Da Crítica, Bruno Duarte (org) - excerto

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DA CRÍTICA ANDREAS ARNDT CHRISTIAN BERNER JUDITH BUTLER JOÃO PEDRO CACHOPO BRUNO C. DUARTE RODOLPHE GASCHÉ DIOGO SARDINHA MÁRCIO SELIGMANN-SILVA DENIS THOUARD

[…] e o que devo dizer em primeiro lugar a propósito desta época? A mesma época em que também nós temos a honra de viver; a época que, para tudo dizer numa palavra, merece o modesto mas significativo nome de época crítica, de modo que muito em breve tudo será criticado, com a excepção da própria época, e tudo se tornará sempre mais crítico, e aos artistas ser-lhes-á permitido nutrir a justa esperança de que a humanidade se eleve enfim em massa e aprenda a ler. Friedrich Schlegel

DA CRÍTICA

A nossa época é a verdadeira época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem geralmente esquivar-se a ela. Mas desse modo provocam contra si mesmas uma justificada desconfiança, e não podem reivindicar o sincero respeito que a razão concede apenas aos que podem suportar o seu livre e público exame. Immanuel Kant

DA C R Í T I C A edição e organização

Bruno C. Duarte

É muito provável que o problema central da crítica não seja, em primeira instância, o de definir qual o seu conteúdo, a sua função ou a sua finalidade, mas sim o de discernir o limite do confronto com a composição e decomposição formais do seu núcleo. De uma forma ou de outra, a constituição do conceito enquanto conceito regressa continuamente do sentido partitivo e reflexivo do nome, descobre na crítica algo que volta da crítica – e aí reside a sua maior dificuldade.

A palavra crítica exorta à crítica, a palavra faculdade do juízo ao julgar; nenhuma delas é dada ou arrendada a quem quer que seja. J.G. Herder A crítica nem sempre dá provas do seu olhar aguçado; ignora frequentemente as manifestações mais insignificantes. Karl Kraus

Há uma diferença entre dar-se conta da omnipresença (soletrada ou implícita) da noção de crítica no pensamento ‘contemporâneo’ – dito assim, mais uma vez, por falta de um melhor ou de um pior termo – e tentar apreender essa noção como um conceito unido a si mesmo. Inversamente, há uma diferença entre procurar a crítica e dar de caras com ela. É precisamente na tensão trazida por essa diferença que se torna necessário encontrar a coragem ou a imprudência de enfrentar a questão: que experiência é possível ter da “própria crítica”? É nesse ponto que é preciso recuar, por um instante que seja, e, antes de enunciar ou lançar qualquer juízo sobre a relevância e a necessidade, isto é, sobre o presente e sobre a presença da crítica, tentar encontrar ou reencontrar a percepção que é ainda possível ter desse conceito por si mesmo e junto a si mesmo, na sua individualidade.

com o apoio

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Bruno C. Duarte

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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA), 2016 RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © AUTORES, 2016 1.ª EDIÇÃO, JUNHO 2016 ISBN 978-989-0000-00-0 TRADUÇÕES: BRUNO C. DUARTE REVISÃO: HELENA ROLDÃO DEPÓSITO LEGAL 000000/16 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: EUROPRESS SA RUA JOÃO SARAIVA, 10 A, 1700-249 LISBOA


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Índice

Introdução Bruno C. Duarte: Da Essência – Crítica e História . . . . . . . . . . . .

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I Andreas Arndt: Hermenêutica e Crítica no Pensamento da Aufklärung Denis Thouard: Crítica Filológica e Filosofia Crítica . . . . . . . . . . Christian Berner: Schleiermacher, a Crítica entre Filologia e Filosofia

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Judith Butler: Crítica, Dissensão, Disciplinaridade . . . . . . . . . . . . Diogo Sardinha: Foucault: Repensar a Crítica de Kant para uma Outra Compreensão do Sujeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bruno C. Duarte: A Cabeça de Medusa da Crítica . . . . . . . . . . . .

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Márcio Seligmann-Silva: A Tarefa da Crítica Segundo Walter Benjamin João Pedro Cachopo: Adorno e as Valências da Crítica . . . . . . . . . Rodolphe Gasché: Crítica, Biografismo Autêntico e Juízo Ético . . .

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Conclusão Bruno C. Duarte: Da Crítica – Teoria e Prática . . . . . . . . . . . . . .

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Autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Agradecimentos e Referências Este livro é composto por ensaios inéditos, com a excepção de três textos, traduzidos aqui pela primeira vez para português a partir das respectivas publicações originais, indicadas abaixo. Um agradecimento especial a Andreas Arndt, Judith Butler, Rodolphe Gasché e aos respectivos editores pela concessão dos direitos de publicação em língua portuguesa. Andreas Arndt, Hermeneutik und Kritik im Denken der Aufklärung, in: M. Beetz/G. Cacciatore (Eds.): Die Hermeneutik im Zeitalter der Aufklärung. Colónia/Weimar/Viena, Böhlau Verlag, 2000, pp. 211-236. Judith Butler, Critique, Dissent, and Disciplinarity, in: Critical Inquiry 35:4 (2009), número especial “What is a Discipline?”; publicado pela primeira vez em alemão in: West End, Institut für Sozialforschung, Frankfurt a.M. (2008); republicado in: Karin de Boer/R. Sonderegger (Eds.): Conceptions of Critique in Modern and Contemporary Philosophy, Londres, Palgrave, 2011, pp. 10-29. Rodolphe Gasché, Critique, Authentic Biographism, and Ethical Judgemen, in: The Honor of Thinking: Critique, Theory, Philosophy, Stanford University Press, Stanford, California, 2007, pp. 60-102. Uma parte deste ensaio foi previamente publicada sob o título Sublimely Clueless: On the Foundation of Marriage in Statutory Law, Cardozo Law Review 26, 3 (2005), pp. 921-942. (Copyright Cardozo Law Review.)


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Da Essência – Crítica e História

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Há tantas revistas críticas de natureza diversa, e com as mais variadas intenções! Que por uma única vez viesse então também a constituir-se uma sociedade desse género, a qual teria simplesmente como fim realizar pouco a pouco a própria crítica, que, no fim de contas, também é necessária. Friedrich Schlegel

(Da essência) da crítica O título deste livro resulta da citação de um outro título, ao qual foi subtraído o seu início: Da essência da crítica, um dos textos fundamentais que integram a antologia Os pensamentos e opiniões de Lessing, organizada e editada em 1804 por Friedrich Schlegel. A necessidade dessa excisão e eliminação da essência, isto é, dos princípios fundamentais ou do cerne de alguma coisa que se pretende expor ou apresentar, parece ter-se tornado, nos tempos que correm, no tempo que tantas vezes e tão levianamente se diz ser o nosso, algo de inevitável. Não porque a questão da essência ou da origem tenha desaparecido, mas antes porque, sob muitos aspectos, passou a ser irreconhecível, estranha, ou simplesmente irrelevante. Ela aparenta ser, na verdade, algo a que já não é possível sequer aspirar, ou um risco que se tornou ilegítimo e injustificado assumir como exercício, por supostamente ter sido ultrapassado, ou visto como algo de segunda ou de terceira ordem – um risco, em suma, que já não seria sensato nem necessário correr, e que por isso mesmo tem de ser obliterado, ou pelo menos cancelado, provisoriamente ou definitivamente. A dúvida sobre a possibilidade, a relevância ou o desinteresse de um discurso que enuncia a pergunta pela ‘essência’ de alguma coisa, a desconfiança com que ela tem doravante de lidar, está em conformidade com os momentos diferenciados da história dos Da Essência – Crítica e História |

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séculos XIX e XX, no decorrer dos quais a filosofia ou a teoria – o lugar em que por definição a ‘essência’ estaria por assim dizer em casa – se viu forçada a sair de si mesma, e a enfrentar a prática, ou melhor, para o dizer de forma ainda mais ingénua e simplificada, a realidade e o mundo – da religião, da moral, da política ou da arte. Mas, antes de seguir por esse caminho, ou tomá-lo como evidente, seria preciso voltar um pouco atrás, e recomeçar – não pelo princípio, seguramente, que continua a ser esquivo e desconhecido, apesar de todas as provas em contrário, mas por algum lado. A citação lascada, incompleta de um título – (da essência) da crítica – não tem de ser nem a sua cópia invertida, nem a refutação do seu exemplo. No seu ensaio, cujo título original, importa repeti-lo, é escrito Da essência da crítica – e não Sobre a essência da crítica –, Schlegel começa por reconhecer a amplitude que possui “esta ciência ou arte a que chamamos crítica”, e, por essa razão, propõe-se “determinar com maior precisão o seu conceito”, regressando às origens do “próprio nome de ‘crítica’”, tal como nos foi legado pelos seus inventores e fundadores, os Gregos.1 A reconstituição histórica parte de uma comparação que não é propriamente inesperada: ao contrário do que acontecia com a “crítica antiga”, com os Modernos, a literatura não chegou a constituir-se como um todo, a crítica não soube preservar os fragmentos existentes da arte poética, e ambas, afastadas e alheadas uma da outra, cederam ao seu declínio. A diferença estaria na sucessão: no caso dos Antigos, à “época da poesia” seguiu-se uma “época da crítica”, que aparece definida como “o suporte comum sobre o qual assenta todo o edifício do conhecimento e da língua”2; no caso dos Modernos, essa continuidade foi perdida, e a degeneração da literatura e da poesia deveu-se em grande medida à ruína política e à desagregação da língua, por um lado, e à inexistência de um juízo estético pronto a erigir uma “construção do todo da arte e da arte poética”3, por outro. No final, de modo algo abrupto mas consequente, e depois de expor o seu diagnóstico, Schlegel articula esquematicamente a sua fórmula, quando designa a “mais íntima união da história e da filosofia” como “a tarefa suprema da crítica” enquanto arte e ciência. Nas suas palavras: É necessário pensar a crítica como um elo intermediário entre a História e a Filosofia, ligando as duas de modo que ambas possam ser unificadas num novo e terceiro ———————————

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F. Schlegel: Da essência da crítica, in: Os pensamentos e opiniões de Lessing, reunidos e comentados a partir dos seus textos por Friedrich Schlegel (Leipzig, 1804), Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe, Vol. 3, Charakteristiken und Kritiken II (1802-1829), Ed. H. Eichner, Munique, Paderborn, Viena, 1975, p. 52. [Daqui em diante designado por: KA, seguido do volume e número de página.] Ibid., p. 55. Ibid., p. 58.

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termo. Ela não pode prosperar sem o espírito filosófico, quanto a isso todos estarão de acordo; e, da mesma maneira, não passa sem o conhecimento histórico. A clarificação e a examinação filosóficas da história e da tradição são incontestavelmente crítica; mas qualquer visão histórica da filosofia também o é, precisamente, de modo igualmente incontestável. […] não é possível dizer que se compreende uma obra, um espírito, senão quando se é capaz de reconstruir o seu curso e a sua estrutura. Esta compreensão fundamental, a que – quando é manifestada em palavras determinadas – se chama caracterizar, é assim a actividade mais própria e a essência íntima da crítica. Pode reunir-se num conceito os resultados maciços de uma massa histórica, ou, no lugar de determinar um conceito simplesmente na sua diferença, construí-lo na sua transformação, da primeira origem ao seu derradeiro cumprimento, facultando juntamente com o conceito a história interna do conceito […]4 Nas suas notas de leitura à margem do texto de Schlegel, Walter Benjamin transcreveu para si próprio a passagem crucial em que é imaginada a “crítica como um elo intermediário entre a História e a Filosofia”. Depois de copiar esta frase, Benjamin acrescenta: “Esta definição só é inteiramente clara do ponto de vista da síntese.”5 Que síntese é esta? Quando fala “num novo e terceiro termo”6 capaz de ligar entre si o espírito filosófico e o conhecimento histórico, Schlegel já não está a referir-se unicamente a uma qualquer digressão sobre a crítica como actividade que produz a própria literatura e a poesia por vir, e ainda menos a um operador dialéctico aleatório entre instâncias equidistantes, que decairia como que voluntariamente na vertigem da irrealidade. O que ele persegue é antes um problema concreto, a saber, o desdobramento contínuo da manifestação da crítica como parte do espírito reflexivo que procura incessantemente a sua autodeterminação. A dificuldade da síntese que a crítica vem pôr a nu, como problema que se excede a si mesmo, é a própria redundância explícita de qualquer conhecimento apostado em chegar ao seu fim. Dito em negativo: qualquer empenho na construção – ou, melhor dizendo, na armação – de um conceito é sempre contrabalançado pela sua descrença na resolução que lhe acode, e a que chamaria sua, tornada impossível pela pressão exercida no vácuo do infinito. Por isso mesmo, a crítica terá sempre de ser, aos olhos de Schlegel, uma meta incumprida, um desígnio inacabado. Ela não é, como o diz de forma implacável uma outra inscrição fragmentária, nem sumamente absoluta nem inteiramente anti-sistemática, mas antes a arte universalizada da filosofia. ———————————

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Ibid., p. 60. W. Benjamin: Gesammelte Schriften, Eds. R. Tiedemann, H. Schweppenhäuser, Vol. VI, Frankfurt a.M., 1985, p. 733. F. Schlegel: KA 3: 60.

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A crítica não é simplesmente absoluta. Sem sistemática, não acede à característica. É uma arte filosófica universal. É uma dialéctica pragmática.7 Claramente, é a necessidade de uma demonstração que oculta a própria proposição na qual se faz sentir. Do primeiro axioma, negativo, ao último, que antecipa obscuramente o corolário, o procedimento mantém-se sintético, embora a dedução nunca seja linear, mas abrupta. O teorema fica moldado pela inferência que lhe dá forma, que seria possível resumir no postulado: o sistema da crítica é o seu processo. Enquanto propriedade, e na medida em que vive na espera do seu sentido físico, da sua extensão ao exterior, a crítica é avessa ao princípio da não-contradição. Enquanto lei imprópria, sabe que não pode cumprir-se senão na fricção do que é incompatível entre si. Por tudo isto, a pergunta por uma “forma crítica própria” ficará sempre, em último recurso, por responder, da mesma maneira que o projecto de uma “filosofia da crítica em geral”8 terá de permanecer suspenso – sempre promissor, mas sempre desunido. Em 1808, numa recensão sobre Adam Müller, Schlegel reafirmou com maior distanciamento a sua renúncia a uma definição conclusiva da crítica, que encerrasse de uma vez por todas o problema do seu sentido e da sua função. Em vez disso, a amplitude do conceito, proporcional ao espectro da sua aplicação livre, teria de ser reconhecida como uma prática da profusão de métodos e experiências distintos entre si. No reconhecimento e no auto-reconhecimento do seu processo cíclico e progressivo, a essência da crítica torna-se o movimento infindo da sua queda livre e da sua elevação contínuas: […] precisamente por a crítica não ser um conceito didáctico fechado, mas relevar antes de um género mais indeterminado e inteiramente livre, torna-se evidente que um só indivíduo não seria capaz de a abranger completamente, ou de estabelecer um cânone imutável da mesma; que, em vez disso, ela tem de ser exercitada por muitos, de modos distintos, e desenvolvida em todas as direcções.9 Ao mesmo tempo, relançar o horizonte da crítica contemplando-a segundo o princípio da constituição de si própria não exclui a tentativa de desmaterializar toda e qualquer espécie de fundamento. Não há pois um método crítico, isto é, um sistema formal da crítica que viria sobrepor-se a todos os outros, mas sim uma faculdade dispersiva, uma destreza do espírito que torna separável qualquer disciplina e se recusa a ser subjugado por ela. ———————————

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F. Schlegel: KA 18: 117 (1063). F. Schlegel: KA 16: 67 (76); 74 (142). F. Schlegel: KA 3: 148.

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Nenhum método […] é na verdade um método crítico; ou ainda, dito de outro modo, para chegar à crítica não é necessário qualquer método, a tarefa da crítica pode ser cumprida em qualquer método; nela trata-se apenas do génio da sagacidade, de uma grande sabedoria e imparcialidade […] não existe, no sentido rigoroso da palavra, um método crítico, pode apenas falar-se de espírito crítico […]10 De onde pode vir a crítica, senão de si mesma? No mesmo sentido: o que significa olhar de frente ou dar a ver a “história interna” de um conceito? E como se tornaria possível determinar esse conceito “na sua diferença”, ou “construí-lo na sua transformação”? Como se diz ou como se pode ainda dizer o “próprio nome de ‘crítica’”? A argumentação de Schlegel fala de uma “essência” da crítica, e no entanto não é essencialista na sua raiz, mas antes essencialmente histórica, no próprio modo como se aproxima da filosofia. A premência destas questões torna-se ainda mais clara quando se observa o modo como a filosofia – mesmo ou sobretudo a partir do instante em que se vê convertida em algo de tão indistinto como “pensamento crítico” ou “teoria crítica” – se apodera da crítica. A “história interna do conceito” é na verdade aquilo que se encontra diante – por estar atrás – de si. Pela sua capacidade de resistência e pela sua força de atracção, a crítica é uma arte ou uma ciência sem detenção, um teorema indemonstrável destinado a ser perdido de vista no próprio momento em que é enunciado. A enunciação, porém, a construção do conceito no próprio instante da sua transformação, não chega nunca ao seu fim, e tem por isso de recomeçar – sempre – de novo, a meio.

Pr é - h i s t ó r i a , h i s t ó r i a , h i s t o r i o g r a f i a d e u m c o n c e i t o Quando se olha com maior atenção para algumas visões abrangentes do conceito de crítica, é-se confrontado com algo que se assemelha a uma longa narrativa. Para que ela possa ter lugar, existem procedimentos, regras e métodos específicos a seguir, e, talvez por essa razão, as diferenças ou variações não são significativas – quer se trate de compêndios da história da filosofia, da filologia ou da literatura, à partida os principais domínios a que o termo “crítica” aparece ligado originalmente. Continua certamente a ser instrutivo, por exemplo, observar de perto as demarcações estabelecidas numa obra de referência como o Dicionário Histórico da Filosofia de J. Ritter e K. Gründer. No primeiro capítulo, depois da habitual referência à origem do termo – do grego kritiké (téchne), no latim clássico: iudicium, ars iudicandi – e às suas várias deriva———————————

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F. Schlegel: KA 12: 313.

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ções (krínein, krísis, kritérion, krités), começa-se por sobrevoar a “história do conceito de crítica dos Gregos até Kant”. Assim são introduzidas, por esta ordem e com indicações específicas de autores e obras, as seguintes alíneas: “Diferenciação do significado originário da palavra” (com alusões às tradições platónica e aristotélica); explicitação do “conceito filológico-lógico da crítica” (através da menção de autores como Estrabão, Crates de Malos, Sexto Empírico, Cícero, Quintiliano); uma digressão algo mais longa que percorre as variantes da “crítica como método” entre os séculos XVI e XVIII (com destaque para as obras de Petrus Ramus, J.C. Scaliger, G. Vico, P. Bayle, A. Arnauld, A. Genovesi, T. Goveanus, J. Locke, J.C. Gottsched, A.G. Baumgarten, J.H. Lambert); por fim, surge a classificação ou “divisão do conceito de crítica”. Neste último ponto, uma exposição histórico-temática do conceito, são caracterizadas as diversas modalidades, movimentos e disciplinas em que é fundida e refundida a linha de uma evolução: a ligação entre a crítica filológica (J. Lipsius, H. Stephanus, J. Gruter, J. Leclerc), a crítica bíblica (Erasmo, J. Buxtorf, E. Leigh, L. Cappel, R. Simon, B. Espinosa, L. Meyer) e o advento do Humanismo, a acção deste último no sentido da sua ampliação aos domínios da análise textual histórico-crítica (H.S. Reimarus, G.E. Lessing, J.S. Semler), da Poética e da Estética (B. Gracián, G.E. Lessing), até ao ponto de fusão de todos os significados e domínios num “conceito geral da crítica”. Este último, por sua vez, passa a ser coincidente com a sua ‘tarefa’ ou ‘função’, cujo exemplo literal – no sentido representativo – seria a definição prescrita por J.F. Marmontel na sua contribuição para a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, na qual o princípio de unificação conceptual do que antes estava diferenciado ganha forma na imagem do “tribunal da verdade”, perante o qual devem comparecer os “juízos que a lisonja e o interesse pronunciaram em todos os séculos”.11 Daqui parte a transição – lógica e historicamente defensável, mas ainda assim com muitas lacunas pelo meio – para o Capítulo II, intitulado “O conceito da crítica de Kant até ao presente”, dividido em secções delimitadas com a maior precisão e acribia, também elas de tipo evolucionista: em primeiro lugar surge a “filosofia pré-crítica de Kant”; em segundo, as “obras críticas de Kant”; em terceiro, a “filosofia pós-kantiana”; em quarto, a “tradição hegeliana” (em que Marx faz uma aparição necessária e fugaz, como que à sombra de si mesmo); em quinto, a “teoria das ciências humanas [literalmente: ciências do espírito] e do neo-kantianismo”, que abrange as várias divisões metodológicas e disciplinares da crítica12; em sexto, por fim, o “século XX”.13 ———————————

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H. Holzhey: Kritik, in: J. Ritter, K. Gründer (Eds.), Historisches Wörterbuch der Philosophie, Vol. 4, Darmstadt, 1976, 1249-1266. Ibid., 1267-1279. Ibid., 1280-1282.

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Não deixa de causar alguma surpresa que neste último capítulo – que também representa um exercício de fusão, por via da síntese e do resumo, ambos constritos pelas limitações de espaço próprias a um “dicionário” –, e muito em particular na sua última alínea, que o regime discursivo só consiga avançar quase inteiramente apoiado no que o precede: tudo se passa ainda sob o signo de Kant, em volta de um desígnio de posteridade que se encontra já precocemente deteriorado. Para essa última alínea estão previstas três subdivisões, todas orientadas (ou desorientadas, seria preciso acrescentar com a maior das gravidades) pelo “presente uso inflacionário da palavra crítica”, a qual, perante as exigências do tempo presente, se torna um sinónimo potencial de categorias como “o pensamento ou a razão em geral”.14 Cada uma dessas subdivisões responde ao próprio imperativo que definiu para si mesma: a primeira (representada pela Kritische Theorie da chamada Escola de Frankfurt, tendo à cabeça os nomes de Horkheimer e Adorno) é aqui regida em função do seu carácter programático; a segunda (representada pela figura magna de Karl Popper) refere-se ao racionalismo crítico, e ocupa-se de problemas metodológico-científicos de verificação de teorias e postulados teóricos; a terceira (suportada pela celebridade máxima de Wittgenstein, ladeado por Russell, Carnap, mas também por um elemento ao mesmo tempo continuador e refractário da Teoria Crítica, Jürgen Habermas, em particular pela sua teoria da acção comunicativa e pela insistência numa raiz normativa da crítica) centra-se na equivalência da crítica da filosofia com a crítica da linguagem.15 A brevidade e celeridade desta ‘alínea’, que pretende resumir um século inteiro em página e meia, mostra que, sempre que é preciso terminar, é-se forçado a caminhar com passos de gigante, como que para alcançar rapidamente o fim e arrumar de vez a questão, até nova ordem. Como se poderia adivinhar, a história não acaba aqui – e quase se ouvem os brados e queixumes de todo e qualquer historiador da filosofia devidamente actualizado e versado no (assim chamado) ‘pensamento crítico do século XX’. A este respeito, seria preciso então considerar tanto as condicionantes como as agravantes: à data de publicação do Dicionário, talvez essas reservas e censuras pudessem ser rebatidas e passíveis de uma justificação plausível, por razões de precaução metodológica e em virtude de certos princípios de cientificidade. A falta de tudo aquilo que não foi objecto de uma abordagem visível ou satisfatória na entrada lexical “crítica”, tê-lo-á sido, assim é dado a presumir, nas secções seguintes. A primeira – intitulada “Crítica, Crítica literária”16 – retoma as pontas soltas da análise anterior a partir de uma nova história, que no entanto não pode, por sua ———————————

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Ibid., 1280. Op. cit., 1280-1282. H.-D. Weber: Kritik, Literaturkritik, in: op. cit., 1282-1292.

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vez, deixar de se cruzar com a primeira. Nesse cruzamento, nessa “História do conceito de crítica do Renascimento ao tempo presente”, aparece reunido tudo o que estava antes e tudo o que vem depois: a relação da exegese bíblica como filologia crítica com o surgimento da Poética; a questão da normatividade (absoluta ou relativa, livre ou prescritiva) do juízo crítico e os limites da sua dissolução no conceito do gosto e do belo como pontos de apoio do juízo estético; o paralelismo ou a exclusão recíproca da “teoria estética” com o “conceito da crítica estética”. Perto da introdução a esta larga caracterização do vulto da “consciência crítica” através dos tempos, é assinalado, no meio de uma miríade de nomes e autores do século XVIII, entre os quais também o de Kant, o momento em que “a palavra crítica” deixa de ter um carácter “periférico” para passar a designar “o problema central da época”. A descrição dos modos de coexistência da crítica com a religião, a filosofia, a ciência e a história, a constatação do seu alargamento a uma variedade infinita de domínios, que teriam dificultado a possibilidade de apreender ou classificar as suas diferentes formas, deixa implícito que essa época pode ainda não ter terminado. Na secção que se segue, que poderia ser vista como uma espécie de separata, é elucidado o significado e alcance da “crítica imanente”, aqui reduzida ao “procedimento crítico-filosófico” de Walter Benjamin, desenvolvido a partir dos seus estudos sobre Friedrich Schlegel e Novalis, e à “teoria da ciência” de Adorno.17 Depois de algumas linhas dedicadas à “crítica pura” de Bruno Bauer18, segue-se, em conformidade com a ordenação alfabética, uma exposição não em comprimento, mas em cumprimento do dever, do “Kritizismus” (Criticismo), isto é, da constelação que se criou em volta do chamado ‘empreendimento crítico’ de Kant – em grande parte subsumida na recepção da Crítica da razão pura (que por sua vez tenderia a subsumir a filosofia, o método ou o sistema kantianos) –, sob a forma de reacções que se estendem por vários períodos e gerações, de Fichte e Hegel ao kantismo, neo-kantianismo e neo-criticismo, entre outras designações.19 Por ter nas mãos um discurso tutelar sobre a história da crítica, este Dicionário parece iniciar e fechar um círculo, no qual é dada ao leitor, por assim dizer de bandeja e sem a sombra de uma só dúvida, a convergência quase natural do arqueológico com o enciclopédico, do enciclopédico com o filosófico, do filosófico com o literário, do filosófico-literário com a imanência, e desta última com o seu correlato conceptual mais próximo, a saber, a aproximação da ciência ou da teoria do conceito à imediatez da realidade social ou política. A propósito da questão da actualização do conhecimento, e da construção ou reconstrução de uma palavra, é relevante pôr em contraste a disposição que acabou de ser descrita, ———————————

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E. Krückberg: Immanente Kritik, in: op. cit., 1292-1293. H. Stuke: Kritische Kritik, in: op. cit., 1293-1294. W. Nieke: Kritizismus, in: op. cit., 1293-1294.

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encontrada, recorde-se, num majestático Dicionário Histórico da Filosofia, e a digressão que aparece num volume mais recente, um Dicionário Histórico dos Conceitos Estéticos.20 Aqui, a entrada já não refere unicamente a palavra crítica, mas sim o par “crítico/crítica”. O traço oblíquo implica a diferenciação do género – entre o “crítico” (sujeito ou acto, forma nominal, adverbial ou adjectivada) e a “crítica” (substantivo) –, ao mesmo tempo que preserva ou resguarda a ligação por assim dizer umbilical ou irrefutável de ambos. Aqui, por conseguinte, a história é um pouco diferente: a divisão em blocos já não obedece a uma disposição estritamente cronológica ou evolucionista, antes lança redes num mar muito vasto, nas quais vão cair aproximadamente os mesmos movimentos, mas segundo uma outra abordagem, de aparência menos severa. O percurso histórico do conceito é aqui elaborado em função de critérios mais heterogéneos e menos lineares, todos eles, de uma maneira ou de outra, conducentes não tanto a uma descrição, mas a uma discussão – sempre delimitada historicamente, apesar do vaivém cronológico. Isso é visível desde o primeiro capítulo, com o título “Um conceito de luta entre as ciências e a literatura”, onde se começa imediatamente por referir nomes como Adorno, Habermas ou Derrida, deixando de lado a cronologia como método linear. O vínculo para o sinal de partida é essencialmente temático – a crítica como “um conceito de luta entre as ciências e a literatura”, isto é, entre a crítica erudita (científica ou filosófica) e a crítica literária (o nível inferior e mundano da teoria). Só então – depois de aberta a discussão sobre o presente da crítica e a referida luta, que se intensifica nas últimas décadas do século XX – se dá início ao registo propriamente enciclopédico no modo de abordar o “desenvolvimento do conceito”, e se recomeça o caminho pelo qual enveredou a crítica, sob o signo da subida (Cap. II: “A ascensão do conceito na época moderna”), da transfiguração (Cap. III: “Da crítica dos mortos à crítica dirigida aos vivos”), da descida à terra pelos caminhos da política e da emancipação teórica (Cap. IV: “A revolução crítica na Alemanha”), e da contemplação, inclinada sobre as Belas-Artes e o mundo da Cultura (Cap. V: “Diferenciação em géneros artísticos e desvalorização filosófica”). No final, que tenta unir-se ao início reincidindo no presente, dá-se qualquer coisa como o aparecimento da aparição (Cap. VI: “Tentativas de renovação no século 20”). Quando se entra na leitura de cada um destes capítulos, é-se já não simplesmente instruído, mas conduzido, como que levado pela mão, e pressupõe-se que o leitor se encontre já num estado de maioridade intelectual que lhe permita entender sem grandes problemas de onde vem e o que teria podido pretender cada uma das peças colocadas em cena, bem como cada um dos actores que as representaram. ———————————

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M. Fontius: Kritisch/Kritik, in: K. Barck/M. Fontius/D. Schlenstedt/B. Steinwachs/F. Wolfzettel (Eds.), Ästhetische Begriffe. Historisches Wörterbuch, Estugarda, 2001, pp. 450-489.

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Há qualquer coisa de fascinante e de problemático nas visões panorâmicas próprias da reconstrução de um conceito. Além de todas as diferenças que os separam, em matéria de abordagem e metodologia, algo de comum liga entre si os dois dicionários referidos acima, e muitos outros ainda. O modo como cada um deles se entrega ao trabalho de configuração do conceito de crítica convoca imediatamente os termos da sua apropriação e reapropriação, isto é, as consequências directas da sua construção, divididas e repartidas por muitos lugares, ideias, figuras e movimentos. Ao que tudo indica, e tomando como ponto de referência estes dois exemplos, a crítica submeteu-se à sua análise crítica de livre vontade e sem resistência, foi criteriosamente domada, classificada e arquivada, e a sua história encontra-se a partir de agora (ou de então) constituída, até mais ver – ou seja, em termos ditos ‘científicos’, provisoriamente circunscrita e instituída, na espera apenas das adendas e actualizações por vir. Ora, sendo qualquer um destes dois dicionários considerado um exemplo exemplar, a contestação da sua autoridade, a refutação do seu método e das suas escolhas, e o próprio juízo crítico que pode ser usado contra ele (ser ou estar datado, incompleto, parcial) fazem dele um objecto ideal para pôr a descoberto os princípios correntes da historiografia, não tanto enquanto disciplina, mas enquanto modo de pensar e de agir. Para apreender o que isto significa, porém, seria preciso fazer de conta que alguém tivesse descoberto a crítica como quem descobriu a pólvora, que alguém se tivesse deparado com algo nunca antes visto, e se recusasse a sair do seu estado de pasmo perante a dita descoberta. Seria preciso, em suma, desconhecer ou ignorar candidamente a própria noção de evidência, e perguntar, no estado da mais pura infantilidade: o que é isto? Mas, mesmo no momento em que se tratasse de reter essa experiência primeira da crítica, estaria já em jogo, dentro de campo, a grande cilada da história. Qualquer glossário, qualquer dicionário que se dedique a tecer a história da crítica supõe necessariamente um gesto que é ele mesmo histórico, na medida em que se encontra situado na própria instância que procura situar o seu objecto. Para jogar frivolamente com as palavras: pela simples inevitabilidade de estar situado, esse gesto descobre-se sitiado, e um tal estado de sítio – agora dito já solenemente e sem qualquer veleidade – só pode dirigir-se à escrita da história. A essa escrita, por sua vez, da qual se pode esperar o melhor e temer o pior, chama-se, por convenção ou por decreto, historiografia. A tarefa fundamental da historiografia, traçada rente à sua função oficial, é na verdade a de executar a história, nos dois sentidos do termo: o de uma realização e o de uma eliminação. Por um lado, a historiografia tem de se cingir a uma articulação temporal que lhe permite dar conta dos movimentos (individuais ou colectivos, centrais ou marginais) capazes de entrever um desenvolvimento ou desdobramento (ascendente ou descendente, evolutivo ou regressivo) da noção de crítica. Por outro lado, para chegar a contemplar, a 18

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capturar ou resumir esses movimentos, ela tem de reconhecer por escrito que cada um deles, como bem diz a expressão popular, já “passou à história” no momento em que é impresso ou tornado visível. É esta, de certa maneira, e por outras palavras, não propriamente o dilema, mas a condição dolorosa, ao mesmo tempo exaltante e estrangulada, da historiografia, quer ela esteja disposta a admiti-lo ou não: no momento em que faz (a) história, a história já passou por ela; enquanto maquinação, possui os meios de re-fazer a história, mas nunca estará inteiramente refeita dela. Historiografia é o vácuo ou o espaço prensado entre as duas extremidades inalcançáveis da história da história de um conceito: a sua origem (ou pré-história) e o seu destino (a divinação da sua história por vir). O mesmo é dizer que, a longo termo, o confronto com as raízes, com as escavações e extrapolações semânticas ou figurativas do conceito que tem entre mãos, a historiografia parece não fazer mais do que aprisioná-lo num cubículo, no próprio instante em que procura pô-lo em movimento. Quanto ao resto, isto é, tudo aquilo que não pode alcançar, tudo o que há de originário e de visionário nesse conceito, pode ser visto tão-só por uma pequena nesga, dado sob a forma de um vislumbre. Aqui, as causas primeiras são sempre segundas, as segundas sempre terceiras, e o que poderia parecer uma banalidade – o fundo inexaurível, infindo da crítica – pode ser em vez disso olhado como o núcleo frutífero, exponencial do problema. Para isso, seria preciso inverter os planos, tornar prosaico o que é dado como metafísico, ou translúcido o que se encontra cifrado. Qualquer “história da crítica” terá sempre cabeça, tronco e membros – encontrará sempre a sua lógica. Mas, por mais compacta e sólida que possa ser, por mais imaculada que seja a sua aparente coordenação, por mais bem-sucedido que seja o seu desejo de síntese, o que ela procura verdadeiramente estará sempre, contra a sua vontade ou apesar dela, acima das suas capacidades. A génese de um conceito é irredutível à sua metamorfose. Qualquer transformação que ele possa sofrer ou pôr em marcha será sempre devedora e refém da sua origem, a primeira e a última, simplesmente porque, em última análise, mesmo o melhor dos historiadores e feitores da história a desconhece. Nenhum artifício da etimologia, nenhuma força narrativa da história das ciências, nenhuma fenomenologia da linguagem, nenhuma fábula consecutiva das “concepções da crítica”, nenhuma recapitulação ou ensinamento básico das chamadas “grandes narrativas” ou “concepções do mundo”, ensinadas à luz da “crítica”, bastariam para levarem até ao historiador esse conhecimento, essa razão suficiente, ou essa obscuridade que se basta a si mesma, e por isso se esquiva a qualquer domesticação.

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A genealogia, uma divindade crítica A vontade de cingir um conceito cujo nome é derramado e espalhado a toda a hora e por todo o lado torna inimaginável a sua elucidação absoluta ou categórica. Da mesma forma, nenhum projecto historiográfico pode fazer justiça à complexidade das manifestações individuais do seu objecto, e nunca se deixará resumir num sentido derradeiro ou conclusivo, incluindo o da sua historicidade. À superfície, porém, a história é outra. De cada vez que a ambição de uma tal historiografia da crítica aparece moldada no modelo de um traçado genealógico ou arqueológico, no gráfico sequencial feito de articulações e progressões que se encaixam umas nas outras na mais intocável perfeição, pedra sobre pedra, isso significa que a crítica (o nome) voltou a estar necessitada da crítica (o conceito), e que a sua história tem de ser reescrita. Neste terreno, e olhando em volta sem defesas, tudo indica que o termo crítica prossegue o seu ciclo de vida sem incómodos aparentes. A arte, o ofício da crítica são em si mesmos apenas uma parte de uma engrenagem abstracta e no entanto imediatamente compreensível. Esta última reparte-se depois segundo as regras da divisão e da serialização historiográficas das diferentes transfigurações por que passou, entretanto esquecidas e de quando em vez relembradas, nos tempos mortos da ‘evolução’ das ciências, em nome do bem-estar destas últimas, ou para fins puramente recreativos, museológicos ou estatísticos. É verdade que a crítica tende a expandir-se para todos os lados e em todas as direcções, mas as suas definições em queda não conduzem ao caos, antes se especializam sempre e cada vez mais. O seu sentido activo tem preso aos calcanhares a sua passividade potencial, que coloca essas definições diante de uma escolha impreterível: ou se disciplinam, ou não tardará muito até serem disciplinadas por mãos alheias. Por si só, isso explica por que razão não é em nada difícil fazer da disparidade, da dispersão ou da ubiquidade uma narrativa genealógica. Pelo contrário, ela serve mesmo de prova, de demonstração de que a identificação de uma coisa (‘a crítica’) tem sempre de ser indissociável do seu objecto – o qual jaz fora dela, e anula assim a sua identidade própria, isto é, a sua ‘identidade’ como ‘própria’. Neste quadro, o processo de classificação pode variar, mas, pelo ângulo do quantificável, o registo contínuo, a ‘indexação’ das definições que geram as disciplinas e os domínios de estudo, a regra da sua divisibilidade – são dados à partida. No interior do discurso dito científico, a diferenciação entre as formas distintas do ‘discurso crítico’ foi rapidamente incorporada na dinâmica interna de oposições, contraoposições e cruzamentos vários que constituem esse mesmo discurso. Desde então, ele passou a incluir também o seu próprio sistema auto-reprodutivo de categorias e tipologias da crítica, que, sem saberem muito bem o que fazer quando se descobrem frente a frente com o papel que lhes teria sido dado representar, são postas a correr umas atrás das outras na ilusão feliz do progresso e da superação. 20

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Enquanto o regime de categorias é tornado visível por padrões comportamentais, ditos qualitativos, o tipológico é determinado por imperativos disciplinares. Em matéria de categorias (ou propriedades), o plano do método é o indício de muitos deslizamentos. Categorias geram subcategorias, que por sua vez se entrecruzam e tendem a multiplicar-se. A crítica, por definição negativa, pode ser apreendida como tímida ou intimidante, contida ou expansiva, fechada ou aberta, hermética ou transparente, implícita ou explícita, elementar ou composta, estática ou variável, determinista ou relativista, canónica ou dissidente, doutrinária ou anarquista, prescritiva ou caótica, académica ou popular, analítica ou poética, imperativa ou dialogante, panfletária ou conciliante, abstracta ou concreta, absoluta ou relativista, simbólica ou literal, analítica ou poética, discursiva ou minimalista. Enquanto crítica, pode por exemplo representar-se a si mesma como destrutiva, polemista, e guardar em si o elemento construtivo, normativo ou exemplar. Em última análise, e consoante a intensidade com que é exercida, o seu fundo argumentativo pode tornar-se tudo aquilo que, dada a sua determinação primeira, estaria nos seus antípodas: crítica categórica, canónica, ortodoxa, dogmática, despótica. Em contrapartida, o modelo tipológico distingue-se pelo seu regime territorial. Mas, tal como no caso precedente, há de tudo, para todos os gostos: crítica textual, bíblica, filológica, epistemológica, gramática, literária, jornalística, estética, formalista, semiótica, religiosa, científica, histórica, política, artística, sociológica, positivista, empírica, empirista, imanente, realista, racionalista, fenomenológica, antropológica, estruturalista, pós-estruturalista, desconstrutivista, psicanalítica, pré- ou pós-psicanalítica, arquetípica, marxista, neo-marxista, anti-marxista, pós-marxista, revisionista, modernista, pós-modernista, feminista, pós-colonialista, etc. Se neste menu improvisado alguma coisa estiver incorrecta ou fora do lugar que lhe convém, nunca será tarde para acrescentar o que está em falta, subtrair o que nele se encontra em excesso, ou dividir o que parece demasiado indistinto. É claro que a simples enumeração de todas as entidades, subjectivações ou objectivações presentes pode tanto ser acusada de leviana quanto de cansativa, imprecisa ou excessivamente vaga. Mas tal não impede o reconhecimento de que, de uma perspectiva arquivista, a historiografia tenha feito o seu trabalho de maneira que tudo estivesse ou acabasse bem, arrumado no seu lugar (sem esquecer uma cláusula de excepção para qualquer deslocação imprevista da ordem hierárquica ou de sucessão de cada unidade). Daí decorre que a crítica apareça muitas vezes representada como mais um “ismo” entre outros, dependendo da língua que se fala: um movimento, uma escola, um sinal dos tempos, isto é, de um único tempo fixo e fixado a si mesmo, de uma geração, de uma construção ou de um diagrama que aguarda apenas o seu enquadramento global, para ser encaixilhado em divisões e compartimentos próprios, e guardado como uma relíquia – de maior ou menor valor. Da Essência – Crítica e História |

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São tantos os fios deste novelo, que é possível, mas no fim de contas também indiferente, decidir por qual deles é preciso puxar, e de que lado caberia fazê-lo. Nasce-se emaranhado numa teia de limites, que entretanto se fizeram fronteiras, e de fronteiras que se tornaram barricadas. Em qualquer dos casos, será sempre dada, a cada um e a cada qual, a oportunidade de se desembaraçar de outros tantos enredos, para logo a seguir se enredar em muitos e constantes embaraços. O historiógrafo – de formação ou de ocasião, académico ou endémico – é aquele que melhor souber contar a história das relações e transições que ligam entre si esses fios. Em matéria de proveniência, será sempre pouco prudente, como se descobre facilmente folheando alguns compêndios, manuais e estudos individuais, mais ou menos minuciosos, pretender aceder por exemplo à superficialidade do New Criticism sem perceber primeiro de onde vem e ao que vem a palavra ‘criticism’; ou querer chegar à “nouvelle critique” sem espreitar a motivação revolucionária do seu ‘antes’ e desenterrar as querelas públicas do seu ‘depois’, como ficou claro no célebre ensaio de Roland Barthes Critique et vérité, que começa como um libelo e acaba sob a forma de um pequeno tratado sobre o discurso do crítico como “um lugar intermediário entre a ciência e a leitura”; ou imaginar o surgimento do racionalismo crítico sem uma ideia clara do empirismo lógico; ou intuir o significado da Critical Theory sem acentuar a sua diferenciação da Kritische Theorie; ou ver-se frente a frente com esta última sem repensar a fundo a crítica da ideologia ou da economia política em Marx, e o enraizamento de tudo o que foi escrito por este último em Hegel ou na história da filosofia em geral; ou ter algo a dizer sobre a Doutrina da ciência de Fichte, ou sobre as Cartas sobre o Dogmatismo e o Criticismo de Schelling – para nomear dois exemplos maiores – sem uma compreensão profunda do significado do projecto crítico de Kant, iniciado em 1781 com a publicação da Crítica da razão pura; ou começar por qualquer um destes nomes sem remontar à noção de diakritike techne, a arte da separação ou distinção descrita por Platão; ou observar a vastidão desta ideia sem considerar o que se esconde ainda antes dela. Mais uma vez, a simples gratuidade ou leviandade que pode existir na menção solta, como que avulsa destes exemplos, cujo teor sinóptico quase poderia ser dito romanesco, é suficiente para mostrar a que extremo o uso da noção de “crítica” se presta, ao longo de séculos, a toda a espécie de apropriações, e, por conseguinte, pensando agora nos exemplos incontáveis que faltaria ainda nomear, a todos os equívocos imagináveis. Tal não se explica apenas pela sua tendência universal, ou em virtude do carácter instrumental que possa ter assumido essa palavra, mas pelos efeitos daí decorrentes, isto é, pela abundância de sentidos e de formas em que ela passa de cada vez a rever-se e a legitimar-se a si mesma. E, assim, não é de admirar que possa parecer redundante ou irrisório reviver ou rever a multiplicidade de enunciações da crítica através de anos, decénios e séculos: o seu efeito de 22

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múltiplo leva a própria definição – categoria ou tipologia – a fazer de si mesma algo de supérfluo ou desnecessário. Cada um desses enunciados tem de falar por si, mas também por todos os outros, isto é, na relação de identificação ou de diferenciação que o liga a todos os outros. Qualquer genealogia – que por si mesma é já um corpo desdobrado e mitificado, uma espécie de divindade do método em estado de constante mutação – o confirma, ao esbarrar sempre com o plural de que ela mesma é feita. Com todos os vícios – de psicologia e de método – que arrasta atrás de si, a adoração crítica da genealogia e da arqueologia representa apenas um de muitos epifenómenos que, dito de modo um pouco mais drástico, se encontram agrilhoados à pergunta vaga ou indeterminada pela “crítica”, no seu sentido expansivo, como fundamento do juízo ou da decomposição de tudo o que lhe surge no caminho, e da sua aplicação a qualquer disciplina, a qualquer domínio específico, a qualquer superfície visível ou habitável da terra, do mundo, do universo. Fiel a si mesmo, o modelo genealógico-arqueológico não tolera grandes descontinuidades, ou prevê a disposição das mesmas em rupturas bem arrumadas, escalonadas segundo uma lógica de sobreposição, que adiciona ou subtrai, de acordo com um esquematismo muito próximo das ciências ditas ‘exactas’: uma tese, uma posição sucede a outra, vindo regularmente polir, reparar, substituir ou destituir aquela que a antecedeu. O paradigma instituído da ‘mudança de paradigma’ é violento e teatral apenas à primeira vista: no seu cerne, ele constitui a história pacífica de uma crença voluntária na evolução científica. Quer se trate da crítica da filosofia ‘em geral’, da crítica da política ou da arte ‘em particular’, para escolher ao improviso três exemplos maiores e devidamente vacinados, rapidamente a intenção se vê submergida pela hiperdimensão do problema, e o estudo das origens e do fim, do primeiro e do último sopro de uma palavra, é engolido pela sombra de um inapreensível a que é impossível escapar. Definidas as categorias, traçadas as tipologias, pouco ou nada interessa saber se o que teve lugar foi uma transição pacífica ou uma ruptura. Mais do que qualquer outra coisa, é preciso não esquecer que as configurações históricas para qualquer um destes conceitos compostos da crítica dependem apenas de um termo de ligação, e que, também aqui, o ponto decisivo continua a ser o acto não de remoer uma massa, mas de roer uma corda que não tem fim. Essa roedura não é mais do que o confronto do conceito histórico com a (história da) realidade.

Crítica e crise A recusa de uma separação entre crítica e prática é revivida e reactivada sempre que se levanta de novo a invocação de uma época como caída ou mergulhada numa crise, perante Da Essência – Crítica e História |

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a qual pode ou não existir uma saída. A lógica marcial de causa e efeito que se apresta a apresentar o diagnóstico dessa crise – e, por vezes, a chave da sua superação – adquire algo de quase diáfano num estudo de Reinhart Koselleck, publicado pela primeira vez em 1959, cujo título dá por assim dizer o tom da equação que irá introduzir: Crítica e crise. Um estudo da patogénese do mundo burguês. Esta dissertação, que se tornou entretanto uma obra de referência, dita incontornável, deve uma grande parte da sua celebridade – na Alemanha o livro foi sucessivamente reeditado desde a sua primeira publicação, e entretanto traduzido em várias línguas – ao carácter altissonante desse título, e à ligação que estabelece entre os dois termos de que é composto. Tanto o estrépito que a obra de Koselleck conseguiu criar em seu redor, quanto a aura de actualidade potencial que traz em si, justificam de várias maneiras que ela se tenha tornado ‘leitura obrigatória’ em qualquer pesquisa sobre o conceito de crítica. A ideia de uma causalidade fatal entre ‘crítica’ e ‘crise’, em que uma é declarada como o pressuposto da outra, não só parece ter sido apelativa para todo o século XX, como mostra continuar a sê-lo intensamente. Tratando-se de dois conceitos que permanecem ‘na ordem do dia’, é compreensível que continue a ser sedutora ou provocadora a análise do “processo crítico” proposta por Koselleck, fundada numa ligação de raiz entre a “lógica da Aufklärung” e uma “dialéctica da crise”.21 Isso mesmo é comprovado não só pela perícia de frases categóricas e lapidares – “Na crítica jaz dissimulada a crise […] A crítica é o presságio da crise”22 –, que indiciam o acorrentamento de um conceito pelo outro, mas pela facilidade que existe em imaginar a ampliação ou aplicação de tais princípios ou máximas ao horizonte da “crise política do presente”.23 Ora, antes de cair nessa tentação, que no mínimo, como era costume dizer-se noutros tempos, traz água no bico, é preciso ver de que argumento se trata, no tratado original, e só depois, como é costume dizer-se nos tempos de hoje, ver de que maneira é ou não possível ‘instalar a aplicação’. A tese principal de Koselleck, que a uma primeira leitura apresenta vários traços em comum com obras como a Dialéctica da Aufklärung de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, tem por base a análise histórico-filosófica de um período e de um fenómeno determinados – a “crítica do século XVIII”, isto é, a crítica praticada durante a Aufklärung, precisamente, enquanto época fundadora da crítica no sentido estrito –, e procura encontrar ou desvelar as consequências históricas do seu “ponto de mobilização” ou do seu “significado político” 24, quer no contexto do Estado absolutista, quer para além dele. ———————————

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Reinhart Koselleck: Kritik und Krise. Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt (1959), Frankfurt a.M., 1973, pp. 80, 96, 80. Op. cit., pp. 86, 154. Op. cit., p. 9. Op. cit., pp. 7, 12, 3.

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Contrariamente às narrativas tradicionais, Koselleck não vê no desenvolvimento da Aufklärung – um termo, de resto, e como é sabido, cuja expressão unívoca e generalista pode sempre ser posta em contraste com a complexidade e especificidade geográficas da sua manifestação – algo de positivo, linear ou unilateral, mas antes uma ambivalência de fundo, de tipo conceptual e estrutural, com resultados nefastos, e em parte irreversíveis, para todo o tempo histórico que lhe sucede. O seu objecto é claramente o “desenvolvimento da instância crítica na sua relação oposta ao Estado”, e o centro do seu interesse, quando enumera, enquanto historiador, as “etapas da crítica”, de Pierre Bayle (o autor do Dictionnaire historique et critique de 1685) a Kant, permanece focado na tentativa de clarificar a “importância política crescente acordada ao conceito de crítica no século XVIII”.25 Através de uma exposição dura e complexa, mas fluente e aliciante, Koselleck mostra como a separação do domínio do juízo moral e do poder político revelou ser ao mesmo tempo a condição e a consequência da “crítica política”.26 Após o fim das guerras religiosas, que assinala a constituição do Estado absolutista, ficou aberto o espaço para a sua “consequência intrínseca”, a saber, a ascensão económica e social da elite burguesa e da consciência crítica, cuja expressão permaneceu no entanto restrita ao discurso privado, impossibilitada de qualquer responsabilidade ou actuação política de relevo. Só no momento em que ocorre a transposição da “representação da totalidade” e da finalidade morais para a “esfera da política estatal” e da “acção política”, se dá a ver a “função crítica” inerente ao princípio dualista da visão do mundo. Nesse ponto, em que o dualismo de raiz entre sociedade e Estado, consciência crítica e realidade política, se torna uma “função da crítica política” e é posto ao serviço desta última, vem à tona a “dialéctica específica” dessa “viragem para o político”.27 Essa viragem não depende de um movimento directo de substituição de uma instância por outra, mas de um “exercício indirecto de violência”, ou, mais precisamente, de uma “ocupação implícita”28 do poder do Estado. Aí residiria a “lógica da inversão”, a astúcia que distingue a “arte política” própria da Aufklärung, a especificidade da sua dialéctica, que se move rasteiramente entre o segredo e a aparência: ela opera a sua ambição de acção política a partir da sua aparente “legitimidade apolítica”.29 O dualismo torna-se literalmente um jogo duplo: ao manter a aparência de um discurso moral politicamente insignificante e restrito ao domínio privado, a Aufklärung manipulou e fez jogar a seu favor o dualismo entre moral e política, na origem uma criação do próprio Absolutismo, e fez assim com que este último acabasse minado a partir do seu interior. ———————————

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Op. cit., pp. 87, 102. Op. cit., pp. 85-86. Op. cit., pp. 11, 73, 72, 76, 86, 84, 80. Op. cit., pp. 79, 77. Op. cit., pp. 78, 75, 79.

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A partir do instante em que a cisão entre moral e política se virou contra o próprio Estado que a tinha instituído, estavam geradas as condições para algo de irrefreável e catastrófico. Pois o “encobrimento do político”, a táctica de dissimulação e camuflagem dos “planos políticos” da Aufklärung, levada a cabo em nome de uma aparente “inocência moral”30, criou uma tensão entre o social e o político que acabou mesmo por conduzir à queda do Estado absolutista e ao lado mais sombrio da história (a Revolução Francesa de 1789, o Terror), e assim à “crise política que encerra o século XVIII”31, mas com repercussões muito para além desse período histórico. Seria este o primeiro grau da “ambivalência”: a incapacidade manifestada pelo “processo crítico da Aufklärung” em geral e pelo “género específico da crítica” praticado no século XVIII, em reconhecer ou assumir em toda a sua extensão o “sentido político” da crise que ele próprio invocou e originou. O efeito paradoxal de auto-ilusão ou de autocensura próprio do “processo rigoroso da crítica”, entretanto espalhado por todos os “domínios da vida”32 – a Teologia, a História, o Estado, a Arte, a Jurisprudência –, viu-se na impossibilidade de acompanhar, fora do âmbito do juízo privado, os acontecimentos que ele próprio ajudou a desencadear. O imperativo da secularização, o tribunal da razão e a jurisdição absoluta da crítica racional acabaram por capitular perante as lutas sociais que eles próprios tinham provocado. Uma a uma, as jóias da coroa da racionalidade crítica foram expostas, e mais tarde depostas, na praça pública. A luta pela tolerância, pela liberdade de pensamento e do diálogo, a recusa da ortodoxia religiosa, a contestação dos privilégios da nobreza, o empenho em assegurar direitos cívicos inalienáveis, e acima de tudo a proclamação exuberante da ideia de um progresso ilimitado e infinito, privaram do seu movimento cíclico natural a própria história, que foi primeiro abafada, e depois determinada pela filosofia da história promovida pela Aufklärung, condenada a representar as suas construções utópicas como sombras projectadas num futuro indefinido, sempre ainda por realizar. Nisso consistiria a “autogarantia”33 da crítica, tanto quanto a falsa ingenuidade, voluntária e involuntária, aparente e inaparente ao mesmo tempo, intrínseca aos princípios fundamentais da Aufklärung. É a partir desta incapacidade de ditar o prognóstico da “dialéctica de um processo político”, ou de realizar a “transformação da mera crítica nos modos de conduta políticos”34, que Koselleck parte para a sua denúncia da (consciência) crítica da Aufklärung como raiz e pressuposto de uma crise histórico-política extrema, desastrosa e ostensiva a longo termo para toda a história europeia e mundial. ———————————

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Op. cit., p. 79. Op. cit., p. 81. Op. cit., pp. 5-6. Op. cit., p. 90. Op. cit., X (Prefácio).

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O segundo grau de “ambivalência” não é já apenas o correlato dessa dissonância, dessa avaliação errónea da importância do sentido ou do “limite” político no processo histórico, mas decorre necessariamente dele, enquanto fenómeno próprio da Aufklärung tardia. Uma vez estabelecida – em aparência – a “posição política” da crítica, instaurado o “processo crítico” como apuramento da verdade, e o alargamento da competência da crítica como a instância que ocupou – em aparência – o lugar do Estado, o “reino da crítica” descobriu-se a si próprio como o único “detentor potencial do poder político”.35 É aqui, neste entendimento de si da crítica como instância política consumada, na convicção de uma soberania ilusória mas prepotente, que a vocação primeira da crítica, o “desmascaramento contínuo do outro”, não pode senão conduzir à “cegueira do próprio desmascarador”.36 Intensificada ao máximo, forçada até ao limite do absurdo, a crítica “produz a sua própria ofuscação”, fica presa num “erro não superado”: a sua presunção é igual à sua falsidade, o juízo crítico reduz-se ao nivelamento incontrolado de tudo o que aparece à sua frente. Tudo conflui, para a crítica, numa “alienação ideológica”– e esta última não é mais do que o sinal da sua “degeneração”, tornada visível no seu “embrutecimento na hipocrisia”.37 A “hipocrisia histórica” da Aufklärung corresponde ao momento em que a crítica “sucumbe à aparência da sua neutralidade”, ou seja, o momento no qual passa a corresponder ao ponto máximo de intensidade da “separação crítica entre moral e política”, concentrado na exigência recíproca da consciência crítica utópica (a filosofia da história do progresso infinito) e da “incerteza da crise” que deriva precisamente da “violência da utopia”.38 As implicações e consequências históricas graves desse movimento são a prova do lado potencialmente nocivo do “fermento da crítica”39 próprio da Aufklärung, e do modo como a “demarcação de limites entre moral e política”40 está na raiz do estado de catástrofe e de crise permanente que se tornaria visível em todo o mundo moderno, em particular após a Segunda Guerra Mundial. Se a atracção do quadro engendrado e encenado por Koselleck foi maior e mais persuasiva do que qualquer das acusações de que foi objecto – sob os epítetos de conservador, pessimista, ou simplesmente reaccionário –, isso não aconteceu por acaso. Nas alterações que foi introduzindo às edições sucessivas da sua obra, Koselleck reviu os parâmetros da sua análise histórica, e resituou as consequências nefastas da Aufklärung fazendo alusões a circunstâncias históricas próprias do século XX, como o nacional-socialismo, a Guerra ———————————

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Op. cit., pp. 103, 90, 102. Op. cit., p. 100. Op. cit., pp. 99, 102, 97, 198-199, 102. Op. cit., pp. 103, 82, 72, 154, 140. Op. cit., p. 7. Op. cit., p. 81.

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Fria, a ameaça nuclear. Fê-lo quase sempre em nome de uma análise por assim dizer retrospectiva e estrutural das condições que conduziram a tais fenómenos. Mas a sua tese fundamental permaneceu inalterada, e o mesmo aconteceu com o seu método. Este facto não é de estranhar, se se admitir que a razão para a ressonância e imposição contínuas deste livro, ao longo de mais de meio século, não passa apenas pelo seu conteúdo e pelas teses que o dominam, a saber, a análise histórico-crítica da crítica “iluminista”, e do modo como os seus becos sem saída se exteriorizam na realidade histórica posterior. Acima de tudo, é o carácter estratégico da metodologia através da qual são expostas essas posições que as torna profundamente sedutoras para o tempo presente. Quando, no decorrer da sua dissertação, Koselleck insiste na discussão sobre o “significado político da crítica”, para ele sinónimo do “significado político da Aufklärung”41, é feita alusão de modo directo à analogia e à “origem comum” entre crítica e crise: ambas as noções derivam do grego kríno (dividir, escolher, julgar, decidir; entrar em conflito, lutar, agir). Uma nota chama a atenção para um desnível, sentido com maior intensidade a partir do século XVIII: em termos gerais, a importância ascendente da crítica na vida da comunidade teria reduzido ou limitado a “crise” (krisis) ao seu sentido médico, teológico ou jurídico, ainda e sempre entendido como juízo, processo, tribunal.42 Também aqui, a narrativa historiográfica – ela própria fundada em autoridades máximas como os dicionários de Zedler, Adelung, Grimm, Littré, J. Murray, ou em dicionários acreditados da língua grega como o de Pape ou o de Lidell-Scott – corresponde a uma divergência do que antes estava unido: Krisis significa em primeiro lugar separação e conflito, mas também a decisão, no sentido de um martelar definitivo quer de uma sentença, quer de uma condenação em geral, o que hoje recai no domínio da crítica. Os significados hoje separados de uma crítica ‘subjectiva’ e da crise ‘objectiva’ eram ainda apreendidos, em grego, com um conceito que era comum aos dois.43 É significativo que estas considerações sejam apresentadas numa nota de rodapé, convertida em nota final, como se a sua integração no texto central pudesse perturbar a coerência interna deste último. Isso torna-se ainda mais peculiar quando se considera que a densidade do que aqui é dito não é em nada irrelevante para o regime dialéctico – “em si mesmo dialéctico”, como afirma Koselleck a propósito da cisão entre moral e política enquanto “estado de coisas histórico”44 – no uso dos conceitos. Sendo a conciliação do ele———————————

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Op. cit., pp. 85, 3. Op. cit., p. 198. Op. cit., p. 197. Op. cit., p. 85.

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mento subjectivo (a crítica filosófica ou moral) com o elemento objectivo (a crise política) um resíduo do mundo antigo, dado como inacessível e propenso à nostalgia pessimista, resta saber como lidar com a divisão em acto do conceito: a todo o momento, a crítica predispõe-se a contrariar a sua determinação primeira (dividir, separar) para fazer convergir (concentrar, unir) as polaridades que tem diante de si. Tudo volta assim, de um modo ou de outro, ao início.

Crise e crítica A fundamentação teórica, histórica ou retórica da crise, como aquilo que vem despertar a crítica da sua letargia, para a sacudir com violência, revela ser, de forma paradoxal, o correlato exacto do seu oposto. A crise como repetição de si mesma, sob diferentes formas e condições, corresponde à estagnação, que é suposto sofrer o ataque – ou morder o anzol – da crítica. Também sob este aspecto, o título da obra de Koselleck não é inocente, mas ainda mais revelador do que poderia parecer. Crítica e crise pressupõe, como foi visto acima, o condicionamento recíproco que liga as duas noções entre si, o qual tem pouco ou nada de pacífico. Para o bem ou para o mal (da historiografia), o seu diagnóstico (da crise) do tempo presente é sustentado por uma condenação (da crítica) do passado. Trata-se de uma análise da “patogénese” do mundo moderno, como indica o subtítulo, ou seja, de um exame que toma o passado como ponto de partida para explicar o presente, e o presente como ponto de fuga para regressivamente chegar a “esclarecer” a sua condição à vista das condições do passado. Em última análise, o seu objecto é sempre duplo, não apenas a um, mas a vários níveis. Por um lado, o historiador faz sua a tarefa de observar e explicar a crise do mundo moderno como consequência da crítica tal como foi praticada na Aufklärung, e confunde assim causa, sintoma e efeito – embora não necessariamente por esta ordem, e sobretudo não ingenuamente, de acordo com a sua “lógica específica”. Por outro lado, o facto de um tal estudo não ser apenas historiográfico, mas também especulativo, e não excluir do seu intento um certo grau de “abstracção”45 trai em grande medida o rigor e a neutralidade exigidos para fundamentar a objectividade da sua posição. E, por fim, importaria constatar ou repetir para si mesmo que essa posição começa e termina com um veredicto claramente moral sobre uma incapacidade política, e que, assim sendo, a tese principal de todo o livro – os malefícios históricos decorrentes da instrumentalização radical da separação de moral e política, e a compreensão das consequências da função crítica da Aufklärung como reflexo da ———————————

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Op. cit., IX (Prefácio).

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DA CRÍTICA ANDREAS ARNDT CHRISTIAN BERNER JUDITH BUTLER JOÃO PEDRO CACHOPO BRUNO C. DUARTE RODOLPHE GASCHÉ DIOGO SARDINHA MÁRCIO SELIGMANN-SILVA DENIS THOUARD

[…] e o que devo dizer em primeiro lugar a propósito desta época? A mesma época em que também nós temos a honra de viver; a época que, para tudo dizer numa palavra, merece o modesto mas significativo nome de época crítica, de modo que muito em breve tudo será criticado, com a excepção da própria época, e tudo se tornará sempre mais crítico, e aos artistas ser-lhes-á permitido nutrir a justa esperança de que a humanidade se eleve enfim em massa e aprenda a ler. Friedrich Schlegel

DA CRÍTICA

A nossa época é a verdadeira época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem geralmente esquivar-se a ela. Mas desse modo provocam contra si mesmas uma justificada desconfiança, e não podem reivindicar o sincero respeito que a razão concede apenas aos que podem suportar o seu livre e público exame. Immanuel Kant

DA C R Í T I C A edição e organização

Bruno C. Duarte

É muito provável que o problema central da crítica não seja, em primeira instância, o de definir qual o seu conteúdo, a sua função ou a sua finalidade, mas sim o de discernir o limite do confronto com a composição e decomposição formais do seu núcleo. De uma forma ou de outra, a constituição do conceito enquanto conceito regressa continuamente do sentido partitivo e reflexivo do nome, descobre na crítica algo que volta da crítica – e aí reside a sua maior dificuldade.

A palavra crítica exorta à crítica, a palavra faculdade do juízo ao julgar; nenhuma delas é dada ou arrendada a quem quer que seja. J.G. Herder A crítica nem sempre dá provas do seu olhar aguçado; ignora frequentemente as manifestações mais insignificantes. Karl Kraus

Há uma diferença entre dar-se conta da omnipresença (soletrada ou implícita) da noção de crítica no pensamento ‘contemporâneo’ – dito assim, mais uma vez, por falta de um melhor ou de um pior termo – e tentar apreender essa noção como um conceito unido a si mesmo. Inversamente, há uma diferença entre procurar a crítica e dar de caras com ela. É precisamente na tensão trazida por essa diferença que se torna necessário encontrar a coragem ou a imprudência de enfrentar a questão: que experiência é possível ter da “própria crítica”? É nesse ponto que é preciso recuar, por um instante que seja, e, antes de enunciar ou lançar qualquer juízo sobre a relevância e a necessidade, isto é, sobre o presente e sobre a presença da crítica, tentar encontrar ou reencontrar a percepção que é ainda possível ter desse conceito por si mesmo e junto a si mesmo, na sua individualidade.

com o apoio

D O C U M E N TA


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