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E SE PARร SSEMOS DE SOBREVIVER? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo
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André Barata
E SE PARÁSSEMOS DE SOBREVIVER? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo
D O C U M E N TA
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Índice
E se parássemos de sobreviver? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 A ditadura do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Passado: nome da acumulação da desigualdade. . . . . . . . . . . . . . . . 23 Futuro: uma ideia com futuro incerto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 «Nada de longo prazo!» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Trabalhar não é assim tão bom… Mitos do trabalho assalariado . . . 41 Teses por um RBI, mas não qualquer um . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Para acabar com a economia política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 E se deixássemos às máquinas a produtividade? . . . . . . . . . . . . . . . 63 A boa tecnologia não explora, apanha boleias . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 O melhor das nossas propriedades é podermos tirá-las do mercado 75 Verdade e democracia — outras duas vítimas da ditadura do tempo 81 A liberdade de nascer e de morrer: para pararmos de sobreviver . . . 97 Façamos greve ao tempo! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
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Agora é o movimento do relógio que estabelece a cadência das vidas dos homens: eles tornam-se o servo do conceito de tempo que eles próprios fabricaram, paralisados, como Frankenstein, pelo medo do seu próprio monstro. É óbvio que uma dominação tão arbitrária das funções humanas pelo relógio, ou qualquer máquina, estaria fora de questão numa sociedade livre e sã — a dominação do homem pela criação do homem é ainda mais ridícula que a dominação do homem pelo homem. O tempo mecânico seria relegado à sua verdadeira função, de instrumento de referência e coordenação, e o homem voltaria a uma visão equilibrada de vida, já não dominada pelo culto do relógio. Liberdade completa implica romper com a tirania das abstracções tanto quanto com as leis do homem. George Woodcock, A Tirania do Relógio
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Aos meus pais, reformados felizes O meu pai sempre usou bons relógios. Não como peças de jóia, mas dispositivos muito fiáveis, que duravam décadas. Há não muitos anos, já reformado, ofereceu-me o seu melhor relógio, presente que me sensibilizou muito porque julgava conhecer o que para ele significava o relógio. Mas estava, pelo menos em parte, enganado. Verdadeiramente só passado algum tempo percebi a intenção deste presente do meu pai. Numa conversa à sombra em tempo de férias minhas, já este livro pronto, contou-me que no seu primeiro dia de reforma decidira tirar o relógio do pulso, guardá-lo na gaveta e que, desde então, nunca mais usou relógio. Só nesse momento percebi que me passava o sentido do que fora, para ele, a vida de trabalho. Sobretudo, passava-me o sentido da questão que se pensa neste pequeno livro.
agradecimento Todas as ideias e frases neste livro foram pensadas com a Vera, companheira de pensamento e de vida.
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E se parássemos de sobreviver?
Já foi dito por muitos, mas é preciso insistir e tornar em acções a denúncia da incompatibilidade, que é de princípio, entre capitalismo e sustentabilidade, entre um sistema que só se sustenta criando desequilíbrios e a urgência de uma viragem ecológica para a regulação de um equilíbrio. Fala-se do antropocénico e com razão: impressiona o registo geológico que a presença humana deixará no planeta Terra e impressiona o contraste entre o tempo humano contado em anos, décadas e séculos, e o tempo geológico contado em milhões de anos. Por aí se vê a violência do desequilíbrio que a nossa presença significa para toda a existência em redor. Mas fora esse efeito, sem dúvida útil para uma urgente pedagogia da contenção, o antropocénico é apenas mais um estádio que depressa será devorado pela compulsão para o crescimento. Não passarão muitos séculos até ocuparmos o sistema solar todo, como sucedeu com os continentes, eventualmente musealizando a Terra, a ponto de não ser inconcebível que esta se salve a troco de perigos sempre cada vez mais vastos. Por isso, não deve ser o antropocénico a balizar a discussão sobre a nossa existência desequilibrada (as categorias geológicas não têm alcance suficiente), mas sim o que realmente nos move de forma tão destrutiva: uma organização sócio-económica que nos coloca sempre na posição sobrevivencial, justificando a mobilização de todos para um processo de crescimento que nada tem que ver com o amadurecimento e a emancipação que se espera de pessoas crescidas, mas com algo semelhante a uma doença cancerígena. E se parássemos de sobreviver?
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Para compreender a contradição em que nos embrulhámos, planeta incluído, é preciso desmontar criticamente ideias feitas, fortemente incrustadas num senso-comum que tem muito mais de produzido do que de espontâneo. A primeira ideia feita é a de que o capitalismo é um sistema de equilíbrio concorrencial, que confere uma justa oportunidade a quem quer que tenha a vontade e a determinação de a apanhar. Esta perspectiva é enganadora. No capitalismo são relevantes para a criação de oportunidades de lucro os factores de inovação — mas ligados cada vez mais à criação de novas necessidades, numa dinâmica global e intensiva de consumo amplamente impulsionada pela mediacracia planetária —, que nos fornecem a cada passo uma qualquer vantagem. Mas são sempre vantagens transitórias, transitoriedade que compele à criação de novas vantagens transitórias, num movimento de fuga para a frente e de expansão. Se no capitalismo a falta de inovação resulta em fracasso é precisamente por se tratar de um sistema económico incompatível com um equilíbrio concorrencial. Acesso diferenciado à informação, à tecnologia, aos recursos são exemplos de ingredientes que desequilibram a concorrência, criando uma oportunidade motivadora de lucro. O desequilíbrio é pois o bem transitório a perseguir sempre, porque gera lucro. E que deixando de ser perseguido determina a derrota concorrencial. Os imperativos são: inova, cresce, ganha uma vantagem… ou morre. Daí que o capitalismo não seja, por razões intrínsecas, compatível com uma época de equilíbrio e de pós-crescimento que se torna urgente fazer acontecer. A segunda empenhada produção de senso-comum a desmistificar tem que ver com a presunção de que nos libertámos civilizacionalmente da lei da sobrevivência. Outra grande ilusão. Apesar de toda a desnaturalização histórica dos humanos, que conseguiram escapar à lei da sobrevivência no sentido mais literal que preenche o quotidiano e é condição de 14
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existência de todas as outras espécies, nós como espécie interiorizámos essa lei, através de um simulacro que é a luta pela vida, a labuta, e que já não é exactamente a da sobrevivência natural, no sentido de uma luta pelos recursos da água, da comida e pela possibilidade da reprodução, mas a luta por rendimento e statu quo, nossos intermediários do acesso a recursos de sobrevivência. Daqui decorrem quatro consequências que deveríamos não querer. Primeiro, o centro da nossa vida continua a ser a sobrevivência. Mesmo aqueles que estão em posições socialmente favorecidas, por fortuna ou dons, são levados a escolher uma lógica de sobrevivência como sentido de vida. O lazer, a preguiça, e todas as outras coisas que gostaríamos de fazer ficam postas em posição secundária, antecâmara tolerada de uma retomada da actividade dominadora. Segundo, sobrevivemos sozinhos numa espécie de solipsismo naturalizado da vida humana, como se fôssemos os únicos seres realmente activos de um ecossistema artificial. O resto é musealizado, tendência de fixar realidades num tempo-espaço inactivo, por exemplo em parques e reservas naturais, com que temos um contacto sem vida, apenas de memória de uma vida, conteúdo de programas de sábado de manhã, da National Geographic ou similares. Terceiro, verdadeiramente não damos outro horizonte de existência às restantes espécies além de um de sobrevivência das próprias espécies enquanto tais. Esperamos do seu risco de extinção a justificação da nossa migração da sobrevivência natural para a artificial e a justificação para as proteger de consciência tranquila. Quarto, induzimo-nos, neste solipsismo sobrevivencial, não só a afastar os «outros» não humanos que já só com aspas podem ser chamados assim, como a depender deles cada vez menos, a transcendê-los. Na proporção em que nos isolámos numa lógica sobrevivencial exclusiva, e nela nos tomámos como sujeitos únicos do mundo, dessubjectivámos tudo o resto, inactivámos todos os «outros» do mundo, e perdemos E se parássemos de sobreviver?
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o fio das relações com tudo o mais no mundo e com o próprio mundo. Tornámo-nos pós-mundo. O que fazer? O mais revolucionário a fazer é: começar a parar. E a pergunta revolucionária deve ser «porque continuamos a sobreviver?», não no sentido de a sobrevivência ser inverosímil e nos devermos perspectivar em vias de extinção, mas sim no sentido de que a melhor garantia da nossa sobrevivência como espécie é pararmos de nos comportarmos como sobreviventes. Somos induzidos a sobreviver quando deveríamos optar por viver. Importaria que nos pensássemos não como já estando num processo catastrófico, dentro de um cataclismo planetário, mas, tudo ao contrário, como já estando na posse de todos os meios para deixar de ter a sobrevivência como sentido de vida.
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A ditadura do tempo
Vivemos uma ditadura do tempo. Não é uma tirania das maiorias nem das minorias, não é uma ditadura do relativismo, nem um fundamentalismo despótico ou outros fantasmas do medo nos nossos dias, mas sim uma ditadura impregnada na realidade quotidiana mais próxima e que, por isso, quase passa despercebida. O tempo que vivemos socialmente e a que nos conformamos como se a vida fosse assim, com as suas dificuldades próprias, a assumir adultamente, é na verdade uma construção pouco natural, muito intrusiva e com uma intencionalidade muito própria. São três as conformações impostas ao tempo. Uma concepção do tempo sócio-económico como uma continuidade férrea e sem falhas, materializada por uma juridificação das nossas relações com o passado e com o futuro. Uma aceleração da vivência do tempo para a qual somos compelidos, à força, por um sistema que percebeu que a aceleração é a melhor garantia de não descolarmos do tempo. Uma concepção do tempo de vida como mercadoria, que faz da actividade social e individualmente realizadora que o trabalho deveria ser para as pessoas uma redução delas à categoria abstracta de seres mais ou menos produtivos. Todas estas três conformações do tempo — contínuo e sem falhas, acelerado, medida de produtividade — são as componentes de um dispositivo que garante, como se tudo fosse absolutamente natural, justo e livre, uma acumulação ilimitada. E se parássemos de sobreviver?
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Tempo sem entropia — uma apropriação da concepção do tempo Em grande medida, os autores do nosso tempo presente já morreram, agindo por eles a memória dos seus direitos de propriedade e a sua riqueza. Hoje, diante de uma desigualdade cada vez maior, pode dizer-se que cada vez mais pessoas nascem despojadas da capacidade de encarar o seu tempo como um tempo de que são autoras. Sob a batuta da desigualdade e da acumulação, o que vale, acima de tudo, é uma memória, sem fissuras, de dívidas e de heranças — sem paralelo em mais nenhum plano da vida humana. Noutros planos da nossa vivência, a memória convive com o esquecimento, a culpa convive com o perdão, a dominação com a libertação. Não encontramos um paralelo sequer nos fenómenos naturais, nos quais o princípio da entropia dita que a energia reutilizável é sempre menor do que a energia gasta. Dentro dos limites de uma mera analogia, falta ao tempo social contemporâneo descobrir e pôr em prática a sua lei da entropia. Ou seja, criar mecanismos de dissipação da acumulação, por exemplo, de dissipação parcial das heranças na forma de herança social. Georgescu-Roegen, o percursor da crítica ao crescimento económico e percursor da noção controversa de decrescimento, evocava, já no início dos anos 70 do século passado, a pertinência de se aplicar a segunda lei da termodinâmica à economia. Muito antes, num célebre ensaio da Genealogia da Moral (1887), Nietzsche chamava a atenção para que os humanos têm uma faculdade de esquecimento, além da faculdade de memória, mas que esta faculdade de esquecer estava sendo esquecida1. ——————————
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A pertinência de um referência ao ensaio de Nietzsche foi apontada pelo filósofo político Maurizio Lazzarato em La Fabrique de l’homme endetté — Essai sur la condition néolibérale. Paris: Éditions d’Amsterdam, mas também por nós em Primeiras Vontades. Lisboa: Documenta, 2012.
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O aprisionamento das vidas na memória absolutamente conservada do passado económico, que lhes determina no essencial a condição actual, paradoxalmente respalda-se na teoria política dita libertarista. Foi logo Robert Nozick, também nos anos 70, quem pressupôs, na sua maneira de considerar o tempo, a interdição de qualquer entropia, esquecimento, desperdício ou perda, garantindo-se assim as condições para uma concepção estritamente processual da justiça social. De acordo com esta, uma distribuição de recursos é justa única e exclusivamente se foi legitimamente adquirida e transferida. Assim quaisquer considerações redistributivas para além das da justiça da aquisição e da justiça da transferência são anuladas, seja qual for a realidade social que chegue aos nossos dias. Na verdade, muito mais do que a justificação de um Estado mínimo em detrimento de um Estado social, este sequestro do presente e do futuro pelo passado é o maior legado dos libertaristas1 ao neoliberalismo. Se o Estado pode passar a ser apenas mínimo, e inexistir além da garantia do funcionamento da memória dos actos legais, é porque a dominação migrou para fora do Estado, estando distribuída numa apropriação da concepção do tempo. ——————————
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É importante não confundir os libertaristas com os libertários. Estes, como aqueles, suspeitam do Estado, intrusivo, controlador, dominador. Por isso concordam em querer menos ou mesmo nenhum, quase nenhum, Estado. Mas há uma divergência incontornável e que os põe em lados muitos opostos. Os libertários abjuram a propriedade que serve à dominação social tanto quanto o Estado, os libertaristas, pelo contrário, sacralizam a propriedade, verdadeiramente intocável, tanto quanto detestam o Estado. Aliás, a animosidade destes para com o Estado assenta precisamente na recusa que o Estado toque na propriedade. Os libertários, pelo contrário, vêem na propriedade que se acumula e se transmite em herança a materialização dos mesmos propósitos dominadores que atribuíram historicamente ao Estado com todos os seus poderes. O que Proudhom escreveu em 1840 — a propriedade é um roubo! — só ganha todo o sentido e actualidade quando o direito à propriedade é posto no altar absoluto em que os libertistas o colocam.
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O tempo como meio social homogéneo E é preciso acabar de vez com um enorme equívoco. Se Marx e os marxistas em geral têm razão quanto ao facto de o capitalismo ter criado valor à custa da força de trabalho de quem não tinha outra forma de se sustentar, valor que reparte com desvantagem para os trabalhadores, tal, porém, não basta para concluir que o trabalho humano é o único dispositivo de criação de valor. Provavelmente, não é possível formular uma teoria completa do valor, porque tudo pode ser factor de valor. É claro que Marx quis salientar a dependência do capital face ao trabalho. Daí ter pensado este último na forma abstracta de tempo de trabalho médio socialmente necessário, uma espécie de contraparte do próprio capital. No fim de contas, a distribuição do capital não seria mais do que a história do valor extraído do trabalho, que por sua vez não seria mais do que o capital em movimento na sociedade. O facto de podermos dizer que nem todo o valor veio do trabalho não significa um maior direito do capitalismo aos seus lucros. Não deixa de haver uma expropriação na proporção inversa da concentração de riqueza. Mesmo não havendo um único trabalhador! Significa antes que, ao contrário do que assume o marxismo, o capitalismo não é ameaçado por uma sociedade do fim do trabalho assalariado. O trabalho assalariado não tem o estatuto de contraparte do capitalismo e a sua abolição não vai ser a abolição do capitalismo. E se o trabalho pode representar uma importante forma de integração social, não é por ser assalariado e assim estar mobilizado na luta contra o capital, mas é mesmo porque individual e socialmente o trabalho pode ser realizador. Qualquer outra concepção de trabalho é demasiado pobre para merecer ser defendida como um direito das pessoas.
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Para acabar com a economia política
A ideia de um rendimento básico incondicional leva já 500 anos de história, se a fizermos remontar à Utopia de Thomas Morus. Mas, como procurei mostrar, encontra hoje condições excepcionais para nos colocar diante de uma escolha: ou um mero ajustamento sistémico face às actuais condições de produção económica ou uma ruptura que vai muito além do sistema económico vigente e pode aprofundar o ideal da emancipação humana. Esta tomada de partido deve, porém, ir mais longe e exigir ao próprio pensamento político que complete uma transição. Do pensamento político moderno para o contemporâneo, a questão central transitou dos termos da formação, delimitação e legitimação do poder político, com os contratualistas modernos — começando por Thomas Hobbes, espécie de Descartes da filosofia política —, para os termos em que politicamente se aceita, ou não, a dominação social, nomeadamente a dominação mantida através da desigualdade na posse de capital. Com essa transição, a autonomia do político esbateu-se diante das perspectivas do liberalismo económico e do socialismo que, à parte do facto de terem passado a definir os contornos da discussão e da divergência política, tiveram sempre um ângulo que as aproximava. Ao presumir que a perseguição do interesse próprio realiza o melhor interesse comum, a chave-mestra da mão invisível tratou de dispensar, mesmo contra uma maior subtlileza reconhecida ao pensamento de Adam Smith, uma acção própria e autónoma pelo bem comum. Por seu turno, a doutrina do traE se parássemos de sobreviver?
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balho assalariado como exploração do homem pelo homem punha a nu, em sentido diametralmente oposto, como a promoção do bem comum é impedida pelos interesses particulares defendidos por um sistema de dominação social exercida economicamente. Em nenhum dos casos se defendia a autonomia do político. A autonomia passa a ser privilégio da economia, quer seja movida por uma sociedade civil liberal quer por uma economia estatalmente controlada. Sem autonomia, a política deixa de poder ser pensada fora dos limites de uma economia política. A este propósito, não podia ser mais luminosa a síntese que o notável economista trotskista belga Ernest Mandel dá da teoria do valor-trabalho de Marx numa contribuição sua para um volume sobre economia marxiana de 1990: «The ‘law of value’ is but Marx’s version of Adam Smith’s ‘invisible hand’.» Todavia, esta tutela contemporânea da política pelo advento da economia política vai mais longe: não se fica por uma perda de autonomia da política, segue na direcção de uma extinção paulatina da política. Enquanto economia política, a política está condenada ao que Hannah Arendt considerou uma contradição nos termos, por misturar a acção, que é liberdade pública do plano político, com a esfera da necessidade, ordem privada do plano económico. Algures pelo século XVIII, a política passou a gerir-se pelo interesse, tornando essencial saber se é perseguido o interesse comum ou o interesse particular, quando esse, apesar da sua importância, deveria ser um aspecto secundário. A política já está perdida a partir do momento em que é o interesse que a guia. A racionalidade do interesse não escolhe, antes demonstra sob a presunção da escolha já feita, falhando no aspecto crucial da política, que é a escolha colectiva livre. Esta fica subordinada à manipulação da massa de escolhas individuais. Na passagem a uma concepção do bem comum como interesse comum há já uma capitulação da política diante da economia, ou da liberdade do agir diante da ordem da necessi56
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dade. Uma democracia do interesse, mesmo se comum, só se pronuncia sobre os melhores meios, nunca realmente sobre os fins que quer colectivamente. A escolha, na democracia, não pode ser apenas um ponto de partida pré-político que há que receber passivamente, dando-lhe expressão democrática. Deve ser também construção democrática, plural e dialogada, de escolhas colectivas, que nem sequer têm de ser sempre as mesmas, ou as mesmas para toda a eternidade. Em suma, uma democracia que tenha na escolha não apenas um ponto de partida que lhe é estranho, mas o cerne da sua vida, não pode ser apenas uma democracia do interesse, mesmo se comum. A actualidade parece contudo consolidar aceleradamente uma nova grande transição, na qual ecoa o protesto de Hannah Arendt contra a economia política e contra o primado das relações económicas no mundo da acção livre. Marx teve razão historicamente, ao distinguir entre emancipação política e emancipação humana (em Sobre a questão judaica, 1843) dando-se conta de como o movimento emancipatório não poderia quedar-se nos direitos políticos e formais, perfeitamente consistentes com um quadro social de dominação através das relações económicas. Mas olhando sob a perspectiva de uma nova transição, não a teve de forma definitiva. Se a dominação social se materializa por uma relação económica, a emancipação não tem de se fazer por outra relação económica, mas pela emancipação da vida política, enquanto praxis colectiva de perguntas e escolhas sobre como queremos viver juntos, face às determinações das relações económicas. Para isso, movimentos pela emancipação humana devem romper com o mecanismo pelo qual a economia chama a si o direito àquelas perguntas e escolhas, absorvendo a política pela domínio da economia política, na verdade uma dominação. Esse mecanismo consiste em colocar todos os membros da comunidade numa posição tal em que está em causa, pelo menos do ponto de vista percebido por cada parte, não o E se parássemos de sobreviver?
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seu viver, mas a sua sobrevivência. Desligitimar este ângulo de vista, distender uma esfera da escolha livre além da ordem da necessidade, significa desactivar-lhe a hegemonia. Restabelecer uma esfera política não determinada por aspectos económicos, mas, pelo contrário deles determinante, ganhar espaço à economia política, circunscrevendo-a na mesma medida que paremos de subscrever lógicas sobrevivenciais, significa reassumir a autonomia do político, mas também a capacidade de escolher políticas económicas. Num trocadilho de palavras, trata-se de passar da economia política à política económica. O que se diz das relações entre economia e política pode dizer-se, com amplo paralelismo, das relações entre rendimento e trabalho. Há que emancipar o trabalho, enquanto actividade humana livre, do trabalho assalariado, como há que emancipar a política da economia política. Não há trilema entre parar de sobreviver, acabar com a economia política e acabar com o trabalho assalariado. Há sim um dilema entre manter estas três formas da contemporaneidade política ou ir acabando com todas as três, mesmo se devagar, experimentando largá-las, assumindo os compromissos necessários nesse sentido, numa lógica que derrote o sobrevivencialismo — mesmo no modo de agir contra ele. Com excepção de um ponto: não pararmos de sobreviver é provalvemente o caminho mais certo para muito literalmente, e também muito ironicamente, se pôr em causa a sobrevivência, levados por uma espiral desastrosa dos pontos de vista social e ecológico. Levada suficientemente longe, a emancipação humana deveria libertar o trabalho não apenas da exploração pela mais-valia, mas de qualquer salário, trazendo-o para a acção criativa e realizadora, relacional e livre, independente dos grilhões da necessidade económica que qualquer vida humana tem de satisfazer. Por outro lado, só incorrendo em dois grandes equívocos se pode esperar que, por via da possível transição para uma sociedade do fim do tra58
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balho, a dominação social deixe de se exercer. Primeiro, o motor fundamental do capitalismo não é, como crê o marxismo, a exploração do trabalho, mas a exploração do capital, acumulado, concentrado e mais excluído dos que nele já não tinham parte. Uma sociedade do fim do trabalho não é necessariamente uma sociedade do fim do capitalismo. O que nos exige superar a tese substancialista de que só o trabalho vivo produz valor. Haverá capitalismo enquanto o sistema produtivo servir a reprodução de capital, faça-se esta com ou sem trabalho humano. Segundo: também a dominação não está impedida de se recriar além da dominação capitalista. No passado assumiu outras formas, todas elas mediadas pelo trabalho enquanto actividade forçada para uma parte maioritária da sociedade. O trabalho escravo, o trabalho servo e, finalmente, o trabalho assalariado, também ele forçado (ainda que não obrigado) na medida em que é único meio de acudir às necessidades de subsistência para uma vasta maioria social. Todos rearranjos de uma dominação que, numa época de direitos iguais, se fez por riquezas desiguais, juridicamente conservadas por protecções inquebráveis, mas em épocas anteriores se fez por direitos desiguais ou ausentes. Só ingenuamente se pode crer, pois, que a alteração das forças produtivas que temos vivido eliminará por si só a dominação. Por isso, não basta libertar o direito a um rendimento do dever de trabalhar a troco de salário. É precisa uma dupla libertação, que enquadre uma política económica de rendimento básico fora do ditame da economia política. Ou seja: libertação do rendimento face ao trabalho, mas ao mesmo tempo, libertação do trabalho face ao rendimento. Sem esta, o sistema não só preserva os efeitos da dominação, como garante ainda uma maior independência face aos cidadãos. Libertar o direito ao rendimento justo da exigência de trabalho rompe com um esquema de dominação social milenar tão incrustrado que dificilmente o próprio senso comum concebe outro trabalho senão o que E se parássemos de sobreviver?
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é exigido pela necessidade de subsistência. A troca é um ingrediente fundamental na vida social, o que não dispensa um mercado e exige rendimento, a ser assumido como um bem social essencial. Não é errado equiparar o direito a um rendimento básico a outros direitos proporcionados pelo Estado social, como os direitos universais à saúde e à educação. Mas, se um RBI liberta individualmente não é apenas porque a opressão do trabalho forçado se exerce sobre indivíduos. Deve libertar colectivamente de um sistema de dominação, capacitando para a participação activa, e não por conformar os indivíduos a uma outra passividade, a do consumo de massas. É nesse sentido que o RBI deve contribuir, num quadro mais amplo de políticas públicas para contrariar um sistema de exploração do capital que tem por finalidade o aumento da desigualdade. Diluir a desigualdade, desde logo numa repartição universal de capital, o suficiente para contrariar a intencionalidade motora do sistema produtivo que tem como condição essa desigualdade, deve ser um objectivo que recoloque em questão a finalidade da produção — em condições que são já de manifesta produção viciada, pois não se produz para acudir necessidades, antes se produzem necessidades para acudir à produção. E que assuma a força destrutiva de um sistema produtivo que não tem sucesso a não ser em desequilíbrio, com a sua dependência cancerígena de permanente crescimento. A reivindicação de uma homeostasia criativa do sistema produtivo deve estar no coração de uma ecologia económica incompatível com o capitalismo, mas não menos com a ideia de uma economia política de que este sistema de produção não é único promotor. Não há que ter ilusões: o sistema produtivo ganha eficiência e torna-se menos perturbável excluindo trabalhadores da produção, pessoas que são também sujeitos políticos, portanto, potenciais contestadores de uma ordem que poderão avaliar como injusta. A automação pode “libertar” de maneiras não emancipatórias, por exemplo libertando o sistema produtivo 60
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n o ta Grande parte dos textos que aqui se publicam, agora de forma mais sistematizada, resultaram de versões anteriores publicadas em pequenos ensaios de jornal ou revistas culturais (Jornal Económico, revistas Electra e Cintilações). Evitou-se fazer, com raras excepções, citações e usar aparato crítico, seja na forma de notas seja na de referências bibliográficas. As obras que influenciaram o que aqui se pensa são simplesmente mencionadas ao longo do texto, com indicação da data de publicação.
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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © ANDRÉ BARATA, 2018 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2018 ISBN 978-989-8902-32-0 DEPÓSITO LEGAL 447344/18 PUBLITO – ESTÚDIO DE ARTES GRÁFICAS PARQUE INDUSTRIAL DE PINTANCINHOS, 4700-727 BRAGA