Alexandre Melo, Arte e Poder na Era Global

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© SISTEMA SOLAR, CRL (2016) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © ALEXANDRE MELO

1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2016 ISBN 978-989-8834-39-3

REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE

DEPÓSITO LEGAL 416303/16

ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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SISTEMA DAS ARTES NO SÉCULO XXI


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Sistema das artes é a expressão que adoptamos para designar o conjunto de relações entre as práticas criativas e as dimensões económicas e institucionais da sua inserção no âmbito das práticas culturais (em sentido lato) e das práticas sociais em geral. Chamamos práticas criativas ao conjunto das artes consagradas pela tradição da história das artes, sem excluir (mas também sem ignorar as especificidades de) outras actividades criativas que assumiram uma recente tendencial inclusão no — ou candidatura ao — estatuto artístico (é o caso da fotografia, arquitectura ou design, em sentido lato). Não colocamos, neste momento, a questão do estatuto de outras práticas (por exemplo as práticas desportivas ou gastronómicas) para as quais, apesar da sua importância em termos criativos, culturais e económicos, ainda não é comum ver reivindicado o estatuto artístico, a não ser sob forma metafórica. Olhando para os sistemas das artes de um modo que nos permita descrever, de forma genérica, as suas configurações, neste início do século XXI, detectamos um conjunto de características que julgamos poder tomar como ponto de partida e para as quais escolhemos as designações que a seguir enunciamos. Globalização, em termos de tendência histórica. Segmentação e hierarquização, em termos de estruturas de produção. Sistema das Artes no Século XXI

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Pluralismo e relativismo, em termos de discursos de legitimação. Experimentação, eclecticismo e transdisciplinaridade, em termos de processos de trabalho. Mediação generalizada, em termos de modo de inserção social. Explicaremos o que entendemos por cada uma destas noções, dando também, de modo não exaustivo, alguns exemplos da forma como se manifestam em diferentes áreas da produção artística, designadamente, cinema, música, artes do espectáculo, artes plásticas ou literatura.

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MAIS GLOBALIZAÇÃO

Não será necessário sublinhar a relevância do processo de globalização no conjunto das transformações históricas em curso desde o século passado mas com acentuada evidência nas décadas mais recentes. Basta reparar que já quase ninguém fala de quase nada, nem nas quotidianas banalidades das actualidades noticiosas, sem falar de globalização. Mas será interessante recordar que a palavra começou por ser utilizada quase exclusivamente no âmbito de discussões especializadas relativas aos (hoje em dia tão populares) mercados financeiros. Para dar um exemplo pessoal, quando apresentei a minha tese de doutoramento, em 1994, senti-me obrigado a explicar e justificar, com algum detalhe, porque dava um lugar central à noção de globalização. O alcance e a rapidez desta mudança de fundo é bem visível no mundo das artes plásticas ao qual se reportava o meu estudo. Refiro um exemplo muito simples deste fenómeno. Quando publiquei a primeira edição do meu livro Arte na coleção «O que é», em 1994, ocorreu-me que seria interessante e útil, para efeitos práticos, incluir um roteiro em que me permiti fazer uma listagem dos países, cidades, publicações, eventos (feiras, bienais) e instituições (museus, fundações, galerias) cuja visita era obrigatória ou, pelo menos, recomendável, para quem quisesse conhecer e acompanhar o que se passava no «mundo da arte». Aquando da 2.ª edição ainda me pareceu útil e possível fazer um esforço de actualização. Na 3.ª edição, em 2001 desisti da ideia. Sistema das Artes no Século XXI

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Hoje em dia, a leitura deste Roteiro é embaraçosa e só não me envergonha mais, a título individual, porque a ignorância etnocêntrica nele revelada não era apenas uma limitação pessoal mas correspondia a um consenso quase incontestado entre os principais agentes e protagonistas do mundo da arte. Nesses roteiros apareciam pouco mais de meia dúzia de países. Hoje em dia, a simples pretensão de fazer um roteiro deste género (que não acabasse por praticamente coincidir com um atlas da geografia mundial) parece tão despropositada que somos levados a abandonar tão impossível ambição abrangente. O mundo das artes passou a ser o mundo e a ideia de fazer uma exposição, um festival de cinema ou uma biblioteca, com vocação mundial, em que dois terços dos autores sejam oriundos da Europa e dos Estados Unidos da América tornou-se quase absurda e quase impossível. Esta tendencial impossibilidade coloca aliás alguns dos mais complexos problemas da curadoria ou programação contemporâneas. Como fazer uma selecção realmente representativa da diversidade cultural e geográfica das práticas artísticas em curso no mundo? A resposta não é fácil nem sequer talvez possível. Todas as hipóteses são controversas. Uma primeira hipótese. Se adoptarmos um padrão único e universal de avaliação e selecção e o aplicarmos a todos os objectos disponíveis há dois problemas. Em primeiro lugar, é fácil contestar a possibilidade ou a legitimidade da própria ideia de padrão único e universal. Em segundo lugar, é tecnicamente impossível avaliar todos os objectos disponíveis (mesmo considerando apenas aqueles já socialmente validados como objectos artísticos) porque isso implicaria, para dar exemplos simples, visitar os estúdios de todos os artistas do mundo ou ler os inéditos de todos os escritores do mundo. Proeza que não está ao al-

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cance nem sequer de programadores zombies itinerantes que passem metade do tempo em aviões em permanente estado de jet-lag. Uma outra hipótese consiste em tomar como ponto de partida a exigência de uma representatividade máxima em termos de diversidade cultural e geográfica. A dificuldade, neste caso, reside no facto de a maximização da probabilidade de atingir este objectivo implicar uma espécie de sistema de quotas, mais ou menos informal, que pressupõe a aceitação de uma quase ilimitada disparidade de critérios de avaliação e de uma tendencial arbitrariedade, quase casuística, do resultado final. Daqui resultam o abandono de qualquer objectivo de coerência ou equidade e a inevitabilidade de uma quantidade ilimitada e não controlada de modalidades de exclusão. Esta dupla impossibilidade pode ser mitigada sobretudo através de dois tipos de estratégias. A adopção de um método de trabalho em equipa que promova sucessivos níveis organizados de delegação de poderes, desde o conceito geral até à articulação concreta com as realidades locais. A adopção plenamente assumida de um ponto de vista que permita justificar, à partida, quaisquer inclusões ou exclusões. Este ponto de vista tendia, noutros tempos, a ser estético (antes do colapso da estética) e, hoje em dia, é quase sempre político o que leva à proliferação de exposições que, em termos práticos, se auto-justificam como uma espécie (menor) de manifestos políticos. Um caso extremo é a Bienal de Veneza 2015 que analisaremos mais adiante. A quem não se satisfaça com a ausência de uma solução para o problema poderia dizer que a solução seria o bom senso. Sabendo que existe uma sólida bibliografia sociológica que há muito desmascarou e desautorizou a noção de bom senso. Sistema das Artes no Século XXI

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Numa linguagem mais brejeira poderia dizer-se que na prática a teoria é outra. Mas não se pode impedir que alguém responda que na teoria a prática é outra.

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SEGMENTAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO

Segmentação. Hierarquização. Duas palavras para enunciar um binómio que nos ajuda a descrever o funcionamento das actuais estruturas de produção criativa. A noção de segmentação permite-nos captar a imensa diversidade dos produtos e práticas que se reúnem sob uma mesma designação correspondente a uma única disciplina artística. A necessária ponderação da importância do binómio segmentação versus hierarquização obriga-nos a considerar os sistemas das artes, e cada um dos objectos que nele pretendamos estudar, como estando situados numa área atravessada por uma multiplicidade de diferenças que se distribuem, em simultâneo, num plano horizontal, de acordo com uma grande variedade de critérios distintivos (estéticos, técnicos, formais, ideológicos), e num plano vertical, de acordo com critérios hierárquicos de poder, valor ou cotação económicos, mediáticos ou simbólicos. Numa sistematização simplificada podemos enunciar quatro tipos de critérios de segmentação e três tipos de critérios de hierarquização. A segmentação técnica descreve as diferenças entre os diferentes tipos de recursos materiais (físicos) utilizados na produção. Permite distinguir, por exemplo, entre pintura a óleo sobre tela, escultura em pedra e desenho sobre papel ou entre um filme em 3D e um filme feito com o mais elementar telemóvel. Este é, aparentemente, o critéSistema das Artes no Século XXI

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rio de distinção mais simples e mais óbvio mas, mesmo assim, requer alguns cuidados analíticos sobretudo devido a duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque as próprias distinções técnicas evoluem e são pré-determinadas por um contexto social geral, ele próprio em constante mutação. Em segundo lugar, porque a evolução tecnológica, sobretudo com o advento do império (não sabemos se já actual ou futura ditadura) do digital, sujeita o próprio processo de descrição e classificação das tecnologias a uma permanente tensão. A segmentação estética descreve as diferenças entre os produtos artísticos em termos do que noutros tempos se chamava, com mais pertinência do que hoje, «correntes», «tendências», «grupos» ou «movimentos». Sem deixar de ser uma simplificação, esta distinção era mais fácil de estabelecer nos («bons»?) «velhos» tempos dos «manifestos» e das «vanguardas», em que se procedia como se tudo pudesse ser remetido para uma relação, que ninguém sabe porquê se chamava «dialéctica», entre «tradição» e «ruptura». A infinita diversidade das formas das coisas que hoje podem ser consideradas produtos artísticos, aliada ao aprofundamento simultâneo (e contraditório ou complementar) de uma tendência para a massificação da produção artística (caso dos blockbusters ou dos nomes que se tornaram marcas como «007» ou «Star Wars») e de uma tendência para a sua absoluta singularização pessoal (selfies «artísticas»), faz com que a sistematização das distinções inerentes à segmentação estética seja tudo menos óbvia e ofereça ela própria um amplo terreno de trabalho de elaboração intelectual. Descrever e distinguir, do ponto de vista estético, é já um trabalho de teorização. Restam o que chamamos segmentação sociográfica e segmentação historiográfica, que colocam problemas mais gerais que não iremos

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desenvolver no âmbito desta apresentação. (Veja-se o meu livro Sistema da Arte Contemporânea). A segmentação sociográfica remete para o estudo das correspondências entre determinados tipos de produtos artísticos e determinados tipos de consumidores, diferenciáveis segundo o que designamos por zonas sociais de gosto, que não correspondem necessariamente às distinções entre grupos sociais determinadas por critérios genéricos de estratificação económica ou cultural. É neste âmbito que se situam as análises da recepção, os estudos de públicos ou as especulações sobre as relações entre cultura erudita, cultura de elite, cultura popular e cultura de massas. A segmentação historiográfica permite levar em linha de conta a questão da «duração»: o balanço entre a efemeridade e a perenidade, a fugacidade ou a eternidade do período de eficácia social e cultural dos produtos artísticos. É a questão da relação entre o «momento» actual, os tempos das «modas» («saison», «season», temporada) e os tempos longos das histórias ou da história. No horizonte estaria o estudo da história das histórias das artes. A noção de hierarquização é de mais fácil apreensão e a distinção que estabelecemos é entre hierarquização económica, hierarquização mediática e hierarquização prestigiante. A hierarquização económica regista as diferenças entre os níveis de recursos financeiros correspondentes a diferentes produtos artísticos e respectivos rendimentos (custos, investimentos, preços, receitas, lucros). A hierarquização mediática confere os níveis de notoriedade junto da opinião pública, em sentido amplo, tal como se manifestam nas noções de fama, sucesso, celebridade, popularidade e afins. Sistema das Artes no Século XXI

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A hierarquização prestigiante designa os níveis de apreciação e valorização cultural, em sentido estrito, junto das zonas sociais de gosto e dos agentes especializados nas áreas de produção artística em apreço e das zonas sociais de gosto dotadas de maior informação e maior poder de formação de opinião em áreas artísticas especializadas. É o celebrado ou vilipendiado «consenso dos especialistas», detentor de alguma autonomia em relação ao sucesso económico e ao grau de popularidade. Segmentação e hierarquização são, então, palavras que nos ajudam a encontrar um caminho para começar a arrumar, abordar e analisar a infinita diversidade da produção artística actual. Vamos dar alguns exemplos escolhidos pela sua simplicidade de entre um lote de possibilidades de exemplificação naturalmente infinitas. Quando dizemos algo como, por exemplo, «hoje em dia o cinema é…» isto ou aquilo, é raro apercebermo-nos de estar a cometer uma simplificação tão imensa que a frase completa corre o risco de não ter qualquer significado, a menos que esteja já implicitamente contextualizada, ou seja por nós conceptualmente circunscrita a uma configuração bem especificada (uma área específica num mapa-múndi) no âmbito do imenso território correspondente àquilo a que se pode «hoje em dia» chamar «cinema». Quando falamos de cinema a designação inclui desde a superprodução transnacional até ao filme de férias realizado por um turista, passando por toda uma complexa zona de relações com o vídeo, a televisão e o universo digital. Na música, as divisões básicas são, desde logo, de uma enorme complexidade: da música clássica à música «pop», passando por uma infinidade de categorias e sub-divisões; música ao vivo ou música gravada, ambas com inumeráveis variantes (gravações ao vivo, instrumentos de época, re-mix, versões de dança) que abrem um vasto

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campo de articulações com a evolução das tecnologias (os desafios da música na internet), com as artes do espectáculo (ópera, concerto) e com a mundanidade (disc-jockeys, club-culture). Nas artes do espectáculo — designação que já reúne o teatro e a dança —, entre a grande produção de um encenador vedeta, co-produzida por um conjunto de festivais internacionais, e o grupo não profissional que se apresenta numa casa particular abre-se um imenso leque de possibilidades. Tal como entre o artista ou arquitecto super-star, cuja agenda se organiza à escala mundial com vários anos de antecedência, e o pintor de domingo que expõe num bar da sua vizinhança. Gostaria de não passar à apresentação das noções que se seguem sem antes sublinhar que a análise da segmentação dos sistemas das artes, enquanto processo social, pressupõe um adequado entendimento do processo de segmentação social em geral, em termos de valores e práticas dos diversos grupos sociais em presença.

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EXPERIMENTAÇÃO E INOVAÇÃO

Passando da caracterização das estruturas de produção a uma aproximação a uma possível descrição abrangente dos processos de trabalho nos sistemas das artes no século XXI escolhemos uma trilogia de palavras: experimentação, eclecticismo e transdisciplinaridade. Experimentação impõe-se, de um modo evidente (talvez demasiado evidente, como adiante veremos), como a noção generalista mais adequada para descrever uma dinâmica motriz fundamental das práticas artísticas na actualidade. Ou, de um modo ainda mais evidente e talvez com maior pertinência histórica, para o que aqui nos ocupa (e sem ousar pequenos resumos de toda a história da arte), desde os finais do século XIX. Nesta perspectiva histórica a ideia de experimentação é indissociável da ideia de inovação e articula-se com as ideias de progresso, superação, rutura e ultrapassagem, associadas à «dialéctica das vanguardas», herdeira ou companheira de estrada das concepções teleológicas da história, inspiradas pela crença numa imparável dinâmica de evolução vectorial e unilinear da humanidade em direcção não sei a quê. Parece que era a felicidade ou o comunismo ou coisa que os valha. Coisas do século XIX que por lá deveriam ter ficado… e, afinal, ficaram. Falemos de experimentação de modo confessadamente caricatural. Os impressionistas «experimentaram» ir pintar ao ar livre e representar lugares e mulheres de má fama, os neo-impressionistas («pointillistes»)

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experimentaram fazer «pontos» luminosos, os expressionistas «experimentaram» trocar as cores e traçar ângulos oblíquos, os cubistas deram preferência aos cubos, os suprematistas e outros abstraccionistas «experimentaram» atingir a suprema espiritualidade ou salvar a humanidade com pinturas abstractas e assim por diante, sempre para diante, na grande estrada do modernismo. Tudo isto foi durante algum tempo descrito, por um determinado tipo de história da arte, iluminado pelas já descritas concepções da história, como um grande progresso na história da arte se não mesmo na história da humanidade. Finalmente, os autores do movimento «Dada» «experimentaram» fazer tudo o que lhes desse na cabeça, por vezes sob o pretexto de quererem destruir a noção de arte. Quando finalmente — por uma vez, e por isso o repito, a utilização deste advérbio de modo afigura-se apropriada —, Marcel Duchamp inventou o ready-made lá se conseguiu acabar não com a arte mas com a história da arte tal como o modernismo a queria contar. Os exercícios «modernistas» prolongam-se até aos nossos dias, com sucesso variável segundo os gostos e modas teóricas e estéticas de cada década, mas parece evidente que a sua base teórica (teoria da história) colapsou. (Veja-se Arthur Danto e «o fim da história da arte».) Vítima colateral deste colapso também acabou por colapsar a filosofia estética, que não tinha, nem tem ainda, como enquadrar teoricamente o fenómeno do ready-made (apesar dos esforços, entre outros, de Thierry de Duve). Foi preciso tentar começar a reconstruir a filosofia da arte a partir do zero, a partir da filosofia da linguagem e da filosofia «pragmatista» americana mas os resultados permanecem algo limitados. Dada e o ready-made — que aqui tomamos como referências aglutinantes de um conjunto complexo e muito diversificado de práticas subversivas situáveis nas primeiras décadas do século XX — mudaram a relação entre experimentação e inovação. Sistema das Artes no Século XXI

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Até então a experimentação servia para gerar uma inovação entendida como uma diferença, um progresso, um acréscimo bondoso à estrada (ou auto-estrada) da história. Com Dada e o ready-made a experimentação (e a inovação) consiste na perda da aspiração ou da possibilidade de recondução (conceptual ou histórica) de práticas que deixaram de se auto-colocar quaisquer limites, a um «sentido geral da história» ou a qualquer sentido ideologicamente pré-determinado. Entramos no regime de experimentação em que se trata de «experimentar» fazer qualquer coisa, com os inevitáveis (mesmo que involuntários, o que não era o caso) efeitos maldosos na estrada da história. A estrada ficou por acabar. Em termos historiográficos seria importante fazer uma comparação entre o significado sociocultural da «experimentação» na segunda década do século XX, na sexta década do século XX e na segunda década do século XXI, mas deixaremos isso para outra oportunidade. Aqui apenas queremos estabelecer as características de um regime de experimentação que é aquele que vigora no século XXI e no qual, repetimos, se trata de experimentar o que quer que seja, sem que isso tenha implícito (ou acarrete uma leitura em termos de) qualquer progresso ou evolução em relação seja ao que for. Daqui decorre também um tendencial esbatimento da indissociabilidade da ligação entre experimentação e inovação. Para designar este novo regime escolhemos a palavra eclecticismo.

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ECLECTICISMO E TRANSDISCIPLINARIDADE

No contexto actual (como vimos ao falar de segmentação), não é possível circunscrever, nem sequer em termos descritivos, os limites da variedade dos processos de trabalho em curso nas práticas artísticas. Eclecticismo. Importa ainda sublinhar que, ao contrário do que sucedeu em momentos históricos mais deslumbrados com o ideal vanguardista, hoje em dia, a reivindicação da originalidade (normalmente associada à ideia de inovação ou experimentação) não é necessariamente considerada superior ou mais actual do que outras linhas de trabalho ou de investigação, designadamente aquelas que prolongam, comentam ou reelaboram as práticas mais tradicionais. Veja-se a importância crescente que as ideias de «arquivo» e «inventário» vêm assumindo na última década e a proliferação de práticas artísticas e curatoriais a elas associadas. Anacronismos, revivalismos e revisitações convivem com experimentações inéditas e inovações tecnológicas num mesmo terreno, que é o terreno da infinita diversidade das práticas artísticas, sem que nenhuma das práticas tenha à partida asseguradas uma posição de privilégio ou predisposições críticas mais favoráveis devido ao facto de se apresentar seja como mais inovadora, seja como mais conforme às tradições consagradas. Neste panorama de eclecticismo generalizado adquirem uma crescente importância e visibilidade as práticas artísticas transdisciplinares, Sistema das Artes no Século XXI

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propondo estimulantes desafios aos discursos especializados estanques, tradicionalmente confinados a disciplinas artísticas com fronteiras claramente identificáveis. Um filme, uma performance, uma banda sonora ou uma série de frases numa parede podem ser obras de artes plásticas. A dança pode ser literatura e o vídeo pode ser dança. (O teatro pode não ser texto e o texto pode ser música. E tudo pode ser silêncio ou, pelo contrário, apenas ruído.) O uso da palavra transdisciplinaridade tornou-se tão generalizado ao longo da última década que começou a adquirir as características das palavras que entram em moda. Em primeiro lugar — e é por isso que transdisciplinaridade está na moda — entram em moda porque designam processos de trabalho que não existiam, não eram comuns ou não eram predominantes, e que, ao tornarem-se comuns, precisam de uma palavra para os designar. Geralmente recorre-se a uma palavra composta ou derivada, por vezes algo arrevesada (pensemos, num campo mais alargado, no pós-modernismo ou no multiculturalismo). O problema deste tipo de uso deste tipo de palavras é que umas vezes designam demasiadas coisas demasiado diferentes, outras vezes são utilizadas como mera solução de recurso para designar coisas a que ainda se não sabe o que se há-de chamar. Daqui resulta uma indefinição da noção. A ambiguidade, em si mesma, não é negativa já que é precisamente ela que lhe permite cumprir a função de designar o que, por anteriormente ser menos comum, não encontrara ainda uma designação consensualizada. No entanto é recomendável uma clarificação do alcance e modalidades de utilização da palavra. É isso que faremos em relação à noção de transdisciplinaridade e à sua zona de vizinhança que inclui a pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade ou quaisquer outras palavras aparentadas que se queira inventar ou evocar.

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A transdisciplinaridade pode designar diferentes tipos de métodos e práticas de trabalho que enunciaremos segundo um grau crescente de complexidade. Distinguiremos três níveis. Num primeiro nível a transdisciplinaridade poderia designar apenas o facto de um autor trabalhar no âmbito de várias disciplinas. É algo que se encontra ao longo de toda a história da arte com artistas que produziram pintura, escultura, gravura, desenho, arquitectura. Também comum, em termos históricos, é a situação em que um autor com actividade predominante numa determinada área trabalha, também, noutras áreas. O pintor que faz poemas. O escritor que faz desenhos. O génio que faz tudo. O que sucede, nos casos referidos neste primeiro nível, é que as disciplinas permanecem separadas, autónomas e apenas se dá o caso de um mesmo autor se dedicar a diferentes disciplinas e dominar diferentes métodos de trabalho. Julgo que não se justifica aqui falar de transdisciplinaridade. A situação inédita que se generaliza no século XXI, e que pressupõe a segmentação estética e o tipo de valorização da experimentação de que já falámos, é aquela em que um autor integra uma diversidade articulada de disciplinas (antes consideradas diferentes e autónomas) na lógica genética da sua obra, tanto quanto no processo quotidiano de produção e na aparência final dos seus trabalhos. É o que chamamos o segundo nível da transdisciplinaridade. Um outro, aqui terceiro, nível de transdisciplinaridade, que se tem vindo a alargar de modo cada vez mais rápido no século XXI, é aquele que vai para além das articulações entre disciplinas artísticas e designa a inclusão nas práticas artísticas de outros tipo de práticas e saberes oriundos por exemplo das áreas dos estudos sociais, da militância cívica e política e da investigação tecnológica. Sistema das Artes no Século XXI

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Descrever este processo seria começar a escrever a história da arte do século XXI (o que não é o objectivo deste livro). Apenas alguns exemplos. Quanto à articulação com os estudos sociais, destacam-se trabalhos, cada vez mais numerosos, que sem deixarem de se apresentar como artísticos se podem situar de modo inequívoco na área da sociologia, etnologia ou antropologia. É fácil considerá-los como investigações (por vezes documentários) nesta área ou, seguramente, como materiais úteis para a pesquisa nesta área. No âmbito da militância cívica e política bastará recordar a ligação já histórica entre práticas artísticas e o feminismo, em particular, ou a luta contra a discriminação sexual, em geral. Ou o empenhamento de tantos autores e práticas artísticas na militância cívica relacionada com a questão da SIDA. Não se trata apenas de tomar estes problemas como temas mas de integrar a militância cívica no próprio processo de trabalho artístico. Exemplo mais geral, e cada vez mais comum (ao ponto de se poder considerar que, muitas vezes, se cai, hoje em dia, na banalização e na propaganda ideológica) é a plena e estrita inscrição da prática artística na militância política mais do agrado do autor. Importa agora abordar a dimensão institucional das questões práticas levantadas pela transdisciplinaridade. A dimensão institucional diz aqui respeito à gestão de carreira e aos modos de apresentação das obras e convocação dos públicos. Por exemplo, um artista plástico que também faz (ou começa a fazer) filmes ou um cineasta que também faz (ou começa a fazer) exposições têm de fazer opções, por exemplo, entre mostrar o trabalho num museu ou num festival de cinema, numa galeria de arte ou numa sala de cinema, ou talvez na internet. E como irá comercializar o seu produto transdisciplinar? No mercado do cinema ou no das artes plás-

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ticas? É que, apesar da generalização das práticas transdisciplinares de trabalho, os mercados e as estruturas de promoção institucional continuam separados e bem diferenciados. Temos, assim, muitos exemplos de artistas que já pensam e produzem cada corpo de trabalho em função da criação de possibilidades de apresentação em diferentes versões ou formatos (mais ou menos diferenciados em termos estéticos) destinados a diferentes públicos e mercados. A produção de um filme pode dar origem a uma versão específica para exibição em festivais e salas de cinema (obra única para o mercado do cinema, com possíveis variantes para DVD), uma ou mais versões singularizadas para apresentação em sala de exposições (pode tomar a forma de instalação) ou salas de casas de coleccionadores (a obra toma a forma de múltiplo, ou de variações «todas únicas» de uma mesma obra, para o mercado das artes). Ainda é possível apresentar (e vender), por exemplo, fotografias (produzidas a partir das imagens de um filme, eventualmente imagens filmadas mas não utilizadas no filme), ou apresentar como esculturas ou trabalhos plásticos autónomos os objectos e adereços utilizados na cenografia e coreografia do filme. Numa outra área, um coreógrafo que decide fazer um filme vai apresentá-lo em palco num festival de dança ou numa sala de cinema? E se decidir escrever e/ou ler um texto deve fazer um espectáculo ou uma conferência? Ou um livro? Esta é uma nova e aliciante tensão induzida pela transdisciplinaridade: a tensão entre a heterogeneidade dos processos de trabalho e a univocidade da vocação dos principais mecanismos institucionais de financiamento, divulgação, promoção e comercialização. De igual modo, para os trabalhos artísticos que se articulam com áreas de pesquisa ou acção social não especificamente artísticas põe-se Sistema das Artes no Século XXI

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a questão de saber qual a melhor forma de apresentar e veicular esses trabalhos. Quando se trata de apresentar centenas de páginas de documentos ou transcrições de conversas, ou milhares de fotografias documentais ou dezenas de horas de filmagens documentais será melhor apresentá-las numa sala de exposições, numa sala de cinema, num livro, num DVD, na internet? Ou, levantando uma outra questão, se o verdadeiro (e único?) objectivo é a militância porque não então, apenas, a adesão a um partido ou movimento social e a participação directa na luta política propriamente dita?

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PLURALISMO E RELATIVISMO

Hoje em dia não há limites definíveis a priori, de forma inequívoca e consensual, quanto às características formais das práticas ou objectos susceptíveis de serem acolhidos e reconhecidos no âmbito de uma determinada área da criação artística. Para designar esta situação falamos de uma situação de pluralismo e relativismo dos discursos de legitimação. Vejamos alguns exemplos simples, recentes e bem conhecidos: um monte de pedras pode ser uma obra de artes plásticas, o silêncio pode ser uma peça musical, um ecran monocromático azul pode ser um filme, um corpo imóvel pode ser dança, e qualquer grupo de palavras pode ser um texto literário. Tudo pode ser arte. Dissemos que qualquer coisa pode ser arte e não que qualquer coisa é arte. Porque, para que o que quer que seja passe do poder ser arte ao ser arte, tem que ser socialmente reconhecido como arte pelo conjunto da sociedade, ou pelos específicos círculos de especialistas em que a sociedade informalmente delega a competência para a concessão e reconhecimento do estatuto artístico. Uma parte substancial deste trabalho de reconhecimento consiste na produção de discursos de legitimação — desde a opinião de circunstância até à tese erudita — através dos quais se elaboram os consensos informais em que assentam os processos de qualificação e valorização das obras de arte. Sistema das Artes no Século XXI

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Perante a situação de pluralismo radical e absoluto — que descrevemos ao falar da segmentação das estruturas de produção —, e da consequente ausência e impossibilidade de critérios de avaliação comparativa com pretensões à aceitabilidade universal, é evidente que os discursos de legitimação estão — como, de resto, em rigor, sempre estiveram — condenados a uma situação de relativismo, também ele radical e absoluto. Se tudo é possível no domínio das práticas artísticas, por maioria de razão, também tudo tem de ser possível no âmbito dos discursos sobre as práticas artísticas. Os únicos limites são os da liberdade do jogo de confrontos e contradições entre uma multiplicidade de ideias, hipóteses, teses e opiniões de entre as quais, em cada momento histórico, num prazo mais ou menos longo, e de um modo mais ou menos duradouro, umas ou outras poderão lograr uma adesão e sucesso mais ou menos amplos e um correspondente incremento de prestígio e cotação para os seus autores e para os autores que eles valorizem. A combinação de pluralismo e relativismo configura uma situação ideal de liberdade tendencialmente total. Alguns espíritos reactivos teimam em considerar que esta é uma situação de crise ou colapso dos valores artísticos, ou mesmo de morte da arte ou da crítica. Na realidade, a situação de pluralismo e relativismo generalizados, nas práticas e discursos sobre as práticas artísticas, é a situação que mais se aproxima de um entendimento da arte como exercício utópico e libertário da liberdade da imaginação. Para não nos limitarmos a um enunciado predicativo, ainda que optimista — o que em geral se afigura cada vez menos viável nos tempos que correm —, não queremos evitar, ainda que recorrendo a algu-

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mas simplificações, uma abordagem das implicações da questão em termos mais pragmáticos e concretos. Mas então, se, no domínio das artes, tudo se pode fazer e tudo se pode dizer sobre tudo o que se faça, como é que se pode escolher, elaborar, o que se faz ou o que se diz? Na prática quotidiana das actividades, entrelaçadas, de produção ou comentário das artes, o relativismo, sem deixar de ser absoluto e radical, é apesar de tudo mitigado por alguns factores cuja pertinência é acatada de modo quase universal. Analisaremos aqui dois desses factores: a informação e o juízo comparativo. O tópico da informação leva-nos à questão da ignorância. Se um artista apresentar um conjunto de imitações (o que é diferente de falsificações) mal feitas de obras já conhecidas (mesmo que ele não saiba que são imitações e que estão mal feitas) talvez se possa dizer que essas obras são piores que as precedentes. Se um crítico escrever um texto com erros factuais ou que revela uma insofismável ignorância em relação a informações básicas sobre a temática em apreço poder-se-á talvez dizer que esse não é um bom texto. Ainda assim nem sequer estas asserções minimais são incontestáveis. No primeiro caso, pode argumentar-se que a imitação não tem de ser inferior ao imitado, porque a originalidade há muito deixou de ser um valor absoluto. Ou que a qualificação de algo como «mal feito» pressupõe o acatamento de regras de «bem fazer» técnico sempre susceptíveis de serem consideradas datadas, ultrapassadas ou mesmo merecedoras de desrespeito crítico. Quer o artista tenha procedido de forma deliberada, quer tenha procedido de forma ingénua pode sempre ser valorizado, no primeiro caso pela sua irreverência (ou quem sabe espírito de contestação), ou, no segundo caso, pela sua espontaSistema das Artes no Século XXI

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neidade ou autenticidade. Todos sabemos até que ponto a ignorância, em certas situações, pode ser uma bênção. Mesmo o tipo de texto que apresentámos como sendo difícil considerar um bom texto pode ser defendido seguindo várias linhas de argumentação. Por exemplo, em função da qualidade literária, valorizável de modo autónomo em relação à aferição da pertinência da articulação com o referente. Ou até em função da sua «falta de qualidade literária» se a quisermos considerar, em si mesma, como um valor positivo. Uma outra linha de argumentação poderá defender uma visão da teoria ou da crítica como ficção, transformando os erros ou as omissões em opções criativas, tanto mais estimáveis quanto mais delirantes. No espaço-tempo sem limites que é produzido pela linguagem não há lei que nos impeça de dizer que uma imitação feita ontem, «mal feita», da «Mona Lisa» é não apenas melhor mas anterior ao original. Em relação à questão do juízo comparativo — e deixando agora o terreno das especulações mais extremas em favor da aproximação às práticas quotidianas concretas — encaremos uma questão. Como é que um especialista (crítico ou curador) que durante um ano visita centenas de exposições ou estúdios e numa única grande exposição internacional se vê confrontado em dois ou três dias com milhares de obras chega a conclusões que lhe permitam elaborar e emitir uma opinião? Como é que escolhe? Não ignorando que, mais uma vez, nos estamos a refugiar no mais elementar bom senso, diríamos que opera através de juízos comparativos. Em primeiro lugar, já que a infinita diversidade das obras impede uma comparação directa entre todas, há que, mentalmente as subdividir em grupos dentro dos quais seja possível a comparação. Depois,

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dentro de cada grupo, há que identificar factores de avaliação relativamente aos quais as obras possam ser comparadas: serem mais ou menos isto ou aquilo (originais, bem feitas, etc., etc., etc.). O bom sucesso destas operações de relativização do relativismo (uma das mais fascinantes questões do debate político, filosófico, estético e ético contemporâneo) depende do nível de informação e experiência acumuladas pelo operador (por isso se fala de «especialistas», os que já viram muita coisa, já passaram por muita coisa). E depende ainda, se não quisermos evitar a embaraçosa palavra, do bom senso. Sem esquecer que, diga-se o que se disser, sobra sempre uma incalculável margem de subjectividade.

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MEDIAÇÃO GENERALIZADA

O corolário da análise que vimos conduzindo é a consideração da mediação generalizada como característica fundamental dos modos de inserção das práticas artísticas na vida social. Na nossa perspectiva a noção de mediação — generalizada — tem uma importância fundamental para a compreensão das transformações recentes das estruturas de produção e circulação cultural à escala global. De acordo com concepções tradicionais, que ainda hoje continuam a ser perfilhadas por uma grande parte da opinião pública — e mesmo de alguns artistas mais ignorantes, ingénuos ou inocentes, ou apenas muito jovens —, a relação entre o artista e a sociedade obedecia ao que chamaremos o modelo solipsista. O artista encerrado na sua torre de marfim, sob o impulso da inspiração divina ou do seu próprio umbigo, produz as obras que depois eventualmente caem no mundo para aí serem objecto de indiferença, desprezo ou adoração. O artista está só, isolado, num mundo à parte. Segundo um outro modelo também já tradicional, que chamamos o modelo comunicante, a obra de arte surge como comunicação entre autor e público, produtor e receptor, e os sentidos da obra constroem-se no ponto de encontro entre as inspirações, intenções e mensagens do criador e as competências emocionais, descodificadoras e imaginativas do receptor.

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Ambos os modelos revelam uma fraca capacidade descritiva e explicativa já que, na realidade, não há artistas sozinhos nem há relações directas bipolares entre um criador e um receptor. Para aceitar estes pressupostos seria preciso pôr entre parêntesis o resto do mundo o que sendo possível no âmbito da especulação filosófica (é uma das tácticas da fenomenologia) já não o é na perspectiva da análise social. A contestação da eficácia explicativa destes modelos não deve no entanto anular o reconhecimento da especificidade das experiências que eles enfatizam. O facto do trabalho de produção artística ter lugar no quadro de um contexto produtivo e discursivo alargado (os chamados «mundos da arte») sem os quais as obras de arte não teriam existência social, nem seriam compreensíveis, não impede que a experiência física, emocional e intelectual do autor seja uma experiência pessoal, individual, até certo ponto intransmissível, e em que a solidão (a por vezes chamada «solidão criativa», com os inerentes sentimentos de angústia, entusiasmo, frustração ou outros), em muitos casos, tem um papel decisivo. A sociologia não pode nem deve ignorar esta dimensão existencial específica do trabalho do artista. A crítica às limitações do modelo comunicante bipolar também não pode ser levada ao extremo de negar a irredutibilidade de um possível confronto pessoal, único, intraduzível, entre uma pessoa, e só uma pessoa, e só numa determinada situação, e uma obra de arte. A sociologia não tem de ignorar a psicologia individual e importa reconhecer a dimensão do leque e a diversidade da intensidade dos efeitos emocionais e intelectuais que, em determinados momentos, em determinadas circunstâncias, o confronto com uma obra de arte em particular pode ter numa pessoa em particular. O facto de as actuais relaSistema das Artes no Século XXI

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ções dos públicos com as obras de arte se caracterizarem, na sua esmagadora maioria, pela ignorância, indiferença, incompreensão ou banalidade não permite ignorar os momentos ou sentimentos de entusiasmo, revelação, arrebatamento, ou mesmo paixão, que algumas pessoas, por vezes, experimentam quando confrontadas com algumas obras de arte. Cada um, se puder, evocará os seus exemplos pessoais. Para obviar aos problemas causados à análise sociológica pelas limitações dos modelos solipsista e comunicante podemos introduzir a categoria de intermediário. A noção de intermediário, sob diferentes modalidades e abrangendo diferentes personagens, permite fazer a ligação ou mediação entre os produtores e os consumidores, entre os criadores e o público. A categoria de intermediário inclui uma grande variedade de figuras cujas designações e funções variam de acordo com as diferentes disciplinas artísticas: vendedores, consultores, agentes, produtores, empresários, críticos, managers, relações públicas. As variantes são intermináveis e a especialização e divisão de funções continua a aumentar. Hoje em dia, e para além das categorias mais tradicionais, vale a pena destacar duas áreas de especialização, por vezes esquecidas ou subestimadas nas análises dos sistemas das artes, talvez porque, pela sua natureza, são consideradas mais distantes da ideia de criatividade associada à produção artística. A primeira área é a angariação de fundos, que vai muito para além do concurso a um subsídio ou da sedução de um patrocinador (que já por si nada têm de simples) e requer um conjunto cada vez mais exigente de conhecimentos na área financeira (regimes fiscais, por exemplo) ou jurídica (legislações internacionais sobre apoios à cultura, por exemplo). Outra área em expansão é a gestão da comunicação. Já não basta telefonar a meia dúzia de críticos e jornalistas. A partir de uma escala

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mediana de produção é necessário anteceder o lançamento de qualquer obra de uma campanha de comunicação (como se de uma campanha eleitoral se tratasse) que tem de ser pensada antecipadamente de um modo coerente com unidade orgânica, clarividência táctica e focos bem definidos. O conceito geral produzido para o processo de comunicação de uma obra desdobra-se depois, segundo um calendário consequente, num vasto conjunto de operações dirigidas a diversos tipos de destinatários (financiadores, comunicação social, responsáveis institucionais, operadores mundanos, etc.). Num certo sentido poderíamos dizer que a mediação é a forma de existência social das obras de arte, já que a ideia de uma criação, em estado puro, ou de uma recepção, em estado puro, isto é, sem mediações, não têm existência socialmente reconhecível e remetem para o domínio da especulação filosófica ou, eventualmente, da psicologia. No entanto, a hipótese que queremos enunciar vai um pouco mais longe. A mediação, sendo a forma de existência social das obras de arte, não é apenas, ou melhor, não pode já continuar a ser definida apenas como o conjunto das operações de intermediação entre o criador e o receptor ou entre os artistas e o público. Esse espaço e essa distância «entre» não existem. Tal como também não existe a sequência cronológica entre o que seriam os sucessivos momentos da criação, intermediação e recepção. Recorrendo a uma formulação algo paradoxal diríamos que a mediação precede a criação. Muitas vezes, quando um filme — sobretudo, se for uma superprodução — chega a começar a ser materialmente produzido já foi objecto de vários anos de operações de mediação que incluem uma infinidade de negociações, financiamentos, sondagens, estudos de mercado. Quando, finalmente, o filme estreia já foi objecto, desde o momento em Sistema das Artes no Século XXI

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que foi tomada a decisão de o produzir, de massivas operações de distribuição e promoção em que, por exemplo, o merchandising e o branding têm uma importância fundamental. Situações semelhantes encontram-se nas grandes produções teatrais e operáticas, nas grandes exposições internacionais de arte e mesmo entre os escritores mais famosos, quando, para dar um exemplo, os editores negoceiam os direitos de um próximo livro (e contratam os tradutores) antes ainda de o livro ter sido concluído, ou sequer iniciado. Evidentemente, a precedência da mediação sobre a produção é mais notória em produtos culturais que ocupam o topo da hierarquia económica mas a efectividade da lógica da mediação está mais generalizada. Mesmo os pequenos colectivos de jovens actores ou artistas plásticos, por exemplo, sabem hoje que um dos pontos de partida de qualquer projecto criativo é o desencadear das operações de financiamento, promoção e enquadramento que permitirão viabilizar a sua concretização e divulgação. Sem mediação não só não existe recepção como, em muitos casos, não chega a poder existir criação.

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ÍNDICE

SISTEMA DAS ARTES NO SÉCULO XXI . . . . . . . . . . . .

Mais Globalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segmentação e Hierarquização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Experimentação e Inovação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eclecticismo e Transdisciplinaridade. . . . . . . . . . . . . . . . . Pluralismo e Relativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mediação Generalizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . GEOGRAFIAS DO PODER NO SISTEMA DA ARTE . . .

5 9 13 18 21 27 32

Entre o Global e o Local . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nem Centro nem Periferia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

37 40 49

DO MUNDO DA ARTE ÀS ARTES DO MUNDO . . . . .

71

QUE DIZER? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

95 97

Discursos de Legitimação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

QUE FAZER? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Dos Discursos às Políticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 Política Cultural ou o Lugar da Cultura na Política do Século XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Índice

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ARTE E PODER NA ERA GLOBAL

ARTE E PODER NA ERA GLOBAL D O C U M E N TA


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