José Bértolo «Espectros do Cinema – Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues»

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E S PE C T RO S D O C I N E M A Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues


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José Bértolo

ESPECTROS DO CINEMA Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues

D O C U M E N TA


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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia IP no âmbito do projecto UIDB/00509/2020


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Para a Maria


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introdução

Espectros no cinema, espectros do cinema

Et quand il fut de l’autre côté du pont, les fantômes vinrent à sa rencontre…

Histórias de fantasmas Num castelo medieval, um homem apresenta uma mulher a um cavaleiro. Este ajoelha-se e beija a mão à donzela, a qual se transforma numa bruxa. Na verdade — o espectador já o sabia —, o homem que cumpre o papel de intermediário é um demónio, e a mulher é um espectro invocado por ele. Esta é uma das várias aparições com as quais o cavaleiro é forçado a lidar ao longo dos três minutos que dura este filme. Le Manoir du diable é realizado em 1896 e é, portanto, uma das primeiras obras de Georges Méliès e, por conseguinte, da história do cinema. Este é, também, o primeiro exemplo de uma série de filmes realizados por Méliès em que entidades sobrenaturais marcam presença. Durante todo o período em que o cinema é «de atracções», tal como Tom Gunning o apelida (2006) — isto é, em que é atracção de feira, situacional e espectacular, com uma dimensão narrativa reduzida ao mínimo —, Méliès e os seus sucessores realizam inúmeros filmes de cariz fantástico, povoados de criaturas mágicas, que encenam acontecimentos extraordinários1. Com a instauração do modelo narrativo na recta final da década de 1900, através do sucesso obtido com as obras de cineastas como D.W. Griffith ou Louis Feuillade, o panorama da produção cinematográfica sofre alterações significativas. Tal como faz notar Hugo Münsterberg, um dos primeiros teorizadores do cinema, o modelo narrativo requer uma maior «sofisticação» dos processos, tanto de produção quanto de recepção __________ 1 O período a que me refiro começa em 1895 e prolonga-se, grosso modo, até 1908. Esse é, segundo a proposta de Gunning, o período do cinema de atracções, e a periodização que operacionalizo aqui. Contudo, Musser (2006) questiona a proposta de categorização de Gunning, propondo que o cinema só foi puramente «de atracção» entre 1895 e 1897, justamente porque, a partir de então, uma ideia de continuidade narrativa começa a imiscuir-se na concepção dos filmes.

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(1916: 28-29). Segundo essa concepção da evolução do cinema, este deixa de consistir sobretudo num meio que visa provocar espanto — quer através das suas vistas lumièrianas, quer através da magia mélièsiana —, passando a procurar captar a atenção do espectador durante um período de tempo mais extenso (dado que a duração dos filmes também aumenta), o que requer, segundo a proposta de Münsterberg, uma deslocação do domínio da sensorialidade mais epidérmica para o do intelecto. A transição entre os dois paradigmas de cinema aqui identificados não é, naturalmente, abrupta, nem deve ser entendida enquanto uma quebra efectiva. Segundo de Chomón, o seguidor mais célebre de Méliès, realiza em 1908 La Légende du fantôme, um longo filme de catorze minutos sobre aparições e desaparições. Contudo, aqui, tal como noutros filmes «protonarrativos» (dos quais o exemplo mais reconhecível é Le Voyage dans la lune [A Viagem à Lua], realizado por Méliès ainda em 1902), a narrativa parece ser, na verdade, um pretexto para que os truques e os passes de magia possam acontecer. A partir da década de 1910, criaturas sobrenaturais passam a integrar as histórias cinematográficas de uma forma mais orgânica e complexa. A título de significativo exemplo, podem referir-se filmes como Daydreams (1915) e After Death (1915), de Yevgeni Bauer, em que os fantasmas de mulheres mortas regressam para junto dos homens que amaram em vida. Em filmes como estes, o espectro já não sobressai sobretudo através da sua potência «atraccional», mas é alvo de um aprimorado trabalho ao nível da sua operacionalização narrativa. Paralelamente, o fantástico começa a adquirir a forma de um género cinematográfico, ganhando expressão, em particular, no cinema expressionista alemão e na galeria de criaturas inumanas que com este se erige: o autómato em Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, 1920), o golem em Der Golem (O Golem, de Carl Boese e Paul Wegener, 1920), o vampiro em Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (Nosferatu, o Vampiro, de F.W. Murnau, 1922), ou o Doppelgänger em Der Student von Prag (O Estudante de Praga, nas suas duas versões, de 1913 e 1926). Estas são criaturas que, por sua vez, dão continuidade a um imaginário que é desenvolvido na literatura, a partir do século XVIII, não só na Alemanha2, como também em países como os Estados Unidos da América, França, ou até Portugal, englo__________ 2 Lotte Eisner encontra a origem do cinema expressionista na literatura romântica alemã: «Faz sentido argumentar que o cinema alemão é um desenvolvimento do Romantismo Alemão, e que a tecnologia moderna apenas atribui uma forma visível às fantasias românticas» (Eisner 2008: 113). A tradução das citações ao longo deste livro é sempre da minha autoria, excepto nos casos devidamente identificados na lista bibliográfica final.

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bando autores como Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Leonid Andreiev ou Álvaro do Carvalhal (que Manoel de Oliveira adapta, em 1988, em Os Canibais). A mais ubíqua das criaturas, no entanto, é o fantasma, que atravessa a história do cinema, em particular, como nenhuma das outras que enumerei, marcando presença não só no cinema fantástico ou de terror, mas também numa acentuada diversidade de géneros, da comédia ao melodrama. A título de exemplo, pense-se no cinema da Tradição de Qualidade Francesa (Sylvie et le fantôme [Sílvia e o Fantasma], 1946, de Claude Autant-Lara), no cinema clássico americano de inspiração gótica dos anos 1940 e 1950 (The Portrait of Jennie [O Retrato de Jennie], 1948, de William Dieterle), no cinema japonês da Nuberu Bagu (Ai no bôrei [Império da Paixão], 1978, de Nagisa Oshima), no cinema popular dos anos 1980 e 1990 (Truly Madly Deeply [Um Fantasma no Coração], 1990, de Anthony Minghella), ou na obra de cineastas contemporâneos como Christian Petzold (Yella, de 2007, uma variação sobre Carnival of Souls [O Circo das Almas], realizado por Herk Harvey em 1962) ou Apichatpong Weerasethakul (Loong Boonmee raleuk chat [O Tio Boonmee Que Se Lembra das Suas Vidas Anteriores], de 2010). O livro que aqui apresento é dedicado à obra de dois cineastas — Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues — que entroncam nesta tradição de filmes em que os fantasmas adquirem indubitavelmente alguma forma de figuração, através de obras — tais como O Estranho Caso de Angélica (2010) ou Odete (2005) — nas quais os mortos (nos casos referidos, Angélica e Pedro) regressam para junto dos vivos. Contudo, um olhar sobre o índice revela, desde logo, outros filmes — Benilde ou a Virgem Mãe (1975) ou O Fantasma (2000), por exemplo —, em que os fantasmas, na forma como foram canonizados no conjunto de filmes que referi (isto é, enquanto criaturas inequivocamente associadas ao domínio do sobrenatural), não marcam presença. Isto pode suceder porque, como verificaremos de seguida, a espectralidade do cinema não precisa necessariamente do sobrenatural ou do fantástico para ser equacionada.

O cinema, essa coisa espectral No número de Abril de 2001 dos Cahiers du Cinéma, é publicada uma entrevista com Jacques Derrida, realizada por Antoine de Baecque e Thierry Jousse e intitulada Introdução |

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«Le cinéma et ses fantômes». Os fantasmas deste título, no entanto, não são apenas os fantasmas que povoam os filmes — aqueles a que me reportei atrás —, mas sim, e sobretudo, aqueles de que o próprio cinema é inerentemente feito e que o (e nos) assombram. Os fantasmas do cinema, portanto. Desta diferença, entre fantasmas no cinema e fantasmas do cinema, dá conta o próprio filósofo: O cinema pode colocar em cena a fantomalidade [fantômalité] de forma evidente, é certo, como uma tradição do cinema fantástico: os filmes de vampiros ou de fantasmas, certos filmes de Hitchcock… [Mas] é necessário distinguir isso da estrutura espectral da imagem cinematográfica. (Derrida 2001: 77) Derrida explicita assim a ideia — central no trabalho que aqui introduzo — de que, lide ou não com a figura do fantasma, o cinema é um meio de representação marcadamente espectral. Em O Cinema ou O Homem Imaginário, Edgar Morin desenvolve um argumento semelhante. Comentando a emergência do fantástico no cinema através da obra de Méliès, o autor escreve que «[o] fantasma não é uma mera eflorescência. Desempenha, sim, um papel genético e estrutural» (Morin 1980: 52). Mais recentemente, num artigo em que traça a genealogia espectral do cinema, Alan Cholodenko refere-se ao fantasma como a figura primitiva [ur figure] deste meio de representação. Ao apresentar o seu estudo, o crítico escreve: Uma premissa deste ensaio é que o espectro não só é uma figura tematizada no cinema, como seria a ur figure do cinema, caso este pudesse ter uma ur figure, e caso o espectro pudesse ser uma ur figure, uma figura que opera a todo o momento, a todos os níveis, e em todos os aspectos de todos os filmes, mas também ao nível do cinemático — ou melhor, animático — aparato cinematográfico. (2013: 100) Dos seus primórdios ao nosso tempo, o cinema tem sido equacionado teoricamente nos termos de uma espectralidade inerente3. Mas o que queremos, então, dizer quando caracterizamos o cinema enquanto arte espectral? __________ 3 Esta introdução pretende apenas convocar alguns casos emblemáticos. Uma análise extensiva, bem como uma crítica, desta tradição de pensamento pode ser conferida no capítulo «The Haunting of Film Theory» de The Modern Supernatural and the Beginnings of Cinema, de Murray Leeder (2017: 21: 44).

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Em primeiro lugar, e devido à sua matriz fotográfica, o cinema afirma-se como um reino em que os mortos podem encontrar uma forma de subsistência no mundo dos vivos. Desde as primeiras décadas do século XIX, a fotografia instala-se como o meio de representação paradigmático da figura humana, generalizando-se o retrato enquanto um dos géneros mais praticados desta arte. Enquanto cópia exacta das formas encontradas no real visível, a fotografia torna-se a mais justa imagem do mundo e dos seres, o seu duplo perfeito. No entanto, desde cedo estas imagens não são consideradas apenas na sua dimensão icónica, sendo-lhe atribuídos outros valores. Em particular, dada a proximidade singular da fotografia à vida, torna-se comum equacionar a primeira em articulações com a segunda que, hoje, não são evidentes para nós. Em particular, generalizam-se visões tipicamente oitocentistas da fotografia como algo que «subtrai» a vida aos seres. Maxime Scheinfeigel afirma que «no século XIX, alguns suspeitavam de que [a fotografia] era uma técnica diabólica capaz de roubar a alma às pessoas, de capturar a sua aura» (Scheinfeigel 2012: 134). Escrevendo ainda no século XIX, Félix Nadar conta que Balzac, para quem «cada corpo da Natureza [era] composto por uma série de espectros, películas infinitesimalmente finas, em camadas sobrepostas», acreditava que cada «operação daguerriana vinha […] surpreender, separar e reter uma das camadas do corpo sobre o qual se aplicava», daqui resultando um esfacelamento ôntico irreparável (Nadar 2017: 17-18). A fotografia torna-se, assim, um canal que liga a vida e a morte. Ao mesmo tempo que subtrai vida aos seres humanos que se sujeitam à captação da sua imagem, ela outorga-lhes a possibilidade de subsistir no mundo, enquanto imagem (em termos miméticos, numa cópia perfeita), para além da morte. Barthes sintetiza esta faculdade nas Nota sobre a fotografia (o subtítulo de A Câmara Clara) que escreve após o falecimento da mãe, ao propor que a fotografia cumpre «o regresso do morto» (Barthes 1980: 23). Este meio de representação insinua-se, então, enquanto instrumento de espectralidade, através da sua capacidade de oferecer à imagem das mulheres e dos homens — mas também das flores e dos objectos, etc. — uma vida póstuma: «todas as fotografias são memento mori» (Sontag 2005: 11). Isto verifica-se devido a uma natureza particular — a uma ontologia própria — assente em dois grandes paradoxos, um de ordem espacial (a presença inquestionável dos seres e das coisas na fotografia evidencia a sua ausência no plano do real) e outro de ordem temporal (o presente da fotografia faz-se Introdução |

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de um furto ao plano do real, que ocorreu num momento específico do passado). A fotografia anuncia-se, assim, por excelência, como uma arte dos limiares. Desta liminaridade é símbolo máximo a prática da fotografia espírita, que nasce quando William H. Mumler descobre a possibilidade de se expor duas fotografias na mesma placa. Trata-se do início da dupla exposição, que viria a ser celebrizada pela fotografia artística, e que, na sua configuração especificamente cinematográfica, recebeu entre nós o nome sobreimpressão. Na sequência da invenção de Mumler, diversos fotógrafos beneficiam da possibilidade técnica da dupla exposição para montar negócios que visam oferecer aos membros de uma vasta clientela a oportunidade de ficarem, para além da sua própria morte, registados em fotografias com os seus entes falecidos, os quais surgem na área visível da fotografia enquanto figuras no limite da perceptibilidade. Aquilo que me interessa aqui enfatizar neste género particular é que, através dele, a fotografia concretiza (ainda que ilusoriamente, ou ao nível do imaginário) a promessa de unir, no mesmo objecto, diferentes planos da existência — a vida e a morte —, que passam assim a coalescer simbolicamente num documento material, circulável, uma prova do contacto de mundos à partida cindidos. O fantasma na fotografia é a figura privilegiada desta correlação4. No seu estágio inicial, nos filmes dos Lumière, o cinema não parece acrescentar à fotografia muito mais do que o movimento. As coisas e os seres continuam a ser imortalizados na película, mas passam a poder ser percepcionados em movimento. De algum modo, o cinema anuncia-se como um novo desenvolvimento, paroxístico, da fotografia — «fotografias animadas», segundo Gorki (2008: 48) —, na medida em que exacerba o conjunto de características que acabo de descrever. Porém, se a fotografia tem um evidente carácter de «pseudopresença» (Sontag 2005: 12), o cinema — no seu movimento e, particularmente, no modo como força ao espectador a sua temporalidade («um tempo de leitura imposto» [Wollen 1984b: 118]) — começa a afirmar uma estranha forma de presença, e a potenciar a sugestão de que se trata de um mecanismo de representação que configura uma realidade autónoma, de tal forma que, conta-se, os primeiros espectadores terão fugido horrorizados de um comboio que chegava à estação na tela. __________ 4 Em Fotografia e Verdade: Uma História de Fantasmas, Margarida Medeiros faz notar que, à época, é comum indicar estas fotografias como «imagens de fantasmas» (2010: 162). A história da fotografia espírita, a que aqui aludo brevemente, é objecto de um estudo aprofundado neste livro da autora (2010: 154 e seguintes).

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Tal como escreve Morin, o cinema é, na sequência da fotografia, «o mundo dos duplos: dos mortos» (Morin 1980: 52). Contudo, o cinema possui características que o afastam terminantemente da fotografia. Já foi amplamente discutido o facto de, até ao advento do (não menos espectral) cinema digital, a imagem em movimento que se vê no ecrã se fazer através da ligação artificiosa de uma série de imagens fixas (vinte e quatro por segundo), impressas na película. Esta ligação cria a ilusão de movimento, que só tem lugar ao nível da projecção. Por conseguinte, ao passo que a fotografia tem uma existência matérica e espacial concreta — a fotografia está aqui, podemos segurá-la entre os dedos —, o cinema, que partilha com a fotografia a pré-existência em forma de «negativo», apenas se concretiza em acto, durante a projecção5. Neste acto (regressarei adiante a este termo, a propósito de Benilde ou a Virgem Mãe e Visita ou Memórias e Confissões, de Oliveira), espécie de happening, a aparição e a desaparição alternadas de imagens fixas criam a impressão de uma imagem em movimento numa superfície que está, no entanto, fisicamente intocada, por oposição à placa fotográfica ou à tela do pintor, cujas imagens têm uma componente matérica co-substancial. Com efeito, a matéria da imagem cinematográfica é a luz, que se torna a condição necessária para que a máquina projecte as formas sobre a superfície da tela, criando a possibilidade não só de se ver o filme, como de o próprio filme existir enquanto tal. Também a própria situação de assistir a um filme no cinema, cujo requisito primordial é justamente a projecção, se associa irremediavelmente ao domínio da espectralidade. Na sua entrevista, Derrida afirma justamente isto, associando a experiência de visionamento de um filme ao inconsciente, e considerando o inconsciente uma das moradas do fantasma: «a experiência cinematográfica pertence à espectralidade, que eu associo a tudo o que se pode dizer acerca do fantasma em psicanálise» (Derrida 2001: 77). O filósofo prossegue na analogia, afirmando, a propósito deste happening ligado de forma determinante aos domínios da percepção, da projecção, do espectáculo, que «numa séance, todo o espectador é posto em comunicação com um trabalho do __________ 5 Diferenciando a fotografia do cinema, Christian Metz reporta-se a esta mesma distinção, sublinhando «a dimensão espácio-temporal da lexis», isto é, «a unidade socialmente convencionada de leitura e de recepção» de cada um dos meios de representação. Segundo o autor, «a lexis fotográfica, um rectângulo de papel silencioso, é muito mais pequena do que a lexis cinematográfica», dado que o som, o movimento e os restantes atributos do cinema aumentam a sua lexis. Contrariamente ao cinema, também, a fotografia «não tem uma duração fixa (= uma dimensão temporal)» (Metz 1985: 81).

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inconsciente» (ibid.). Esta séance tem lugar na sala escura onde a luz projectada desenha no real (a sala: um lugar obscuro, um real em suspenso, aberto à percepção e à contaminação potenciadas pela projecção do filme) uma outra realidade, de luz (em termos matéricos) e sombras (em termos da precariedade ontológica da imagem). Percebe-se, assim, o duplo sentido do termo «séance» usado por Derrida: assistir a uma sessão de cinema — à projecção de um filme — é análogo a ser visitado por fantasmas, uma vez que «através da imagem projectada, tal como através da sugestão hipnótica, desenha-se uma dimensão espectral da realidade» (Campan 2014: 11). Tal como faz notar Fernando Guerreiro, a analogia entre o dispositivo de projecção e recepção do cinema e a caverna de Platão tem uma larga tradição no pensamento sobre esta arte enquanto coisa espectral: O Cinema, tal como a «gruta» de Platão, surge assim como um dispositivo de produção e projecção de espectros (simulacros de objectos reais) ou sombras (compostos incertos/híbridos de ser e não-ser); uma maquinação ela própria profundamente implicada, do ponto de vista do seu funcionamento e efeitos, nos planos do imaginário e do onírico, que permitiria ao sujeito aceder a possíveis do real (vida). (Guerreiro 2017: 11-12, ênfases do autor) Ir ao cinema implica, então, confraternizar com os espectros, ou ser assombrado, no sentido de ser coberto de sombra. E sendo o cinema essencialmente sombra e luz, ao assombrar-nos, ao cobrir-nos de sombra e luz, torna-nos, também, de algum modo, matéria de cinema. Comentando o efeito de assombração duplo que o cinema instaura — do filme ao espectador, e vice-versa —, Edgar Morin volta a sintetizar um conjunto de ideias que aqui tenho explorado: É um mundo que, para viver, necessita da nossa substância. No momento da participação, todas as personagens do filme são exteriormente determinadas, mas interiormente livres; têm duas dimensões, se bem que interiormente três: são exteriormente fantasmas, interiormente seres vivos. O que quer dizer que, também exteriormente, se apresentam em três dimensões exteriormente corporais, exteriormente livres. Vivem da vida que nos é sugada. Apoderaram-se da nossa alma e do 16

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nosso corpo, para os ajustarem à sua estatura, às suas paixões… Nós é que, na sala às escuras, somos os seus próprios fantasmas, os seus ectoplasmas espectadores. Olhamos, como mortos provisórios, para os vivos. (Morin 1980: 135, ênfase do autor) O conceito de fantasma afigura-se, assim, particularmente adequado para equacionar o cinema, uma vez que esta é uma figura que, tal como o cinema, parece situar-se em diversos limiares. Possuindo uma materialidade precária (o fantasma não tem um corpo em que se possa tocar, tal como não se pode tocar num filme; e, no entanto, há necessariamente algum atributo matérico que torna ambos inteligíveis), ele reside entre o matérico e o imaterial. Enquanto presença perceptível, ele é paradoxalmente caracterizado por essa mesma ausência de corpo. Provindo de um tempo anterior ao actual, ele anuncia-se como um traço do passado (Derrida fala de «traços de fantasmas» [2001: 78]) que, no entanto, se instala problematicamente no presente. É desprovido de vida, mas a sua condição de morto é negada pela manifestação da sua existência entre os vivos — o facto de ser visto ou sentido. Não tem vida, mas é animado. Na sua materialidade ténue, situa-se no limite que une o visível e o invisível.

Imagens e realidades Tal como sugerem Derrida e Morin, e tal como aqui tem vindo a ser sublinhado, este é um problema, em primeira instância, ontológico, ou seja, que diz respeito à própria natureza do cinema. Se comecei esta reflexão preliminar convocando Méliès, talvez pudesse tê-lo feito com o recurso aos Lumière, uma vez que a natureza espectral do cinema é comum a ambos. Se habitualmente se associa a «linha Méliès» ao fantástico e à ficção, associando-se a «linha Lumière» ao realismo e ao documentário, tal divisão não é, porém, tão operativa quanto possa parecer. Da porosidade entre as duas tradições dá conta o célebre texto de Máximo Gorki, publicado em 1896, em que o autor descreve as suas impressões após assistir a um programa de filmes dos Lumière. Depois de iniciar o texto afirmando ter estado num «reino das sombras», Gorki questiona o «efeito de real» (para retomar os termos de Barthes) do cinematógrafo: «Não é a vida, mas uma sombra de vida, não é o movimento, mas uma sombra de movimento» Introdução |

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(Gorki 2008: 48). Na sua extrema proximidade (icónica ou mimética) à vida, o cinema revela-se, afinal, como o avesso dessa mesma vida, um reino de sombras, como aquelas que os prisioneiros de Platão são condenados a ver, impedidos que estão de aceder ao verdadeiro real, o domínio das ideias. A denúncia de Gorki é justamente platónica, na medida em que nega às sombras, ou à imagem6, o estatuto de real. A analogia entre o cinema e a alegoria da caverna, associada tanto à memória da crítica que o filósofo grego tece à imagem quanto às minhas considerações prévias acerca da matéria do cinema, do dispositivo de projecção e dos efeitos do cinema nos espectadores, permite-me clarificar que, quando se fala de espectros e cinema, está a falar-se, sobretudo, da espectralidade da imagem (relembro Derrida: «a estrutura espectral da imagem cinematográfica»). As mesmas noções de imagem e de fantasma encontram-se, aliás, na raiz etimológica grega. Tal como lembra Gérard Simon, o termo mais comum para designar imagem, para os gregos, é eidôlon, que provém de eidon (ver): «O eidôlon é o que vemos como se fosse a coisa em si, ao passo que, na verdade, não é mais do que um duplo» (Simon 2004: 336). Inventariando ocorrências do vocábulo na cultura grega, o autor indica as sombras dos mortos no Hades, o duplo fantasmático de Helena que é criado por Hera na tragédia de Eurípides, os retratos ou as efígies «que põem diante dos olhos os ausentes, ou, enfim, o que se mostra num espelho e que na realidade não está lá» (ibid.). Em suma, na tradição grega, o eidôlon associa-se à ilusão, por oposição ao eidos, a forma bela e verdadeira que, em Platão, devém ideia. Ainda segundo Simon, Epicuro usa o plural eidola para designar os finos revestimentos de átomos emanados da superfície dos objectos, que viajam até aos nossos olhos, tornando possível a sua percepção, essa «espécie de duplos peregrinos [que] permanecem invisíveis durante o seu trajecto, e que estão na origem da imagem mental ou phantasia, que permite validar ou não o que vemos» (ibid.). A imagem mental, ou a fantasia, estão também no centro de alguma teoria de cinema, em particular no âmbito da psicanálise (cf. Gonçalves 2013). Na referida entrevista a Derrida, inclusiva__________ 6 Não obstante a caverna de Platão consistir sobretudo numa alegoria do conhecimento, ela pode também ser lida numa perspectiva estética, desenvolvida, nomeadamente, à luz do pensamento do filósofo acerca da imagem no Livro X de A República. A propósito deste assunto, cf. o estudo de Nathan Andersen (2014) sobre a natureza do cinema à luz de Platão e Peretz (2008), em que o autor traça uma nova abordagem às imagens cinematográficas, fenomenológica, a partir da ontologia platónica.

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mente, o filósofo estabelece a ligação entre cinema e psicanálise, retomando então as palavras que proferira num filme de 1983, Ghost Dance, de Ken McCullen, onde, respondendo longamente à pergunta de Pascale Ogier7, «Acredita em fantasmas?», Derrida avança, primeiro, que «o cinema é uma arte de fantomaquia [fantômachie] […] é uma arte do deixar voltar os fantasmas», e prossegue, dizendo: «Tudo isto deve ser tratado hoje em dia, parece-me, numa troca entre a arte do cinema, no que ela tem de mais inaudito, de mais inédito, afinal, e alguma coisa de psicanálise. Creio que cinema + psicanálise = ciência do fantasma». Na verdade, na tradição psicanalítica, os termos fantasia e fantasma convergem, tal como indicam Laplanche e Pontalis no seu Vocabulário de Psicanálise, em que a mesma entrada reúne ambos os termos, descritos sumariamente do seguinte modo: «Os termos fantasma, fantasmático, não podem deixar de evocar a oposição entre imaginação e realidade» (cf. Laplanche e Pontalis 1999: 228, ênfase dos autores). O fantasma, do domínio da imaginação (sublinhando a ligação com imago/imagem), constitui, assim, uma perturbação do real, na medida em que o integra a partir do momento em que passa a habitar o indivíduo, a sua «vida fantasmática» (id.: 229). Segundo Laplanche, é por esta razão que Freud recusaria uma concepção «que não concederia qualquer realidade própria ao fantasma» (ibid.). Retomando o campo semântico da imagem em contexto grego, encontramos, ainda, eikôn, que por vezes se confunde com eidôlon, mas ancora a sua dimensão de duplo à noção de semelhança, tal como se lê no Sofista, quando o estrangeiro discute a «arte de copiar» (Platão s.d.: 82). Eikôn é, com efeito, o lado positivo da imitação, ao qual Platão contrapõe phantasma, substantivo proveniente de phainesthai, «brilhar, mostrar-se, parecer», vindo de phantazesthai, «aparecer», aproximando-se, assim, da noção de simulacro (Simon 2004: 336). __________ 7 Pascale Ogier faleceria no ano seguinte, em 1984, tornando particularmente significativas as palavras de Derrida, que, no filme, se reconhece enquanto um fantasma (isto é, figura de cinema) que dialoga com Ogier, outro fantasma. No entanto, e sem que se pudesse prevê-lo, pouco tempo depois Ogier deixaria de ser fantasma nos termos em que Derrida o punha em 1983, passando a sê-lo numa forma ligeiramente distinta: não um duplo fantasmático (cinematográfico) de um ser vivo, mas uma figura que passa a existir apenas no cinema, a afirmação do original no duplo, nos termos em que discuti antes a imagem fotográfica. Com este conjunto de questões no horizonte, Marc Cerisuelo referiu-se a Ogier como «a simpática revenante do filme» (2016: 34), que regressa a cada nova projecção do mesmo. No subcapítulo dedicado a Visita ou Memórias e Confissões, intitulado «O regresso do morto», regressarei a esta subsistência dos seres no mundo (bem como ao consequente efeito de assombração) enquanto fantasmas cinematográficos.

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Publicada no ano seguinte àquele em que tem lugar a primeira projecção pública, a crítica de Gorki chama a nossa atenção para uma concepção da imagem de cinema mais do domínio do eidôlon ou do phantasma, e menos como eikôn (simples reprodução fiel), e certamente distante de eidos, nos termos platónicos. Contudo, este conjunto de conceitos está na base de algum pensamento desenvolvido sobre o cinema em geral, e sobre uma série de filmes em particular, que não se limita a negar a realidade das imagens de cinema, e procura, sim, averiguar que realidade é esta. Trata-se, em primeiro lugar, da teoria e da crítica psicanalíticas, mas não apenas: na primeira parte deste livro, dedicada a Oliveira, veremos que já alguns dos primeiros pensadores do cinema, dos quais o exemplo mais significativo é Jean Epstein, procuravam conceber este meio de representação como algo que não reside na mera reprodução do real, mas que produz algo de profundamente novo e potencialmente transformador. Assim, o cinema pode não ser uma realidade diminuída, mas uma nova, e completa, realidade. Não um mero espectro no sentido de sombra do real (de eidôlon), mas um espectro que não só reflecte, mas também produz e acrescenta. O conceito de fantasma, numa articulação íntima com o rico campo semântico que o nosso conceito de imagem traz consigo (e do qual, como vimos, fantasma já faz parte nas suas configurações clássicas), faz emergir um conjunto de questões e problemas que se revelam particularmente produtivos numa reflexão sobre esta arte. No seguimento da breve síntese que aqui propus, dir-se-ia, em jeito de resumo, que o conceito de fantasma convoca noções como as de visão, ilusão, duplo, irrealidade, imaterial, ou, nos seus prolongamentos psicanalíticos, fantasia, inconsciente, desejo ou projecção. Trata-se de noções, afinal, que permearam todo o pensamento produzido sobre o cinema, desde os primeiros pensadores até ao nosso tempo.

Análise fílmica e o espectador pensativo Se até agora me tenho situado nas áreas específicas da história do cinema e da teoria da arte (e do cinema em particular), devo clarificar que este estudo não visa filiar-se maioritariamente a nenhum desses campos. As questões históricas e teóricas sobre as quais me tenho debruçado nesta introdução permanecerão como pano de fundo e sustentação de 20

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um trabalho que será fundamentalmente de análise fílmica e que, como tal, mobilizará sobretudo as componentes metodológicas inerentes à análise, em particular a descrição e a interpretação. Seguindo a proposta de Jacques Aumont e Michel Marie, a interpretação será, aqui, o «“motor” imaginativo e inventivo da análise». Porém, no meu percurso interpretativo, procurarei manter-me, tanto quanto considere desejável, no campo do «estritamente verificável», recorrendo à descrição de figuras, planos, cenas ou sequências particulares (Aumont e Marie 2009: 15-16). Deste modo, através de uma metodologia fundamentalmente analítica, muito de acordo com a conceptualização que Laura Mulvey desenvolve, a partir de Raymond Bellour, a propósito de um «espectador pensativo» [pensive spectator] — «extraindo cada fragmento fílmico e depois repondo-o no seu lugar, então já com um entendimento suplementar dele» (Mulvey 2006: 144) —, os problemas teóricos serão mobilizados apenas na medida em que são directamente suscitados pelo olhar sobre os filmes. A análise revelar-se-á, aqui, também ela, como uma maneira de dar uma forma (verbal, e em segundo grau) aos fantasmas que povoam os filmes. O estudo que aqui apresento consiste numa leitura de um conjunto de obras da autoria de dois cineastas portugueses, à luz da questão — vasta e múltipla, como tenho feito notar — da espectralidade. Não é evidente que na história do cinema português exista uma linhagem de filmes — e, menos ainda, de cineastas — que entronque na tradição fantasmática do cinema. Isto verifica-se, num primeiro nível, porque a «linha Méliès» não deixou uma marca particularmente assinalável no cinema realizado em Portugal, exceptuando-se os dois casos paradigmáticos de Noémia Delgado e António de Macedo, que trilharam a via do fantástico. Para além das filmografias destes dois cineastas, existem — como dificilmente poderia deixar de ser — diversos casos mais ou menos isolados: um dos primeiros exemplos é A Dança dos Paroxismos (1929), de Jorge Brum do Canto, que recria a alucinação de um homem no momento imediatamente anterior à morte; Paulo Rocha lidou com os espectros de Ó-Yoné e Ko-Haru em A Ilha dos Amores (1982) e com o de Wenceslau de Moraes em A Ilha de Moraes (1984); Manuel Mozos tratou a espectralidade dos espaços abandonados (e assombrados) em Ruínas (2009); mais recentemente, Catarina Mourão desvelou os espectros da memória familiar, associados à memória do Estado Novo, em A Toca do Lobo (2015). De entre estes, Pedro Costa consiste num caso singular, dado que uma parcela substancial da sua obra — em particular, os filmes realizados em torno de Ventura — lida com, entre outros, os fantasmas do Introdução |

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colonialismo, oferecendo-lhes um tratamento elaborado, que está na base de uma obra assaz reflexiva no que diz respeito à problemática da espectralidade no cinema. Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues apresentam-se como os casos mais paradigmáticos do cinema português no que toca ao conjunto de problemas aqui convocado. Estes autores têm em comum a particularidade de abordarem a questão espectral na generalidade das suas obras, das quais seleccionei os filmes que considero constituírem os casos mais férteis para consubstanciar, através da análise, a argumentação que pretendo desenvolver. Em particular — e é esta a razão principal pela qual Pedro Costa não é aqui um caso privilegiado de estudo, não obstante lidar, em diversos filmes, com as questões que venho identificando nesta introdução —, afigura-se importante focar em Oliveira e Rodrigues o modo como ambos reflectem sobre este problema (sobretudo ontológico, como vimos) a partir do trabalho particular que desenvolvem com a narrativa, e muitas vezes com o romanesco, nos seus filmes. Particularizando novamente, Oliveira e Rodrigues pensam sobre a espectralidade do cinema a partir de narrativas que exploram temas de amor, loucura e morte. Assim, estes cineastas inserem-se numa tradição de «filmes de fantasmas» que não se alia necessariamente ao cinema de terror, e que mais se aproxima, até, do melodrama ou do drama romântico. Por esta razão comecei por descrever um passo de um filme de Méliès em que o problema do fantasma se associa, em termos narrativos, a uma circunstância de romance. Esta corrente sentimental é longa e inclui vários dos filmes a que me reportei antes (de Bauer, de Dieterle, de Oshima ou de Minghella), e muitos outros, tais como — referindo apenas exemplos já do nosso século — Histoire de Marie et Julien (História de Marie e Julien, 2003), de Jacques Rivette, La Frontière de l’aube (A Fronteira do Amanhecer, 2008), de Philippe Garrel, ou Kishibe no tabi (Rumo à Outra Margem, 2015), de Kiyoshi Kurosawa. Ao pano de fundo teórico já discutido, acrescem, então, a ficção e a narrativa como elementos fundamentais do trabalho aqui desenvolvido, assim se explicando, no fim de contas, porque é que escolhi iniciar com Méliès e não com Lumière. Se a natureza espectral do cinema é, evidentemente, comum a ambos, existe em Méliès uma pulsão narrativa que concretiza, reflexivamente, os fantasmas que assombram todo o cinema. A narrativa torna-se, assim, a dobra reflexiva que, no interior do filme, ilumina e chama a nossa atenção para o funcionamento espectral desta arte. 22

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No âmbito desta problemática, resta salientar um aspecto que particulariza a reflexão desenvolvida ao longo desta reflexão, e que advém da singularidade dos próprios filmes dos dois cineastas seleccionados. O trabalho de análise perspectivará os filmes em função dos seus protagonistas, entendidos sempre na sua dimensão profundamente simbólica e sintomática. O argumento subjacente é que são sobretudo estas figuras aquilo que potencia a reflexão sobre o cinema enquanto meio de representação espectral. Atentando particularmente no trabalho que os cineastas desenvolvem em torno destas personagens, quer ao nível da sua participação na narrativa, quer ao nível das estratégias de figuração a que são sujeitas, desenvolverei consistentemente a hipótese de que elas são tanto, num primeiro nível, figuras dos filmes que protagonizam, quanto, num segundo nível, de ordem mais teórica, símbolos de uma conceptualização do cinema enquanto arte de fantasmas. Deste modo, mobilizando directamente as narrativas dos filmes e as suas personagens, mas perspectivando-as sobretudo ao nível da alegoria, manterei sempre no horizonte o desejo de procurar, nos termos de Laura Mulvey, «o “filme por detrás do filme”» (2006: 145).

Galeria de retratos de criaturas espectrais Em Image et mémoire, Giorgio Agamben invoca uma carta de Aby Warburg em que este descreve sumariamente a figura mitológica da ninfa. Para desenvolver um comentário à descrição de Warburg, o filósofo retoma a obra De nymphis, sylphis, pygmeis et salamandris et caeteris spiritibus, de Paracelso, em que a ninfa é concebida como um dos quatro «espíritos elementares», os quais são caracterizados do seguinte modo: Embora sejam uma e a outra coisa, a saber, espírito e homem, eles não são, ainda assim, nem uma coisa nem a outra. Eles não podem ser homens, uma vez que se movem como espíritos; não podem ser espíritos, uma vez que comem, bebem, são feitos de carne e de sangue […]. Eles são, então, criaturas particulares, diferentes das duas primeiras e formadas por uma espécie de mistura da sua dupla natureza, como um composto de doçura e aspereza ou como duas cores numa única figura. (Paracelso apud Agamben 2004: 58) Introdução |

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Agamben começa por propor que a duplicidade destas figuras pode remeter, arquetipicamente, para uma cisão interna existente no próprio ser humano. No seguimento da sua argumentação, porém, o autor passa a tomar estas criaturas como, especificamente, análogas da imagem: «Criadas à imagem, não de Deus, mas do homem, elas constituem uma espécie de sombra ou de imago» (61). No seguimento da caracterização de Paracelso, Agamben lembra que as ninfas constituem um caso particular entre estas criaturas porque, contrariamente às restantes, elas podem adquirir alma ao unirem-se sexualmente com os homens e ao procriarem. Se os restantes espíritos elementares estão condenados a não ter alma e, portanto, a serem imagens inanimadas, às ninfas é possível a vivificação: «não é senão no encontro com o homem que as imagens inanimadas adquirem uma alma, tornando-se verdadeiramente vivas» (61). Assim, avança Agamben, a história da relação ambígua dos homens com as ninfas seria também a história da sua relação difícil com as imagens. Num dado passo, reportando-se aos espíritos elementares — também apelidados de «criaturas», como diversas vezes farei ao longo deste livro, ao referir-me aos protagonistas dos filmes discutidos —, Agamben recorre também aos termos «imagem» e «fantasma» alternadamente (62). Com efeito, o essencial da caracterização destas figuras, tanto por Paracelso como por Agamben, responde à definição que tenho ensaiado aqui da figura do fantasma. As figuras intermédias de Paracelso, «sendo uma e outra coisa», são, na verdade, «nenhuma delas», tornando-se assim «criaturas particulares», de «natureza dupla». Esse estatuto terceiro, que é, na verdade, intermédio, é, também, o estatuto do espectro. No âmbito destas questões, a figura da ninfa apresenta-se, ainda, particularmente adequada ao meu trabalho com os filmes de Oliveira e Rodrigues, devido à sua associação ao universo do amor e do sexo. Veremos, no desenvolvimento da minha reflexão, que as personagens dos dois cineastas portugueses são fantasmas, mas também imagens, e ainda — no seguimento da convocação da leitura de Agamben — ninfas, ou melhor, antininfas, pois se as ninfas se tornam humanas através do contacto com os homens (e com as ninfas as personagens de Oliveira e Rodrigues partilham essa vontade de «junção» com os humanos), veremos que, nos filmes aqui em análise, estas criaturas nunca chegam a humanizar-se, e, ao invés disso, transformam os seus objectos de afecto (humanos) em algo da sua própria ordem: do domínio da imagem, da espectralidade, do terceiro ontológico intermédio, que é, evidentemente — e voltarei a esse ponto diversas vezes ao longo das duas partes que constituem este trabalho —, o estatuto das imagens de cinema. 24

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Gostaria, então, de concluir esta nota introdutória solicitando ao leitor que entenda este livro, tão literalmente quanto possível, como uma galeria de retratos de criaturas espectrais. Em Cinema El Dorado, Fernando Guerreiro lembra que «[n]a versão […] que Roger Corman em 1960 fez do conto [«The Fall of the House of Usher», de Edgar Allan Poe], a “galeria de espelhos” torna-se uma galeria de retratos» (Guerreiro 2015: 293, ênfase do autor). No filme de Corman — e note-se que esta é uma opção do realizador que não tem paralelo na narrativa de Poe —, as mulheres e os homens retratados são os parentes de Roderick Usher, membros de uma família composta por indivíduos «especiais», porque são vítimas de uma maldição — a maldição dos Usher — que os transforma em seres que, com efeito, não têm lugar neste mundo, e que são vocacionados para um outro mundo: em termos simples, e uma vez que a única coisa que sabemos deles após a morte é que se transformam em retratos na vasta galeria, o mundo da imagem. Também este livro é uma galeria de retratos de figuras que, como se diz em Benilde, «não são deste mundo», figuras fantasmáticas, prometidas a uma existência liminar, que adquirem uma espécie de inteireza justamente na sua inconsistência ôntica. Disto dão conta os títulos dos diferentes capítulos que compõem cada uma das duas partes (Benilde, Vanda e Isaac, Manoel, Sérgio, Odete/Pedro, Tónia), consistindo cada um deles, precisamente, numa tentativa de retrato. O livro divide-se em duas partes, por sua vez subdivididas em três capítulos, e contendo ambas uma breve secção introdutória. A primeira parte, reservada à obra de Manoel de Oliveira, começa com um capítulo centrado em Benilde ou a Virgem Mãe, seguindo-se-lhe um capítulo sobre O Passado e o Presente e O Estranho Caso de Angélica, e terminando com a discussão de Visita ou Memórias e Confissões. Os três capítulos da segunda parte, por seu turno, respondem à «trilogia dos fantasmas» de João Pedro Rodrigues: O Fantasma, Odete e Morrer como Um Homem. Tal como os retratos numa galeria são autónomos, e dados à contemplação individual, num percurso que se faz através da(s) sala(s) de exposição, também os capítulos deste livro são concebidos desse modo. Não se trata, então, de procurar activamente semelhanças entre os cineastas, nem tampouco diferenças, não obstante os pontos de contacto surgirem inevitavelmente, sendo, então, devidamente assinalados. A minha hipótese de trabalho consiste em elaborar uma espécie de mosaico no qual se possam ver em simultâneo (idealmente, em palimpséstica sobreimpressão) tantas configurações do mesmo problema de partida quanto objectos particulares de estudo (i.e., personagens de filmes) existem. Introdução |

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Une image, au cinéma de surcroît, est toujours passible d’interprétations: le spectre est un énigme et les fantômes qui défilent dans les images, ce sont des mystères. Jacques Derrida


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epílogo

Ser no limiar

Na parte final de O Ornitólogo, perdido na floresta, o protagonista, Fernando, encontra uma caveira humana, que segura, entre as mãos, em frente ao seu próprio rosto. O plano remete para Hamlet e, especificamente, para o momento em que, na primeira cena do acto V (Shakespeare 2003: 197-199), perante o crânio de Yorick, o truão que o acompanhara na sua infância antes de morrer, Hamlet disserta sobre uma série de conceitos que, chegados a este momento conclusivo, podemos afirmar terem permeado as duas partes que compõem este livro: a vida e a morte, a presença e a ausência, o passado e o presente, a metamorfose da matéria, enfim — para citar as palavras célebres de Hamlet, que não obstante serem por vezes associadas à cena da exumação do crânio de Yorick, são, na verdade, proferidas na cena inaugural do acto III —, o ser e o não ser [fig. 107]. A encenação do plano do filme de Rodrigues reproduz, também, um outro plano comentado num passo anterior deste livro, a propósito de O Fantasma. Refiro-me ao final de Under the Skin, em que, após despir a sua carapaça humana, a alienígena olha os olhos do rosto que fora provisoriamente seu, e que agora segura entre as mãos. Neste encontro com a sua possibilidade humana — uma humanidade que se pode usar, como roupa ou prótese —, ressalta o vazio da sua forma humanóide negra, a sua incognoscibilidade última, que pode ser também, como vimos, o vazio da película do filme, virgem, não impressionada. Tal como Sérgio, Odete e Tónia, também o protagonista de O Ornitólogo exibe esse «vazio» que o torna susceptível à transformação, ou, em termos metacinematográficos, à impressão de outros seres, outras formas, outros universos, em si. No decorrer do filme, Fernando transforma-se progressivamente, e em simultâneo, no próprio realizador João Pedro Rodrigues (que dá voz à personagem, e que, por vezes, aparece em campo, emprestando-lhe também o corpo), e em António, ou Santo António, para ser mais preciso, sem, no entanto, deixar de ser também ele mesmo, Fernando. No final, e no mesmo regime de indiscernibilidade que diversas vezes foi aqui convocado e Epílogo |

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operacionalizado, tanto a propósito de Oliveira como de Rodrigues, o protagonista é uma amálgama desses três seres que o filme faz — através do desenvolvimento da sua narrativa — coincidir na mesma figura. A problemática do ser adquire uma configuração particularmente eloquente em O Quinto Império — Ontem como Hoje, de Manoel de Oliveira, adaptado — tal como Benilde ou a Virgem Mãe — de uma peça de Régio. Com efeito, um dos problemas centrais que Régio e Oliveira encenam nesta peça e neste filme é, justamente, não tanto o de saber quem é D. Sebastião, mas, mais particularmente, o que é ele. Numa primeira aproximação ao problema, é forçoso referir que, tal como Benilde, Vanda ou Isaac (ou, de forma evidente, Odete, mas, também, Sérgio e Tónia, na sua já caracterizada esquizofrenia identitária), também D. Sebastião é identificado, pelos outros e por ele mesmo, como um louco. A propósito de O Estranho Caso de Angélica, referi que, em Oliveira, tal como em Rodrigues, a loucura é associada a um tipo particular de entidade, os mesmos «seres de outro mundo» que reuni neste estudo sob a categoria particular do fantasma. Depois de Benilde, Vanda, Isaac, Odete, Sérgio e Tónia, D. Sebastião é o último ser de natureza ou vocação espectral cujo retrato proponho esboçar aqui. Na sua primeira aparição em campo, D. Sebastião é visto em contraluz, durante a noite, como uma sombra apenas parcialmente iluminada pela luz da lua [fig. 108]. A apresentação pela sombra sugere, desde logo, uma indefinição ôntica, uma falta de inteireza ou de substância — apetece dizer, recuperando Gorki, uma sombra num reino de sombras — , que o filme tratará de desenvolver, particularmente através dos diálogos tomados de Régio. Numa fase avançada do filme, a personagem do sapateiro santo dirige-se a D. Sebastião, dizendo: «Tu, que não és um rei como os outros, que não és um homem como os outros. Tu, um cego visionário que só vê o que sonha […] uma chama que arde sem ser para nada». A esta investida do sapateiro santo, que é, grosso modo, uma série de definições de D. Sebastião, pela positiva e pela negativa (ou seja, o que o rei é e o que ele não é ), D. Sebastião responde: «Abusas da criatura que sou». O interlocutor do rei retorna: «[és] uma inteligência, uma capacidade, uma sumidade que desvaria». Com grande economia, a inconsistência ôntica para que apontava simbolicamente a primeira figuração do rei é aqui sublinhada por uma série de asserções. D. Sebastião não é um rei como os outros e não é um homem como os outros. Ou seja, a ser homem, ele é uma espécie particular de homem, distinta daquela a que pertencem os restantes. 256

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fig. 107 – O Ornitólogo (2016), João Pedro Rodrigues. fig. 108 – O Quinto Império — Ontem como Hoje (2004), Manoel de Oliveira.

É-nos dito que ele é, também, um cego visionário que só vê o que sonha, ou seja, que, estando materialmente inserido na ordem do real, não vê o mundo como ele é, mas como este se lhe apresenta nos sonhos, portanto, no plano do imaginário. D. Sebastião é, então, e tal como argumentei a propósito das outras personagens contempladas ao longo destas páginas, alguém que existe entre mundos: habita materialmente o real, mas sensorialmente (digamos assim, dado que o verbo usado é ver) o imaginário. E, contudo, este plano do imaginário não pode senão ter de ser tomado como, também ele, real, dado que D. Sebastião também existe efectivamente nele, ao vê-lo. Aquilo que pretendo fazer com este breve comentário não é apenas indicar que D. Sebastião é, também ele, uma personagem que existe entre mundos, de modo a poder integrá-lo na galeria de retratos que me propus construir, mas sublinhar que esses Epílogo |

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mundos, que à partida podemos opor com categorias divergentes, tais como real e imaginário, imanente e transcendente, concreto e elusivo, visível e invisível, vigilante e onírico, passam a contaminar-se mutuamente a partir desse lugar de contacto que é a própria personagem. O extensivo trabalho de análise que encetei nestas páginas serviu o propósito de ilustrar esta mesma hipótese, que formulei no capítulo introdutório a partir de Agamben, de Paracelso e da figura da ninfa. Os filmes que compõem este estudo apresentam, todos eles, criaturas que são intermédias (para recuperar a terminologia inicial) porque estão entre mundos. Por essa razão, elas cumprem simultaneamente um papel nas narrativas das suas vidas ficcionais e, também, um papel alegórico na economia simbólica dos filmes que protagonizam. O jogo entre estes dois pólos — o trabalho da narrativa e a dimensão alegórica dos filmes — está na base de toda a reflexão que aqui propus. A hipótese que subjaz aos diferentes capítulos que compõem este livro é, então, que Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues levam a cabo um pensamento sobre o cinema através dos seus filmes. E nesta dobra, as personagens apresentam-se como figuras do próprio cinema. Assim, recuperando os termos com os quais o sapateiro cego de O Quinto Império descreve D. Sebastião, posso agora afirmar que o próprio cinema é o «cego visionário que só vê o que sonha», a «chama que arde sem ser para nada», mas também «uma inteligência, uma capacidade, uma sumidade que desvaria». A certa altura, D. Sebastião pergunta: «Qual é a minha doença? Que mistério trago eu comigo?». Prosseguindo a leitura do rei como figura do cinema, é evidente que estas questões podem também ser re-perspectivadas com o cinema enquanto objecto. Que doença, e que mistério, são os do cinema? Regressando a pontos anteriores deste livro, esta mesma pergunta foi implicitamente formulada de diversos modos: que fenómeno é o cinema (Benilde)? Que loucura (Vanda e Odete)? Que sonho (Isaac)? Que espécie de monstro (Sérgio e Tónia)? Estas diferentes configurações do problema geral levantaram problemas específicos, que foram sendo devidamente analisados no desenvolvimento do trabalho. Contudo, elas reúnem-se na medida em que comprovam a espectralidade inerente ao cinema, tanto nos exemplos de filmes que lidam explicitamente com fantasmas, como nos restantes, dos quais Visita ou Memórias e Confissões se apresenta como o caso paradigmático, ao fantasmagorizar o seu próprio criador. 258

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Aquilo que importa reter do conjunto de pensadores convocados na introdução, que conceptualizaram esta ontologia «espectral» do cinema, é a sua incapacidade última de definir o que o cinema é. Com efeito, pensar-se o cinema a partir da sua dimensão espectral é votar-se a não conseguir identificá-lo e circunscrevê-lo com precisão, justamente porque a figura do espectro é, em última instância, incategorizável, dado que a sua natureza passa justamente pela impossibilidade de ser fixado. Partindo desse quadro teórico e conceptual que, sem deixar de iluminar algumas questões fundamentais deste meio de representação, acaba, porém, por funcionar no sentido de vincar a sua indefinição ontológica, aquilo que aqui propus foi analisar, de forma tão próxima e precisa quanto possível, como essa mesma indagação é efectuada por dois cineastas nos seus filmes. Em suma, tomei como objectivo verificar de que forma uma problemática de ordem teórica, com forte tradição na história do pensamento sobre cinema, se traduz (ou não), efectivamente, no interior da própria prática cinematográfica, em dois casos (autorais) concretos. Tendo em conta estes factores, o epílogo que escrevo não pode senão ser inconclusivo e uma espécie de necessária excrescência. O que visei com esta reflexão nunca foi averiguar, a partir do quadro teórico convocado no início, em que termos precisos o cinema se formula na articulação entre presença e ausência, presente e passado, vida e morte, fixidez e movimento, visível e invisível, matéria e «não-matéria», realista e fantástico — para resgatar algumas das dicotomias que introduzi em capítulos anteriores. Aquilo que este livro visa é revelar de que maneiras um conjunto de filmes desenvolve diferentes configurações do jogo entre esses conceitos, com o objectivo de desestabilizar a compreensão dos mesmos. Ou seja, ao invés de propor uma definição de cinema, todo o trabalho aqui desenvolvido procurou explorar a sua indefinição. A particularidade desta proposta, e a singularidade da minha abordagem, foi — através de uma série de retratos — questionar a natureza (ou o ser) do cinema através de uma reflexão sobre os seres que protagonizam os filmes de Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues. Tanto estes seres como o próprio cinema são, no fim de contas, imagens em fuga que, resistindo à definição (mas não à consideração, à reflexão, e, até, à especulação), se afirmam, no entanto, através da evidência de existirem. Trata-se, no entanto, como repetidamente verificámos, de uma existência liminar — um limiar que não é só o lugar em que os fantasmas e o cinema estão, mas sobretudo o lugar em que os fantasmas e o cinema são. Epílogo |

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Nota de edição

Este livro tem por base a minha tese de doutoramento, desenvolvida no âmbito do Programa Internacional FCT de Doutoramento em Estudos Comparatistas (PhDComp), um programa de estudos oferecido pela Universidade de Lisboa, em colaboração com a Universidade Católica de Lovaina e a Universidade de Bolonha. Como tal, importa dirigir um agradecimento especial aos orientadores desse trabalho — Clara Rowland, Fernando Guerreiro e Teresa Castro —, bem como aos professores com quem tive a oportunidade de discuti-lo por ocasião das provas públicas: os professores Fernando Cabral Martins, Guillaume Bourgois, José Duarte, Mário Avelar e Mário Jorge Torres. Deixo, ainda, um obrigado ao Amândio Reis, à Emília Pinto de Almeida e à Rita Novas Miranda, que me acompanharam. Este livro também é resultado de uma investigação mais ampla, em torno da noção de espectralidade no cinema, que desenvolvo há alguns anos e gerou dois outros livros: Imagens em Fuga: Os Fantasmas de François Truffaut e Sobreimpressões: Leituras de Filmes, ambos publicados pela Documenta, em 2016 e 2019. No último destes, encontram-se versões preliminares dos estudos de O Estranho Caso de Angélica e Odete que desenvolvo neste livro.

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Referências bibliográficas

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Índice

Introdução — Espectros no cinema, espectros do cinema . . . . . . . .

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Assombrações — Os retratos vivos de Manoel de Oliveira. . . . . . Benilde (Benilde ou a Virgem Mãe) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um drama incompreensível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A casa, o mundo e problemas de habitação . . . . . . . . . . . Árvores e aparições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Espectralidade e contágio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Vanda e Isaac (O Passado e o Presente e O Estranho Caso de Angélica) O tempo dos retratos: descoincidências e diferimentos . . . Necrofilia ou idolatria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Morte, fotografia e vida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O cinema é sonho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Manoel (Visita ou Memórias e Confissões) . . . . . . . . . . . . . . . . Um filme invisível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Prosopopeia ou a vida das coisas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . O regresso do morto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Encarnações — Os corpos metamórficos de João Pedro Rodrigues Sérgio (O Fantasma). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bichos e homens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Personagens, rostos, cabeças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A identidade no disfarce . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Por cima e debaixo da pele. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Odete/Pedro (Odete) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cinema à antiga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Melodrama e hermenêutica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Ler Odete (I): a imagem-matriz . . . . . . . . . Ler Odete (II): possessão e transformação . . Ler Odete (III): sombras de outros espectros Tónia (Morrer como Um Homem) . . . . . . . . . . . . Géneros e géneros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma questão de cosmética . . . . . . . . . . . . . Duplos e ideais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Espectáculos de vida e de morte . . . . . . . . . Cinema transformista . . . . . . . . . . . . . . . .

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Epílogo: Ser no limiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 Nota de edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA), 2020 RUA PASSOS MANUEL, 67 B 1150-258 LISBOA © JOSÉ BÉRTOLO fotogramas © AUTORES OU HERDEIROS DOS AUTORES 1.ª EDIÇÃO, DEZEMBRO DE 2020 ISBN 978-989-9006-59-1 CRÉDITOS AUTORAIS DOS FOTOGRAMAS REPRODUZIDOS: © MANOEL DE OLIVEIRA / HERDEIROS DE MANOEL DE OLIVEIRA (Figs. 1-40, 108) © JOÃO PEDRO RODRIGUES com ROSA FILMES (Figs. 41-45, 48, 53-55, 57, 59-84, 86, 88-90, 93-103, 105-106) com AGÊNCIA – PORTUGUESE SHORT FILM AGENCY CURTAS METRAGENS CRL (Fig. 58) com NITRATO FILMES (Fig. 107) NA CAPA: FOTOGRAMA DE O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA (2010), MANOEL DE OLIVEIRA REVISÃO: LUÍS GUERRA DEPÓSITO LEGAL 477651/20 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL



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