-no excessivamente empreendedor no seu comércio. Não sei se teria feito qualquer coisa ilegal, mas a sua actividade parecia-me imensa, e isto repugnava às pesadas formas de actuar e aos métodos de progresso lento que eles utilizavam. Seja como for, na opinião do velho Nelson o capitão do Bonito era um arguto marinheiro e um excelente rapaz, embora uma relação indesejável no seu todo. Um tanto comprometedora, não sei se me entendem. Por outro lado não lhe agradaria dizer explicitamente a Jasper que se mantivesse longe. O pobre do velho Nelson era, tam-
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bém ele, uma excelente criatura. Acredito que se sentisse retraído só de pensar que ia ferir sentimentos, mesmo que fossem de um canibal de cabeleira hirsuta; a menos que ele próprio se visse como alvo de uma muito forte provocação. Refiro-me a sentimentos, não a corpos. Porque contra lanças, facas, machadinhas, mocas ou flechas, já o velho Nelson tinha a si próprio provado que era capaz de fazer-lhes frente. Sob qualquer outro aspecto era uma alma temerária. E assim, com uma expressão preocupada e sentado na varanda de trás, quando lhe chegaram aos ouvidos as vozes da sua filha e de Jasper Allen inchou as bochechas e deixou, com o som triste dos homens muito cansados, o ar escapar-se. Como é natural eu escarnecia dos temores que ele, com mais ou menos pormenores, me confidenciava. Tinha em certa conta o meu julgamento; merecia-lhe um certo respeito, não pelas minhas qualidades morais, é certo, mas pelos bons termos que eu achava conveniente manter com as «autoridades» holandesas. Eu dava por garantido que o maior dos seus papões, o governador de Banka — um encantador contra-almirante reformado, irónico e caloroso — tinha por ele uma assinalável simpatia. Esta consoladora certeza, que eu punha sempre em destaque, fazia o velho Nelson (ou Nielsen) reanimar-se por um momento; mas acabava por abanar a cabeça com ar de quem duvidava, como se dissesse que era tudo muito bonito mas havia na natureza dos oficiais holandeses profundidades que ninguém, a não ser ele, tinha alguma vez sondado. Era de um total ridículo. Na ocasião a que me refiro, o velho Nelson estava realmente aborrecido; porque embora eu tentasse entretê-lo com uma aventura muito engraçada e de algum modo escandalosa,
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acontecida a uma pessoa de Saigão que conhecíamos, exclamou de repente: — Por que diabo ele quis voltar aqui! Era evidente que não tinha escutado uma única palavra da anedota. E isso aborreceu-me porque era realmente boa. Olhei-o no rosto. — Vá lá, vá lá! — exclamei. — Não sabe o que vem o Jasper fazer aqui? Eu fazia pela primeira vez uma alusão explícita ao verdadeiro carácter das relações entre Jasper e a sua filha. Aceitou-o com muita calma. — Oh, a Freya é uma rapariga sensata! — murmurou com um ar vago, já que era óbvio ter a mente obcecada pelas «Autoridades». Não; a Freya não era louca. Ele não tinha a tal respeito preocupações. Não era coisa que lhe ocupasse minimamente a cabeça. Aquele sujeito só era para ela uma companhia; divertia-a; mais nada. Quando o velho homem perspicaz deixou de resmungar, toda a casa ficou em silêncio. Muito calmamente os outros dois se divertiam e com muita cordialidade, sem a menor dúvida. Que divertimento mais absorvente e menos ruidoso poderiam encontrar do que esse, de planear o seu futuro? Lado a lado na varanda deviam olhar para o brigue, o terceiro elemento deste fascinante jogo. Sem ele não haveria futuro. Era a fortuna e o lar, e para ambos o grande mundo livre. Quem foi que comparou os navios a uma prisão? Eu seja vergonhosamente enforcado na ponta de uma verga se for verdade. As velas brancas daquela embarcação eram as asas brancas — rémiges, acho eu, para o estilo ser mais poético — bem!, as brancas rémiges do seu amor
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uma evocação de Ruy Cinatti e tradução de
Aníbal Fernandes O navio-mulher. O mais cruel amor em Joseph Conrad.
Joseph Conrad FREYA DAS SETE ILHAS
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