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Livros pubLicados ed._________
Sequência Ameríndias: performances do cinema indígena no Brasil, AA.VV., selecção de textos Rita Natálio, Rodrigo Lacerda, Susana de Matos Viegas Matchundadi: género, performance e violência política na Guiné-Bissau, Joacine Katar Moreira prefácio de Pedro Vasconcelos Esferas da Insurreição: notas para uma vida não chulada, Suely Rolnik prefácio de Paul B. Preciado
Série Curta introdução a um catálogo sem autor, Anónimo, prefácio de Cyriaque Villemaux Impasse, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Diogo Bento introdução de André e. Teodósio
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Série
colecção dirigida por Rita Natálio e André e. Teodósio «ed._________» resulta da colaboração da editora Sistema Solar com o Teatro Praga. Esta chancela é composta por duas colecções. A colecção «Série» divulga o património imaterial das artes performativas contemporâneas. A colecção «Sequência» organiza-se em livros temáticos oriundos de diversas disciplinas, que ofereçam uma reflexão sobre sistemas de poder e protesto na actualidade. Pretende-se assim colmatar a ausência, no panorama editorial português, de uma bibliografia regular e consistente dedicada às artes performativas, bem como pensar o mundo e a história com recurso a disciplinas estéticas, filosóficas e políticas.
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Dia 1 Cambalhota, queda para trás, gancho de pés na corda. os pés falham as cordas e as pontas dos dedos das mãos amparam a queda. A cabeça recolhe, a cervical bate no colchão, ouço o barulho de ossos a partir. o corpo desliga. o corpo levita. As pernas flutuam, os braços mexem e eu não sinto nada. Estou a arder. Doem-me os ombros. Sinto as clavículas coladas ao pescoço e as articulações em curto-circuito. Queimam-me. «Segurem-me o pescoço», digo às meninas do treino da manhã. Mas elas não me seguram o pescoço. Digo-lhes que não sinto os braços. Estamos na aula de acrobacia aérea do Armazém 13, em Benfica. «Falem comigo», peço-lhes. «Cantem.» Eu a precisar de voltar à terra e elas mudas. Para que serve um coro se não canta? «Mas tu mexes os braços», diz-me Ana, a professora de trapézio. «Tem calma, vai ficar tudo bem», «isto não é nada», «Não te preocupes». Estou a sair do meu corpo. Vou-me embora. Não quero desmaiar, se desmaiar vou morrer. Não quero levitar, não quero morrer. «Falem comigo, por favor.» Ana aperta-me as pernas. «Mas não sentes nada?» Não sinto nada. Ana balbucia: «Mas-pois-sim-como-não.» Li diz: «Nossa, nunca imaginei que isto fosse acontecer com a Diana.» Peço para ligarem ao Coelhinho e Li, a professora de tecidos verticais, encosta-me o telemóvel ao ouvido. Mas ele não atende, só posso deixar uma mensagem. Vou morrer e quero dizer-lhe que o amo, mas a Ana está à minha frente. Como ela é a ex-namorada dele não tenho coragem. Digo: «Caí do trapézio e vou para o hospital. Liga-me.» Uma Shanti Shanti a meu lado grunhe: «Vai tudo ficar bem, é só o susto.» Grito: «Tirem-na de ao pé de mim!» É claro que não vai tudo ficar bem, eu não sinto nada, não está tudo bem, como é que alguém pode dizer «vai ficar tudo bem»? 9
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Chegam os paramédicos. São três. Sou tocada pelo médico. «Está paralisada», ouço. Põem-me um plástico por baixo do corpo, prendem-me o pescoço, sinto os braços a serem presos sem saber a quê. Sou erguida lentamente, com mil cuidados, e colocada na maca. olho para o tecto do armazém e reparo, por uma última vez, na tremenda estrutura que suporta os trapézios. Despeço-me. Sou transportada para fora do armazém e cada degrau, cada desnível torna-se uma manobra de perícia, para impedir solavancos. Antes de entrar na carrinha do iNEM vejo as minhas colegas e os riggers à porta do armazém. o coro em silêncio. Porque não canta? Na carrinha quero falar, tenho medo e quero falar. Mas desembucho: «Digam alguma coisa à minha mãe só quando souberem o que eu tenho.» A partir daí, discurso em derrocada. A paramédica até acha o pedido muito bonito, mas depois de perceber que falava ininterruptamente, farta-se. o colega dela entra na carrinha e pergunta: «Ela está consciente?» «Está e não se cala!» Começo a chorar. Começo a tremer. Dizem que estou a entrar em choque, mas ainda não me podem dar drogas, não sabem se preciso de cirurgia imediata. À porta da carrinha, o Nuno atende o telemóvel. É o Coelhinho, que ainda não sabe de nada. Nuno, o secretário da empresa de riggers que trata da montagem e da segurança dos aparelhos de acrobacia no Armazém 13, diz-lhe: «Está tudo bem!» o Coelhinho desliga e tenta a Li, que lhe diz: «A Diana caiu.» o Coelhinho desliga. Depois liga à Ana, que lhe diz: «Ela agora não pode falar, mas não é nada de grave.» o Coelhinho desliga. Liga ao Quim, o chefe dos riggers, que lhe diz: «Não vi nada, caiu do trapézio. Ela vai agora para o hospital.» A porta da carrinha é fechada e um paramédico pede-me: «Diga-me o seu nome completo.» Diana Regueira Bastos. «Sabe a sua morada?» Rua da Galé. «E o número de cartão de cidadão?» Doze, oitenta e três, zero, zero… «Número de telefone?» Nove um, três zero seis, sete quatro… «Tem seguro?» Tenho, mas acha que eu sei o número de cor? Na carrinha do iNEM, o enfermeiro ainda não sabe para onde me levar e começa a desabafar sobre folgas. Lágrimas, tectos, caras. E este sono que cheira a morte. Sou levada para o Santa Maria. No hospital ouço alguém dizer «Diana» e reconheço as vozes da Ana e da Li. Depois, começam a pôr-me dentro de máquinas. Raio-X. Ressonância magnética. TAC. Teste neurológico. Tocam-me no tricípite. Não o sinto. Tocam-me na clavícula. Sinto. Tocam-me no abdómen. Não 10
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sinto. Tocam-me na coxa. Não sinto. Tocam-me nas canelas. Não sinto. Tocam-me nos pés. Não sinto. o braço esquerdo dobra-se. A Ana estica-o. o braço esquerdo volta a dobrar-se. A Li estica-o. o braço esquerdo quer ficar dobrado. É a vez da Ana. o neurologista pede-me para mexer as pernas. Elas não mexem. Pede-me para mexer as ancas. Elas não mexem. Pede-me para mexer os braços. Mexo o braço direito. o braço esquerdo dobra-se sozinho. A Ana estica-o. Dr. Álvaro, o neurologista, mexe-me a perna em movimentos circulares. Vejo a perna a mexer, mas não a sinto. Já não é a minha perna. Vejo o grupo do Armazém 13 à minha espera enquanto me levam pelo corredor. Não há vaga no serviço de medicina intensiva e sou levada para um corredor nas urgências. «Quero pão com Nutella.» Estou aqui a curtir a dopamina, a morfina, a metoclopramida, o tramadol, o paracetamol, o cetorolac de trometamina e tenho fome. Uma louva-a-deus de bata azul, com umas patas finas amarelas, pergunta-me: «Tem piercings?» Tenho, qual é o problema? E também tenho tatuagens. Dói-me o ombro, espero que não esteja partido, vou precisar dele para o espectáculo. Que piada. Qual espectáculo? o do meu enterro? os médicos aparecem para montar o compasso craniano. Tentam aparafusar-me uns arcos à volta da cabeça, mas a coisa não é assim tão fácil. «Como é que isto se monta?» Nem eles sabem. «Esta peça aqui, é para cima ou para baixo? o que é que diz o livro de instruções?» Sim, senhor, é tranquilizante saber que a minha cabeça vai ser aparafusada por um grupo de especialistas com tanta experiência. o braço continua a decidir dobrar, mas agora já cá não está a Ana nem a Li para o esticarem, e os médicos estão ocupados com o livro de instruções. São sete da tarde e só consigo pensar em comida. Quero comer. Foda-se. o sistema de tracção é finalmente instalado. À volta da cabeça tenho um arco aparafusado, uma auréola metálica por cima das orelhas. Está presa aos dois ferros onde eles vão pendurar os pesos para me esticar: cinco quilos bastam. Depois, nestes preparos, sou levada para o convívio. Aparece a sogra que na verdade não é sogra, mas à falta de melhor fica sogra. Não é o melhor contexto para a conhecer. Ela diz que estou «Muuuito bonita». Claro que estou, foda-se. Pareço o Robocop. E nisto lá se passou uma hora de convívio. Depois devolvem-me ao gabinete. o Dr. Álvaro, de olho azul, acrescenta mais dois quilos. E vão sete. o peso puxa-me para trás. Doem-me os ombros. Tenho os nervos todos queimadinhos. Há um ardor que ameaça romper um dos nervos que atravessa os braços e percorre os ombros. Parece que vai rebentar. Atravessa o tricípite, entra pelo cotovelo, contorna o rádio e aloja-se no mindinho e no anelar. Deixo de os sentir. Fritaram de vez. 11
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o João, ex-ginasta de alta competição e meu colega de acrobacia no Armazém 13, abana a cabeça. Chora. Não estou assim tão mal. A Ma, acrobata aérea, veio da Parede para me ver. Amanhã faz anos. Leva as mãos à cabeça. Não vou poder ir à festa de anos dela. «Desculpa, Ma.» Chega o Gu, um parceiro de acrobacia com quem me embrulhei. os fins de tarde eram passados em casa dele, onde comíamos pão com Nutella. «Quero pão com Nutella.» Dizem-me que ainda não posso comer. Vou ser levada a qualquer momento para o bloco operatório. Chega a Mãe, vinda directamente de oliveira de Azeméis, de táxi. Vem muda, pelo que já lhe devem ter feito o relatório. Em vez de uma filha com pernas e braços, tem agora um ananás magro e nenhuma fruteira para o pôr. Antes que tenha tempo de dizer alguma coisa, dou-lhe as instruções e uma guia de marcha: «Tens de ligar para a escola, amanhã não vou poder ir dar aulas. Liga também ao Ministério Público. Não vou conseguir estar na reunião com o procurador. E agora vai-te embora para não te esqueceres do que te pedi.» Acordo na Unidade de Cuidados intensivos. Preciso de falar com o Coelhinho, dizer que o amo. A enfermeira espanhola diz-me que não é permitido fazer chamadas, «Mas ele pode vir cá». Não pode, não, digo-lhe. «Ele está no Porto e eu vou morrer durante a cirurgia.» A enfermeira espanhola faz a chamada e diz-me para segurar no telemóvel. Segurar como? Encosta-me o telemóvel ao ouvido. o Coelhinho atende: «Cravaste um telemóvel?»
Dia 2 Acordo e estou a levitar. As pernas flectidas e viradas em en dehors, tombadas para fora. E eu sinto-as esticadas, paralelas. A cama é inclinada e vêm esfregar-me com sabão pré-cirúrgico. Não tem cheiro. Chega a Mãe. Peço-lhe: «Faz-me uma mala com ténis e fatos de treino que vou precisar de fazer muita fisioterapia.» A Mãe faz aquela expressão de quem está bloqueada. Fica a tentar processar a realidade à frente dos seus óculos, mas a única coisa que consegue processar é a existência dos próprios óculos. «Na entrada da minha casa estão umas caixas transparentes do lado esquerdo, estás a ver? A terceira caixa tem fatos de treino. No meu quarto há umas prateleiras. Na prateleira de baixo há um caixote azul-bebé. Lá dentro encontras os ténis. Ama12
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nhã tens de ir a uma reunião com o procurador no Tribunal do Trabalho. A carta está dentro da minha agenda, na estante. É a agenda cor-de-rosa, que me ofereceste no Natal. E agora vai-te embora para não te esqueceres de nada.» A Mãe sai. A enfermeira diz-me que o meu namorado vai entrar. Fico confusa. Não era suposto ele ficar no Porto? Entra o Tamek, o melhor amigo do Coelhinho. As enfermeiras vão achar-me uma puta. Sou levada para o bloco operatório. Não sei se tenho consciência do que isso significa. Porra, sou uma rapariga prática, estou cheia de moca mas tenho de me manter objectiva. Quero que a Mãe resolva a minha vida lá fora. Porque eu não posso. Tenho de me concentrar no que se passa ao fundo da cama. A Mãe agarra-se aos meus joelhos. Espera lá, a Mãe não tinha já saído para ir buscar os ténis e o fato de treino? Já não tenho a cabeça presa aos pesos. Sinto a coluna arqueada, no entanto está direita. Este não é o meu corpo. Regresso a mim e já estou no bloco: — Sou o Dr. Pedro, o seu cirurgião. Autoriza-nos a usar recursos externos em caso de emergência? — Sim. — A Diana não quer saber, ela nem sequer sabe o que isso quer dizer. — Vai ficar com uma tatuagem no ilíaco. — Já tenho uma, obrigado. — A Diana não quer saber. — Ai tem? De que lado? — Do lado direito. — A Diana não se importa. — Estava a pensar usar esse lado. — Pode usar na mesma. — À Diana tanto se lhe dá. A Diana acorda para vomitar, amarrada à cama, com dois tubos na garganta e um emaranhado de fios a percorrer-lhe o corpo, ligados a máquinas que fazem pi-pi-pi. E fica-se. Acorda outra vez. Está na unidade de cuidados intensivos. o Dr. Pedro afinal tatuou o lado esquerdo. A Diana não gosta da diagonal costurada ao longo do ilíaco. E fica-se. Acorda outra vez. Está toda contente por ver o Coelhinho, mas não consegue sorrir. Quer muito dizer-lhe: «Que bom, estás vivo», mas não consegue. Sorri com os tubos enfiados na garganta. o Coelhinho não repara no sorriso derretido que ela acabou de fazer. «Está tudo bem, não fiques triste», diz a Diana, mas ninguém a ouve. o Coelhinho tem lágrimas nos olhos. 13
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A Diana acorda outra vez, com a cabeça da Mãe encostada ao seu peito. Tenta fazer-lhe uma festa no cabelo. Fica-se. A Diana acorda outra vez e está lá a Ema com as suas unhas pintadas com verniz cor-de-rosa fluorescente. Foi a Diana que as pintou. Era um domingo. Foi a última obra antes da queda. outro calmante. A Ema deambula pelos cuidados intensivos, mas a enfermeira diz-lhe que não é permitido. A Ema grita ao longe: «Vocês não entendem, ela é bailarina!» e fica-se nos braços da enfermeira. Já somos duas deste lado, ela veio ter comigo. Está escuro, é de noite, a Diana tem medo. Precisa de vomitar, mas não consegue pedir ajuda. Está agitada e há um segurança que se aproxima. E olha-o com os tubos enfiados até ao estômago. Sente-se a sufocar. o segurança diz-lhe: «Se não te acalmas, amarro-te.» Não deve ser segurança. Limpa-lhe o vomitado e dá-lhe outro calmante. Pensa que afinal deve ser um enfermeiro. E fica-se.
Dia 3 Sou rodeada de batas brancas. A minha respiração é robótica, não sinto o corpo desde o plexo solar até aos pés. Nem as mãos sinto. o grilo falante canta — é o alarme que liga a veia central a um iPad. Sim, isso mesmo. Há um colar cervical que me aperta. Afligem-me as pandoras, essas fitas que me prendem à cama. Tenho medo. A Diana tem medo. A Diana chora. Não sabe nada das visitas. Não sabe que horas são. Precisa de visitas. Tenho pena, da Diana.
Dia 4 Acordo com os tubos a sufocar-me. o enfermeiro Pedro dá-me banho. Pergunta-me porque é que estou maquilhada. Há três dias que não tomo banho, é normal, agradecia não acordar com rastas. olho para o tecto branco e vejo o olho azul do enfermeiro. Agarra-me no colar cervical, descruza os fios das máquinas. Passa-me a fralda por cima, levanta uma perna. A enfermeira diz: «Não chores.» 14
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Viram-me de lado. Limpam-me. Estendem-me na cama. Perguntam-me se quero ver televisão. olho para o tecto. As horas passam. Chega a Mãe. Mexo os lábios, mexo as mãos, mas ela não me entende, com os tubos enfiados pela boca e pelo nariz. Quero saber como correu no tribunal. Há dois anos tive um acidente de trabalho, em Évora Monte. Eu era uma criança. Caí no precipício, numa pedreira, a fazer um slide num ensaio para um espectáculo com uma companhia finlandesa. Eram sete metros de altura. Fiz uma fractura no rádio e uma fissura na anca. Como nem o seguro nem a produção se responsabilizaram pelo acidente, tive de ir para tribunal. Uma enfermeira lê-me os lábios. «Ela quer saber o que se passou no Tribunal.» A Mãe faz o relato: — o procurador ficou a chorar. Disse que não podes cair outra vez. Vai-te embora, tento dizer-lhe, mas ela não percebe. olho para os quadrados de pladur branco. o barulho das máquinas a meu lado parece estar a sair de dois rectângulos metálicos e brancos pendurados no tecto, com manchas azuis e brancas. Mudam de cor consoante a luz da sala. o tempo passa. Chega o Coelhinho. Desamarram-me das pulseiras pandora, abro os braços e sorrio de felicidade para o Coelhinho, mas a Diana não consegue desprender-se das pulseiras que a amarram à cama, nem abrir os braços, nem sorrir de felicidade. Coelhinho beija a mão de Diana e imita o barulho das máquinas: «Pareces o Dark Vader.» Engasgo-me a rir e o grilo falante do alarme apita. As enfermeiras aparecem. Coelhinho acalma-me fazendo-me festinhas na mão. o alarme pára. — Queres dizer alguma coisa? Pisco os olhos: Sim. Ele diz o abecedário enquanto eu pisco os olhos. Começamos: A pisco o olho; ABC pisco o olho; A pisco o olho. AB pisco o olho, mas ele entretanto diz a letra C. — Acac? Recomeçamos: A pisco o olho; ABC pisco o olho; A pisco o olho. AB pisco o olho; A pisco o olho; ABCDEFGHiJKLMNoPQR. — Acabar contigo? Se eu vou acabar contigo? Pisco o olho. — Não. Só se tu mudares e te tornares numa cabra. imita o som da minha respiração. «Pareces o Dark Vader.» É a segunda vez que diz a mesma piada. Em vez de rir, contraio a caixa torácica e engasgo-me. Fico azul e o alarme apita. os médicos aparecem. Voltamos ao abecedário: ABC 15
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pisco o olho; A pisco olho; ABCDEFGHiJKLMNoPQRS pisco o olho; A pisco o olho. o Coelhinho assusta-se: — oh… Ah… caso… se caso? Ahahahahah, que parvinha.
Dia 5 São 8 da manhã. Sou acordada pela enfermeira Carina. Enquanto me dá banho, assistida por uma auxiliar, pergunta-me sobre o coelhinho que tenho tatuado no ilíaco. Quer saber o significado. Veste-me uma camisa de cirurgia azul escura a que corta as mangas e põe-me vaselina nos lábios: — É para estares bonita quando o teu namorado chegar. Quanto tempo falta para a hora das visitas? os relógios estão à vista de todos, nos iPads e nas máquinas ligadas aos pacientes, mas estão colocados numa direcção que me impede de os ver. Também não consigo virar a cabeça por causa do colar cervical. Volto a adormecer. Acordo com batas brancas à minha volta. É a ronda dos médicos. É sexta-feira, se não me derem alta hoje vou ficar aqui até domingo. A Dr.ª Lea é responsável por mim. Gosto muito dela, mas não me dá alta: — Diana, 28 anos, acidente, queda, ginasta, bailarina, tetraplegia ASiA-B. o que é que ela está a dizer? Tetraplégica, eu? Mas estão parvos? o que é que quer dizer ASiA-B? A Diana assusta-se. o Dr. Moreno olha para mim. Desde que aqui estou é a terceira vez que passa o Hannibal no AXN. o Dr. Moreno pergunta-me: — Como é que consegues ver isso? Há coisas mais assustadoras, como por exemplo ver um programa de dança em cadeira de rodas, que era o que estava a ser transmitido na RTP. A Mãe acabou de sair, vai passar o fim-de-semana a oliveira de Azeméis. o Dr. Moreno continua: — Vamos tirar esses tubos. Mas vais portar-te bem. o Dr. Moreno aproxima-se de mim. Por baixo da camisa desabotoada entrevejo uma cruz dourada presa por um cordão. Diz ele: — Não vais falar nas próximas duas horas, senão a inflamação não passa e depois temos de voltar a entubar-te. 16
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Manda-me tossir. Um barulho seco e velho, acompanhado de um vómito, sai de mim. os tubos, que desciam até ao estômago, saem-me pela boca em tons de rosa, vermelho, verde, branco. Posso vomitar? E o Dr. Moreno: — Que alívio, não? — Pela cara dela, não — diz o enfermeiro surfista, com o seu cabelo descolorado. Mete-me uma máscara de oxigénio. Chega a enfermeira Carina. Já me disse que gostava de ser bailarina. — Vais fazer mergulho? Sempre que venho aqui vejo-te diferente. Diz lá o que significa a tatuagem do coelhinho. — É uma homenagem ao meu pai — respondo. Claro que não é uma homenagem ao meu pai. Fiz a tatuagem a partir de uma ilustração que se chamava O leitor, um ano depois de começar a andar em segredo com o Coelhinho. Só dois anos depois de eu ter feito a tatuagem é que ele teve coragem de assumir a nossa relação. Escreveu no Facebook: «Numa relação aberta.» o coelhinho é um símbolo de protecção, de consciência e de alerta. E eis que chega o homenageado. Abro os braços para ele. Parecem dois galhos partidos, mas o que conta é a intenção. o Coelhinho sorri como uma criança, de olhos brilhantes e escuros. — Agora já pareces tu, mesmo cansada. És tão bonita.
Dia 6 ontem ao jantar deram-me uma gelatina adocicada e enjoativa. Hoje estou a iogurtes. Quero um bife. os médicos desaparecem ao fim-de-semana. Sorte a minha que sou visitada pelo Dr. Moreno. Sinto-me apática, tento sorrir. Sorrir sempre. Ele faz-me o teste neurológico do costume: espeta-me uma agulha no externo, depois na barriga, depois no tricípite, depois nos dedos mindinho e anelar. Depois pica-me a anca. Tenho imensos espasmos, o movimento é irreconhecível para mim. Não percebo em que direcção me dobra as pernas. Sinto apenas quando me dobra o joelho. Sinto a picada da agulha nos pés. Ele pica-me na pélvis. Não sinto, mas estou feliz. Sinto as fezes. Chamo a médica para lhe dizer. Ela manda vir uma enfermeira para me limpar. Sinto-me frustrada com a minha conquista. Queria celebrar o que estou a sentir. Finalmente a sentir alguma coisa e a enfermeira só quer limpar-me o rabo. 17
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Diz o Dr. Moreno: — Não precisas de tanto oxigénio. Se aguentares duas horas sem a máscara ficas melhor assim. Colocam-me um tubo transparente à entrada das narinas. Tenho dificuldade em respirar. Mas ele ensina-me como dilatar o esterno e como fechar o diafragma, como levar o ar numa respiração curta e como levá-lo numa respiração longa até à barriga, mas só consigo fazer respiração abdominal. o Coelhinho está feliz por me ver assim, sem máscara. Cada vez que ele me toca deixo de conseguir respirar e o grilo do alarme canta. A minha voz parece a de um passarinho. o Coelhinho goza comigo. Quero rir-me, mas engasgo-me e fico roxa. Começo a tossir. Como não sei tossir, o Coelhinho quase cai de tanto rir, comigo a sufocar. A enfermeira tenta ajudar-me a tossir colocando as minhas mãos na barriga, mas não sinto as mãos nem a barriga. Tusso como o Piu-Piu nos desenhos animados do Sylvester. A senhora da cama 8 sussurra de olhos esbugalhados: — Tirem os senhores de trás de mim. Está um telefone a tocar. É o alarme a que ela está ligada. Está amarela. — Está ali uma senhora indiana — diz ela, mais drunfada do que eu. A senhora indiana é a Diana. Do outro lado, está um senhor tão entubado que mais parece um polvo. Está ligado a uma máquina de diálise. Ema e Bruxa visitam-me. Entram nervosas, separadamente. De olhos brilhantes e doces, falam. Não me querem largar. Eu estou bem, quero dizer-lhes. Não digo nada. À noite não tenho sono. Vejo o AXN até desligarem a televisão sem me perguntarem, como se eu não existisse. E quem sou eu para discordar? Se calhar não existo mesmo.
Dia 7 6 da manhã: o enfermeiro de cabelo oleoso e de braços tatuados muda-me a fralda. Fico a olhar para o tecto. Peço a três enfermeiros que me liguem a televisão. Resposta do primeiro: — Ainda é cedo. Resposta do segundo: 18
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— o teu lazer não é a minha prioridade. A resposta do terceiro é não responder. olha para mim distraidamente, como quem acabou de ouvir uma voz num sítio onde não há gente, só para confirmar que não está lá ninguém, e sai da enfermaria. 8 da manhã: aparece a enfermeira Rosa. Peço-lhe que me ligue a televisão. Resposta da Rosa: — o teu luxo não faz parte das minhas funções. Lava-me o rabo, o pito e as mamas, enquanto choro. Dirige-se à câmara fria, traz de lá um saco de soro, injecta o soporífero no cateter e eu adormeço imediatamente. Acordo com batas à volta da minha cama. — A Diana está tetraplégica, ASiA-B. É muito colaborante e dá-lhe forças sentir que está a fazer progressos. — E que progressos é que ela está a fazer? Antecipo-me à resposta e mostro como já consigo mexer um milímetro do dedo polegar. As batas brancas dispersam, indiferentes à minha conquista — um milímetro! —, sem me darem tempo de lhes anunciar que também já sinto o cocó a sair do esfíncter. ouço o enfermeiro da cama 8: — Alguém percebe de cocó estranho? o colega acena afirmativamente: — Tenho uma vasta experiência nesse assunto. De que cor é o cocó? — Parecem bolotas alienígenas com veios esverdeados. 10 horas: chama-se Pedro, meu querido Pedro. Passa-me a esponja pelo rosto e faz um ar de surpresa. — Quem é que te maquilhou? — Ninguém. — E como é que estás maquilhada? — Porque estava maquilhada quando tive o acidente. — Há quantos dias é que estás aqui? — Há sete. Ele trata-me com carinho. Manda-me fechar os olhos e entorna-me a bacia com água na cara. Engasgo-me a rir e ele comenta «Não te afogues» enquanto cuspo um pirolito. Enfia-me o dedo no nariz. Massaja-me o corpo todo. Passa-me a esponja pelo peito, pela barriga, pelas ancas, desce pelas pernas, abre-me as pernas, eu não sinto nada, claro, mas imagino, enquanto ele passa para as costas e me esfrega as nádegas. Peço-lhe muito que me lave o cabelo, que parece uma 19
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posta de atum Tenório. Ele protesta, o meu Pedrocas, tão querido, de olhos azuis muito claros, que não sabe lavar cabelos compridos, mas faz isso por mim, sai à procura de champô, mas não encontra o champô e lava-me o cabelo com sabão desinfectante, e o cabelo encaracola-se todo, e ele fica com os dedos presos nos meus caracóis, mas não faz mal, agora já não tenho vontade de coçar-me. Adormeço com o Pedro, meu querido Pedro, sentado a meu lado a escrever relatórios. Acordo e ainda está a meu lado, ao computador. os médicos no guiché à minha frente discutem o que fazer de mim, se devo ir para Alcoitão ou para o Centro de Reabilitação da Tocha. Decidem enviar-me para a enfermaria ortopédica em Santa Maria, no piso 5, do Dr. Pedro, o médico que me operou. Sou visitada pelo dietista, que me pergunta se tenho alguma reclamação a fazer. ora essa, então não havia de ter? Toda eu sou reclamações: chega aqui uma bailarina profissional, amarram-na à cama, fazem-na sentir-se um ananás, enfiam-lhe 30 mil tubos pela goela, espetam-lhe 500 agulhas em cada braço, recusam-se a ligar a televisão, se a televisão está ligada desligam-lhe a televisão sem lhe perguntarem nada, se lhe perguntam alguma coisa nem se dignam a esperar pela resposta… o dietista desata a rir-se. Comenta que de entre todas as reclamações que já ouviu eu sou a primeira a queixar-se de ter sido amarrada. — E em relação à comida, também tens alguma reclamação? — Tenho, pois. Só me deram uma gelatina. — Ela tem estado a ser alimentada por soro. — E tens alguma preferência? De que é que gostas? — De lasanha. Mas agora o que me está a apetecer mesmo é um bitoque. — Com ovo a cavalo? Ela tem alguma restrição? o Pedro, querido Pedro, diz que não. — Vamos já tratar disso. o dietista sai da enfermaria apressado, para tratar do meu bitoque. Adormeço, sonho que tenho uma vida normal, que ando a correr pela rua, sou um ovo a cavalo. Acordo com a auxiliar a trazer-me o almoço. Ela tem muita pena de mim, coitadinha, temos a mesma idade. Diz-me que é de Almada e que tem um namorado, que já trabalhou nas limpezas da ala dos queimados, mas que gosta mais de estar aqui. Tira o plástico dos talheres, levanta a tampa e serve-me salmão grelhado. (Alguém comeu o meu bitoque.) Entretanto, aparece o Dr. Daniel. Espeta-me com alfinetes em várias partes do corpo, para confirmar onde é que tenho sensibilidade. Não tenho sensibilidade abaixo do esterno, mas já consigo perceber o alinhamento em que estão as 20
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pernas e os braços. Quando o enfermeiro Pedro, o meu querido Pedro, regressa à enfermaria, digo-lhe que estive com o fisioterapeuta. — Qual fisioterapeuta? — o Daniel, aquele que costuma estar sentado ao computador. — Ele não é fisioterapeuta, é médico. — A merda é a mesma. Peço-lhe para deixar entrar a Mãe. Ele despacha-se a terminar o relatório e seguimos os três para a ortopedia, com a minha cama a ser rodeada de enfermeiras e de auxiliares, numa despedida triunfal: — Tens de ter muita força, tu vais conseguir, não desistas, gosto muito de ti. As lágrimas correm pelo rosto da enfermeira Carina, coitadinha. Na sua expressão leio o meu futuro: terrível, mas com muita força! Enquanto me conduz pelos corredores, Pedro diz-me que tem muita pena que vá para a ala dos brutamontes, que na ortopedia são todos uns carniceiros, e eu lembro-me da quantidade de pessoas que nos últimos sete dias morreram ao meu lado. Houve um paciente que foi trazido com um inchaço por baixo dos cobertores e que eu julguei ser uma erecção. Eram três cateteres, para os rins, para a bexiga e para a uretra. ouvi os enfermeiros dizer que a primeira vez que tinha sido operado foi no ano em que nasci. Morreu poucas horas depois de chegar. Houve outro, duas camas ao lado da minha, que morreu assim que chegou. À esquerda, havia também uma mulher destapada, seminua e com as duas pernas amputadas. Tinha um problema qualquer no abdómen. Ainda bem que o colar cervical não me permitia olhar na sua direcção. o estado dela assustava-me. Morreu durante a noite. Quando acordei a cama dela estava vazia. No extremo oposto da enfermaria havia também um homem com uma máscara de oxigénio tão complexa que a cara dele parecia uma instalação de tubos do Guggenheim, com os tubos a fazerem de tentáculos de um híbrido qualquer. Depois mudaram-lhe a máscara, puseram-lhe uma ainda maior do que a outra. À frente da cama dele, um enfermeiro dizia que parecia o Alien, outro que parecia um escafandrista, outro que parecia um elefante. Ele tentava tirá-la, para evitar mais comparações, e eles insistiam, obrigavam-no a respirar. Havia também a senhora amarela, a do cocó estranho. imitava vozes e depois falava com elas. Queixava-se de ter sido raptada «por eles», apontava para mim e dizia: — Aquela indiana está a olhar para mim.
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(Ainda ao sétimo dia) Eis a minha nota de transferência, da parte do Dr. Daniel Gomes-o-Beto e da Dr.ª Ana-Nunca-a-Vi-Marques: Mulher de 28 anos, raça branca, admitida por traumatismo vertebromedular cervical. Trata-se de uma jovem previamente saudável, vítima de queda em altura (2m) durante sessão de ginástica (trapézio), com trauma cervical determinando no imediato paraparésia. Transportada pelo INEM para o HSM, sendo relatada paraplegia, paresia dos membros superiores e défice de sensibilidade abaixo do apêndice xifoideu. A avaliação imagiológica complementar (TC e RM cervical) permitiu documentar luxação pós-traumática C5-C6 por mecanismo de hiperflexão cervical, com anterolistese de grau I-II/IV, com luxação de facetas com cavalgamento à direita. Procidência discal posterior C5-C6 com evolução ascendente, moldando a face ventral da medula. Componente hemático epidural posterior ao nível de C6. Disrupção ligamentar posterior pós-traumática de C2-C3 a C5-C6, com conflito radicular C6. Efectuadas manobras de redução (15 kg em intervalos de 5kg com controlo radiográfico) com melhoria radiográfica e clínica (melhoria da força nos MS). Transferida para o SMI. Na admissão encontrava-se vígil, em ventilação espontânea, constatado nível motor C6 (completo) e nível de sensibilidade T2 (completo). Por perfil tensional baixo (constitucional, segundo a doente) com MAP < 60 mmHg iniciou suporte com vasopressor com dopamine. Em D1 foi submetida a osteofixação anterior C5-C6 com excerto ósseo ilíaco esquerdo + placa, tendo sido EOT intra-bloco sob controlo por BFC. Manteve-se sob EOT até D4 por evidência de edema da via aérea alta. Verificou-se evolução clínica favorável com melhoria de nível motor (C7 completo) e de sensibilidade (T9 incompleto). Apresentou episódio de dessaturação por atelectasia resolvido com manobras de cinesiterapia que tem indicação para manter. Encontra-se em ventilação espontânea e mar ambiente, hemodinamicamente estável. Dado não necessitar de cuidados adicionais deste serviço transfere-se para o serviço de ortopedia após contacto com Dr. P. F. Quarto 6, Ala de ortopedia, Piso 5, Hospital de Stª. Maria — enfiam-me numa enfermaria com quatro camas. Dois lugares já estão ocupados, eu sou a terceira. As paredes um dia foram amarelas. os cortinados e colchas azul-bebé. os cacifos cinzentos amolgados. o Coelhinho abraça-me, com um sorriso triste que nunca tinha visto antes. Antes, o sorriso dele reflectia uma cabra asquerosa, 22
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A presidente do iETM apresenta-se. (Mas nós já nos conhecemos em Hull, ela disse para eu não concorrer a um apoio de mobilidade internacional por ser deficiente.) — infelizmente, pedi-te para te levantares antes de falar — diz-me a presidente. (o problema não foi esse, miga!) Bruno, sozinho, começa a descer-me pela escadaria abaixo. (Não arranjaste nenhum amigo para te ajudar?) Cláudia olha para nós. Chego à primeira fila e passo da cadeira de rodas para uma cadeira normal. Entra o senhor responsável pela inacessibilidade do evento anterior, encosta-se à parede ao meu lado, escolhe ignorar-me, diz que só tem dez minutos. (Mesmo à político tuga.) Eu rio-me, e tiro o papel do meu discurso. o senhor senta-se a meio da fila, cruza as pernas e vira-me as costas. (Posso mandar-lhe uma cadeira de rodas à cabeça?) Tenho de contar ao Limão que dormi com o investidor. Andou amuado comigo porque um dia lhe disse que estava atrasado, se ele descobre que eu dormi com o outro sem ser por mim, vai odiar-me para sempre. No ginásio, pego nas canadianas, e lentamente tomo consciência da transferência de peso, da contracção do glúteo para estabilizar a anca, alongo o tendão de Aquiles de forma a pousar o calcanhar todo no chão, alongo o abdómen para cima e junto as omoplatas para estabilizar o core. Demoro o tempo de que preciso para cada passo. No colchão, Limão alonga-me a cadeia posterior das pernas, enquanto faço a posição do triângulo invertido. Com a cabeça dele no meu pipi, tira uma fotografia ao meu rabo com a cabeça no meio e envia ao Fábio. — Tenho uma coisa para te contar… — digo. Entro no ginásio e vou ter com o Limão. — Chegaste na hora certa. Estavam a falar de ti. Estavam a dizer que tu ressonas — diz o Nelsinho. — Ressona e não é pouco — diz a minha vizinha de quarto. (Mudaram-me para o quarto dos independentes.) — E fala pelos cotovelos — diz o investidor, enquanto o Gon e o Limão dão uma gargalhada. Saio do Uber com o investidor, no centro de Cascais. Subo uma rampa gigantesca, para quando chego lá cima um senhor me dizer que o restaurante é no 207
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andar de baixo. o investidor desce a rampa como se fosse um escorrega. (imagino-o a apanhar um buraco da calçada e a ser projectado da cadeira de rodas contra um dos carros estacionados.) No restaurante, ao fim de uns gins, diz: «Tu tens de pensar no que queres para ti.» (Não és tu, de certeza.) Uma desconhecida com uma t-shirt branca de flores azuis passa, e o investidor diz: — Essa cor não te fica bem. — Em inglês, ela diz que, apesar de ser italiana, não compreendeu o que ele diz. — isso é malícia — digo, e levo com um olhar de desprezo como resposta. Já na varanda do Centro, diz-me: — Levo-te para o Alentejo, ofereço-te umas galochas até ao joelho, ficas a tirar tomates da terra sem cuecas, e aí eu enraízo. Colo a língua no céu da boca, para não responder. (Mas que grande estafermo.) Vou para o quarto. o investidor liga-me e não atendo. Na casa de banho, tiro a maquilhagem, lavo a cara e dispo-me. Volto para o quarto, visto um top e uns calções. o telefone vibra, faço o esvaziamento. Às escuras para não acordar a vizinha, passo da cadeira para a cama. Ligo-lhe: — Tu não és mulher para mim. Gosto de ti. — Às vezes também gosto de ti. o investidor liga-me, amuado por eu nunca lhe ligar. Pergunto ao Chouriço como posso pendurar-me na vara do Teatro, de forma segura. — Eu não posso responsabilizar-me por isso. Não posso dizer-te o que fazer. É ridículo colocares-te numa barra, e se a barra ficar presa em cima? Ela não vai cair. Mas se ficar presa, a única forma de descer é soltá-la. Não te estou a julgar ou a acusar de te pores em risco outra vez. Há algo de deslumbrante no facto de continuares a arriscar, de continuares fascinada, mesmo depois de tudo. Sabes, é muito fácil responsabilizar-te pelo teu acidente, mas tu és a única que não tem culpa do que aconteceu, e foste a que sofreste mais com isso. — Tu nunca me disseste isto. — Eu não conseguia ver isso. Vivo em dor. Doem-me as pernas, doem-me os joelhos como se estivessem partidos. (Tenho líquido nos joelhos.) Doem-me as ancas, como se as minhas 208
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ancas fossem as de outra pessoa e o meu corpo as rejeitasse. Doem-me as costas, a omoplata esquerda é uma bola de parafusos dentro da pele que me espeta cada vez mais fundo, até chegar ao coração. Dói-me o pescoço. Dói-me o cotovelo esquerdo. (Tenho uma epicondilite.) Dói-me o ombro esquerdo, que está sempre quente. Dói-me a cabeça, e às vezes deixo de ver. Tenho náuseas como se alguma coisa dentro de mim morresse. Numa residência artística na Polónia, percebo a importância da minha presença. Permito-me ser estranha. Já não tenho problemas com a minha estranheza. No outro dia escrevi que só conheci o meu corpo quando ele me deixou de entender, na verdade só conheci o meu corpo verdadeiramente quando ele perdeu função. Nos ensaios passam o tempo todo a falar em polaco. Não percebo quase nada e tento associar palavras em português a palavras polacas. Sinto-me um peixe fora de água. Como se estivesse na sintonia errada. Fico a olhar para eles e dói-me a perna, porque não tive tempo de fazer os exercícios todos do meu aquecimento. M tenta traduzir para mim, mas passado um bocado diz que não consegue porque precisa de estar presente. (Torno-me invisível outra vez.) ontem saí do ensaio com uma grande dor de cabeça, e de mau feitio por causa disso. Ao fim de uma hora de vazio, digo: — Percebo que vocês tenham muito que conversar, mas preciso de uma pausa. Compreendo os resumos de tradução, mas isso não me inclui na conversa. Por isso, preciso de uma pausa disto. — À tarde M traduz, mas ao fim de algum tempo farta-se e deixa de traduzir. — Tradução, tradução, tradução — diz. — Dizer a palavra «tradução» não é diferente de silêncio. Hoje é o último espectáculo, e a Hela manda-me uma mensagem a dizer que sonhou comigo. Pergunto-lhe o sonho e ela diz que é uma longa história… Quando chego ao ensaio dizem-me que chegou a estrela. (Eu… a estrela? Só se for a estrela de Natal a dançar a Mariah Carey.) Hela diz que nos beijámos no sonho. Em cena, improviso, digo-lhe: «Desculpa se sonhaste comigo ontem à noite.» Ela manda-me foder. Quando ela se senta numa cadeira ao meu lado beijo-lhe o canto dos lábios. 209
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Bartinho vem ter comigo e com o Mui, na nossa casa em Varsóvia. Bebemos vinho, mas ele queria muito ir à festa do Pai Natal, até que lhe disseram que a festa eram três pessoas numa casa a beber vinho. A Hela manda-me mensagens no instagram. o Mui abre o dedo indicador e o dedo do meio em forma de tesoura e põe a língua de fora a gozar-me. Bartinho pega no meu telemóvel e envia uma fotografia minha em topless. — Se estás a corar é porque é real. onde é que imaginavas estar com ela? — (Labrego.) A segurança do aeroporto revista-me, toca-me em todo o lado. Enfia a mão dentro das leggings até chegar à barriga. (Mas são umas leggings.) * Vou de boleia com o Ramos para a montagem do Dueto no evento Dançar é a minha revolução. ontem tive uma insónia porque o S dormiu lá em casa. Depois do ensaio com o Bruno, tenho o ensaio do Rafael e, ao fim do dia, fotografei com o Alípio na piscina abandonada da LiGA. Quando regressei a casa, o S tinha feito a minha cama, e deixado umas belgas com uma t-shirt dele para lavar. Aqueço numa plataforma, enquanto o Bruno salta, corre e gira os braços. Este evento parece aquela reunião de família adolescente, com todos os artistas que conhecem os meus podres e que nunca viram o meu trabalho em adulta. o Manuel caiu da cama, no seu quarto nos Paliativos. Diz-me que está a ver a reportagem sobre o Covid-19. No quarto dele morreram nove pessoas com Covid, desde o início da pandemia. Não saio de casa há dez dias. o Manuel está pior mas, por causa da pandemia, não nos deixam visitá-lo. Mesmo com uma rotina tenho pouca vontade de criar. o Poeta trabalha na Associação da minha praceta e desde o início da pandemia que vem passear os meus cães. (A única pessoa tridimensional da minha vida, à excepção da Mãe.) Começamos a falar no chat, e passamos dias nas mensagens, intriga-me. 210
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Vou para o Vale da Cegonha. Já que sou obrigada a trabalhar em casa, pelo menos apanho sol e tenho uma piscina acessível. o Rui Horta viu a minha apresentação do Dueto, e pensou em colocar a peça no CCB. (Vou cair para o lado.) o Coliseu do Porto também me quer no espectáculo de circo de Natal e o TBA já marcou a estreia da minha peça. (Nem sei onde existo, sortuda dum raio.) o Poeta quer que conheça a companheira dele. (Não estou cheia de vontade de o fazer, mas faço-o por respeito. Só será estranho nos primeiros 5 minutos.) De certa forma, fico meia neurótica, ele não me sai da cabeça. Parece uma história de amor. (Mas ele namora, Diana.) — Quero beijar-te o pescoço — diz. — Foda-se. o Poeta abre a minha porta de casa, com a minha chave. A Nina fica histérica, e o meu cão deficiente, o Gastão, começa a morder-lhe as patas, mando-os sentar. (Estou farta de dar aulas online.) Queria deitar-me na minha cama, junto dele, em silêncio. Não digo nada. Encomendo uns noodles para almoçarmos. o Poeta senta-se na cadeira de rodas, olha para mim e sorri. Sinto-me corar. — Vai ser estranho! — Sim, vai! — Como é que eu vou estar ao pé de ti com ela? — Mas ela sabe de tudo, à excepção do que me pediste para não lhe contar. — Não estou a perceber. Ela sabe que tu me querias beijar o pescoço? — Sabe. E deu-me liberdade para fazer o que sentir. Mas não ficaste esclarecida com a nossa última conversa? — Esclareci que me querias beijar o pescoço, e que gostamos um do outro. — Nós abrimos a relação!
22 de Abril de 2020 Na casa da janela partida, tiro a terra das meias e das botas. Alguém entra no andar de cima. Faço silêncio. À mesa recordo a conversa com todos os que morreram. Acordo. 211
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Diana Niepce (1985) é bailarina, coreógrafa e escritora. Formou-se na Escola Superior de Dança (Lisboa), fez Erasmus na Teatterikorkeakoulun (Helsínquia), uma pós-graduação em Arte e Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, completou a formação CGPAE do Forum Dança e é também professora habilitada de hatha yoga. É criadora da peça de circo contemporâneo Forgotten Fog (2015) e das peças de dança Raw a nude (2019), 12 979 Dias (2019), Dueto (2020) e Duetos (2020). Enquanto bailarina e performer colaborou com o Bal Moderne | Rosas, Felix Ruckert, Willi Dorner, Antonio Tagliarini, Daria Deflorian, La Fura dels Baus, May Joseph, Sofia Varino, Miira Sippola, Jérôme Bel, Ana Borralho e João Galante, Ana Rita Barata e Pedro Sena Nunes, Mariana Tengner Barros, Rui Catalão, Rafael Alvarez, Adam Benjamin, Diana de Sousa e Justyna Wielgus. Fez direcção artística e foi docente na Formação de introdução às Artes Performativas para Artistas com Deficiência na Biblioteca de Marvila – CML (2020). Publicou um artigo no livro Anne Teresa de Keersmaeker em Lisboa (ed. EGEAC/ iNCM), o conto infantil Bayadère (ed. CNB), o poema «2014» na revista Flanzine e o artigo «Experimentar o corpo» no jornal de artes performativas Coreia. Foi jurada do prémio Acesso Cultura 2018 e do Festival inShadow 2018.
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© Teatro Praga / Sistema Solar (chancela ed._________ ), 2021 Textos e imagens © os Autores Fotografias Alípio Padilha, p. 213 1.ª edição, Abril de 2021 500 exemplares iSBN 978-989-9006-76-8 Concepção gráfica Horácio Frutuoso impressão e acabamento Europress Rua João Saraiva, 10 A 1700-249 Lisboa, Portugal Depósito legal 482353/21 Esta publicação recebeu o apoio da República Portuguesa – Cultura | DGARTES – Direção-Geral das Artes, bem como do Teatro do Bairro Alto no âmbito da estreia do espectáculo Anda, Diana de Diana Niepce no TBA, de 20 a 24 de Abril de 2021
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