Antonin Artaud, «Van Gogh o Suicidado da Sociedade»

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Auto-retrato de Antonin Artaud


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Antonin Artaud

VA N GOGH O SUICIDADO DA SOCIEDA DE

tradução, apresentação e notas

Aníbal Fernandes


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TÍTULO ORIGINAL: VAN GOGH LE SUICIDÉ DE LA SOCIETÉ

© SISTEMA SOLAR, CRL (2018) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES

NA CAPA: UM AUTO-RETRATO DE VAN GOGH E UMA FOTOGRAFIA DE ARTAUD

REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE

1.ª EDIÇÃO, SETEMBRO DE 2018 ISBN 978-989-8833-31-0


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índice Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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introdução [Pode falar-se da boa saúde mental de Van Gogh,] . . . .

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o suicidado da sociedade [A pintura linear pura] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Desenhar o que é?] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [Como parece fácil escrever assim.] . . . . . . . . . . . . Post Scriptum. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . [A propósito de Van Gogh,]. . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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apêndice: textos a propósito de van gogh . . .

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Van Gogh apareceu à venda nas livrarias em 15 de Dezembro de 1947, quase dez meses depois de uma escolha significativa das telas do pintor ter sido exposta no museu da Orangerie, em Paris. A Antonin Artaud — saído de um longo internamento em asilos psiquiátricos, a sofrer a fase terminal de um cancro — só restariam três meses de vida. A conjunção deste factor emocional e uma grande surpresa (a atribuição, que lhe foi feita, do prémio Sainte-Beuve na categoria ensaio) talvez possam explicar a tiragem imediata de quase seis mil exemplares, êxito de público sofrível mas desconhecido até à data com uma obra do autor. Libertado, enfim, do asilo de Rodez, Artaud mostrava a sombra ressequida do actor que muitos tinham conhecido, cravava a sua faca-fetiche em mesas de cafés que lhe consentiam o espectáculo de uma agressividade inofensiva, exibia na rua grandes tempestades verbais. São muitos os testemunhos escritos desta perturbante aparição, por exemplo o de Claire Goll: «O jovem actor de beleza radiosa transformara-se num fantasma descarnado, sem dentes, febril. […] Eu distinguia-lhe a caveira por baixo da pele. Falava sozinho. A sua paranóia servia de muralha para resistir à agressão da sociedade. Incompreendido, rejeitado pela família, sabia que ia morrer antes de começar a existir. Só lhe restavam insultos e sufocações para afirmar que tinham roubado a sua vida antes de ele próprio poder realizar-se»*. A par deste comportamento, Artaud surpreendia os mais próximos com uma lucidez transtornada, um estado de invectiva perante os * Claire Goll, La Poursuite du Vent (com Otto Hahn), Olivier Orban, Paris, 1976.


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«normais» alimentado por convulsões poéticas com fascínio mal conhecido na literatura. É, pois, previsível que a exposição da Orangerie surgisse a amigos seus como oportunidade de assistir à detonação deste Artaud crispado perante o desfile de corvos, céus alucinados, faces auto-reflectidas em tensão de um Van Gogh também ele acusado de loucura. Pierre Loeb (o galerista de arte que já então preparava a primeira mostra pública dos desenhos de Artaud) parece ter tido um papel determinante neste «encontro», como veio a contar mais tarde: — «Por que não escreve um livro sobre Van Gogh?» Ao que ele teria respondido: — «Muito boa ideia, vou fazê-lo já.» Loeb acrescenta mais pormenores para uma lenda: «Subiu apressadamente ao andar de cima, instalou-se à mesa, e com letra rápida e nervosa redigiu em cadernos escolares e quase sem rasuras, sem passagens refeitas, em duas tardes, um texto admirável que conhecemos, Van Gogh o Suicidado da Sociedade»*. Estão hoje esclarecidos os desvios desta memória talvez interessada em acrescentar mais prodígio ao texto que não necessita dele para consolidar uma posição alta na obra escrita do autor. Artaud tinha feito uma passagem rápida pelos quadros expostos, incomodado com a multidão que afluía à Orangerie; tinha visto muito de Van Gogh com esse olhar apressado e limitador, dir-se-ia, em qualquer outro decidido a desvendar o homem que tinha estado ao pé do fogo, como veio Artaud a dizer na dedicatória de um exemplar do livro. Mas ao invés deste repentismo cantado por Loeb, Artaud só escreveu as primeiras notas para o futuro texto quatro dias depois da visita à Orangerie; e demorou vinte e dois a completar uma primeira versão, muito alterada quando decidiu ditá-la a Paule Thévenin, mais alterada * Pierre Loeb, «Dessinateur et Critique», Cahiers de la Compagnie Madeleine Renaud et Jean-Louis Barrault, n.º 22/23, Paris, 1958.


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ainda quando reviu as primeiras e as segundas provas tipográficas para a K éditeur. De tudo isto — destas revisões, destes cortes que reduzem quase a metade o texto do primeiro impulso — resultou o «seu» Van Gogh, entregue ao público num estado que parece perseguir a dimensão do indizível, explodido entre sentidos os mais violentos e expressivos da palavra. Artaud surpreendeu. Saía do seu abismo para habitar verdades mal reconhecidas pelos juízos «normalizantes», a falar de si com o pretexto de outro como ele, suicidado pela hostilidade geral aos que preferem ficar doidos, no sentido em que socialmente o entendemos, a envergonhar uma certa ideia superior de honra humana. A uma luz selvagem Artaud pintava-se já na morte, com a morte de Van Gogh. Entre os outros e o seu corpo tentava interpor aquela dureza que petrifica a alma mantendo-a móvel, disse ele uma vez, e vazia. E surgiu assim num ponto alto (o mais alto, preferem alguns) da sua ebulição interna. Muito mais tarde, em 1959, a revista La Tour de Feu perguntou a André Breton o que pensava sobre a doença de Artaud. Trinta anos antes, Breton tinha expulsado e substituído Artaud na direcção do Centro de Estudos Surrealistas com uma justificação bem soante que ocultava motivações políticas: «O lugar onde Artaud me introduziu dava-me sempre a impressão de um lugar abstracto, de uma galeria de espelhos»* tinha de outra vez subido a um palco onde se representava Strindberg, para o agredir; por sua vez Artaud zangara-se num texto chamado «A Grande Noite ou o Bluff Surrealista». A passagem dos anos, a agonia de um Movimento (o Surrealista) tinham amaciado relações; e a má-consciência de uns tantos, consolada na passividade colectiva que assistiu ao internamento de Artaud em asilos psiquiátricos sem razões muito credíveis que o justificassem, * André Breton, Entretiens, Editions Gallimard, Paris, 1952.


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ajudavam ao esforço da reparação. Um ano antes de ter sido publicado Van Gogh, já Breton tinha lido em público a sua «Homenagem a Antonin Artaud», depois incluída em La Clé des Champs. Em 1959 respondeu assim: «A doença de Antonin Artaud não foi das que arrastam consigo, no sentido psiquiátrico, um défice intelectual. É um erro muito difundido acreditar que a ideação, nestes casos, está comprometida de raiz e são afectados todos os territórios que dependem dela. As coisas não são tão simples. No que respeita a Artaud, grandes desvios do julgamento sobre os fins últimos, extremas violências que espumam numa completa incontinência verbal, manifestam uma tensão interna da mais pungente espécie, e nada existe que possa impedir-nos de ficar demoradamente abalados com eles. No estado actual dos nossos conhecimentos seria demasiado ambicioso querer explicar por que efeito de conjuração “em espelho” pôde Artaud, pouco antes de morrer, realizar a obra hiper-lúcida, a obra-prima incontestável que o seu Van Gogh é.» E acrescentou, a projectá-lo em todos os futuros: «O grito de Artaud — como o de Edvard Munch — parte das “cavernas do ser”. A juventude há-de reconhecer sempre como sua esta auriflama calcinada»*. Previsão que não cumprirá o seu percurso sem equívocos. A voz de Artaud rodeia-se de complexidades, sombras, um transtorno das normalizações pouco propício à energia dos grandes movimentos da juventude. Em 1965, os beatnik, os pop, elegeram-no como maníaco da droga, louco sexualmente ambíguo e precursor da pop-art, encarnação das obsessões de uma certa América. Uma antologia dos seus textos apareceu em São Francisco desvirtuando o significado de algumas páginas de Os Tarahumaras. A agitação de Maio de 68 aprovei* «Breton parle d’Artaud pour “La Tour de Feu”», La Tour de Feu, n.º 63/64, Charente, 1959.


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tou a sua «Carta aos Reitores das Universidades Europeias» e algumas frases da conferência no Vieux-Colombier para uma caução que resistia pouco, mal se ultrapassavam aparências. Mas nada disto minará a grandeza deste poeta do outro lado do entendimento universal. Nem embaciará a luz que lhe rompe o espelho para atingir em fulgurância — possa às vezes não perceber-se como — quem vive pacificado pelas fronteiras da razão humana. A.F.


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INTRODUÇÃO


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Pode falar-se da boa saúde mental de Van Gogh, que durante toda a vida só assou uma das mãos, e quanto ao resto mais não fez do que cortar uma vez a orelha esquerda 1, num mundo onde se come todos os dias vagina cozida com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e enraivado, como o apanham à saída do sexo materno. E não se trata de imagem mas de um facto quotidiana e abundantemente repetido e cultivado por toda a terra. Por isso, e muito delirante possa parecer esta afimação, a vida presente continua na velha atmosfera de estupro, anarquia, desordem, delírio, desregramento, loucura crónica, inércia burguesa, anomalia psíquica (pois não foi o homem mas o mundo que se transformou num anormal), de desonestidade assumida e hipocrisia insigne, desprezo porcalhão por tudo quanto exibe raça, reivindicação de uma ordem toda baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça, de crime organizado enfim. Isto corre mal porque a consciência enferma, na hora que passa tem um capital interesse em não sair da sua enfermidade. Por isso, uma sociedade com tara inventou a psiquiatria para se defender das investigações de certas lucidezes superiores com faculdades de adivinhação que a incomodavam. Gérard de Nerval não era doido mas acusaram-no disso para lançar descrédito a certas revelações capitais que estava prestes a fazer,


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e não só foi acusado mas também atingido na cabeça, certa noite bateram-lhe fisicamente na cabeça para perder a memória dos factos monstruosos que ia revelar e nele passaram, por acção dessa pancada, ao plano supranatural porque a sociedade inteira, ocultamente ligada contra a sua consciência, foi no momento bastante forte para fazê-lo esquecer-se da realidade dela. Não, Van Gogh não era doido mas as suas pinturas eram foguetes incendiários, bombas atómicas cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras pinturas que na época faziam estragos, foi capaz de perturbar com gravidade o conformismo larvar da burguesia Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta e Félix Faure, tal como os de Napoleão III. Porque não é um certo conformismo nos costumes que a pintura de Van Gogh ataca, mas o das próprias instituições. E a própria natureza exterior com os seus climas, as suas marés e tempestades de equinócio, depois da passagem de Van Gogh pela terra já não consegue manter a mesma gravitação. Com mais forte razão, no plano social as instituições desagregam-se, e a medicina faz figura de cadáver imprestável e corrompido que declara Van Gogh doido. Perante a lucidez do Van Gogh que trabalha, a psiquiatria não passa de um reduto de gorilas, eles próprios obcecados e perseguidos e que só têm, para disfarçar estados de angústia e sufocação humanas os mais assustadores, uma terminologia ridícula, produto digno dos seus miolos com tara. Com efeito, não há psiquiatra que não seja um notório erotómano. E não acredito que a regra da erotomania inveterada dos psiquiatras possa tolerar qualquer excepção. Sei de um que há anos se encrespou com a ideia de me ver acusar assim, por atacado, todo o grupo de altos crápulas e intrujões com título a que ele pertencia.


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Eu cá, Senhor Artaud, não sou erotómano, disse-me ele, e até lhe faço o desafio de me mostrar um só dos elementos em que baseia a sua acusação. Como elemento basta eu mostrar-lhe a sua pessoa, doutor L.2, reles sacana de um raio que traz o estigma estampado nas ventas. É focinho de quem mete debaixo da língua a presa sexual e depois lhe dá voltas, como a uma amêndoa, que é uma certa forma de fazer dela gato-sapato. Chama-se a isto ganhar muita massa e mostrar o poleiro. Desde que o senhor, no coito, não consiga grugulejar com a glote de uma maneira que conhece, e ao mesmo tempo fazer glu-glu com a faringe, o esófago, a uretra e o ânus, não pode dar-se por satisfeito. E no seu sobressalto orgânico interno há uma certa mania que o senhor apanhou e é testemunho encarnado de um estupro nojento, e ano após ano cultiva-a cada vez mais porque não cai, socialmente falando, sob a alçada da lei embora caia sob a alçada de outra lei onde está toda a consciência lesada que sofre porque o senhor, ao comportar-se deste modo, impede-a de respirar. Decreta delírio à consciência que trabalha enquanto a estrangula, por outro lado, com a sua reles sexualidade. E aqui, neste mesmo plano, é que o pobre do Van Gogh era casto, casto como serafim ou virgem não pode sê-lo por terem sido exactamente eles quem fomentou e na origem alimentou a grande máquina do pecado. Aliás, doutor L., talvez o senhor seja da raça dos serafins iníquos, mas tenha a bondade de deixar os homens em paz,


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o corpo de Van Gogh isento de todo o pecado também foi isento da loucura, que aliás só o pecado provoca. E não acredito no pecado católico, embora acredite no crime erótico a que todos os génios da terra, os alienados autênticos dos asilos, precisamente, se furtaram ou de outro modo não teriam sido (autenticamente) alienados. E o que é alienado autêntico? É um homem que preferiu ficar doido, no sentido em que socialmente o entendemos, a envergonhar uma certa ideia superior de honra humana. Por isso a sociedade mandou estrangular nos seus manicómios todos aqueles de quem quis livrar-se ou defender-se por recusarem ser cúmplices, com ela, de certas e subidas indecências. Porque o alienado também é um homem que a sociedade não quis ouvir e quis impedir de formular verdades insuportáveis. Mas neste caso o internamento não é única arma, e a reunião concertada dos homens tem outros meios para conseguir dar cabo das vontades que pretende quebrar. Para além dos banais bruxedos dos feiticeiros da província, há os grandes passes globais de bruxaria em que toda a consciência alertada periodicamente participa. Por isso a consciência unânime é interrogada e se interroga por ocasião de uma guerra, revolução, agitação social ainda no ovo, e também emite o seu juízo. Pode ainda acontecer-lhe que a provoquem e projectem para fora de si mesma a propósito de alguns casos individuais retumbantes. Por isso houve bruxarias unânimes a propósito de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge, e houve-as a propósito de Van Gogh.


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Podem acontecer durante o dia, mas em geral é preferível acontecerem durante a noite. Por isso estranhas forças são sublevadas e levadas ao firmamento astral, a essa espécie de abóbada escura que acima de toda a respiração humana forma a agressividade peçonhenta do mau espírito da maior parte das pessoas. Por isso umas quantas boas-vontades raras e lúcidas tiveram de lutar na terra, e a certas horas do dia ou da noite se vêem no fundo de certos estados de pesadelo autênticos e acordados, cercadas pela formidável sucção, pela formidável opressão tentacular de uma espécie de magia cívica que havemos de encontrar, não tarda, nos costumes a descoberto. Perante esta indecência unânime que tem por base ou ponto de apoio o sexo, de um lado, e aliás do outro a missa ou certos rituais psíquicos, não é delírio passear de noite com doze velas presas ao chapéu para pintar do natural uma paisagem3; porque o pobre do Van Gogh, que outra coisa poderia ter feito para se iluminar?, notava-o há dias e muito a propósito um amigo nosso, o actor Roger Blin. Quanto à mão assada, trata-se de heroísmo puro e simples, quanto à orelha cortada, trata-se de lógica directa e, repito, um mundo que dia e noite, e cada vez mais, come o incomestível para levar a sua má-vontade aos seus fins, quanto a isto só tem que calar o bico.


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post scriptum Van Gogh não morreu de um estado de delírio seu mas por ter sido corporalmente campo de um problema à volta do qual se debate desde as origens o espírito iníquo desta humanidade. O da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outra. E neste delírio onde fica o lugar do eu humano? Durante toda a vida Van Gogh procurou o seu com energia e determinação estranhas, e não se suicidou num ataque de loucura, no transe de lá não chegar, pelo contrário, acabava de lá chegar e descobrir o que era e quem era quando a consciência geral da sociedade, como castigo de ele se ter extirpado dela, o suicidou 4. Isto aconteceu com Van Gogh, como é hábito acontecer sempre que há uma bacanal, uma missa, uma absolvição geral ou qualquer outro rito de consagração, possessão, sucubação ou incubação. Meteu-se-lhe pois no corpo esta sociedade absolvida, consagrada, santificada, e possessa,


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apagou nele a consciência sobrenatural que acabava de ganhar e, como uma inundação de corvos negros nas fibras da sua árvore interna, submergiu-o num derradeiro acesso, e, tomando-lhe o lugar, matou-o. Porque é lógica anatómica do homem moderno só conseguir viver, ou pensar em viver, como um possesso.


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O SUICIDADO DA SOCIEDADE


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A pintura linear pura desde há muito tempo me deixava louco quando encontrei o Van Gogh que pintava, não linhas ou formas mas coisas da natureza inerte como em plena convulsão. E inertes. Como sob a invectiva terrível desta força de inércia que toda a gente refere a meias palavras, e nunca tão obscura como depois de a terra inteira e a vida presente se intrometerem para elucidá-la. Ora, com o seu golpe inesperado, na verdade com o seu golpe inesperado é que Van Gogh não pára de atingir todas as formas da natureza e os objectos. Cardadas pelo prego de Van Gogh, as paisagens mostram a carne hostil, o azedume das sinuosidades esventradas, ao ponto de não sabermos que força estranha se encontra, por outro lado, a fazer metamorfoses. Uma exposição de quadros de Van Gogh é sempre uma data na história, não na história das coisas pintadas mas na história histórica e mais nada. Porque não há fome, epidemia, explosão de vulcões, tremor de terra, de guerra, que arrepele as mónades do ar, torça o pescoço à cabeça torva de fama fatum5, o destino nevrótico das coisas, como uma pintura de Van Gogh — levada à luz do dia, reentregue à própria vista,


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ao ouvido, ao tacto, ao cheiro, nas paredes de uma exposição — enfim atirada, nova em folha, à actualidade corrente, reintroduzida na circulação. Na última exposição de Van Gogh, no palácio da Orangerie, não há todas as muito grandes telas do infeliz pintor. Mas entre as que estão há desfiles giratórios constelados por tufos de plantas de carmim, caminhos escavados que um teixo remata, sóis violáceos a rodar sobre medas de trigo de ouro puro, Pai Tranquilo6 e retratos de Van Gogh por Van Gogh que bastam para lembrar de que simplicidade sórdida de objectos, pessoas, materiais, elementos, Van Gogh extraiu estas espécies de canto de órgão, estes fogos-de-artifício, estas epifanias atmosféricas, esta «Grande Obra», enfim, de uma sempiterna e intempestiva transmutação. Não mais do que as outras suas telas, estes corvos pintados dois dias antes de morrer 7 lhe abriram a porta de uma certa glória póstuma; mas através da porta de um além enigmático e sinistro, que Van Gogh abriu, abrem à pintura pintada, melhor dizendo, à natureza não pintada, a porta oculta de um além possível, de uma realidade permanente possível. Não é vulgar ver-se um homem, com o tiro de espingarda no ventre que o matou, encaixar numa tela corvos negros que têm por baixo uma espécie de planura talvez lívida, seja como for vazia, onde a cor borra-de-vinho da terra se confronta desvairadamente com o amarelo-sujo dos trigos. Contudo, para pintar os seus corvos, nenhum pintor além de Van Gogh saberia, como ele soube, encontrar-lhes aquele negro de túberas, aquele negro de «petisco caro» e como que excremencial ao


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apêndice TEXTOS A PROPÓSITO DE VAN GOGH


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Eu quero dizer que a erotomania não é um vício passageiro. Não é um vício executado nas trevas, mas em pleno dia, em ondas, em sucessões, em precessões, em sequelas onde participam em certos pontos da terra centenas ou milhares de pessoas que têm à sua volta este acompanhamento que engrossa hora a hora ao longo das noites, da fantasmagoria de milhares de espíritos, mas um ritual cuidadosamente mantido e todos os dias repetido através de toda a terra e que se investe de um número, de importância, intensidade, quantidade, de infinitamente mais importância do que todas as buscas dos sábios à volta do urânio, do hélio, da bomba atómica, da electricidade atómica, ou dos médicos, psicólogos e psicanalistas à volta do inconsciente. E conheço mais do que um sábio russo ou americano que numa grande farra encontrou a solução de muitos dos problemas eléctricos e atómicos até ali completamente fechados. Quando falo de vagina cozida, é porque em determinado momento da farra são cozidos sexos de mulher ou órgãos de recém-nascidos, não em imagem mas de facto, e isto é mesmo e realmente assim, quero dizer que através de pavorosas indecências deste género é que a vida actual mantém a sua espantosa cacofonia.


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Apêndice

E não é o que consegue restar das raças que ainda se encharcam num fundo de primitiva selvajaria e se atiram gulosamente a manobras desta ordem, mas pelo contrário todo este magma purulento da casta dos altos burgueses libertos da consciência e do espírito: padres, sábios, médicos, professores, bonzos, rabinos, imãs, lamas, brâmanes, ioguis, gurus, sufis, muftis, párias, cenobitas, ravis, nabis, faquires, muezins, com activos agrupamentos que não só se encontram no mais longínquo do Himalaia, do Cáucaso ou dos Andes, mas neste momento (o Inverno de 1947), sobretudo nos Cárpatos, na Europa Central, nos Alpes, nos Pirenéus, nas Cévennes, e em Paris. E se isto corre mal é porque a consciência toda ela doente tem nesta hora um interesse capital em não sair da sua doença. Porque a desordem, a injustiça, a insegurança, a sânie, o crime não podem deixar de ser o fundo de toda a verdadeira sociedade. Caso contrário seria o fim do reino dos monopolistas, dos aproveitadores, dos iniciados, iniciadores, flâmulos e outros protectores de uma consciência perpetuamente infantilizada.


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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe


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Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J.-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão Veneno, Pedro Antonio de Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky


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A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, Isadora Duncan Rakhil, Isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph Roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph Conrad Eu, Antonin Artaud, Antonin Artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud


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