Alexandre Melo, Triunfo da Crise Económica

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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA), 2016 RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA E ALEXANDRE MELO (2016) EDIÇÃO OUTUBRO 2016 ISBN 978-989-8834-40-9


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SUMÁRIO

TRIUNFO DA CRISE ECONÓMICA. . . . . . . . . . . . . .

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CRÍTICAS DA ECONOMIA POLÍTICA . . . . . . . . . . .

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SENTIDOS DA ECONOMIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A QUADRATURA DO CÍRCULO ALTHUSSERIANO

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SOBRE UMA HISTÓRIA MATERIALISTA EM RUPTURA COM A IDEOLOGIA MARXISTA . .

Sumário

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Um espectro assola a Europa e o mundo: o espectro da crise. Há uma espécie de horror à palavra «crise». O horror toma duas formas simétricas: denegação e agitação. A denegação consiste em afirmar, contra toda a evidência, que, no fundo (na ocorrência, o uso da palavra «fundo» afigura-se adequado), está tudo bem e o que parece não estar bem é uma coisa passageira e que aliás se calhar até foi bom, até já passou. É uma boa atitude para quem gosta de parecer calmo. Não passou nem vai passar. Não há nem vai haver. Lembro um treinador de futebol que enquanto a sua equipa se afundava com sucessivas derrotas declarava imperturbável: «o resultado é perfeitamente normal». O que não deixava de ser verdade. A prosperidade, a paz e o equilíbrio são coisas que não há nem há-de haver. A agitação, mais aconselhável para quem gosta de parecer que está a fazer alguma coisa, leva a considerar a crise como uma coisa tão grande e tão horrível que impõe a urgência de uma enérgica acção transformadora não se sabe de quê (alguns séculos atrás chamavam-lhe «revolução» e ainda há quem assim lhe chame) que invariavelmente conduz a coisas também elas mais ou menos horrorosas. Enfim, mais crises. «Spectres de Marx», diria Jacques Derrida. O que também não deixa de voltar a dar razão à necessidade de acção reclamada pelas almas agitadas. Triunfo da Crise Económica

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A solução para o dilema consiste num simples exercício de constatação. Aliás, a constatação é talvez a única operação necessária e útil para a produção de conhecimento ou, numa linguagem menos grosseira, a construção de sabedoria. A realidade é que só há, sempre e só, crise. A vida é liberdade. A liberdade é luta pela liberdade porque (todos?) os seres humanos querem aquilo que querem e para poderem tentar obter aquilo que querem precisam de liberdade e por isso lutam pela liberdade para poderem lutar por aquilo que querem. A menos que não queiram nada ou nunca tenham pensado no assunto o que torna a vida (ou seja a luta, a crise) mais fácil para os outros. Mas é difícil encontrar pessoas que pelo menos não queiram respirar, comer, beber, coisas de cariz sexual (é possível que, uma vez que não apostam numa vida longa, uma das principais motivações para os terroristas islâmicos, enquanto não chegam ao paraíso, seja a expectativa de um fácil acesso a escravas sexuais, isto, claro está, para além dos prazeres de matar e de obedecer) e ainda mais algumas coisas. As consequências do facto de a vida social dos seres humanos ser o conjunto das acções das pessoas empenhadas em fazer aquilo que querem são igualmente evidentes. Não é possível todas as pessoas fazerem tudo o que querem porque muitos não sabem o que querem (a cabeça é fraca, ou seja, o sistema nervoso humano é muito complexo) e porque essa imensidade de coisas queridas pelas pessoas contem uma imensidade de desejos incompatíveis. 12

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Por isso a vida é liberdade. A liberdade é luta. A luta é crise. O «capital» é a liberdade. A «luta de classes» é liberdade. O problema é a definição de «classe», mas esse é um outro problema. Transferindo estas reflexões singelas para o terreno da economia e do pensamento económico a constatação primordial é igualmente simples. As pessoas tendem a querer mais, embora seja sempre bem vindo, até pela sua raridade, o contributo (cristão?) daqueles que por ventura já estejam satisfeitos, ou queiram menos ou nada. Os operários querem mais, os pobres querem mais, os empresários querem mais, os ricos querem mais, parece que é uma coisa própria da espécie. É defensável que a inveja seja um dos principais operadores emocionais mas essa hipótese já escapa ao foro económico concreto, em sentido estrito. Todos querem mais. «Everybody wants money. That’s why they call it money». «Não há dinheiro. Qual das palavras desta frase é que não percebem?». Não há nem nunca vai haver dinheiro que chegue. Para designar todas estas coisas óbvias utilizam-se, segundo as diferentes tradições do pensamento económico dos séculos passados, palavras e expressões como «liberdade de escolha», «luta de classes» ou «capital». São sinónimos e designam apenas a evidência do facto de a vida económica ter a forma de crise. Só há crise.

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Nota pragmática sobre a crise de 2008 «Mas cuidado, milady, não se afoite, Que hão-de acabar os bárbaros reais; E os povos humilhados, pela noite, Para a vingança aguçam os punhais. E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas, Sob o cetim do Azul e as andorinhas, Eu hei-de ver errar, alucinadas, E arrastando farrapos – as rainhas!» Cesário Verde

Para não me limitar a generalidades abstractas apresentaria agora algumas considerações, talvez heterodoxas, sobre a crise económica de 2008 e suas consequências. Em primeiro lugar, conviria não esquecer que quando se denuncia o horror dos excessos cometidos pelo capital financeiro no período anterior à eclosão da crise muitas vezes se esquece que, sem esses excessos (produto da extraordinária imaginação e ambição dos especuladores), não teria existido a abundância de liquidez que durante esse mesmo período tanto contribuiu para a fortuna e o bem-estar não só (embora acima de tudo e de todos e em assombrosas proporções) dos referidos especuladores mas de mais algumas dezenas de milhões de pessoas, entre as quais (e são apenas exemplos) investigadores científicos (as grandes bolsas das grandes universidades), agentes culturais em geral e artistas plásticos em particular. 14

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Quando ouvimos denunciar os horrores dessa falsa prosperidade, em nome da defesa da verdade da situação económica real que, pelos vistos, é aquilo com que agora nos deparamos, parece que a conclusão lógica é que deveríamos ter sido mantidos na situação de miséria em que agora nos encontramos sem passar por aquele horrível período de falsa prosperidade. Se assim fosse, em vez dos efeitos da crise estaríamos hoje tranquilamente e desfrutar a miséria do costume. Se tantas vezes ouvimos falar dos prodígios e excessos de imaginação e ambição como atributos (geralmente consideradas positivos) do trabalho dos artistas parece que só será correcto criticar essas qualidades no trabalho dos especuladores caso estes não respeitem as leis (também não aceitaríamos que um artista matasse pessoas numa performance). Outro problema, mas esse da responsabilidade dos políticos e dos cidadãos eleitores, é saber se as leis que regulam estas matérias estão bem feitas. É de admitir que o nível de inteligência e informação dos políticos seja inferior ao dos especuladores. Em termos mais concretos, e no que diz respeito às persistentes desventuras do sistema bancário, importa não confundir todas as situações. Para evitar simplificações demasiado demagógicas, à esquerda ou à direita, no que diz respeito à catástrofe do sistema financeiro declarada em 2008 e ainda em curso haveria que distinguir, mesmo nos casos mais mediáticos, entre três situações diferentes. Uma coisa são as consequências económicas (inevitáveis) de uma imensa crise financeira cuja eclosão foi por todos antecipada mas cujo momento e forma de eclosão quase ninguém previu. Triunfo da Crise Económica

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Outra coisa são os delírios e abusos, nos limites da legalidade (ou melhor, explorando os famosos «buracos» das leis) inerentes a períodos de euforia financeira. A famosa especulação, a que os falsos moralistas sempre chamam «desenfreada» e a que os verdadeiros moralistas, os mais perigosos, chamam «moralmente» inaceitável. A abordagem destes supostos desmandos confronta-se com dois problemas. O primeiro é saber como é que se legisla, por antecipação, contra formas de negócio que são imaginadas precisamente para não serem abrangidas pela legislação. O outro problema é saber quem define a tal moral que, pelos vistos, não precisa de se traduzir em lei. Qualquer acusação de imoralidade que não seja uma acusação de ilegalidade é, em democracia, um preconceito, por maior que seja a simpatia que as nossas opções éticas por ele nos inspirem. Por fim, uma outra coisa ainda, e esta particularmente irritante, é a acção de agentes financeiros ou a criação de instituições financeiras com vocação criminosa, sejam elas assentes na lógica «mafiosa» da «família» ou do «clã», ou na lógica do compadrio político, com inspiração e protecção ao nível das mais altas instâncias do Estado. Os exemplos são tantos e tão óbvios que nem é preciso dizer os nomes. Este tipo de comportamento criminoso em matéria de economia não é exclusivo da área financeira, como se pode observar nos recentes escândalos ao mais alto nível da indústria automóvel. Mas mesmo nestes últimos casos não há motivo para preocupações. A total ou tendencial inépcia, nestas matérias, do sistema de justiça e o tendencial e virtuoso desaparecimento da «justiça de rua» asseguram que quase ninguém será castigado. Não sei se tere16

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mos a velha consolação cinematográfica de ver o sangue dos bandidos a escorrer pelo asfalto em direcção às sarjetas a que pertence. Os ricos continuarão a ser ricos e os pobres continuarão a ser pobres. É a crise. Se quisermos pensar em «termos de futuro», como dizem, na brincadeira, políticos que (como é absolutamente normal) não tenham a menor ideia do que será o futuro, a chamada solução para a crise ou seja, para utilizar uma linguagem rigorosa, a continuação da crise tenderá a tomar uma forma que também se afigura relativamente óbvia. Como o problema é, hoje e sempre, mas mais hoje do que noutros dias, a falta de dinheiro, trata-se de inventar novas formas de ganhar dinheiro. Julgo que é legítimo admitir a possibilidade de estes prodigiosos exercícios de imaginação virem a resultar da ambição (de preferência, desmedida) dos investidores, da ganância (por certo desenfreada) dos especuladores, da criatividade (quase infinita) dos artistas ou da proliferação (obviamente universal) dos homens de boa vontade. É uma questão de cálculo de probabilidades.

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«Sentidos da Economia» foi escrito em 1986, no âmbito da realização, no ISCTE, das Provas Pedagógicas e de Capacidade Científica, equivalentes à defesa de uma Tese de Mestrado, para quem já fosse docente universitário, o que era meu caso desde 1982, ano em que comecei, no ISCTE, a leccionar a cadeira de Economia I. Depois da aprovação foi-me recomendada uma revisão do texto com vista a publicação numa revista académica especializada. Entretanto, como é seu hábito, o tempo passou. Os meus interesses, investigações e actividades foram-se orientando cada vez mais para os domínios da sociologia da arte e da cultura e da crítica e teoria da arte contemporânea. Nessas áreas foram surgindo novas investigações, novas actividades lectivas, textos, livros, uma tese de doutoramento. De tempos a tempos re-encontrava nos meus arquivos a minha tese sobre economia e decidia publicá-la. Há alguns anos chegou a ser paginada e já só faltava uma introdução e uma revisão para actualização. Por fim, em 2016, ou seja, 30 anos depois da sua redacção, decidi que não seria pertinente tentar fazer nem uma revisão nem uma actualização globais e que o texto que agora estão a ler faria o possível para contextualizar a velha tese e, já agora, fazer «um ajuste Críticas da Economia Política

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de contas com a nossa consciência filosófica anterior» (Karl Marx, Prefácio à Crítica da Economia Política, 1859, a propósito de «A Ideologia Alemã»). A opção, para além da conveniência prática (actualizar 30 anos de bibliografia implicaria escrever um outro livro), resultou da convicção de que, infelizmente para os destinos da (relativamente) infeliz espécie humana o essencial das principais teses enunciadas permanece, em termos gerais, actual e, do meu ponto de vista, pertinente. Admito a possibilidade de ter sido o meu ponto de vista que não evoluiu, até porque reconheço ser pouco propenso a mudar de opinião. Irei então recapitulando, ao ritmo do fluxo deste texto, algumas das hipóteses da «velha tese», cuja eventual pertinência na atualidade talvez mereça ponderação. Começo (Hipótese 1) pela constatação da assustadora ignorância dos economistas que nos proporciona uma quotidiana confirmação do abuso de linguagem correspondente à expressão «ciência económica» (se é que alguém ainda ousa utilizar esta expressão). Para ilustrar esta hipótese bastará evocar a quase universal incapacidade de prever, acautelar ou, em muitos casos (por exemplo, e da forma mais estrepitosa, no caso da União Europeia), sequer remediar de forma razoavelmente eficaz a «grande crise» financeira e económica de 2008. Quase ninguém conseguiu prever o famoso «Minsky Moment» (do nome do economista Hyman Minsky, especialista no estudo da relação entre o endividamento financeiro e as crises) que alguns fa22

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zem coincidir com a falência do Lehman Brothers em Setembro de 2008. Entre os poucos que teriam antecipado a catástrofe tornou-se, então, famoso Nouriel Roubini, que desde 2006 alertara para os perigos explosivos da evolução do mercado de hipotecas imobiliárias «subprime». Instalada a «Grande Crise», e à medida que se foi tornando (mais ou menos) evidente «aquilo que tinha corrido mal» houve um breve período durante o qual ninguém negou que poderiam ter existido alguns abusos especulativos do sistema financeiro, provocados pelos excessos da desregulação, ou que se poderia ter talvez depositado uma confiança demasiado cega na pureza e excelência dos puros mecanismos do mercado. No entanto, ainda a «Grande Crise» ia «no adro» já se começavam a desenhar algumas dúvidas quanto ao «diagnóstico» e muitas discordâncias quanto às causas da «doença», abrindo o caminho para a instauração das habituais e tradicionais clivagens quanto à «terapia». As mesmas clivagens do século passado, como se nada tivesse acontecido e (é o caso) ninguém se tivesse arrependido e nada se tivesse aprendido. A clivagem fundamental (Hipótese 2) continua a ser entre o que adiante chamamos o «paradigma neo-clássico» e o «paradigma keynesiano». Em 2015, a CNN, para tentar explicar as divergências quanto à análise da situação económica actual apresentava uma peça jornalística sobre a oposição entre Friedrich Hayek e John Maynard Keynes. Já lá vão quase 100 anos. Isto para não falar de Karl Marx Críticas da Economia Política

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que nunca saiu do século XIX. A situação chega a ser comovente quando vemos pequenas multidões de jovens recentes agarrados aos telemóveis a vibrar ao som dos anacrónicos slogans de «velhos» marxistas impenitentes. O paradigma «neo-clássico» assenta na crença na bondade absoluta do livre funcionamento dos mecanismos do mercado. É o que hoje se chama, na linguagem corrente, (omitindo aqui, para efeitos de simplificação, várias nuances não irrelevantes) modelo «neo-liberal», no calão político europeu, ou modelo «neo-conservador», no calão político norte-americano. Um dos mais famosos vulgarizadores recentes foi Milton Friedman com a sua famosa «liberdade para escolher» («Free to Choose», 1980). Também se falou muito da «Escola de Chicago» ou de «monetaristas» porque tendem a defender (continuamos a simplificar) que a política económica se deveria limitar à política monetária. O paradigma «keynesiano» continua a defender a intervenção do Estado na economia, sobretudo em situações de crise, quer através de políticas de investimento, sobretudo em infraestruturas, quer através de políticas de redistribuição e de garantia de serviços públicos universais. Fala-se de políticas «do lado da procura», mobilizando a política orçamental. Um exemplo recente é Paul Krugman (Prémio Nobel da Economia, 2008) e é interessante acompanhá-lo no debate sobre política económica nos EUA. Se o lermos, semana após semana no New York Times (ou no lancinante apelo que serve de título ao seu livro de 2012: End This Depression Now!) parece evidente, mesmo para quem não conheça Keynes, que o autor tem toda a razão na sua argumentação contra as obsessões dos devotos 24

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do mercado e a favor de determinados tipos de intervenção do Estado na economia. Para os leitores que simpatizem com o Partido Democrático tudo parece pautado pelo mais elementar bom senso. E no entanto todas as semanas ele se queixa que o povo americano parece não querer reconhecer a sua razão. Pelo contrário, vozes sonantes do Partido Republicano (Paul Ryan, por exemplo) defendem exactamente o contrário (e não faltam para os apoiar vozes de economistas que, não se sabe porquê, são sempre todos muito «respeitados» e são sempre especialistas de reputadas universidades famosas, provavelmente pagas pelas mesmas pessoas que pagam aos políticos republicanos). Todos defendem (em termos gerais e em qualquer questão concreta) exactamente o contrário dos keynesianos. Apesar disso (ou será que por causa disso) os Republicanos tiveram uma das maiores vitórias de sempre nas eleições intercalares em 2014. É possível que o peculiar sentido de Estado do Presidente Obama (considerando que o Estado em questão são os Estados Unidos da América) e o seu também peculiar comportamento em matéria de política internacional, não tenham ajudado, mas é curioso que nunca tenha conseguido formar consensos ou sequer uma maioria inequívoca para intervenções (que nem eram muito ambiciosas) na área social e económica. Para quem defende que o Partido Republicano só serve os mais ricos (o famoso «1%», que nos últimos anos se terá transformado em 0,1%) não será fácil explicar como um «progressista» não consegue obter um claro apoio entre os restantes (sempre são 99%). Será que não foi suficientemente «progressista»? Será que foi demasiado «progressista»? Críticas da Economia Política

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Em todo o caso, no Verão eleitoral de 2016, até os republicanos estão atormentados por quezílias insanáveis (?) no que diz respeito aos seus próprios princípios de política económica. Donald Trump anuncia pontos de convergência populista com Bernie Sanders, na esquerda «socialista» do Partido Democrático. Será que afinal há consenso entre os «sábios»? Na realidade, a questão é já outra e não é económica: «To Trump or not to Trump?». Talvez exista aqui uma questão ideológica – e falamos de ideologia propriamente dita – a que a miséria do saber económico não consegue acudir. Mas vamos deixar essa hipótese para o final porque as sequelas da crise em curso merecem alguns comentários mais circunstanciais. (Hipótese 3) O problema que quero evocar é mais prosaico se não mesmo mais mesquinho. É o problema das imensas limitações dos modelos matemáticos usados pelos economistas e que, quando usados de forma mecânica, acrítica e indiferente a factores socioculturais, são susceptíveis de provocar consequências não previstas, opostas às previstas e indesejáveis. O uso da palavra «indesejáveis» é talvez abusivo já que os economistas profissionais que rotineiramente aplicam estes modelos não têm ideais nem desejos que vão para além do seu sucesso profissional, ou seja, têm como único objectivo agradar aos seus superiores para tentarem ganhar mais dinheiro. Nos últimos anos, muitos dos chamados progressos do saber económico consistiram no aumento da sofisticação matemática destes modelos, na via da prossecução de uma aritmética de luxo (uma espécie de contas de 26

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merceeiro «gourmet») que permite produzir, de modo quase automático, conjuntos de medidas para a obtenção dos ratios fixados como objectivos. Basta abstrair das mudanças não previstas (ou seja o devir histórico que inclui coisas estranhas como sejam crises) e também das consequências no plano social e humano, as quais, sendo de avaliação subjectiva, têm de ser deixadas fora do campo da análise «científica». Depois logo se vê. Vou dar um exemplo do que considero avaliações subjectivas. Pode considerar-se desagradável que muitas pessoas morram devido aos cortes nos serviços públicos de saúde, que algumas pessoas decidam matar os familiares ou suicidar-se porque não têm emprego, ou que os idosos morram mais cedo porque não têm dinheiro para se tratar. Ou que um pequeno país (por exemplo com cerca de 10 milhões de habitantes) veja emigrar em meia dúzia de anos meio milhão de cidadãos qualificados em idade activa, os quais entretanto também decidiram, pelo sim pelo não, deixar de ter filhos. Mas esta é uma opinião subjectiva. Na verdade, também se pode defender que todos estes desideratos contribuem para a diminuição do desemprego e para o equilíbrio das contas públicas, mesmo que a médio prazo arruínem a segurança social; ao que se pode ripostar que a sua ruína é inevitável. E há que reconhecer que quem emigra (e mesmo talvez, quem sabe, quem morre) talvez fique melhor do que se tivesse ficado onde estava. Permitam-me, numa breve digressão em tom especulativo, tornar mais explícita a referência ao caso português; ainda que o modelo possa ser aplicado noutros países. Se o fluxo emigratório se mantiver e se a contenção dos custos salariais, a degradação do serviço de saúde pública e o estrangulaCríticas da Economia Política

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mento do sistema de segurança social avançarem o suficiente para, a curto ou médio prazo, terem efeitos significativos na redução da esperança média de vida e na queda da taxa de natalidade, é de prever que dentro de duas décadas a situação económica portuguesa tenha encontrado o seu ponto de estabilidade natural, tal como o definiria qualquer modelo matemático realmente rigoroso. Os governantes farão o que puderem mas as pessoas têm de colaborar. Deixem-nos sonhar com um país de praias e planícies, colinas e montanhas, onde convivem alegremente turistas, emigrantes em férias, empregados de mesa, chefes de cozinha e alguns artistas, tendo como pano de fundo uma dúzia de grandes empresas detidas e geridas por estrangeiros e algumas pequenas empresas (criativas e empreendedoras) dirigidas por jovens génios portugueses (suficientemente extravagantes para não emigrarem) que, com meia dúzia de empregados mal pagos (é o segredo da maximização da «produtividade»), consigam conquistar um pequeno nicho nalgum mercado internacional. «Yes We Can». Nem é preciso governo. Na verdade, e assim chegamos à nossa hipótese conclusiva, (Hipótese 4) é tudo uma questão de «imaginário», uma noção algo mais rica e abrangente do que a noção de «narrativa», actualmente muito em voga. Em linguagem (neo-) marxista poderíamos enunciar, em termos de processo histórico, a «lei» da «determinação em última instância» pela ideologia (e não pela economia) e, em termos de processo de pensamento, a «função de comando» da ideologia (e não da teoria). O «imaginário». 28

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Comecemos pelos famosos »mercados financeiros«. Tudo indica que os comportamentos (investimentos) na área financeira, mas também económica, dependem, cada vez mais, das expectativas. Isto é, da capacidade de transmitir ou captar uma mensagem consistente e «credível» (acreditar; é nisso que, aliás, assenta a própria possibilidade da existência de moeda) em relação ao futuro (próximo). Este é um trabalho político e, no essencial, ideológico, de produção de crença ou «confiança». Por outro lado existem já múltiplos modelos de gestão de risco que assentam em princípios de irracionalidade. A este respeito veja-se, por exemplo, o ensaio «The Ghost in the Financial Machine» de Arjun Appadurai (in The Future as Cultural Fact, 2013). Se passarmos da área da economia para a área da política o protagonismo da ideologia é ainda mais evidente. Ainda alguém se lembra das teorias que defendiam que as opções políticas (seja em termos de voto, combate de rua ou organização armada) eram determinadas pelos interesses económicos e o desejo de melhoria do bem-estar social? Será que os terroristas islâmicos têm como objectivo a promoção do bem-estar social? Porque é que, em 2016, milhões de americanos empobrecidos e fustigados pela crise acudem em massa para apoiar Donald Trump? Parece que para alguns americanos os sentimentos de amor e fidelidade à América, tal como os sentem (ideologia) são mais fortes e dão-lhes mais felicidade e bem-estar do que eventuais promessas de progamas estatais de acesso facilitado a creches, escolas e Críticas da Economia Política

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hospitais. «The Second Amendment People» acredita que «Freedom is not Free». Poder-se-á considerar que estas ideias estão erradas e que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ainda assim, não é tarefa fácil explicar a uma pessoa, ou vários milhões de pessoas, que o que sentem está errado. É o combate ideológico. Será que as pessoas votam ou matam de uma determinada maneira para terem uma vida melhor? Será que o fazem porque acreditam que é o melhor para elas (acreditar)? Será que as pessoas querem escolher aquilo que querem? Ou apenas querem crer? Crer.

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SENTIDOS DA ECONOMIA


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ÍNDICE

TRIUNFO DA CRISE ECONÓMICA . . . . . . . . . . . . Nota pragmática sobre a crise de 2008 . . . . . . . . . . .

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CRÍTICAS DA ECONOMIA POLÍTICA . . . . . . . . . .

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SENTIDOS DA ECONOMIA . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Introdução geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Grandeza e miséria da economia. . . . . . . . . . . . . . . . . . Duas definições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alguns paradigmas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os neoclássicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os marxismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Keynes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Dos estudos sociais: conexões ideológicas . . . . . . . . . . . A experiência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A matematização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A previsão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A complexidade do social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pistas transdisciplinares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Questões prévias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Vontade e impossibilidade de definir . . . . . . . . . . . . . . Plano do trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Perspectivas não históricas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Manuais marxistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Manuais não-marxistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Observações globais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas de síntese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Perspectivas históricas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Absolutismo versus relativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Observações comparativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas de síntese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Perspectivas polarizadoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Economia política e crítica da economia política. . . . . . Observações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas de síntese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ortodoxo versus marxista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os neoclássicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marx. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Keynes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marxismo e subdesenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . Notas de síntese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Três exemplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A «revolução marginalista». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os marxismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A «revolução keynesiana». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Notas de síntese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O «walraso-keyneso-marxismo» . . . . . . . . . . . . . . . . . . Observações gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164

Índice

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A QUADRATURA DO CÍRCULO ALTHUSSERIANO . . . .

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SOBRE UMA HISTÓRIA MATERIALISTA EM RUPTURA COM A IDEOLOGIA MARXISTA. . . . . .

149

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Índice

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Alexandre Melo

Alexandre Melo

TRIUNFO DA CRISE ECONÓMICA

TRIUNFO DA CRISE ECONÓMICA D O C U M E N TA


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